REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202505112239
Aryel Cerqueira Alvares1
Gabriel Gualhanone Nemirovsky2
RESUMO
Os serviços públicos constituem parte essencial de qualquer ente público, independente de esfera e poder. O processo de transformação do serviço público, com base nos princípios da administração geral e pública, tais como eficiência, sustentabilidade e economicidade, têm o potencial de beneficiar a população atendida em diversas áreas. Contudo, os entraves legais-burocráticos podem limitar esse desenvolvimento e colocar em vias opostas os princípios da legalidade e o da eficiência, os quais, no caso do Brasil, são parte de um rol de princípios constitucionais independentes e harmônicos entre si. De forma extraordinária, o cenário pandêmico demonstrou a viabilidade de implementação de TICs na prestação de serviços ao cidadão, mesmo que em muitos casos, à revelia de regulamentação estatal. Com base nesse cenário, trata-se este estudo de um ensaio teórico a respeito do histórico e dos entraves aos processos de transformação na área e suas limitações.
Palavras-chave: Serviço Público, Cidadão, Atendimento, Digitalização, Inovação
1. INTRODUÇÃO
A administração pública brasileira passou, e ainda passa, por diferentes momentos e modelos de gestão, os quais emergiram à medida em que o desenvolvimento do país de forma geral, mas sobretudo, da economia, passou a exigir mudanças na atuação do estado brasileiro. Veremos ao longo deste estudo detalhes sobre cada momento vivido. Vale destacar que na atualidade, vivemos uma realidade de economia digital.
A economia digital, nas palavras de Baryshev et al. (2020), abrange a sociedade como um todo, e a transição de um modelo tradicional para um modelo de economia digital, melhora a qualidade de vida da população. A administração pública em sentido estrito, que contempla os órgãos da administração direta e as entidades da administração indireta, é um importante player da economia.
Na economia brasileira, o estado participa de forma expressiva, sobretudo por meio das entidades públicas de direito privado, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, a exemplo dos bancos públicos.
O conceito de serviço público compreende a gestão pública, que de forma sucinta, corresponde ao “fazer administrativo”, o qual podemos entender como o conjunto de práticas administrativas exercidas com o intuito de atingir os objetivos públicos. É a evolução dessas práticas que, para Paula (2005), permanecem como desafio, não apenas para as ciências administrativas, como também para as demais ciências sociais aplicadas, como a ciência política.
O objetivo central deste estudo é resgatar e contextualizar, por meio de uma análise histórica da administração pública brasileira, com base na legislação pertinente e na ciência administrativa, como ocorreram as mudanças e os entraves que limitaram e ainda tem o potencial de limitar o processo de transformação do serviço público, sobretudo, do ponto de vista tecnológico, analisando as variáveis que podem colaborar para que esse resultado seja ou não atingido.
2. EXPOSIÇÃO DO CASO
Na atualidade, uma das práticas de governo digital, ou simplesmente “e-gov”, que exemplifica como o serviço público brasileiro tem se mobilizado para atender as demandas de uma sociedade e economia digitais é o “processo eletrônico”, ou como também é conhecido, “processo digital”.
A exemplo do Poder Judiciário, em “O Espírito das Leis”, Montesquieu (2000) cita que as formalidades da justiça em sua época eram um ultraje que geravam dificuldades ao cidadão. Hoje, com o peticionamento e a tramitação eletrônica dos processos, essas dificuldades não existem mais ou foram reduzidas ao mínimo. Tais transformações foram fundamentais para aumentar a qualidade e a celeridade dos serviços judiciais e melhorar o atendimento aos jurisdicionados.
Contudo, da mesma forma que o exemplo é positivo, demonstra as desigualdades regulatórias e procedimentais entre áreas dentro da própria administração pública. Exemplificando, dentro de uma mesma esfera estadual, é possível que o Poder Judiciário tramite os processos de sua competência eletronicamente, enquanto o Poder Executivo o faz por meio físico. Essa diferença, de uma forma, demonstra a independência e harmonia entre os poderes, ao passo que um não impõe obrigações ao outro fora de sua competência, mas obriga os administrados a peticionar e se relacionar de diferentes formas com o poder público em busca do atendimento das suas demandas, o que tem o potencial de constituir uma limitação ao usufruto de direitos.
