REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7724015
Maria Alvina Ferreira de Moura1
Eliane Marquez da Fonseca Fernandes2
Resumo: Este artigo científico, aplicado ao ensino de Língua Portuguesa nas escolas, buscou analisar alguns signos presentes na animação japonesa “Death Note” com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento de leitura que enfoque a noção e as vantagens do estudo semiótico às práticas de multiletramentos.
Utilizamos como pressupostos teóricos o conceito de Semiótica e dos multiletramentos a partir dos estudos de Peirce (1839-1914), Moura (2020), Santaella (2018), Santaella (2002), Sousa e Teixeira (2019) e do Grupo Nova Londres, além de alguns outros autores que contribuíram para a discussão teórica e análise do objeto. Quanto aos procedimentos técnicos, parte deste trabalho se dedicará a uma pesquisa bibliográfica, baseada na discussão de conceitos referentes aos estudos semióticos e aos multiletramentos, e outra à proposta de análise de três signos, extraídos da animação japonesa Death Note, correlacionando com a visão teórica abordada ao longo da primeira parte do trabalho. Quanto à abordagem, essa é uma pesquisa qualitativa que busca observar, compreender e descrever o fenômeno da representação.
Palavras-Chave: Multiletramentos. Semiótica. Death Note. Animação Japonesa.
Abstract: This scientific article, applied to the teaching of Portuguese in schools, sought to analyze some signs present in the Japanese animation “Death Note” with the objective of contributing to the development of reading that focuses on the notion and advantages of semiotic study to the practices of multiliteracies. We use as theoretical assumptions the concept of Semiotics and multiliteracies from the studies of Peirce (1839-1914), Moura (2020), Santaella (2018), Santaella (2002), Sousa and Teixeira (2019) and the Nova Londres Group, in addition to some other authors who contributed to the theoretical discussion and analysis of the object. As for the technical procedures, part of this work will be dedicated to a bibliographic research, based on the discussion of concepts related to semiotic studies and multiliteracies, and another to the proposal of analysis of three signs, extracted from the Japanese animation Death Note, correlating with the theoretical vision addressed in the first part of the work. As for the approach, this is a qualitative research that seeks to observe, understand and describe the phenomenon of representation.
Key-words: Multiliteracies. Semiotics. Death Note. Japanese animation.
O universo que conhecemos não existe senão por meio das representações. Isso porque elas estão intrínsecas as nossas vivências, a nossa cultura, à maneira como agimos, falamos, escrevemos, sentimos e, sobretudo, à maneira como atribuímos significados e interpretamos o mundo. De mesmo modo, “todos os dias, deparamo-nos com textos que mesclam palavras, cores, desenhos e – no caso de textos veiculados em meios digitais – sons, vídeos e hipertextos, que nos levam a outros textos e mais outros e mais outros, em um processo que parece não ter fim” (BATISTA, 2021), o que influencia diretamente na criação de novas formas de representação. Mas qual seria o sentido dessa multiplicidade? E, principalmente, por que seu estudo é tão importante para as aulas de Língua Portuguesa?
A princípio, cabe destacar que a busca por sentidos tem se intensificado à medida que eles vêm surgindo e, de mesmo modo, cede-se cada vez mais espaço para a ocorrência e existência de novos deles. Todavia, é possível questionar se as escolas têm estimulado as diferentes formas de construção de sentidos em um texto, ou mesmo se elas têm incentivado a análise de signos presentes em textos multissemióticos, tendo em vista as possíveis contribuições que um estudo crítico/analítico da construção de significados possa gerar.
Por Semiótica, compreende-se que é, de forma não limitada a esse conceito, o estudo dos signos, isto é, daquilo que está sendo representado (SANTAELLA, 2005). Assim, concluímos que a Semiótica pode estudar representações e efeitos de sentido de qualquer universo, seja ele real ou imaginário. Diante disso, este estudo tem caráter teórico-propositivo, uma vez que discutiremos os conceitos de Semiótica e dos multiletramentos a partir dos estudos de Charles Sanders Peirce (1839-1914), Lúcia Santaella (2002), Sousa e Teixeira (2019) e do Grupo Nova Londres, estabelecendo a relação desses conceitos com a compreensão de textos. Também, proporemos uma análise descritiva – Semiótica aplicada – de uma animação japonesa bastante popularizada entre os estudantes brasileiros, de modo que sirva de modelo de análise para a as aulas de compreensão de texto.
