SENTIDOS E SIGNIFICADOS RELACIONADOS À EXPERIÊNCIA DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL INFANTIL

SENSES AND MEANINGS RELATED TO THE EXPERIENCE OF INSTITUTIONAL CHILD CARE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7990910


Bárbara Delourdes Rosa Rodrigues1


RESUMO: Dentre várias temáticas que dedicadas ao estudo da infância, poucas pesquisas trazem como objeto de estudo os sentidos que as crianças que passam pelo acolhimento institucional atribuem a essa experiência. O presente estudo se propôs a identificar e analisar os sentidos relacionados ao processo de acolhimento institucional de crianças acolhidas em uma instituição de Anápolis, Goiás. Considerando que cada criança subjetiva de maneira singular suas experiências, escutar as crianças não somente como sujeitos de direitos, mas como sujeitos de desejos foi o desafio deste trabalho. A pesquisa realizada foi de cunho qualitativo, através de entrevistas analisadas com base no Método de Explicitação do Discurso Subjacente, utilizando como suporte teórico na análise dos resultados a teoria psicanalítica. Tal método mostrou-se adequado na coleta de dados, ao aproximar entrevistas presenciais semi-dirigidas ao contexto de conversas informais cotidianas, facilitando a interação entre participantes e pesquisador. Participaram da pesquisa dez crianças, de ambos os sexos, com idade entre sete e doze anos, que residiam em uma instituição filantrópica de acolhimento a crianças e adolescentes da cidade. Após a aplicação das entrevistas, transcrição dos depoimentos e análise dos resultados, pôde-se levantar as seguintes categorias: sentimentos ambivalentes e repetição da violência. Pôde-se perceber oscilações de amor e ódio nos sentimentos das crianças, presentes tanto em processos de formação de novos vínculos, quanto em experiências de separação ou perda de um objeto de amor. A violência, em relação aos seus direitos e desejos, presente na história de vida destas crianças, repetiu-se em suas experiências de acolhimento institucional. Os resultados sugerem a necessidade de se escutar as crianças antes e após qualquer tomada de decisão por parte dos envolvidos no processo de proteção à infância, apontando práticas que efetivem direitos já legislados no Brasil

PALAVRAS-CHAVE: acolhimento institucional; infância; criança institucionalizada.

ABSTRACT: Among several themes dedicated to the study of childhood, few studies bring as an object of study the meanings that children who go through institutional care attribute to this experience. This study aimed to identify and analyze the meanings related to the process of institutional care for children hosted in an institution in Anápolis, Goiás. Considering that each child subjectives their experiences in a unique way, listening to children not only as subjects of rights, but as subjects of desires was the challenge of this work. The research carried out was of a qualitative nature, through interviews analyzed based on the Method of Explicitation of the Underlying Discourse, using the psychoanalytic theory as theoretical support in the analysis of the results. This method proved to be adequate for data collection, as it brought semi-directed face-to-face interviews closer to the context of everyday informal conversations, facilitating interaction between participants and the researcher. Ten children, of both sexes, aged between seven and twelve years old, who resided in a philanthropic institution that welcomes children and adolescents in the city, participated in the research. After applying the interviews, transcribing the testimonies and analyzing the results, the following categories were identified: ambivalent feelings and repetition of violence. Oscillations of love and hate could be perceived in the children’s feelings, present both in processes of formation of new bonds, and in experiences of separation or loss of a love object. Violence, in relation to their rights and desires, present in the life history of these children, was repeated in their experiences of institutional care. The results suggest the need to listen to children before and after any decision-making by those involved in the child protection process, pointing out practices that put into effect rights already legislated in Brazil.

Keywords: institucional shelter; chilhood; institutionalized child.

1. INTRODUÇÃO

A participação dos profissionais de psicologia nas equipes técnicas de instituições de acolhimento infantil é relativamente recente, apesar da presença deste profissional ter sido garantida legalmente nestes serviços há alguns anos. Por muito tempo, e ainda hoje em algumas situações, percebem-se muitas lacunas nos serviços de proteção às crianças e adolescentes do nosso país, principalmente na escuta qualificada das crianças que estão acolhidas em instituições.  Infelizmente, ainda permanece a realidade de tais crianças não falarem de seus sentimentos e desejos, e muito menos participarem do processo de tomada de decisão em relação ao seu futuro. 

 Essa prática de silenciamento das crianças não se deve ao fato de que não existam procedimentos previstos em políticas públicas em favor da infância neste sentido. Desde 2006, O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente à Convivência Familiar e Comunitária – PNFC – (Brasil, 2006) coloca como necessária e importante a escuta da criança ou do adolescente, parte mais interessada na tomada de decisões. 

O questionamento de uma ordem, uma lógica vigente, costumes, hábitos e valores dominantes socialmente não são tarefas simples. No entanto, é neste sentido que mudanças paradigmáticas acontecem. Ao falar de políticas públicas voltadas para a proteção infantil faz-se necessário este tensionamento constante e profundo. Muito se modificou. O advento do Estatuto da Criança e do Adolescente é um exemplo de mudanças. No entanto, há muito a se modificar para que se efetive éticas que garantam o direito da dignidade humana às crianças que se encontram acolhidas institucionalmente.

É notório que grande parte da produção científica disponível em relação à infância dedica-se a dizer algo a respeito de crianças. Poucos são os estudos que se dedicam a pensar aquilo que as próprias crianças falam a respeito de um determinado assunto, mais especificamente sobre elas mesmas. Geralmente, os discursos são produzidos sobre as imagens que os adultos têm da realidade infantil, ignorando o resgate dos sentidos que as próprias crianças constroem sobre suas experiências.