Essa diferença decorre dos diferentes instrumentos regulatórios que regem os diferentes tipos de processo que afetam os cidadãos. Ao avaliar o processo administrativo e o processo judicial, este contém arcabouço jurídico mais denso, a exemplo dos códigos de processo civil, de processo penal e de processo trabalhista. O processo administrativo, em âmbito federal, contém apenas um dispositivo legal que o rege e ainda sim de forma generalista, modelo seguido pela maioria dos estados e municípios. Dessa forma, para o pleno funcionamento da máquina pública faz-se necessário a instrumentalização da administração por meio de uma série de normas infralegais, como decretos executivos, resoluções e instruções normativas. Tomaremos a esfera federal como exemplo no decorrer deste estudo e não abordaremos o processo legislativo, pelo fato da participação popular ocorrer predominantemente de forma indireta, por meio dos representantes eleitos pela sociedade em sufrágio universal.
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Desde o término do processo de independência do Brasil, o estado brasileiro esteve sob diferentes formas de estado e governo. Inicialmente, instituiu-se o “Império do Brasil”, organizado em províncias, com constituição outorgada em 1824. Mais de seis décadas depois, em 1889, foi constituída a “República dos Estados Unidos do Brasil”, já na forma de estado federado, cuja constituição foi promulgada em 1891, a primeira carta magna republicana.
Segundo Bresser Pereira (1996), vivia a administração pública brasileira tanto no período imperial quanto nesse primeiro momento republicano, uma “administração pública patrimonialista”, por meio da qual os bens públicos e privados se confundiam nas mãos do gestor e práticas como o empreguismo, que consiste em empregar pessoas em funções públicas por critérios subjetivos e/ou políticos, e o nepotismo, eram a regra.
Cristina e Osório de Castro (2014) demonstram que, somente na chamada “Era Vargas”, em 1936, com a criação do “Departamento de Administração do Setor Público (Dasp)”, houve a primeira intenção de modernizar a administração pública brasileira. Esse foi considerado o marco inicial da administração burocrática como tentativa de romper o patrimonialismo vigente.
Segundo Paludo citado pelas autoras (2014), além de reorganizar a administração pública e definir políticas para a gestão de pessoal, um dos objetivos desse departamento era racionalizar os processos administrativos de forma geral. Por outro lado, Bresser Pereira (1996) traz que a eficiência prometida por uma gestão burocrática moderna racional-legal não se mostrou real, porque a administração burocrática naquele momento se mostrou lenta, cara e de baixa qualidade em relação aos serviços prestados.
Mais de três décadas depois, já no período do regime militar, foi publicado o Decreto-Lei nº 200 de 25 de fevereiro de 1967, que organizou a administração pública federal em sentido estrito, com dispositivos vigentes até a atualidade. Um exemplo é a estruturação da administração pública em direta e indireta, sendo esta composta por autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas (Brasil, 1967).
Para Bresser Pereira (1996), essa divisão foi concebida com o objetivo de descentralizar o poder e superar a rigidez do modelo de administração burocrática. Cristina e Osório de Castro (2014) reforçam que, nesse período, o governo vigente tentou introduzir valores gerenciais na gestão pública, corroborando Bresser. Essa foi a primeira tentativa de introdução do modelo de administração pública gerencial no Brasil.
Anos mais tarde, foi instituído o “Programa Nacional de Desburocratização”, por meio do Decreto nº 83.740 de 18 de julho de 1979, elaborado pela Secretaria de Modernização, criada em 1970 (Brasil, 1979). O referido decreto previa no art. 2º a assistência de um ministro extraordinário na execução dessa tarefa. Para tanto, foi nomeado Hélio Brandão para exercer o cargo de Ministro Extraordinário da Desburocratização. Vale destacar o inciso “b” do artigo 3º:
b) reduzir a interferência do Governo na atividade do cidadão e do empresário e abreviar a solução dos casos em que essa interferência é necessária, mediante a descentralização das decisões, a simplificação do trabalho administrativo e a eliminação de formalidades e exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco. (1979, Brasil)
Percebe-se uma preocupação, desde então, para o caso estudado, contudo, não com o objetivo de otimizar a prestação dos serviços públicos, mas sim, de limitá-los, diminuindo a participação estatal na vida do cidadão. Segundo Cristina e Osório de Castro (2014), nos anos 80, o programa foi direcionado para ações de privatização, com o intuito de transferir para a iniciativa privada os serviços considerados como não essenciais. Os serviços que foram considerados essenciais eram os relacionados à saúde, vida ou liberdade do cidadão, além dos relacionados à segurança nacional, pública e o serviço judiciário.