Como justificativa para a escolha do objeto de análise, tomamos como base o fato de que Death Note, um mangá produzido por Tsugumi Ohba, é considerado um dos animes de maiores sucessos até hoje entre o público jovem brasileiro, como foi revelado em 2020 pela plataforma de streaming, Crunchyroll (CRUNCHYROLL, acesso em jul. 2022). Além disso, a animação apresenta temas relativos ao Cristianismo, à visão de justiça, poder, entre outros, os quais geram efeitos de sentido que pretendemos observar e que certamente contribuirão com nossa pesquisa. Além disso, a obra fictícia é carregada de signos que só serão percebidos pelos estudantes caso seja realizado um procedimento de análise que os estimule a compreender a construção de sentidos da animação, isto é, uma Semiótica aplicada.
A respeito dos signos, Santaella (2005, p. 2) afirma: “Ora, a proliferação ininterrupta de signos vem criando cada vez mais a necessidade de que possamos lê-los, dialogar com eles em um nível um pouco mais profundo do que aquele que nasce da mera convivência e familiaridade.” Sendo assim, utilizar como objeto de estudo o elemento de uma cultura crescente no Brasil, como é o caso das animações japonesas disponibilizadas nas mais diversas plataformas de streaming – além de inseri-las no ensino básico – poderá proporcionar grandes vantagens que pretendemos deixar claras no decorrer desta pesquisa, bem como promover um assunto que vem se popularizando e fazendo com que os professores reinventem suas metodologias: os multiletramentos. Por esse motivo, pretendemos não somente apreender o que há de simbólico no objeto em estudo, como também identificar as capacidades lógicas com as quais os estudantes poderão adquirir ao aplicarem o estudo dos signos no que lhes cerca e esperamos, por fim, contribuir para o desenvolvimento da leitura crítica e para as práticas de multiletramentos nas escolas.
Multiletramentos na aula de Língua Portuguesa
Uma pedagogia dos multiletramentos foi anteriormente discutida por autoras como Coscarelli e Kersch, ao destacarem a necessidade de investir na qualificação dos professores com o objetivo de promover a formação de leitores de hipertextos e de textos multimodais. Elas argumentam que a leitura desses textos requer uma boa navegação e boas estratégias de compreensão, além de proporcionar a seleção das informações pertinentes, separando o que é confiável do que é suspeito. Assim, elas questionam se a escola tem corroborado com o desenvolvimento, em seus alunos, de habilidades demandadas pela comunicação digital, como o uso de (novas) tecnologias e a diversidade linguística e cultural, que é o que nos leva a repensar estratégias para o ensino de Língua Portuguesa. Para elas:
É preciso que os leitores saibam enveredar pelos inúmeros sites, blogs, propagandas, programas, aplicativos e ambientes, de forma a cumprir seu objetivo. Eles precisam compreender os textos, selecionando as informações pertinentes, separando o que é confiável do que é suspeito ou não parece seguro. Precisam compreender e analisar com profundidade e senso crítico as informações que encontram. Mais do que nunca, portanto, precisa-se investir na qualificação elos professores para promover a formação desses leitores. (COSCARELLI; KERSCH, 2016, p. 7)
Além de fazerem reflexões, sobretudo, críticas às escolas brasileiras, as autoras enfatizam a necessidade de mudanças nas práticas escolares para que haja um aprimoramento das leituras e produções textuais feitas pelos alunos, levando-se em conta as tecnologias e os múltiplos modos com que os textos se apresentam no mundo contemporâneo. Como justificativa para essa preocupação, Rojo e Moura apontam que, para os pesquisadores do Grupo Nova Londres:
os textos, em parte devido ao impacto das novas mídias digitais, estavam mudando e se compunham de uma pluralidade de linguagens, que eles denominaram multimodalidade. Para eles, o mundo estava mudando aceleradamente na globalização: explosão das mídias, diversidade étnica e social das populações em trânsito, multiculturalidade. Isso tinha impacto não somente nos textos, que se tornavam cada vez mais multimodais, mas também na diversidade cultural e linguística das populações, o que implicaria mudanças necessárias na educação para o que chamaram de multiletramentos. (ROJO; MOURA, 2019, p. 19)
Em outro artigo publicado por esse grupo, os autores defendem que há uma conexão entre o ambiente de mudanças sociais que professores e alunos vivenciam e a abordagem dos multiletramentos. Nesse viés, eles afirmam que “a diversidade cultural e linguística é uma ferramenta tão poderosa na sala de aula quanto uma ferramenta social na formação de novos espaços cívicos e novos conceitos de cidadania” (GRUPO NOVA LONDRES, 2021). É por esse motivo que a noção anterior, também chamada de letramento, precisou passar por muitas reformulações, uma vez que, segundo Oliveira e Szundy (2014), percebe-se que os elementos que compõem os textos que circulam, principalmente, por meios digitais, apresentam elementos que vão muito além dos modos verbal e visual – como é o caso do nosso objeto de análise. E, assim, passamos a usar o conceito de multiletramentos.