O presente estudo teve como objetivo identificar e analisar os sentidos relacionados ao processo de acolhimento institucional de crianças acolhidas em uma instituição de Anápolis, Goiás, a partir do que elas mesmas entendiam sobre esta experiência. Considerando que cada criança subjetiva de maneira singular suas experiências, escutar as crianças não somente como sujeitos de direitos, mas como sujeitos de desejos foi o desafio deste trabalho. Esta publicação é uma amostra de uma pesquisa realizada para dissertação de mestrado em psicologia, em 2010. 

A pesquisa foi realizada com dez crianças abrigadas em uma instituição filantrópica de Anápolis, Goiás, de ambos os sexos, com idade entre sete e doze anos, entre elas quatro meninas e seis meninos. Tais crianças foram encaminhadas à instituição de acolhimento por algum motivo que envolva risco à vida da criança, sejam eles: abuso sexual, abandono, alcoolismo na família, violência emocional, maus-tratos físicos, negligência ou precariedade material da família. 

O método escolhido para esta pesquisa foi o Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS), tendo como suporte teórico para a análise dos resultados a Psicanálise. Tal método mostrou-se o mais eficaz em virtude de demonstrar sensibilidade na coleta de dados, com entrevistas presenciais que se aproximam com conversas informais cotidianas (Nicolaci-da-Costa et al., 2009).

O MEDS tem como pressuposto explícito de que o discurso desempenha um papel, mais do que somente uma ferramenta de comunicação. Segundo Nicolaci-da-Costa (2007), o MEDS, juntamente com outras teorias, 

parte do pressuposto de que, ao internalizarmos uma língua nos contextos em que ela é naturalmente usada, internalizamos todo um conjunto de conceitos, regras, valores, etc. que determinam uma determinada sociedade ou grupo social em um determinado período. Esse processo de internalização, por seu turno, nos constitui como sujeitos individuais. Segue-se que, uma vez que o discurso nos constrói e reconstrói como sujeitos em conformidade com os valores sociais dos grupos aos quais pertencemos ao longo da vida…, o discurso também pode revelar os valores a partir dos quais se dão essa construção e reconstrução (p. 3).

A técnica da livre escuta e da associação livre, proveniente da Psicanálise contribuiu ao MEDS com a noção de captar aquilo que é importante para o outro sem ser intrusivo, considerando que aquilo que é realmente importante para um indivíduo em relação a um certo tema aparece espontaneamente em seu discurso (Nicolaci-da-Costa, 2007).

Foi utilizado para a execução da pesquisa um roteiro de entrevista. O roteiro das entrevistas, baseado nos pressupostos do MEDS de que deveria ser tanto fixo quanto flexível, fora elaborado anteriormente, constituído por uma pergunta central e várias perguntas adicionais e contrastantes. 

As perguntas foram feitas de acordo com o fluir da conversa com a criança, mas tinham como objetivo abordar os seguintes eixos temáticos: (a) sentimentos e sentidos em relação à experiência de acolhimento institucional; (b) sentimentos e sentidos em relação à família de origem. Desta maneira tais temas foram abordados com todos os participantes, independente das perguntas realizadas, possibilitando a análise das respostas tanto individualmente, quanto comparativamente, a fim de investigar possíveis contrastes entre as respostas de um sujeito para outro e também possíveis contradições nas respostas de um determinado sujeito. 

Depois de ter se apresentado, colocado os seus objetivos de trabalho, perguntado o nome e a idade da criança, solicitado seu consentimento verbal na participação da pesquisa e pedido sua permissão para gravar a entrevista, a entrevistadora planejava fazer apenas a pergunta central: “O que aconteceu que você está aqui hoje?”. A partir desta, deu-se a oportunidade a cada criança de falar o que desejar e sentir. Perguntas adicionais foram realizadas caso a criança resistisse em falar e dar sentidos à sua situação de acolhimento, tais como: “Como é estar aqui?”; “Como você se sente aqui?”; “Como é sua família?”; “O que mudou para você depois que veio para cá?”; “Você gostaria de sair daqui?”.

As entrevistas foram realizadas na própria instituição, sendo que cada criança escolhera o local onde desejaria conversar com a pesquisadora, considerando que este local não fosse alvo de muitas interrupções ambientais. Caso fosse um local onde várias pessoas transitassem ou que havia muito barulho, a pesquisadora solicitava uma nova escolha, ressaltando para a própria criança que ali ela poderia ser incomodada para dizer livremente sobre algumas situações. Caso a criança insistisse ficar naquele local, a escolha era respeitada. As crianças entrevistadas escolheram, de maneira geral, o refeitório e o pátio aberto de recreação. As crianças foram selecionadas aleatoriamente, de acordo com a disponibilidade da criança no momento da visita da pesquisadora, considerando que estas visitas, no total dez, não tinham horário marcado anteriormente e aconteceram em vários períodos do dia.

 As entrevistas foram transcritas na íntegra e as falas dos sujeitos não foram alteradas nem editadas, considerando que o MEDS preconiza esta rigorosidade, em virtude de que erros gramaticais, palavrões, expressões, quando presentes fazem parte do discurso do sujeito (Nicolaci-da-Costa, 2007).

