SEGURANÇA PÚBLICA, VIGILANTISMO E NOVAS TECNOLOGIAS: O RECONHECIMENTO FACIAL COMO FERRAMENTA DE GARANTIA DE DIREITOS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202411101449


Luiz Paulo Mathaus de Alencar Carvalho1,
Robinson Brancalhão da Silva2


RESUMO

Este trabalho analisa o uso de tecnologias de reconhecimento facial como ferramenta de segurança pública, abordando seus benefícios e os desafios éticos e legais associados. A pesquisa destaca que, embora a tecnologia possa aumentar a eficiência na identificação de suspeitos e na resolução de crimes, especialmente em eventos de grande porte, existem preocupações significativas em torno da privacidade e da discriminação. No Brasil, a implementação inadequada e a falta de regulamentação específica reforçam as críticas quanto à aplicação desigual da tecnologia, especialmente em comunidades vulneráveis. A pesquisa sugere que a aceitação pública do reconhecimento facial depende da transparência, da fiscalização adequada e do alinhamento com diretrizes legais, como a LGPD. Somente por meio de uma governança clara e ética será possível equilibrar os benefícios da segurança pública com a proteção dos direitos fundamentais.

Palavras-chave: Reconhecimento facial; Segurança pública; Direitos fundamentais; Privacidade; LGPD.

ABSTRACT

This study analyzes the use of facial recognition technologies as a public security tool, addressing its benefits and associated ethical and legal challenges. The research highlights that, although the technology can improve efficiency in identifying suspects and solving crimes, especially during large events, significant concerns remain regarding privacy and discrimination. In Brazil, inadequate implementation and the lack of specific regulations reinforce criticisms of the unequal application of the technology, particularly in vulnerable communities. The study suggests that public acceptance of facial recognition depends on transparency, proper oversight, and alignment with legal frameworks, such as the LGPD. Only through clear and ethical governance will it be possible to balance the benefits of public security with the protection of fundamental rights.

Keywords: Facial recognition; Public security; Fundamental rights; Privacy; LGPD.

1 INTRODUÇÃO

A segurança pública é um pilar fundamental para a estabilidade e o bemestar social, constituindo-se como um direito essencial garantido pela legislação e pelos princípios democráticos que orientam a sociedade, conforme Nucci (2016)1. A importância da segurança pública transcende a mera proteção contra ilícitos; ela é a base para a promoção de um ambiente seguro que permite o pleno desenvolvimento das potencialidades individuais e coletivas. Portanto, investir em mecanismos eficazes que fortaleçam a segurança pública é uma prioridade indiscutível.

Paralelamente, os direitos fundamentais são igualmente cruciais, assegurando que liberdades civis e a privacidade dos cidadãos sejam protegidas e respeitadas. Estes direitos são a expressão máxima de nossa humanidade e da dignidade intrínseca a cada indivíduo, constituindo o alicerce sobre o qual sociedades justas e equitativas são construídas, conforme Sarlet (2011)2. Assim, garantir esses direitos é tão essencial quanto assegurar a segurança pública.

Contrariamente ao que muitas vezes é percebido, segurança pública e direitos fundamentais não são conceitos antagônicos, mas complementares , conforme Nucci (2016)1. Uma sociedade segura é aquela que consegue equilibrar eficazmente esses dois elementos, reconhecendo que a verdadeira segurança vem através da harmonia entre a proteção do coletivo e o respeito ao indivíduo. Segurança e direitos fundamentais são, portanto, duas faces da mesma moeda, cada uma reforçando a outra para criar uma sociedade mais segura e justa, conforme Nucci (2016)1.

Nesse contexto, a adoção de tecnologias avançadas, como as câmeras de reconhecimento facial, surge como uma ferramenta potencialmente transformadora, conforme Oliveira e Costa (2020)3. Quando implementadas com os devidos cuidados e regulamentações, essas tecnologias podem servir não apenas para melhorar a eficácia da segurança pública, mas também para garantir direitos, ao ajudar a prevenir crimes e rapidamente solucionar delitos, protegendo a comunidade de ameaças. Contudo, é crucial que o uso dessas tecnologias seja acompanhado de rigorosas salvaguardas para proteger contra abusos que possam comprometer a privacidade e liberdades individuais.