Na década de 1990, já na vigência da atual constituição brasileira (1988), foi criado o “Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (Pdrae)” pelo então Ministro da Administração e Reforma do Estado (Mare), Luiz Carlos Bresser Pereira. Segundo Cristina e Osório de Castro (2014), esse plano objetivava tornar o Estado mais eficaz e moderno por meio da retomada do movimento da administração gerencial, que ajudou a propagar a crença de que a iniciativa privada era mais eficiente que o poder público na consecução dos seus objetivos.
Nesse plano, também ganhou destaque o paradigma do cidadão-cliente dos serviços públicos. Segundo Paludo apud Cristina e Osório de Castro (2014), o objetivo da gestão pública era satisfazer as necessidades e expectativas desse cidadão cliente, melhorar a qualidade de vida da população, reduzir custos e melhorar continuamente os processos.
Foi um plano baseado no neoliberalismo econômico, que nas palavras de Harvey (2008), é inicialmente uma teoria de práticas político-econômicas, as quais sustentam que o status de bem-estar social é mais facilmente atingido por meio das capacidades empreendedoras individuais do cidadão, ou seja, serviços prestados de pessoas para pessoas com menor ou nenhuma participação estatal, o laissez-faire, a depender da área de atuação.
Segundo Paula (2005), esse plano também foi baseado na chamada “teoria da escolha pública”, que se baseava na crítica à burocracia estatal, aplicando princípios econômicos para explicar temas de interesse público. Contudo, no final da década, o resultado da conjuntura de todos esses processos não atingiu o objetivo geral, que era o de melhorar a prestação dos serviços públicos para o cidadão-cliente brasileiro. No segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, o “Mare” foi extinto e as suas atribuições foram absorvidas pela Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (Seges/Mpog).
A secretaria continuou o trabalho iniciado pelo ministério, contudo, estendeu o universo de aplicação aos níveis operacionais dos organogramas dos órgãos e entidades públicas brasileiras, abrangendo também, estados e municípios. Essa mudança estrutural no plano pode ser vista de forma positiva em um primeiro momento, entretanto, acabou por enfraquecê-lo, não atingindo o objetivo de implementar os novos modelos organizacionais em escala satisfatória, ocasionando a sua execução concomitantemente com os modelos antigos, gerando a situação descrita na exposição do caso deste estudo.
Para contextualizar, foi elaborado para este estudo um exemplo utilizando duas secretarias essenciais e presentes em qualquer estrutura pública municipal; uma secretaria de fazenda e uma secretaria de infraestrutura, no próximo parágrafo.
Suponhamos que o prefeito de um município hipotético de pequeno porte delegou aos secretários municipais a prerrogativa de aderir ou não ao plano, e que o secretário de fazenda tenha aderido e implementado nas repartições de sua competência, ao contrário do secretário de infraestrutura, que o rejeitou. A partir desse cenário, um cidadão precisa peticionar ao poder executivo municipal duas demandas distintas com o mesmo objeto: um recálculo do valor do IPTU de um terreno e a revisão de sua demarcação.
Por ser de pequeno porte, o hipotético município não tem na sua estrutura organizacional um protocolo central, logo, os cidadãos recorrem diretamente às secretarias de forma individualizada. Dessa forma, o cidadão terá experiências completamente distintas em cada processo de atendimento, e produzirá juízo de valor sobre um atendimento em detrimento do outro, visto que, ao se reportar ao mesmo município, ainda que por meio de secretarias distintas, o melhor atendimento torna-se referência de qualidade para os demais no ponto de vista do cidadão-cliente.
Em parte, a situação hipotética demonstrada acima é fomentada pela falta de um código de processo administrativo unificado, como o que ocorre predominantemente no poder executivo dos estados e da união. Vejamos o exemplo da esfera federal, materializado pelo disposto nos capítulos VIII e X do dispositivo legal que rege o atendimento prestado e os processos administrativos no âmbito da administração pública federal, a lei nº 9.784 de 1999:
CAPÍTULO VIII
DA FORMA, TEMPO E LUGAR DOS ATOS DO PROCESSOArt. 22. Os atos do processo administrativo não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir.
(…)
CAPÍTULO X
DA INSTRUÇÃOArt. 29. § 2o Os atos de instrução que exijam a atuação dos interessados devem realizar-se do modo menos oneroso para estes (1999, Brasil).