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Segundo Sousa (2001), a relação adulto-criança caracteriza-se principalmente por submissão e autoridade. O que se percebe é que os adultos, independentemente do tipo de vínculo que tenha com a criança, ignoram o que elas sentem, pensam, achando-se aptos a dizer a elas o que e como fazer. Grande parte das crianças acolhidas institucionalmente são vítimas desta autoridade adulta e vivenciam um cotidiano de desrespeito e exclusão de suas próprias histórias.

Desta maneira, a submissão da criança à autoridade do adulto reproduz socialmente as diversas formas de relações de dominação.

A criança é um ser socialmente rejeitado. Não desempenha senão um papel marginal nas relações sociais; é cuidadosamente afastada das reuniões de adultos e, quando, às vezes, é tolerada, não se admite que se intrometa nos negócios de ‘gente grande’. Participa muito pouco das tomadas de decisões familiares, escolares e sociais, inclusive daquelas que lhe dizem respeito num alto grau (Charlot, 1986, p.111).

O adulto exerce constantemente esta autoridade nas relações que estabelece com a criança, sob o argumento de que esta é socialmente dependente do adulto. Charlot (1986) ainda complementa que a obediência e o respeito seriam as primeiras virtudes esperadas a um infante. Sendo assim, a criança, em nossa sociedade, é marginalizada tanto economicamente quanto política e socialmente.

Dos Santos (1999) coloca que para que a noção de cidadania se junte à concepção moderna de infância faz-se necessário que se rompa algumas significações culturais:

Mesmo sendo a noção de desenvolvimento infantil ainda considerada como um processo para se alcançar o estágio de adulto, as significações culturais da infância precisarão romper com valorização da criança pelo seu vir-a-ser e da maturidade como símbolo da perfeição e da capacidade (p. 8).

A palavra Infância provém originalmente do latim infans, que significa aquele que não pode falar. Há quem diga que o conceito de infância seja recente. Desde os primeiros registros históricos a presença de crianças é relatada, no entanto, para Ariès (1981) até por volta do século XII, provavelmente, não havia espaço para a infância nesse mundo, sendo que o sentimento da infância nasceria apenas por volta dos séculos XVI e XVII. 

Na sociedade medieval, que tomamos como ponto de partida, o sentimento da infância não existia – o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia. Por essa razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes (Ariés, 1981, p. 156).

Dos Santos (1996) coloca várias opiniões contrárias à de Ariès (1981). A leitura que Dos Santos (1996) faz, dirige-se à idéia de que provavelmente o que não existia era a concepção moderna de infância, mas já existiam outros tipos de concepções, presentes desde o século VIII. A contribuição de Ariés trata-se de que até então conceitos como de infância e adolescência eram considerados invariáveis através dos tempos.

O que se pode efetivamente dizer é que até no século XVII estava presente na sociedade da época a noção de que a criança era algo sem valia, de pouca relevância. Na maioria das famílias a criança representava um grande sacrifício, sendo abandonada em muitos casos. A partir deste século, o sentimento em relação à infância começou a sofrer mudanças (Ariès, 1981). No entanto, mesmo percebidas diferentemente, muitas crianças ainda foram vítimas de abandono nos séculos seguintes, até os dias de hoje (Cavalcante & Jorge, 2008).

Segundo Dos Santos (1996), a infância é uma categoria histórica, um consenso entre historiadores e pesquisadores das ciências sociais. Sabe-se que uma sociedade denuncia sua concepção de infância através do seu discurso, de suas atitudes, de seus comportamentos, revelando sua visão sobre as particularidades infantis. Observa-se tal questão quando se explora a história da infância brasileira, percebendo-se como a criança era cuidada em cada momento.

Juridicamente, no Brasil, a partir da elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, as crianças são consideradas como “sujeito de direitos”, sendo que a palavra sujeito traduz a noção de que são 

Indivíduos autônomos e íntegros, dotados de personalidade e vontade próprios que, na sua relação com o adulto, não podem ser tratados como seres passivos, subalternos ou meros “objetos”, devendo participar das decisões que lhes dizem respeito, sendo ouvidos e considerados em conformidade com suas capacidades e grau de desenvolvimento (Brasil, 2006, p. 28).

A partir do momento que passaram a ter direitos, as crianças tiveram garantidos uma gama de cuidados necessários ao seu pleno desenvolvimento, obrigações estas da família, da sociedade e do Estado (Brasil, 2006; Brasil, 2009).

No Brasil, diante das mais variadas situações de vulnerabilidade que muitas crianças passam, algumas delas são levadas para instituições de acolhimento, encaminhadas pelo Conselho Tutelar ou pelo Juizado da Infância e da Juventude. No presente trabalho, o foco recai sobre tais crianças, aquelas que não são concebidas como sujeitos de direitos e que em suas histórias de vida carregam algum tipo de descuido aos seus direitos, seja ele qual for. De acordo com Marmelsztejn (2006), segundo o olhar social e institucional, a criança que está em situação de acolhimento institucional é aquela “criança que não tem”. Seus direitos acabam sendo negligenciados ou feridos antes e após ser acolhida institucionalmente.

É fato que a criança institucionalizada passou por vivências de violência e/ou abandono antes de chegar ao abrigo. Some-se a isso o fato de, após ser acolhida, muitas vezes defrontar-se com o olhar institucional e social que a qualifica por aquilo que ela não tem: é uma criança sem família, sem lar, sem possibilidades, sem passado (uma vez que deve esquecê-lo por ser demasiadamente sofrido) e sem futuro. E às vezes também até sem um presente, já que o abrigo em geral não se vê como uma boa alternativa para a criança crescer e se desenvolver. O tratamento lá dispensado costuma ser massificado, sem a possibilidade de acolher o que há de mais singular e próprio da criança. … O abrigo pode ser considerado, nessa perspectiva, um “não-lugar”, um hiato entre uma história preexistente, da qual não se quer lembrar, e um futuro incerto, marcado pela desesperança relativa a não se pode ter um lugar no mundo (Marmelsztejn, 2006, p. 18).