Diante disso, para Nascimento, Bezerra e Heberle (2011), devemos refletir sobre necessidade de se incluir atividades que envolvam os multiletramentos nos programas escolares e de se considerar o modo como outros recursos semióticos, além da linguagem verbal, se inter-relacionam em textos, visto que a realidade vivenciada por nossos alunos na sociedade contemporânea exige ações imediatas, isto é, faz-se necessário viabilizar ações pedagógicas que estimulem o desenvolvimento da competência comunicativa multimodal.
Diante disso, pensando em uma proposta que contemple essas noções, pretendemos analisar a construção de significados de três signos extraídos de nosso objeto na terceira parte deste trabalho. Passemos a compreender, portanto, a base teórica de aplicação que usamos para desenvolver a análise dos signos de Death Note e quais contribuições esse estudo pode gerar na contemporaneidade sobre o uso dos diversos tipos de linguagem.
Semiótica aplicada ao ensino de Língua Portuguesa
Falar de Semiótica, como explica Santaella (2005) em O que é Semiótica, requer compreender o que vem a ser signo. A autora, com base nos estudos de Charles Sanders Peirce (2005, p. 58), esclarece que o signo “é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele”. A Semiótica seria, portanto, “a teoria de todos os tipos de signos, códigos, sinais e linguagens”. “A Semiótica é o campo de estudo que se dedica a elucidar aspectos centrais da linguagem e da comunicação. Consequentemente, seu enfoque principal recai sobre a noção de signo, seja ele linguístico ou não” (COSTA. DIAS, 2019, p. 8 apud Batista, 2021). A respeito do que o signo pode representar, Santaella diz:
“Um signo intenta representar, em parte, pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo representar seu objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determine naquela mente algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o signo, e da qual a causa mediata é o objeto, pode ser chamada de o Interpretante.” (SANTAELLA, 1983, p. 31 apud MOURA, 2020, p. 16)
Tendo isso em mente, faz-se necessário enfatizar que o crescente estudo de linguagem se deve exclusivamente ao surgimento de uma variedade enorme e cada vez mais constante de outras linguagens além das verbais, que se constituem em “sistemas sociais e históricos de representação no mundo” (SANTAELLA, 2005, p. 4). Para Batista (2021):
A importância dos estudos realizados por semioticistas como Peirce e Santaella é muito grande, pois, conforme nos informam Lopes e Hernandes (2005), os conceitos de textos na atualidade extrapolam a ideia de composição verbal-visual (palavra-imagem), e as estratégias de leitura estão constantemente sendo reformuladas, pois sons, gestos, expressões faciais, layout, cor, volume, textura, entre outros, passaram a ser vistos como elementos semióticos, ou seja, geradores de sentidos.
Assim, a fim de que possamos entender esses conceitos de um modo prático, passemos a detalhar como funciona o método de análise dos signos proposto por Peirce (2000), a partir da monografia produzida por Moura (2020).