2. MATERIAL E MÉTODOS

Nesta seção, detalha-se a metodologia utilizada para desenvolver esta pesquisa, considerando a natureza, objetivos, tipo de abordagem, procedimentos e instrumentos de coleta de dados.

2.1 Natureza da Pesquisa

A pesquisa possui caráter aplicado, pois busca fornecer conhecimentos que possam embasar a formulação de políticas públicas e práticas jurídicas relacionadas ao uso de tecnologias de reconhecimento facial em segurança pública, com foco na proteção dos direitos fundamentais.

2.2 Objetivo e Abordagem

O objetivo desta pesquisa é analisar como o uso de tecnologias de reconhecimento facial impacta a garantia dos direitos fundamentais, explorando os benefícios e riscos associados à segurança pública e à privacidade. Adota-se uma abordagem qualitativa, dada a necessidade de compreender e interpretar as interações entre segurança, vigilância e direitos humanos.

2.3 Procedimentos e Instrumentos de Coleta de Dados

Os procedimentos técnicos utilizados nesta pesquisa serão:

  • Pesquisa bibliográfica: A pesquisa recorrerá a livros, artigos científicos e dissertações que tratem da relação entre vigilância tecnológica e direitos fundamentais, além de obras sobre proteção de dados e segurança pública. Autores como David Lyon e Guilherme Nucci serão fundamentais para embasar a discussão.
  • Pesquisa documental: Serão analisadas legislações, normativas e políticas públicas relacionadas ao uso de tecnologias de reconhecimento facial, com destaque para a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)4 no Brasil e a General Data Protection Regulation (GDPR)5 da União Europeia.
2.4 Análise dos Dados

A análise dos dados será qualitativa, por meio de análise de conteúdo, com foco na identificação de padrões relevantes sobre a interação entre segurança pública e proteção de direitos fundamentais. A pesquisa também utilizará quadros comparativos entre diferentes abordagens legais, de forma a evidenciar a compatibilidade entre o uso de tecnologias de vigilância e a proteção dos direitos civis.

3. RESULTADOS

Os resultados desta pesquisa revelam a complexidade das implicações do uso de tecnologias de reconhecimento facial em segurança pública, especialmente no que tange à garantia dos direitos fundamentais. A análise documental e bibliográfica trouxe à tona um panorama que envolve a confiança pública, legitimidade, percepções sociais, aspectos éticos e regulamentares associados à vigilância tecnológica.

3.1 Confiança e Legitimidade no Uso Policial

A pesquisa identificou que a confiança nas instituições policiais é fundamental para que a sociedade apoie o uso de tecnologias de reconhecimento facial. Segundo Bradford et al. (2020)6, quando a população acredita que a polícia age de forma justa e transparente, a aceitação dessas ferramentas é significativamente maior. Por exemplo, em cidades onde a polícia mantém uma relação próxima com a comunidade e é percebida como parceira na resolução de problemas locais, como programas de policiamento comunitário, as pessoas tendem a apoiar o uso de novas tecnologias, inclusive o reconhecimento facial.

Por outro lado, em contextos onde há histórico de abusos policiais, preconceito ou discriminação, como no tratamento desigual de comunidades racializadas, o uso do reconhecimento facial pode ser visto com desconfiança. No Brasil, onde casos de violência policial e abordagens discriminatórias são frequentemente noticiados, é natural que muitas pessoas temam que essa tecnologia possa ampliar desigualdades ou reforçar perfis raciais. Esse receio foi evidenciado em outros países, como nos Estados Unidos, onde sistemas de reconhecimento facial já cometeram erros ao identificar erroneamente pessoas negras como suspeitas7,8. Casos como esses alimentam a desconfiança pública e dificultam a aceitação da tecnologia, mesmo que ela possa, em teoria, melhorar a segurança pública.