Oliveira (2006), ao pesquisar se o ambiente de abrigo se constitui um espaço referencial e reorganizador para adolescentes abrigados, questionando se tal ambiente é continente na ressignificação das experiências traumáticas anteriores que os levaram à situação de abrigamento e se oferecem um ambiente de holding, observou que o adolescente abrigado parece continuar abandonado nos abrigos. Revelou-se também que unidades menores parecem proporcionar mais um ambiente de holding às crianças do que as instituições maiores. Desta maneira, a autora ressalta a importância de um acolhimento singular e mais continente ao processo adolescente.

O termo holding fora elaborado e citado por Winnicott (1965/1988) para designar o comportamento ideal da mãe em relação ao bebê, no qual a mãe suficientemente boa é capaz de sustentar o bebê em seus medos e impulsos, além de satisfazer suas necessidades fisiológicas, protegendo assim o bebê e evitando que este sucumba. Trata-se de um estado do relacionamento mãe-bebê no qual ainda há uma dependência psicológica absoluta.

De acordo com o estudo de Careta (2006), não somente o ambiente institucional deve ser julgado como vitimizador da criança, mas os lares também podem provocar prejuízos ao desenvolvimento infantil. Desta maneira, a autora concluiu em sua pesquisa que as crianças abrigadas também podem aproveitar boas experiências do ambiente em que estão, além de desenvolverem a capacidade de amar e estabelecerem relações afetivas. Ela salienta então a necessidade de se oferecer apoio psicológico às instituições, para favorecer esse ambiente agradável.

 Alguns estudos buscaram questionar se o acolhimento institucional realmente é aplicado como uma medida de proteção provisória, temporária e breve. Cavalcante et al. (2007), ao pesquisarem acerca da institucionalização precoce e prolongada de crianças, puderam perceber e colocar em números que tais práticas ainda freqüentes atualmente, contrariando aquilo que fora dito e preconizado a representar uma medida de caráter excepcional e provisório à infância em risco. Baseadas em uma ampla revisão bibliográfica, as autoras consideram primordial que, dentre os vários aspectos nocivos provenientes da separação familiar prolongada, a ameaça real de ruptura de vínculos afetivos, tanto os familiares quanto os futuros, seja uma das fontes de atenção e cuidado a crianças neste tipo de situação.

Há também uma variedade de estudos que se colocaram a par de estudar e entender a função do abrigo, questionando esta função como uma medida de proteção ou de exclusão social (Arpini, 2003; Borrione & Chaves, 2004;

Silva, 2003;  Montes, 2006;Cavalcante et al., 2007).Tais autores questionam até que ponto o abrigo assume e executa a função de medida de proteção. Percebe-se que, além de muitas vezes não proteger integralmente, tal medida aplica-se arbitrariamente, sem se levar em conta desejos, sentimentos e o mais sério, as conseqüências que poderão marcar vidas.

A representação social a respeito do acolhimento institucional de crianças e adolescentes é, na maioria das vezes, permeada por estigmas sociais e idéias de fracasso. Arpini (2003), trabalhando com o discurso de adolescentes que vivem em instituições, pôde perceber que esta experiência de abrigamento, somadas às experiências que os levam à institucionalização e à separação do convívio familiar, é ainda um forte estigma social que eles passam a carregar. A idéia de que uma criança ou um adolescente que necessita ou necessitou um dia ser acolhido institucionalmente carrega algum problema em sua história de vida está presente na maioria das pessoas.

O preconceito se funda na idéia de que eles não podem ser pessoas “normais”, de que devem ter falhado em algo em sua história, que são em alguma medida responsáveis por sua história, que são em alguma medida responsáveis por sua situação e pela idéia de marginalidade que os acompanha. E é justamente dessa forma que eles são percebidos; na verdade não se considera que o que os levou à instituição não foi uma ação cometida por eles, senão o resultado de uma violência estrutural em nossa sociedade ou do abandono e violência praticados por suas famílias. Isso ilustra muito bem o fenômeno dos “preconceitos instituídos”, pois o imaginário construído em torno dessa população é muito forte e determina a perspectiva preconceituosa com que o grupo é tratado, a qual consiste num resultado direto dessa representação socialmente instituída (Arpini, 2003, p.72).

A instituição, infelizmente, também reproduz uma conotação negativa quanto à história de vida das crianças que ali se encontram, desqualificando-os e desvalorizando-os, repetindo a acusação social que as culpam pelas atitudes de suas famílias, e, muitas vezes, exigindo destas crianças indiferença à dor advinda da separação familiar. Não há espaço para se trabalhar suas histórias de vida, suas frustrações, raivas, gerando um silenciamento dentro da instituição. O processo de elaboração não é facilitado (Arpini, 2003).