Primeiridade, Secundidade e Terceiridade
Segundo as explicações de Moura (2020, p. 15), ao que está de algum modo e em qualquer sentido presente na mente, independentemente do que seja, entende-se por fenômeno. Portanto, para Peirce, a descrição do que está em aberto em nossa mente trata-se da Fenomenologia, e para concluir tal tarefa é preciso desenvolver uma capacidade contemplativa, isto é, ver o que está diante dos olhos. De mesmo modo, seria necessário desenvolver a capacidade de distinguir, discriminar diferenças nessas observações e, por último, desenvolver a capacidade de generalizar as observações em classes ou categorias mais abrangentes, conforme veremos de modo prático na análise do nosso objeto. Tais capacidades foram renomeadas pelo autor alguns anos depois como Primeiridade, Secundidade e Terceiridade.
Ainda segundo Moura (2020), e baseando-se nas explicações de Peirce (2000), Primeiridade trata-se de uma consciência imediata tal qual é, tendo como qualidade da consciência imediata uma impressão. Tomemos como exemplo o ato de pesquisar por uma obra literária no site da Amazon. Ao encontrarmos um livro qualquer sugerido pelo site, contemplamos, na imediaticidade da leitura, cores e formas daquele objeto, que se traduzem em uma impressão inicial, seja ela agradável ou não e até mesmo neutra.
Já na Secundidade, que atuaria como um segundo momento de contemplação do leitor com o objeto, compreende-se o pensamento como matéria da existência. Em outras palavras, é o que nos faz perceber que aquilo que está sendo observado é um livro literário e não outra coisa, configurando sua existência no mundo.
Por último, a Terceiridade é resultado das duas etapas anteriores, correspondendo à representação e interpretação do objeto do mundo. Por meio dessa categoria, podemos compreender, por exemplo, o que a obra representa estando presente em uma estante virtual, o que ela representaria caso estivesse no carrinho de compras, entre outras situações possíveis.
Essas três categorias, conforme veremos posteriormente, nos darão base para que consigamos compreender alguns signos e seus referidos objetos, ou seja, aquilo que estão representando, considerando-se as diferentes perspectivas de contemplação. Peirce precisou ser categórico ao descrever experiências minuciosas pelas quais passamos diante do contato com os signos. Assim, não só podemos ser capazes de percebê-los como também pensar sobre eles, usando-os, conforme estamos fazendo neste exato momento. Cada palavra que está sendo digitada está apta a representar alguma coisa, mas os sentidos só serão revelados se houver uma capacidade contemplativa capaz de compreender e interpretar o que está sendo dito e dentro do contexto em que essas palavras estão sendo escritas. Reiteramos aqui, portanto, a importância de nosso estudo para que os alunos consigam desenvolver essa capacidade e possam atingir a Terceiridade, considerado o nível mais profundo de contemplação, de modo que possam evitar compreensões superficiais dos textos e signos que cerceiam suas vivências.
Quali-signo, Sin-signo, Legi-signo
Vinculadas às três categorias anteriores, Peirce descreveu quais propriedades dão fundamento ao signo. A primeira, conforme vemos em Moura (2020, p. 17) é chamada de Quali-signo e refere-se à qualidade, isto é, uma sensação, e, portanto, está vincula à Primeiridade. Já Sin-signo, estando vinculada à Secundidade, refere-se a algo existente na atualidade, como um objeto qualquer (uma cadeira, por exemplo). Por último, Legi-signo, vinculada à Terceiridade, consiste em um signo que “descreve inúmeros objetos havendo, portanto, concordância sobre o que e como representa (como, por exemplo, considerar que jogo é toda atividade cuja natureza ou finalidade é a diversão, sendo assim aceito e reconhecido por um grupo)” (MOURA, 2020, p. 18). Santaella também relaciona as três categorias a todas as coisas:
“Na base do signo, estão, como se pode ver, as três categorias fenomenológicas. Ora, essas três propriedades são comuns a todas as coisas. Pela qualidade, tudo pode ser signo, pela existência, tudo é signo, e pela lei, tudo deve ser signo. É por isso que tudo pode ser signo, sem deixar de ter suas outras propriedades.” (SANTAELLA, 2005, p. 12 apud MOURA, 2020, p. 18)
Há uma outra tricotomia pertinente à análise do nosso objeto que diz respeito ao signo em relação ao objeto, nas palavras de Peirce. Estando ligado ao fundamento de qualidade, ícone é um tipo de signo que faz relação com o objeto por meio da representação por semelhança, “como seria o caso de um desenho de um pássaro, assemelhando-se a ave” (MOURA, 2020, p. 18). Em outra situação, em que o signo faz relação com o objeto segundo o fundamento da existência, ele atua um índice, marcado pela representação através do rastro ou de uma indicação deixada, como fumaça indica a presença do fogo ou uma pegada indica a existência de um animal. “Por último, caso o signo faça relação com o objeto segundo o fundamento de lei, ele será um símbolo, que é a representação convencionada culturalmente, assim como uma pomba simboliza a paz ou uma cruz representa o Cristianismo” (MOURA 2020, p. 18).