Ao passo que a lei “relaxa” o seu caráter vinculatório a partir do disposto no art. 29, quando desonera o administrado no processo, acaba dificultando ao determinar que os atos do processo não dependem de forma determinada, conforme disposto no art. 22. exceto quando lei o exigir, diferentemente do que ocorre no poder judiciário, conforme citado na exposição de caso e no exemplo dos resultados do “Pdrae” deste estudo.
Entretanto, apesar desse cenário, os processos administrativos ainda permanecem vinculados aos princípios da administração pública brasileira elencados na carta magna brasileira vigente, conforme segue:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…) (Brasil, 1988).
Encontramos a definição do princípio da legalidade nas palavras de Vedel e Devolvé apud Di Petro (2023), por meio das quais o direito administrativo é considerado o direito dos serviços públicos, do qual emanam todas as suas regras para a consecução dos objetivos públicos. Desse princípio, decorre nas palavras de Weber (2000) o conceito de dominação racional-legal, cuja forma mais pura é obtida por meio de uma administração burocrática, não só em virtude do caráter legal racional dessas instituições, como em decorrência das hierarquias estatutárias.
Weber conceitua dominação no capítulo III de sua obra “Economia e Sociedade”, como sendo a probabilidade de encontrar obediência dentro de uma relação, que no caso em análise, é do tipo legal-racional baseada em estatutos. Segundo Paula (2005), a execução de uma decisão na administração pública, sobretudo as autoexecutáveis, já pode ser considerada o exercício do domínio da administração sobre o administrado.
Logo, podemos entender que a administração pública não “negocia” com os seus administrados a respeito da forma de consecução dos objetivos por meio dos processos administrativos. Por outro lado, não podemos refutar que o princípio da legalidade é necessário para manter a igualdade, ou em melhor conotação, a isonomia no tratamento dos administrados.
Entretanto, para Montesquieu (2000), embora a igualdade real seja o ideal e a alma do estado, é um paradigma muito difícil de ser estabelecido. O autor ainda cita que nos governos os quais existam distinções entre as pessoas, das quais decorre o princípio constitucional da isonomia ora citado, deverão existir privilégios. Ainda segundo o autor, essa pluralidade de dispositivos legais torna o arcabouço jurídico mais complexo, e consequentemente, mais difícil de ser entendido, administrado e executado. Tal dificuldade cria ambiente para o surgimento de barreiras legais desnecessárias, podendo levar, inclusive, à disfunção da burocracia por meio do excesso de regulação.
Ao analisarmos, por exemplo, a lei nº 9.784 de 1999, verificaremos que ela foi sancionada no ambiente do “Pdrae”, contudo, a elevada quantidade de órgãos e entidades pertencentes ao Poder Executivo Federal, não permitiu um grau de micro regulações o suficiente para atender todas as demandas de forma mais efetiva em um único instrumento legal.
Tal retrato deve-se, principalmente, ao fato de que dentre os poderes do estado, derivados da teoria da separação dos poderes de Montesquieu (2000), o poder executivo contempla o maior número de atividades distintas, e no Brasil, está presente nas três esferas federativas, diferente do poder judiciário, que não está presente nos municípios, por exemplo.
Pode-se citar, como contraponto, o próprio Montesquieu (2000), como o pai da tripartição dos poderes, citada anteriormente, mas que expõe que a pluralidade legal pode gerar barreiras, não referentes ao texto legal em si, mas por conta da diversidade de dispositivos legais a serem aplicados em situações específicas.
Atualmente, os órgãos e entidades das administrações federais, estaduais e municipais editam resoluções, instruções normativas ou instrumento regulatório executivo para resolver esse problema. Contudo, retornamos à questão do Montesquieu, quando, por exemplo, um regulamento geral de graduação é diferente entre duas universidades federais, ambas entidades integrantes do mesmo poder e vinculadas ao mesmo ministério.
4. DISCUSSÃO
Com base nos conceitos de Schumpeter (1934), podemos entender que um processo de inovação corresponde à introdução de um novo produto ou serviço, ou ainda, uma nova combinação de elementos já existentes. Na área da administração pública, a digitalização e a implementação de sistemas para tramitação de processos eletrônicos podem ser consideradas atitudes inovadoras, ao passo que aliam procedimentos realizados pela internet, prática pré-existente, com a prestação do serviço público ao cidadão.