Além disso, a pesquisa destaca que a legitimidade do uso dessas tecnologias está ligada à forma como as autoridades comunicam e justificam sua aplicação. Quando a população tem clareza sobre os objetivos do uso do reconhecimento facial – como na identificação de criminosos em grandes eventos ou na busca por foragidos – e sabe que há mecanismos eficazes de fiscalização, o apoio é maior. Em Londres, por exemplo, um experimento de reconhecimento facial foi bem aceito após a polícia demonstrar publicamente que ele seria usado apenas para localizar suspeitos específicos e que dados irrelevantes seriam imediatamente descartados6. Sem essa transparência, no entanto, o uso da tecnologia pode ser interpretado como uma ameaça à privacidade e aos direitos civis.

Assim, a confiança e a legitimidade não dependem apenas do uso da tecnologia em si, mas também da reputação da polícia, da comunicação clara com a população e da existência de controles que garantam que o reconhecimento facial será usado de forma responsável e não abusiva.

3.2 Percepções Públicas em Diferentes Contextos Políticos

A aceitação do reconhecimento facial varia significativamente conforme o contexto político e cultural em que a tecnologia é aplicada. De acordo com Kostka et al. (2021)9, cidadãos de países democráticos, como Alemanha e Reino Unido, tendem a demonstrar maior preocupação com questões de privacidade e controle governamental. Nesses países, a vigilância estatal é frequentemente associada ao potencial de abuso, e há uma forte expectativa de que o uso de dados pessoais seja regulado de maneira rígida, com transparência e consentimento claro. Por exemplo, na Alemanha, onde a memória histórica da vigilância durante o regime nazista e a era da Stasi ainda influencia a opinião pública, a introdução de tecnologias de reconhecimento facial encontra uma recepção mais crítica e exige um debate público intenso antes de sua implementação.

Em contraste, na China, onde o governo promove uma vigilância estatal ampla e a tecnologia é integrada ao cotidiano, o reconhecimento facial é amplamente aceito pela população. A tecnologia é utilizada em situações comuns, como o pagamento em supermercados e a entrada em escolas e escritórios, sendo vista como uma ferramenta que facilita a rotina e aumenta a segurança pública. Além disso, o controle mais restrito sobre a liberdade de expressão e as poucas alternativas de resistência civil resultam em menor oposição pública ao uso da tecnologia para vigilância. Nesse contexto, os cidadãos aceitam a vigilância como parte do contrato social, onde o governo assegura ordem e segurança em troca de maior controle e monitoramento.

No Brasil, de acordo com Oliveira, S. R., & Costa, R. S. (2019)3, as percepções públicas parecem flutuar entre esses dois extremos, influenciadas tanto pela expectativa de maior segurança quanto pelo receio de abusos e falhas no uso da tecnologia. Por um lado, há apoio ao reconhecimento facial em ambientes como transporte público e grandes eventos, onde a prevenção de crimes e a identificação de suspeitos são valorizadas. No entanto, a falta de confiança nas instituições e a preocupação com a aplicação desigual da tecnologia geram desconfiança. Um exemplo disso é o caso de sistemas de vigilância instalados em Salvador, que enfrentaram críticas pela possibilidade de discriminação racial nas abordagens policiais com base em identificações com o uso de tecnologia artificial10.

Além disso, a percepção pública no Brasil é moldada pela confiança na governança e na aplicação das leis de proteção de dados, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Quando o público percebe que há fiscalização e limites claros no uso da tecnologia, o apoio tende a aumentar. No entanto, casos de vazamento de dados e a sensação de impunidade em situações de abuso reforçam uma postura cautelosa e crítica10,11. Assim, o cenário brasileiro reflete uma tensão entre o desejo por maior segurança e a necessidade de preservar os direitos fundamentais, como a privacidade e a não discriminação.