Arpini (2003), repensando esta perspectiva institucional e estas representações preconceituosas em relação ao abrigamento, considerando-se que realmente muitas vezes a família não é o melhor lugar para a criança ficar e o abrigo apresenta-se como melhor alternativa, salienta a necessidade de ações que superem estes estereótipos de fracasso que a instituição carrega. As palavras da autora explicitam melhor acerca desta indagação sobre a medida de exclusão social que tem se mostrado o acolhimento institucional. Porém, o estigma que os adolescentes carregam por terem estabelecido, em algum momento, vínculo com o conselho tutelar ou com instituições é denunciador de que eles não tiveram uma vida como era esperado, de que não são sujeitos desejados, conforme nos referimos anteriormente. São vistos como representantes do indesejado; o simples fato de terem vivenciado essa situação os coloca como um risco para a sociedade, como aqueles que estão no limite de romper e transgredir; eles são assim identificados como sujeitos “de risco”. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que a sociedade diz protegê-los, ela os acusa duramente, restringindo-lhes, com o estigma, as possibilidades de modificarem essa situação.

Se não abandonarmos esse modelo, o que podemos pensar em termos de identidade para essas crianças e adolescentes é muito negativo, pois, se não têm na família a acolhida desejada, e lhes resta apenas uma instituição que não acredita em outra forma satisfatória de se tornarem sujeitos, nós realmente ficamos sem saída  as portas se fecham, sobretudo porque a imagem das instituições é semelhante à imagem que se tem da própria população que a freqüenta, ou seja, uma imagem carente, abandonada, fracassada, desqualificada.

3.RESULTADOS E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

O MEDS tem como objetivo coletar informações e interpretá-los, sem se importar com hipóteses a serem verificadas. Essas informações foram categorizadas de acordo com uma abordagem êmica (categorias não definidas a priori, que emergem das falas dos 87 entrevistados), e a partir de análise inter-participantes, ou seja, uma análise das respostas dadas pelo grupo como um todo, e de análise intra-participantes, a análise detalhada de cada uma das entrevistas individuais (Nicolaci-da-Costa, 2007). No presente artigo, somente os resultados da análise inter-participantes estão expostos a seguir.

Ao ler e analisar as entrevistas realizadas, vários fenômenos e conteúdos emergiram. Existiram discursos que unem as crianças e outros que não as separam, mas as diferenciam uma da outra em suas particularidades e singularidades. Duas categorias maiores surgiram, a partir fim de uma exploração mais verticalizada em cima dos discursos colhidos. Estas categorias seriam: sentimentos ambivalentes e repetição da violência. O leitor poderá perceber que estas categorias não estão estanques e isoladas uma da outra. Em muitas falas, aparecem inter-relacionadas, em se tratando de sentimentos que se interligam em sentidos e significados.

Iremos nos referir à categoria “Sentimentos Ambivalentes”, conforme colocado Laplanche e Pontalis (2001) aos fenômenos que denotarem uma “presença simultânea, na relação com um mesmo objeto, de tendências, de atitudes e de sentimentos opostos, fundamentalmente o amor e o ódio” (p. 17).

A ambivalência de sentimentos, presente em processos de luto e em circunstâncias de perda, esteve presente reincidentemente nos discursos das crianças participantes deste estudo. A mistura de amor e ódio, tanto pelo objeto de amor perdido (a família de origem, a casa, sua rotina), quanto pelo novo objeto (um novo lar, um novo cuidador, novas regras, uma nova disciplina, novas relações), que se coloca como alternativa de identificação e vinculação à criança que se encontra numa experiência de acolhimento institucional, foi expressa em vários trechos das falas das crianças entrevistadas.

As crianças entrevistadas puderam expressar sentimentos confusos e ambíguos em relação a membros de sua família de origem, principalmente quando este membro da família cometera algum ato violento ou de negligência contra a criança. Neste sentido, algumas comparações com aquilo que obtiveram quando passaram a morar na instituição surgiram em vários discursos.

Percebe-se, porém, que apesar de admitirem algumas vantagens em comparação com o que tinham em casa, as crianças não disseram não querer estar com sua família, afinal família é uma instituição convencionalmente preferível do que a instituição de acolhimento, que segundo o olhar social carrega seus preconceitos e estigmas, conforme Arpini (2003) salienta. Admitir que ali está melhor que em casa, soa para muitos como uma traição, carregando esta confissão, sentimento de culpa e remorso. Parece também que isto estaria ligado a um desejo de pertencer e estar ligado a alguém, como se fazer parte de um abrigo barrasse tal desejo. Em detrimento do laço institucional, as falas de várias crianças denotaram um desejo de voltar ao laço familiar.

Nas entrevistas de duas meninas irmãs, pode-se perceber que o ato de se ligar às novas vivências dentro da instituição parece excluir a possibilidade de continuar a amar o lugar de onde veio. Deste modo, as duas irmãs tentam se convencer que nada pode separá-la de sua família. Este mecanismo de defesa é também uma forma de reagirem e não se conformarem, afinal já havia dois meses que estavam institucionalizadas e ainda não tinham nem previsão de voltar para casa. 

Pôde-se perceber que, para algumas crianças, sentir que a família, aquela que se espera atitudes de cuidado e proteção, muitas vezes é a que também abandona tornando-se se mais uma situação de conflito, entre tantas.

As falas de um menino demonstraram a ambivalência de sentimentos sentidos pela família de origem, mas também se confundiu com a ambivalência de sentimento em relação à experiência de acolhimento institucional, visto que nesta as experiências anteriores de violência repetem-se. Assim como nas falas deste menino, outras crianças verbalizaram que a recorrência da violência em suas histórias de vida as colocam de frente ao desejo de fantasiar uma família ideal, diferente da família “falida” que têm.