Essa inovação torna-se ainda mais perceptível quando analisamos o atendimento ao cidadão no novo paradigma do cidadão-cliente, citado na exposição do caso deste estudo. Contudo, uma questão importante é entender se essa inovação está ocorrendo de forma contínua ou descontinuada. Para Varella et al. (2012), um processo de inovação, se estabelecido de forma contínua, é classificado como incremental; do contrário, trata-se de um processo de inovação radical.
Bacichetto (2018) faz uma importante observação sobre o modelo burocrático legal estabelecido que vai de encontro ao objeto deste estudo. A administração pública sempre deve estar atenta aos sinais de lentidão, procurando modernizar o serviço público com modelos mais flexíveis e eficientes, de forma a retornar ao cidadão os impostos pagos.
Ainda segundo o autor, para que tais processos de mudança produzam efeitos tanto para a administração pública quanto para a sociedade, não basta que sejam simples alterações administrativas ou intervenções em processos lentos. Tais transformações precisam ser inovadoras com mudanças sociais, culturais e melhorias para a população. O impacto dessas transformações precisa “romper” as paredes da repartição pública, ou caso contrário, os benefícios econômicos não serão atingidos, principalmente em um ambiente contemporâneo de economia digital.
No Brasil, essa função deve ser exercida por todos os agentes públicos, em especial, por seus dirigentes. Tal processo deve ocorrer considerando outros fatores, como o aumento do controle estatal, proporcionado justamente pelo processo de digitalização, além da intenção de melhoria contínua, introduzida pela administração pública gerencial. Essas características nos levam a concluir que o processo de inovação que ocorre no serviço público, apresenta-se na forma incremental.
Exemplo positivo dessa transformação vem do setor bancário. Baskerville et al. (2020) exemplifica como a área lidou com a criação dos canais digitais, sobretudo no cenário pandêmico. As instituições não apenas souberam lidar com a existência concomitante das duas formas de contato com o cliente, como tornaram essa dicotomia em vantagem competitiva, criando estratégias multicanais de contato com o cliente, criando com a oportunidade, uma inovação.
Outro exemplo positivo vem das universidades digitais russas, as quais, nas palavras de Kuzina G. (2020), além de transformarem a sua área meio, que envolve atividades administrativas tais como matrícula digital, requerimento online e diploma digital; promoveram transformações também na sua área finalística, tornando os seus egressos capacitados para exercerem o seu ofício em um ambiente de economia digital global.
Esse exemplo corrobora o que Fesenko, G. et al. (2021) denota sobre cidades inteligentes, cuja principal preocupação reside em saber se a população atendida está satisfeita com os meios de resolução das suas demandas.
Os exemplos mencionados constituem parte do que Aftab e Myeong (2022) dissertam sobre a digitalização do serviço público em diversos países, ao passo que, desde o aumento da popularidade dos dispositivos digitais, houve um aumento dos investimentos estatais direcionados à área. Segundo Noh e Hong (2022), na Coreia, durante o cenário pandêmico, o governo implementou versões nacionais do New Deal, denominadas de “Green New Deal” e “Digital New Deal”. Este, especificamente, planejava expandir a infraestrutura de governo eletrônico do país, com base em Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).
Vasilescu et al. (2020) cita como exemplo a União Europeia, com inovações ainda mais aprofundadas ao implementar, além das tecnologias digitais, a internet das coisas, big data e a inteligência artificial. Para Chohan et al. (2020), o uso de inteligência artificial no setor público é destinado predominantemente à área de aprendizagem, ainda que por outro lado, não é possível ignorar que o uso da inteligência artificial no atendimento aos cidadãos sanou pontos fracos de comunicação G2C (sigla em inglês da área de administração de marketing para “government to citizens”, ou ainda, “governo para cidadãos” em português), e ainda, foi capaz de entender as intenções de comportamento da população atendida.