3.3 Aspectos Éticos e de Segurança

A aplicação de sistemas de reconhecimento facial levanta questões éticas e de segurança significativas. Conforme destacado por Unny (2022)11, esses sistemas apresentam riscos elevados à privacidade, especialmente quando não existem regulamentações claras sobre seu uso e armazenamento de dados. Uma preocupação central é que o reconhecimento facial permite a vigilância massiva e constante de indivíduos em espaços públicos, o que pode levar à sensação de que estamos sempre sendo observados, limitando nossa liberdade de movimento e expressão.

Além dos riscos técnicos, é essencial considerar que a adoção de tecnologias como o reconhecimento facial deve respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana, que, segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2011)2, é o alicerce sobre o qual se sustentam todos os direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988. Assim, o uso dessas ferramentas de vigilância não pode se sobrepor à proteção da dignidade e à garantia dos direitos fundamentais, como a privacidade e a liberdade, que são essenciais para a autonomia dos cidadãos.

Vazamentos de dados e uso indevido são riscos reais nesses sistemas. Por exemplo, em casos recentes no exterior, bancos de dados com informações biométricas foram acessados por hackers, expondo milhares de rostos e dados pessoais de indivíduos11. Uma situação emblemática aconteceu em 2019, quando uma empresa dos EUA, chamada Clearview AI, teve seu banco de dados invadido, revelando informações sobre rostos de milhões de pessoas, coletados sem consentimento de plataformas públicas como redes sociais. Esses incidentes mostram como a falha na proteção dos dados biométricos pode ter consequências graves e gerar desconfiança pública na tecnologia.

Além dos riscos de segurança, há também questões éticas relacionadas ao uso discriminatório da tecnologia. O reconhecimento facial é especialmente propenso a erros ao identificar pessoas de minorias étnicas, mulheres e indivíduos com tons de pele mais escuros. Um exemplo relevante é o uso da tecnologia nos Estados Unidos, onde houve casos de prisões injustas devido a erros de reconhecimento envolvendo pessoas negras, como relatado pela ACLU (American Civil Liberties Union)12. Esses erros não são apenas falhas técnicas; eles refletem viéses incorporados nos algoritmos e reforçam desigualdades sociais, ampliando discriminações já existentes.

No Brasil, a falta de regulamentação específica sobre o uso de reconhecimento facial agrava esses problemas. A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) oferece alguma proteção, mas não aborda de forma específica o uso dessa tecnologia por órgãos de segurança pública. Em Salvador, onde sistemas de reconhecimento facial foram implementados para identificar suspeitos, surgiram críticas de que a tecnologia estaria sendo utilizada de forma discriminatória, aumentando a vulnerabilidade de grupos marginalizados, especialmente da população negra10. Esses exemplos mostram que, sem regulamentação e fiscalização adequadas, a tecnologia pode violar direitos fundamentais e aprofundar desigualdades sociais.

Portanto, garantir a segurança e a ética na aplicação do reconhecimento facial exige mais do que apenas uma infraestrutura tecnológica robusta. É necessário um arcabouço legal claro e transparente, aliado a mecanismos eficazes de controle e fiscalização, para evitar abusos e proteger os direitos dos cidadãos. Apenas com essas medidas será possível equilibrar os benefícios da tecnologia com a preservação da privacidade e dos direitos humanos.

3.4 Suporte ao Uso de Câmeras Corporais com Reconhecimento Facial

Por fim, Bromberg et al. (2020) apontam que o suporte ao uso de câmeras corporais equipadas com reconhecimento facial depende da transparência na utilização dos dados e do estabelecimento de mecanismos de controle e auditoria13. Os resultados sugerem que, quando há clareza sobre a finalidade do uso e garantias de proteção à privacidade, o apoio público tende a aumentar. Por exemplo, em algumas cidades nos Estados Unidos, câmeras corporais foram implementadas com a promessa de que a tecnologia seria usada exclusivamente para identificar criminosos já conhecidos ou foragidos. Essa abordagem transparente resultou em um aumento na aceitação pública, especialmente em comunidades que haviam manifestado receio inicial quanto ao uso da tecnologia. No entanto, a falta de comunicação clara ou a percepção de que as câmeras poderiam ser usadas para monitoramento generalizado sem justificativa reduz significativamente o apoio da população, como apontam os autores.