Há uma terceira tricotomia deixada por Peirce, em que podemos analisar a “relação do signo com o interpretante” (MOURA, 2020, p. 18) Para nós, entretanto, as duas tricotomias explicitadas são suficientes para elaborar extensas análises acerca dos signos presentes na animação japonesa.
Em suma, nossa pesquisa ganha importância no sentido de que, com base nas explicações anteriores, podemos investigar quais recursos semióticos estão presentes na criação do roteirista Tsugumi Ohba, além explorar o que representam, como representam e que sentidos esses elementos criam no desenho para aqueles que o assistem. Escolhemos atuar no campo da animação japonesa porque sua popularidade tem aumentado significativamente entre os jovens do mundo todo e isso se deve, em grande parte, à possibilidade ilimitada de criação de novos signos dentro desses universos, como é o caso de jogos eletrônicos sobre a mesma temática das animações ou mesmos personagens, festividades temáticas, criação de fanfics, entre outras adaptações que definitivamente deveriam fazer parte das discussões em sala de aula. É por essa razão que os animes possuem uma singularidade digna de ser investigada, uma vez que os diversos signos criados nas animações são trazidos e recriados na realidade palpável desses jovens, possibilitando a existência de novas representações no mundo e para o mundo.
A ideia de que estão cercados por signos, no entanto, parece ainda não ser uma realidade de muitos consumidores das animações japonesas. Aqui surge, portanto, outro objetivo para o nosso trabalho, que é mostrar a esses jovens como alguns desses elementos podem ser identificados e compreendidos, e mostrar como isso poderá torná-los capazes de investigar com o mesmo olhar semiótico outros textos multissemióticos. Além disso, é preciso fomentar a discussão desses textos no ambiente escolar, que é justamente o local onde trabalhos com a linguagem ganham importância pelo fato de possibilitar aos estudantes uma melhoria significativa das suas capacidades de leitura e interpretação no mundo. Essa perspectiva, por consequência, dá sentido à nossa pesquisa (MOURA, 2020).
A relação entre a Semiótica e a compreensão de textos
Ao propormos que a Semiótica efetua o desenvolvimento dos multiletramentos, queremos dizer que uma profunda análise dos elementos sígnicos de qualquer objeto torna possível ao analista observar qualquer outro objeto, pertença ele a algo cotidiano ou do universo fictício, com a mesma profundidade. Nesse sentido, e conforme afirma Moura (2020), a Semiótica pode ajudar toda e qualquer pessoa que se propõe a ler os signos e compreendê-los numa perspectiva mais abrangente, além de possibilitar a capacidade de produzir seus próprios signos com o efeito e forma que desejar e de maneira mais eficiente.
Isso ocorre, segundo a autora, porque as leituras ampliam nosso entendimento dos textos, fornecem maior contato com outros tipos de linguagem e ficam registrados na nossa mente de modo que possamos internalizar suas propriedades e utilizá-las quando for preciso. Assim, a pessoa que se propõe a praticar esse tipo de atividade poderá analisar, sobretudo criticamente, todas as outras produções de linguagem, resultando em possíveis intervenções no mundo, como, por exemplo, atribuir novos sentidos, adaptar produções e dialogar com a própria realidade.