Considerando o que Arpini (2003) ressalta acerca do preconceito e do estigma social que a instituição de abrigamento carrega, e que a criança ou adolescente que passara por este tipo de experiência traz em sua história uma marca, pôde-se perceber nos discursos de algumas crianças participantes deste estudo a ideia de que devem ter falhado em algo na sua história ou que em alguma medida são responsáveis pela separação familiar. Nas falas de outros dois meninos, eles expressam este sentimento de culpa quando dizem que estar na instituição não é muito ruim não, porque lá não dá prejuízo para o pai, mas mesmo assim não querem ficar ali por muito tempo. Ao partir desta idéia de “preconceitos instituídos”, percebe-se que para muitas, o abrigo não é reconhecido como casa. Apesar da entidade de acolhimento institucional satisfazer algumas necessidades, melhor seria se estivesse em casa. Muitas gostam da instituição, se sentem protegidas, mas desejam que esta situação seja breve.

Outro ponto a ser analisado acerca destes sentimentos ambivalentes em relação à experiência de acolhimento institucional é o conflito existente em perceber a instituição como algo que protege, que “eu até gosto”, porém é ela que os coloca distante de suas origens, dos seus ambientes de costume, dos seus vínculos.

Ressalta-se aqui o que fora colocado por Montes (2006) a respeito desta ambivalência de sentimentos. A entidade que desenvolve o programa de acolhimento institucional, apesar de servir ao propósito de proteger a criança e ao adolescente que necessita deste atendimento, acaba por não proteger de forma total na medida em que há relatos de violência sofrida e por raramente acolher, visto que elas preferem a “família”, uma família fantasiada.

Dizer a respeito de violência poderá remeter o leitor à noção de algum abuso do tipo físico. Ao contrário, assim como Guerra (2001) coloca, a categoria “Repetição da Violência” representa as recorrentes situações que envolvam quaisquer atos ou omissões praticadas tanto no âmbito familiar, quanto no âmbito institucional ou social, que causem qualquer dano à criança, seja no tipo físico, sexual e∕ou psicológico. Esta categoria que emergiu nas entrevistas desta pesquisa representa as várias formas com que as crianças em situação de acolhimento institucional são alienadas em relação aos seus direitos e desejos, antes e após o ato da separação familiar.

Pôde-se perceber que recorrentes situações de violência estão impressas na história de vida de cada uma das crianças entrevistadas nesta pesquisa. E violência seja de qual tipo for, conforme colocado por Guerra (2001). No caso destas crianças, principalmente violências físicas, negligências e violências psicológicas. Tais situações de violência iniciaram-se um dia nas relações familiares, das mais diferenciadas formas, e permearam as experiências vividas dentro da instituição de acolhimento, também das mais diferenciadas formas. A violência refletiu-se sejam nas relações entre as próprias crianças, entre as crianças e os monitores, entre a criança e o Judiciário, ou entre a criança e a rede de proteção.

As violências físicas se repetiram nas falas de muitas crianças, bem como nas experiências de momentos diferentes da vida delas. Algumas destas crianças citaram que eram vítimas de violência física por parte dos pais e que dentro da instituição também eram acometidos de agressões físicas. Do mesmo modo, várias delas eram negligenciadas em seus direitos no ambiente familiar e continuaram com outros direitos negligenciados. E da mesma maneira, violentadas psicologicamente eram antes da separação familiar e abusadas psicologicamente continuaram sendo pelo sistema que as retiraram do convívio familiar. Saliento que esta separação do convívio familiar se deu a fim de protegê-las e que ao final esta proteção não se efetiva em alguma medida. Em alguns casos, o tipo de violência acometida em casa diferenciara-se daquele executado dentro da instituição, mas esteve-se presente. Percebe-se que a alienação de direitos apenas diferenciaram-se quanto à maneira de execução, mas não deixou de ocorrer, seja de qual maneira for.

A partir dos resultados obtidos, cabe ressaltar que o que ficara evidente não foram nem tanto as violências físicas que estas crianças já foram submetidas na vida. O tempo todo elas denunciaram em suas falas acerca da impossibilidade de participar do processo de tomada de decisões, principalmente quando seus desejos não são escutados ou, quando são escutados, são ignorados. Sugere-se que esta situação de negligência poderia estar sendo cometida por vários atores sociais: a família, a entidade que desenvolve o programa de acolhimento, o Conselho Tutelar, o Judiciário ou a sociedade no geral. Fica claro que a criança, ao estar cercada por estes atos de negligência, não possui realmente uma opção de escolha de que a retire desta situação de desamparo. Parece que esta criança em situação de acolhimento institucional saiu de um lugar onde as pessoas não a escutavam e caiu em outro que ainda não a escutaram.

Vários autores que foram utilizados como embasamento teórico para este trabalho, ressaltaram esta impossibilidade de as crianças em situação de acolhimento institucional pensar a respeito de sua condição (Arpini, 2003; Borrione & Chaves, 2004; Santos, 2007; Marques & Czermak, 2008; Vectore & Carvalho, 2008). Em virtude da não existência de um espaço específico para as crianças projetarem suas frustrações e raivas através da fala, pôde-se perceber a presença de um silenciamento dentro da instituição. Sendo assim, segundo Arpini (2003), o processo de elaboração fica muito dificultado.

Neste sentido, pôde-se perceber que nesta relação da criança com sua família, com a instituição e com o Judiciário de maneira geral, está implicada uma concepção de infância, de acordo com o que fora abordado por Charlot (1986), permeada por um processo de dominação.

 A presente pesquisa evidenciou que o novo olhar direcionado à infância brasileira, apesar de não se assemelhar em vários aspectos a momentos históricos anteriores, ainda não escuta e não garante o direito à convivência familiar e comunitária de forma plena a algumas crianças.