Outro exemplo relevante foi observado no Reino Unido, onde a introdução de câmeras corporais pela polícia de Londres gerou debates acalorados. Embora houvesse apoio inicial, os cidadãos começaram a questionar a utilização da tecnologia quando se percebeu que faltavam diretrizes claras sobre como os dados coletados seriam armazenados e por quanto tempo permaneceriam nos sistemas policiais13. A implementação bem-sucedida em algumas cidades mostrou que, além de ser transparente sobre os objetivos do uso, é essencial que mecanismos de auditoria independente estejam presentes, assegurando que os dados não sejam utilizados para finalidades não autorizadas. Quando essas condições são atendidas, o reconhecimento facial em câmeras corporais pode funcionar como uma ferramenta eficaz para aumentar a segurança pública e reconstruir a confiança entre a polícia e as comunidades. Por outro lado, a falta de supervisão e regulamentação pode transformar essa mesma tecnologia em um fator de desconfiança, especialmente em contextos onde o histórico de abuso por parte das forças de segurança já é uma preocupação.

4. DISCUSSÃO

Nesta seção, são analisados e cotejados os dados obtidos a partir da pesquisa bibliográfica e documental, colocando em diálogo os conceitos e informações relevantes com a literatura existente. A discussão busca aprofundar a compreensão sobre o impacto do uso de tecnologias de reconhecimento facial, explorando tanto seus benefícios quanto os riscos éticos e legais associados.

4.1 Eficiência e Segurança Pública

Os resultados indicam que o reconhecimento facial tem o potencial de aumentar a eficiência na identificação de suspeitos e na resolução de crimes. Autores como Bromberg et al. (2020) ressaltam que, quando utilizado de forma transparente e com mecanismos de auditoria, o uso dessas tecnologias pode fortalecer a confiança da população e facilitar o trabalho policial13. Por exemplo, a aplicação da tecnologia em câmeras corporais de policiais tem demonstrado ser eficaz em alguns contextos urbanos dos Estados Unidos e Reino Unido, onde eventos de massa são monitorados para evitar incidentes e identificar criminosos foragidos13.

Contudo, como apontam diversos estudos, essa eficiência não é suficiente para garantir aceitação social ampla, especialmente se a tecnologia violar direitos fundamentais. Nucci (2015) argumenta que é possível e necessário encontrar um equilíbrio entre segurança pública e proteção dos direitos humanos, pois ambos são pilares essenciais para a estabilidade social. A segurança pública não deve ser vista como antagônica aos direitos fundamentais, mas, sim, como um meio de garanti-los, na medida em que um ambiente seguro é necessário para o pleno exercício das liberdades individuais1 (Nucci, 2015). Nesse sentido, o uso do reconhecimento facial só será legítimo se estiver em conformidade com princípios constitucionais e se respeitar garantias individuais, como a privacidade e a não discriminação.

No entanto, como apontam Ritchie et al. (2021)14, essa eficiência não é suficiente para garantir aceitação social ampla. A falta de regulamentação adequada e o risco de falhas técnicas podem comprometer os objetivos pretendidos. Casos de prisões injustas devido a erros em algoritmos de reconhecimento facial, como os documentados pela ACLU (2020), evidenciam que a confiança pública na tecnologia é frágil e que seus impactos precisam ser cuidadosamente monitorados (ACLU, 2020)12. Assim, a pesquisa demonstra que, para maximizar os benefícios da tecnologia, é fundamental implementar uma governança robusta e políticas que evitem abusos.