Para facilitar esse processo é preciso pensar em linguagem, conforme o próprio Peirce buscava afirmar, como uma teia lógica unida por semelhanças, diferenças e interconexões que dão sentido, por fim, às coisas (MOURA, 2020, p. 23). A respeito dessa relação, Nara Maria Fiel de Quevedo Sgarbi traz em seu artigo um comentário de Arlindo Machado, da PUC-SP:
“As três matrizes básicas do signo – o ícone, o índice e o símbolo estão presentes em todos os níveis da classificação das linguagens, dessa maneira nos permitem olhar para o imenso e aparentemente caótico labirinto das linguagens como uma rede absolutamente lógica de diferenças, similitudes e interconexões.” (MACHADO apud FIEL, 2006, p. 1, apud MOURA, 2020, p. 23)
Ao aprofundarmos nessas três matrizes, conforme vimos também com as outras categorias, é possível alcançar níveis mais profundos de compreensão de textos. Isso porque ao assumir o olhar de um semioticista, o leitor ou intérprete passa a tratar de modo automático e quase que inconsciente a busca por recursos em suas leituras que provocam efeitos e dão sentido ao texto (MOURA, 2020, p. 24) A efetuação dessa atividade, por fim, servirá de prática para o desenvolvimento dessa e de novas habilidades, gerando, portanto, competências às práticas de multiletramentos.
A multiplicidade de linguagens produzidas a partir de Death Note
Diante de uma quantidade enorme de signos produzidos todos os dias, assim como outras formas de linguagem, torna-se imprescindível que na contemporaneidade repensemos o ensino de modo que os estudantes se tornem aptos a lidar com todas essas informações. Mais importante que isso, é preciso que professores e alunos se tornem multiletrados no mundo em que vivem.
Diante de uma quantidade enorme de signos produzidos todos os dias, assim como outras formas de linguagem, torna-se imprescindível que na contemporaneidade repensemos o ensino de modo que os estudantes se tornem aptos a lidar com todas essas informações. Mais importante que isso, é preciso que professores e alunos se tornem multiletrados no mundo em que vivem, uma vez que há uma demanda cada vez mais acentuada por abordagens que englobam signos novos surgidos nas criações contemporâneas. A exemplo disso, Moura (2020, p. 25) menciona a popularização dos eventos de cultura pop/geek no Brasil após o sucesso das animações como Death Note:
farei menção a um conhecido evento entre os jovens que assistem e leem os desenhos japoneses: os festivais de anime. Para quem não conhece, são eventos de cultura pop/geek, destinados ao comércio e à cultura de tudo que for relacionado ao universo anime, geek, cultura pop japonesa e afins. Nesses ambientes, é comum notar as formas de representação por meio cosplays, venda de objetos, camisetas com estampas, bijuterias, entre outros produtos próprios de quem conhece ou se identifica com os universos que costumam assistir, ler, ouvir e jogar. Ora, se para os jovens os eventos significam estar mais próximos a algo palpável do tipo de conteúdo que consomem, e se nestes locais encontram sentido para estarem usando tais figurinos, fazerem encenações e dublagens próprias dos personagens que admiram ou julgam ter personalidades e estilos semelhantes aos seus, mais sentidos estão sendo criados e, mais ainda, sendo recriados, desde que são trazidos para a realidade e cotidiano desse público.
Sendo assim, é importante que os professores percebam a necessidade de trazer esses recursos para a sala de aula e incentivem o estudo desse universo como uma forma de fomentar a leitura crítica.
Como modelo que pretendemos deixar aos professores, a análise que seguirá o próximo item compreende quatro elementos sígnicos – signos – extraídos da obra criada pelo escritor japonês, Ohba, que serão analisados por meio da mesma linha de pesquisa adotada por Moura (2020) em sua monografia e Santaella, em sua Semiótica Aplicada (2002), ambas seguindo os princípios e as tricotomias da Semiótica de Peirce (2000), uma vez que estes foram devidamente discutidos anteriormente.
A escolha do objeto, conforme esclarecemos, tem como principal razão os diversos recursos semióticos presentes em Death Note e que são trazidos para outros contextos em nosso mundo, fazendo surgir novos recursos semióticos, isto é, novas formas de linguagem (MOURA, 2020). Pretendemos, portanto, contribuir com o ensino e fazer com que o grande número de telespectadores da animação, caso entre em contato com nosso trabalho, se interesse pela busca desses e de outros elementos, possibilitando experiências que desenvolvam a habilidade de analisar com a mesma profundidade outros tipos de textos (MOURA, 2020). Esperamos, por fim, que todas as representações captadas sejam suficientes para que professores e alunos se sintam motivados a continuar com as leituras semióticas.