A pesquisa pôde apontar para indícios de que, subjacente ao ato de não escutar está também a negligência ao conceito de que crianças são “sujeitos de direitos” e que são indivíduos autônomos e íntegros, com desejos próprios, não devendo ser tratadas como seres passivos ou subalternos na sua relação com o adulto, além de participar das decisões que lhes dizem respeito, sendo ouvidas e consideradas (Brasil, 2006). Assim, elas continuam representativas de crianças em situação de maus-tratos e de violência (Guerra, 2001).

Através do discurso das crianças entrevistadas pôde-se enxergar a lacuna existente nos serviços prestados a este grupo de crianças, considerando que quatro das dez crianças participantes estavam na instituição há mais de dois anos, sem perspectiva de saída. O acolhimento institucional por um período prolongado é uma realidade não somente destas crianças deste abrigo em especial, segundo Silva (2003). Percebe-se que as entidades que desenvolvem programas de acolhimento institucional ainda não atendem às recomendações (Brasil, 2009) de realizar ações que visem à reintegração familiar e comunitária a contento.

Desta forma, assim como Borrione e Chaves (2004), Montes (2006), Azôr e Vectore (2008) e Janczura (2008) colocam, esta medida, ao pôr em risco a aplicabilidade dos princípios legais do ECA, ainda não serve à função de proteger efetivamente crianças e adolescentes, mas fortalecem uma cultura excludente e segregante.  Sendo assim, somado às histórias de vida marcadas por situações de violência, pôde-se perceber que as crianças em situação de acolhimento institucional continuam a terem ignorados, conforme previstos nos artigos 4º e 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 2009), o respeito, a liberdade, a convivência familiar e comunitária e o direito de viver a salvo de negligências, discriminação e violência.

Assim como Santos (2007), Marques e Czermak (2008), Vectore e Carvalho (2008) e outros pesquisadores colocaram, o presente estudo pôde apontar para resultados que sugerem que estas crianças acolhidas em instituições se caracterizassem pelo enfraquecimento da função simbólica. Tais crianças apresentaram-se alheias às suas histórias, vítimas deste processo de alienação e exclusão que lhes acometem recorrentemente. 

A seguinte frase de Dolto (2005) representa uma das conclusões oriundas deste estudo: “Fala-se muito dela, mas não se fala com ela” (p. 135). A história destas crianças, os sentimentos ambivalentes, carregados de pesar resultante de experiências repetidas de violência e alienação de direitos e desejos, poderiam ser mais bem ditos via fala, via repetição, chegando a uma possível elaboração. A falta de escuta a estas crianças faz com que os sentimentos ambivalentes e a violência permaneçam em seus discursos, impedindo então a possibilidade de entender, elaborar e concluir. Conclui-se que estas crianças, inseridas neste contexto perverso que protege e não protege, ficam numa situação de espera: espera pela família de origem, espera pela adoção, espera por alguém que as desejem.

CONSIDERAÇÔES FINAIS

Infelizmente, para muitos, se não para a maioria, a criança que está em situação de acolhimento institucional é aquela que não tem, assim como muito bem coloca Marmelstjen (2006). Percebeu-se que às crianças acolhidas esperava-se que esquecessem seu passado e o presente deveria ser vivido com algumas possibilidades impostas a elas, assim como o seu futuro. “O abrigo pode ser considerado, nessa perspectiva, um “não-lugar”, um hiato entre uma história preexistente, da qual não se quer lembrar, e um futuro incerto, marcado pela desesperança relativa a não se pode ter um lugar no mundo” (Marmelsztejn, 2006, p. 18). 

Com esta pesquisa, pôde-se perceber que, mesmo sem o espaço fantasiado e com um pouco de dificuldade para algumas, elas ainda conseguem dizer de si e de seu desejo, diferentemente da noção social estigmatizada que estas crianças estão envolvidas (Arpini, 2003). Necessitam de mais momentos para dizerem e serem escutadas.

Dar voz às crianças, ampliando seus espaços de manifestação de desejos e necessidades, segundo vários autores (Vilhena & Amaral, 2002; Martins & Szymanski, 2004; Sei, 2004; Zogaib, 2005; Careta, 2006; Marmelstejn, 2006; Marques & Czermak, 2008), seria uma das maneiras em fazê-las participar de suas histórias. A presente pesquisa demonstrou a necessidade e a importância de ações que ofereçam apoio psicológico na rotina de crianças que vivem em instituições de acolhimento.

A partir do que fora abordado por Arpini (2003) e a partir dos dados obtidos na presente pesquisa, ressaltamos a necessidade de ações que superem estes estereótipos de fracasso que a instituição representa. Tais ações deveriam ser direcionadas às tarefas de acolher, de exercer a capacidade de holding, de conter as angústias e desejos de cada criança, auxiliando-as a lidar com a falta, inerente à condição humana, segundo Freud (1930/1999).

Assim como Cavalcante et al. (2007) ressaltam, salienta-se a necessidade, através destas “disciplinas de atenção”, de se olhar com cuidado as ameaças de rupturas reais dos vínculos afetivos destas crianças com suas famílias. Estas rotinas serviriam à função de que providências fossem tomadas a tempo, a fim de evitar que tais vínculos se rompam ou se enfraqueçam.