4.2 Aspectos Éticos e Discriminatórios

A literatura revisada reforça que a adoção do reconhecimento facial envolve desafios éticos significativos. Unny (2022) argumenta que a falta de regulamentação pode transformar essa ferramenta em um mecanismo de vigilância massiva, comprometendo a privacidade dos indivíduos e afetando de maneira desproporcional grupos vulneráveis11. A pesquisa documental mostrou que, em Salvador, a aplicação da tecnologia gerou críticas pela possibilidade de intensificar abordagens seletivas da polícia e ampliar a discriminação racial10. Esses exemplos revelam que a introdução do reconhecimento facial sem a devida fiscalização pode reforçar desigualdades estruturais, transformando uma ferramenta de segurança em um instrumento de exclusão social.

A análise também sugere que algoritmos de reconhecimento facial carregam vieses que afetam principalmente minorias raciais, como evidenciado por Ritchie et al. (2021)14. Erros de identificação que afetam desproporcionalmente pessoas negras, como observado nos Estados Unidos, apontam para a necessidade de aprimoramento dos sistemas e maior responsabilidade no uso da tecnologia (Ritchie et al., 2021)14. No contexto brasileiro, onde a população negra é particularmente vulnerável a práticas discriminatórias, a ausência de regulamentação específica agrava esses riscos e aumenta a desconfiança em relação ao uso da tecnologia pelas forças de segurança.

4.3 Necessidade de Regulamentação e Transparência

A pesquisa destaca que a falta de uma regulamentação clara e transparente sobre o uso do reconhecimento facial no Brasil é um dos maiores desafios para sua aceitação pública. A LGPD oferece alguma proteção quanto ao uso de dados pessoais, mas ainda há lacunas significativas em relação ao uso de tecnologias de vigilância por órgãos públicos10. Casos como o de Salvador demonstram que, sem mecanismos claros de controle e fiscalização, a tecnologia pode ser utilizada de forma discriminatória, exacerbando desigualdades sociais já existentes10

Portanto, autores como Kostka et al. (2021) apontam que, para que a tecnologia seja amplamente aceita e usada de forma justa, é essencial que sejam estabelecidas diretrizes claras sobre a finalidade do uso e garantias de que os dados não serão utilizados para outros fins9. O apoio público só será viável se houver confiança de que a tecnologia será aplicada com responsabilidade e que existem auditorias independentes para evitar abusos. Assim, a transparência no uso e o alinhamento com diretrizes legais, como a LGPD, são condições indispensáveis para que o reconhecimento facial seja uma ferramenta legítima e eficaz na segurança pública.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo analisou o uso de tecnologias de reconhecimento facial como ferramenta para fortalecer a segurança pública, avaliando tanto seus benefícios quanto os desafios éticos e legais envolvidos. A pesquisa confirmou que essa tecnologia pode, de fato, aumentar a eficiência na identificação de suspeitos e na resolução de crimes, especialmente em grandes eventos e áreas urbanas. No entanto, ficou evidente que essa eficiência não é suficiente para garantir a aceitação pública, especialmente em contextos onde há histórico de desigualdade e discriminação.

As hipóteses iniciais foram verificadas. Por um lado, o reconhecimento facial mostra-se capaz de contribuir significativamente para a segurança pública, mas, por outro, há riscos concretos de violação de direitos fundamentais, como a privacidade e a proteção contra discriminação. No contexto brasileiro, esses riscos são ainda mais críticos devido à aplicação desigual da lei e à ausência de regulamentação específica e fiscalização rigorosa para o uso dessa tecnologia pelas forças de segurança.

Foi constatado que a transparência e a clareza nos objetivos do uso da tecnologia são fatores fundamentais para que a população confie nesses sistemas. A pesquisa revelou que, sem mecanismos robustos de controle e auditoria, há uma tendência de resistência e rejeição ao uso da tecnologia, especialmente em comunidades vulneráveis. A implementação inadequada pode ampliar desigualdades sociais, transformando a tecnologia em mais uma ferramenta de opressão ao invés de um recurso para a promoção de segurança e justiça.