Death Note
Ao entrarmos em contato com o signo “caderno”, traduzido do inglês “note”, uma possível primeira impressão, isto é, o que vem primeiro à mente – contemplação da Primeiridade – é a imagem de um caderno qualquer, de nossos mundos. Quando vemos a representação do caderno na animação, entretanto, notamos que algumas características o diferenciam dos outros cadernos – contemplação da Secundidade –, conforme podemos ver na Figura 1, a seguir:
Figura 1: Caderno de Light Yagami
Fonte: <https://www.jbox.com.br/2022/06/09/death-note-serie-ganha-canal 24h-na-plutotv/> Acesso em 13. Jul. 2022.
Em primeiro lugar, trata-se de um caderno de cor preta com as seguintes inscrições na capa: “Death Note”, que significa “caderno da morte”. O caderno, entretanto, não é usado pelo personagem como um objeto destinado a anotações. É pela terceira experiência com esse signo (Terceiridade), que compreendemos sua função para o contexto fictício. Na contracapa, o personagem encontra algumas orientações escritas pelo dono do caderno, um shinigami, as quais indicam que o nome da pessoa que for escrito no caderno, morrerá. Sendo assim, é preciso juntar todas essas informações para compreender o signo.
Para além dessa representação, a indústria criou réplicas do caderno, que são vendidas em feiras de anime e em sites de compras online. Sendo assim, a indústria recriou esse mesmo signo, mas atribuiu-lhe um novo sentido, desta vez, voltado ao lucro com o item, contemplando-se a visão capitalista. De mesmo modo, o caderno pode ser usado em outros contextos, como em peças teatrais, fazendo-se o uso da intertextualidade com a animação para atribuir novos sentidos ao caderno.
Como vemos, as reflexões materializadas pela Primeiridade, Secundidade e Terceiridade rendem discussões bastante pertinentes em sala de aula, uma vez que esse tipo de abordagem poderia alertar os alunos a respeito da existência de uma visão capitalista para a venda desses produtos, por exemplo, ou mesmo abriria portas para novas possibilidades de uso desse signo, o que também é um de nossos objetivos.
Além disso, como Death Note também envolve a temática de investigação policial, um jogo eletrônico foi desenvolvido e publicado pela Konami para Nintendo DS, como prova concreta que ilustra como a multiplicidade de linguagens são capazes de criar novos signos e atribuir-lhes novos significados.
Maçã
Uma maçã pode ser um simples alimento ou até representar uma empresa multinacional norte-americana, como é o caso da “Apple”. Neste caso, a figura da marca assemelha-se ao objeto que intenta representar e trata-se, portanto, de um ícone. De outro modo, quando a fruta é inserida em Death Note, devemos considerar a possibilidade de que ela irá representar uma outra coisa. Para os telespectadores que não estiverem atentos à simbologia, é possível que a maçã não represente algo fora do comum. Todavia, o leitor crítico observa os possíveis sentidos que podem estar sendo trabalhados de modo implícito na animação.
Logo nas cenas de abertura, assim como em diversas cenas envolvendo o shinigami Ryuk, a maçã está presente. Segundo algumas crendices populares, a maçã estaria ligada à tentação, ao fruto proibido e amaldiçoado. Para os povos germânicos, a maçã é o símbolo da imortalidade. Para os antigos gregos, a maçã era considerada o símbolo do amor. Portanto, aqui conseguimos descrever como os símbolos se formam, pois todas essas representações atribuídas foram convencionadas culturalmente, conforme vimos em Peirce (2000).
Em se tratando da fruta, há dois tipos de maçãs que aparecem na animação. Uma no mundo dos humanos, que se apresenta de forma suculenta e saborosa, e outra no mundo dos shinigamis, sem cor e cujo sabor foi descrito por um dos personagens como “gosto de areia”. A aparência da fruta influi decisivamente no sentido que se atribui a ela, uma vez que a humanidade, como vemos em Death Note, é cheia de tentações, como foi quando o protagonista obteve em suas mãos, por meio de um “caderno da morte”, o poder de decidir o destino de toda a humanidade, que era o que ele mais almejava. Sendo assim, as lacunas vão sendo preenchidas pelo que Peirce (2000) descreve como uma “teia lógica de signos e significados.”