No Brasil, o exemplo mais recente é a instituição do Programa Nacional de Processo Eletrônico (ProPEN) pelo Poder Executivo Federal, por meio do Decreto nº 11.946 de 12 de março de 2024. O objetivo geral do programa é promover a adoção do processo administrativo eletrônico, não só no âmbito da União, como também dos Estados e Municípios. As diretrizes do programa são:
Art. 2º São diretrizes do ProPEN:
I – promover o uso do meio eletrônico para a autuação, a tramitação e a gestão de processos administrativos;
II – estimular a transformação digital e a inovação na gestão dos processos administrativos;
III – contribuir para a disseminação da cultura da transparência na administração pública;
IV – promover a sustentabilidade por meio da racionalização dos insumos necessários à produção de processos administrativos;
V – promover a simplificação das rotinas administrativas;
VI – contribuir para o aumento da eficiência administrativa do Estado; e
VII – contribuir para a melhoria dos serviços públicos prestados ao cidadão. (2024, Brasil)
Aos estados e municípios participantes, compete:
I – elaborar plano de implantação das soluções informatizadas do ProPEN no seu âmbito de atuação;
II – utilizar e fomentar o uso das soluções informatizadas do ProPEN, de forma a contribuir para o desenvolvimento e o avanço da transformação digital no setor público;
III – no caso dos Estados, distribuir as soluções informatizadas do ProPEN aos Municípios de sua área territorial;
IV – prestar informações à Secretaria de Gestão e Inovação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos acerca das ações relativas ao ProPEN;
V – promover ações de capacitação dos agentes públicos em temas relacionados com a otimização da gestão de processos administrativos e a operacionalização das soluções informatizadas do ProPEN;
VI – submeter sugestões de melhorias ou correções das soluções informatizadas do ProPEN;
VII – prover a conectividade para sustentação do processo eletrônico no seu âmbito de atuação;
VIII – prestar suporte e assistência técnica, no seu âmbito de atuação, aos usuários das soluções informatizadas do ProPEN;
IX – observar as diretrizes e as orientações técnicas editadas pela Secretaria de Gestão e Inovação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos;
X – preservar o sigilo e a integridade do código-fonte das soluções informatizadas do ProPEN a que tiver acesso em razão das atividades exercidas no âmbito da implantação e do gerenciamento do Programa;
XI – executar os procedimentos relacionados à segurança da informação e à observância de normas legais que visem coibir o uso e a apropriação indevida do sistema por empresa contratada e a transmissão parcial ou total dos códigos-fonte a outra pessoa física ou jurídica;
XII – implementar o Plano de Classificação, a Tabela de Temporalidade e Destinação de Documentos de Arquivo e os demais instrumentos técnicos de gestão documental necessários ao ProPEN, de acordo com a legislação; e
XIII – compartilhar as boas práticas, os dados e as bases técnicas de conhecimento referentes à gestão de processos administrativos em meio eletrônico. (2024, Brasil)
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste estudo, visualizamos as diversas tentativas de inovação, transformação e melhoria do serviço público brasileiro, em diferentes momentos, cada qual com o seu grau de assertividade. Contudo, é interessante salientar que, desde o exemplo dado na introdução até o exemplo construído para ilustrar o final da Plano de Reforma do Aparelho do Estado, uma característica em comum que pôde ser notada são as limitações que cada iniciativa enfrentou em relação às dimensões do estado brasileiro, que não foram limitações de caráter estritamente legal. Este e os exemplos anteriores colaboram para evidenciar as recentes inovações nas administrações públicas em diferentes países. A emergência sanitária da pandemia do covid-19 pode ser apontada como aceleradora desse processo, sobretudo, nos processos que envolvem a atuação direta do cidadão. Considerando que essa pandemia foi decretada há apenas meia década, a estabilidade, longevidade e consequências dessas inovações, sobretudo econômicas, não pode ser aferida com satisfatório grau de assertividade no momento.
Foi possível observar, também, a aproximação cada vez maior do setor privado ao setor público, sendo aquele, inclusive, um fomentador da área pública, a exemplo do abandono da administração patrimonialista em detrimento da burocrática, por aquela ser incompatível com a realidade industrial que se aproximava, e a emergência da administração pública gerencial em dois momentos, a primeira nos anos 60, e posteriormente nos anos 90.
É factível que as inovações no setor privado sejam mais vorazes, considerando a falta de “amarras” e maior liberdade econômica, se comparado ao setor público, principalmente em um ambiente de economia digital em contraponto a uma administração pública burocrática.
Por outro lado, pudemos constatar que a área pública tem superado essas barreiras, tanto no Brasil quanto no exterior, a exemplo dos diversos países que têm se mobilizado para prestar serviços públicos cada vez mais eficientes, eficazes e efetivos. A prospecção para os próximos anos é positiva, combinando a aceleração nos processos de inovação, inclusive de comportamento, que a emergência sanitária impôs, com a relativa estabilidade do momento atual.
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1aryel.alvares@ufms.br
2gabriel.nemirovsky@ufms.br