Sabe-se que aquilo que é ofertado dentro da instituição a algumas crianças realmente é melhor do que o que era vivido em seus lares. No entanto, a incapacidade de escutar o desejo destas crianças e de exercer a função de holding, faz com que elas continuem desejando um outro lugar. Pôde-se perceber que todas as crianças entrevistadas, na medida em que não são de fato acolhidas em seus desejos, continuam tendo a necessidade de fantasiar um outro objeto de amor capaz de satisfazê-las: um novo lar, uma outra mãe, um outro pai, uma família diferente, uma família legal, diferente da real.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÉS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.

ARPINI, D. M. Repensando a perspectiva institucional e a intervenção em abrigos para crianças e adolescentes. Psicologia Ciência e Profissão, 21(3), 70-75, 2003.

BORRIONE, R. & CHAVES, A. M. Análise documental e contexto de desenvolvimento: estatutos de uma instituição de proteção à infância de Salvador, Bahia. Revista Estudos de Psicologia, 21(2), 17-27, 2004.

BRASIL. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de crianças e adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília: CONANDA, 2006.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8.069, de 13 de julho de 1990, atualizado com a Lei Nacional de Adoção (Lei 12.010, de 03.08.2009). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

CARETA, D. S. Análise do desenvolvimento emocional de gêmeos abrigados no primeiro ano de vida: encontros e divergências sob a perspectiva winnicottiana. Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

CAVALCANTE, L. I. C., MAGALHÃES, C. M. C. & PONTES, F. A. R. Institucionalização precoce e prolongada: discutindo aspectos decisivos para o desenvolvimento. Aletheia, n. 25, 20 – 34, 2007.

CHARLOT, B. A mistificação pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na teoria da educação. 2ª Ed. Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.

DOLTO, F. A causa das crianças. São Paulo: Idéias & Letras, 2005.

DOS SANTOS, B. A Cidadania “Regulada” de Crianças e de Adolescentes. Revista Estudos da UCG, 26 (1), 7-32, 1999.

GUERRA, V. N. A. Violência de pais contra filhos: a tragédia revisitada. São Paulo: Cortez, 2001.

LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MARQUES, C. de C. & CZERMARK, R. O olhar da psicologia no abrigo: uma cartografia. Psicologia & Sociedade, 20(3), 360-366, 2008.

MARMELSZTEJN, R. Psicoterapia para crianças e adolescentes abrigados: construindo uma forma de atuação. Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.

MARTINS, E. & SZYMANSKI, H. Brincando de casinha: significado de família para crianças institucionalizadas. Estudos de Psicologia, 9 (1), 177-187, 2004.

MONTES, D. C. O significado da experiência de abrigo e a auto-imagem da criança em idade escolar. Dissertação de Mestrado de Enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

NICOLACI-DA-COSTA, A. M. O campo da pesquisa qualitativa e o método de explicitação do discurso subjacente (MEDS). Psicologia: Reflexão e Crítica, 20(1), 65-73, 2007.

NICOLACI-DA-COSTA, A. M., ROMÃO-DIAS, D. & Di LUCCIO, F. Uso de entrevistas online no método de explicitação do discurso subjacente (MEDS). Psicologia: Reflexão e Crítica, 22(1), 36-43, 2009.

SANTOS, C. P. A escuta de sujeitos adolescentes que vivenciaram o abrigamento: contribuições psicanalíticas. Dissertação de Mestrado em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.

SEI, M. B. Desenvolvimento emocional e os maus-tratos infantis: uma perspectiva winnicottiana. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

SILVA, E. R. A. Levantamento nacional de abrigos para crianças e adolescentes da rede de serviço de ação continuada (SAC). Brasília: IPEA, 2003.

SOUSA, S. M. G. (coord.) O significado de violência, educação e violência para pais que cometeram violência física contra filhos. Goiânia, Ed. Da UCG, 2001.

VECTORE, C. & CARVALHO, C. Um olhar sobre o abrigamento: a importância dos vínculos em contexto de abrigo. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), 12(2), 441-449, 2008

ZOGAIB, M. T. B. O brincar e o bem-estar da criança abrigada: sua influência no combate à depressão e ao baixo rendimento escolar. Dissertação de Mestrado, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2005.


1Anápolis – Goiás
https://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4207267J0&tokenCaptchar=03AL8dmw-UoT1chx0DsxYQdgOn6JiCumVchFHBJ6FcdhsSpof5gxXMOXo8lkvg9sxgxAEEQ5gGaGNdIoadr9JMHZMol5u8PWtkppKxDlsrENGwPFel-B-rHfFm0iSIfSvQdYJffR-VoaSZ5rSHqtIAFrFwSk_FPsxOJgxP2nSqpYTOKSWV-Pzxk63NnBImfj5xfmaXZgiVE3ApIRVm31SfVYdds0amup21eMyBin2SLyE3dkFBNeq_G1JHc6xSDU8_mLgY0QVtLFDEsEfNhO9OXhJSzQyquZ7HGD1JmtXOXPkd9gEadx1svAst-aCF6kcPzJvAniECHwR3PoDXHsNLdOy0XY9eZ6fKkbTQet5mBMPfCZXoHdU3afLdhCVqbVBo9ElDa885vzzBiwkAgqVscxoTCwFrCMGHZiHHxQpXG8hC9RqvCHIiykyLXE0cyVZCBoFHU-SQSpGT7GnW9g1a72c1LRWKYjt1KSTXktWnpAgCNFFgCfPeXWoqAo8X-C-asPQv4CZoyHR8xaXJDG-wKuVdfeRXTWiFvJ4Wmbwnr4F9xwMIzvN7ej_kfsCgcG7p2coCIesgvxbZ