Além do caráter de símbolo da maçã, um tipo de índice pode ser relacionado a esse signo. Como dissemos anteriormente, um índice é definido pelo rastro deixado, o que indica a presença do objeto. Em algumas cenas, o shinigami come as maçãs que o protagonista lhe oferece, deixando apenas o cabinho da fruta ou o sinal de sua mordida, conforme podemos observar na figura 2:
Figura 2: Mordida como caráter de índice
Fonte: <https://aminoapps.com/c/academiakuoh/page/item/ryuuki shinigami/Kn3B_keFKI0xVx4EKXljWXBW44lQXwZmxYum> Acesso em: 13 de jul. 2022.
Cenário
Muito se pode apreender da iluminação e do sombreamento de filmes e séries, portanto, não seria diferente com o anime em estudo. Sendo um signo correspondente da Primeiridade, a iluminação pode ser evidenciada nas cenas que envolvem maior movimentação dos personagens, isto é, mais ação. Por outro lado, o uso do sombreamento pode revelar maior tensão, que serve para atribuir um ar mais sombrio e pessimista à cena, conforme vemos na figura 3, a seguir:
Figura 3: Cena em que ocorre o sombreamento
Fonte: < https://cadernodamorte.fandom.com/pt-br/wiki/L_Lawliet> Acesso em: 13 jul. 2022.
Para Moura (2020), cabe acrescentar que esses signos, como havia notado Santaella (2002), “intentam representar, em parte, pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo.” No caso da iluminação e do sombreamento, os signos também podem representar “heroísmo, a reviravolta, o medo, a angústia”, o que revela uma outra função para o signo, que é a potencialização dos efeitos de sentido gerados na mente do telespectador.
É por esse motivo, ainda segundo Moura (2020), que aspectos como iluminação e sombra podem ser explorados em diversas produções textuais. Santaella (2002) mostra como a iluminação é capaz de evidenciar um produto de um anúncio, por exemplo, e potencializar o sentido atribuído à “limpeza”, no caso dos anúncios de materiais de limpeza. A sombra também pode ser usada em certos pontos do anúncio, buscando trazer a sensação de profundidade, ou mesmo a sensação de que o leitor está dentro do anúncio.
Moura (2020) acrescenta que os alunos do curso de Computação e/ou Sistemas de Informação estão frequentemente lidando com trabalhos de elaboração de um programa, sites, aplicativos, entre outros, e que poderiam fazer uso das técnicas de iluminação e sombreamento para criar interfaces de programas.
Em outras produções visuais, como é o caso de a produção independente de uma animação, desenho ou anúncio, o mesmo poderia ser feito com o fito de provocar sensações no leitor. “Além desses exemplos, produções escritas que trabalham com o campo imagético e a criação de cenários também podem se apropriar de elementos da Primeiridade e Secundidade a fim de vincular sentidos e sensações a essas imagens criadas” (MOURA, 2020, p. 66).
Ressaltamos, portanto, que esse estudo seria muito produtivo caso as escolas incentivassem o estudo e uso dos signos de modo que eles possam atuar efetivamente nas produções de outras áreas do conhecimento.
Considerações finais
Apesar de não termos explorado todos os recursos e símbolos existentes em Death Note, esperamos ter contribuído para as práticas escolares através de nossa discussão teórico-propositiva, pois, conforme Moura (2020) diante de uma crescente discussão sobre a inserção de multiletramentos nas escolas, fica evidente a necessidade de estimular análises que compreendam os textos em um nível bem mais profundo. Apesar de os animes por serem mais populares entre o público jovem no Brasil, é preciso que sejam explorados em sala de aula. Por esse motivo, esperamos que as discussões propostas e a breve análise possam motivar outros professores a realizar atividades de análise como essa em sala de aula.
Além disso, qualquer que seja o texto, a Semiótica pode atuar como teoria para embasar a análise, pois, como vimos, descreve experiências primárias, secundárias e terciárias ao nos depararmos com um signo. Tendo isso em mente, “representações e interpretações mais válidas podem ser captadas pelos alunos que estão em constante contato com signos nas escolas e no mundo” (MOURA, 2020), possibilitando-os desenvolver a compreensão de textos. Portanto, “as leituras, em seu mais amplo sentido, tornam-se facilmente apreendidas, sobretudo, com a prática constante dessas análises” (MOURA, 2020).
Referências
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1Universidade Federal de Goiás – GO
2Universidade Federal de Goiás – GO