Assim, conclui-se que o uso responsável do reconhecimento facial depende não apenas de infraestrutura tecnológica eficiente, mas, sobretudo, de um marco regulatório claro, alinhado com princípios éticos e de respeito aos direitos fundamentais. No Brasil, é essencial que sejam desenvolvidas normas específicas que regulem a aplicação da tecnologia de forma justa, transparente e proporcional. Somente dessa maneira será possível equilibrar os benefícios da segurança pública com a proteção dos direitos individuais, garantindo que o uso dessa tecnologia se alinhe aos valores democráticos e promova, de fato, a segurança para todos.

6. REFERÊNCIAS

1 Guilherme de Souza Nucci. Direitos Humanos versus Segurança Pública; Grupo Gen-Forense Universitária, 2016.

2 Sarlet, I. W. Dignidade Da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais Na Constituição Federal de 1988; Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011.

3 Costa, R. S.; OLIVEIRA, S. R. de. O Uso de Tecnologias de Reconhecimento Facial Em Sistemas de Vigilância e Suas Implicações No Direito à Privacidade. Rev. Direito Governança E Novas Tecnol. 2019, 5 (2), 01–02.

4 Brasil. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).; 2018. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm (accessed 2024-04-18).

5 União Européia. General Data Protection Regulation (GDPR). https://gdprinfo.eu/ (accessed 2024-10-23).

6 Live Facial Recognition: Trust and Legitimacy as Predictors of Public Support For Police Use of New Technology | The British Journal of Criminology | Oxford Academic. https://academic.oup.com/bjc/articleabstract/60/6/1502/5843315?redirectedFrom=fulltext (accessed 2024-1016).

7 Grother, P.; Ngan, M.; Hanaoka, K. Face Recognition Vendor Test Part 3: Demographic Effects; NIST IR 8280; National Institute of Standards and Technology: Gaithersburg, MD, 2019; p NIST IR 8280. https://doi.org/10.6028/NIST.IR.8280.

8 Man Wrongfully Arrested Because Face Recognition Can’t Tell Black People Apart | American Civil Liberties Union. https://www.aclu.org/pressreleases/man-wrongfully-arrested-because-face-recognition-cant-tell-blackpeople-apart (accessed 2024-10-16).

9 Kostka, G.; Steinacker, L.; Meckel, M. Between Security and Convenience: Facial Recognition Technology in the Eyes of Citizens in China, Germany, the United Kingdom, and the United States. Public Underst. Sci. Bristol Engl. 2021, 30 (6), 671–690. https://doi.org/10.1177/09636625211001555.

10 Sousa, B. Panóptico: reconhecimento facial renova velhas táticas racistas de encarceramento. Rede de Observatórios de Segurança. https://observatorioseguranca.com.br/panoptico-reconhecimento-facialrenova-velhas-taticas-racistas-de-encarceramento/ (accessed 2024-1017).

11 Balakrishnan Unny; Nityesh Bhatt. A Meta-Analysis of Privacy: Ethical and Security Aspects of Facial Recognition Systems. Int. J. Inf. Secur. Priv. IJISP 2022, 16 (1), 1–22. https://doi.org/10.4018/IJISP.285580.

12 Michigan Father Sues Detroit Police Department for Wrongful Arrest Based on Faulty Facial Recognition Technology. American Civil Liberties Union. https://www.aclu.org/press-releases/michigan-father-sues-detroit-policedepartment-wrongful-arrest-based-faulty-facial (accessed 2024-10-17).

13 Bromberg, D. E.; Charbonneau, É.; Smith, A. Public support for facial recognition via police body-worn cameras: Findings from a list experiment – ScienceDirect. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0740624X19300449 (accessed 2024-10-17).

14 Ritchie, K. L.; Cartledge, C.; Bethany Growns; An Yan; Yuqing Wang; Kunn Guo; Robin S Kramer; Gary Edmond; Kristy A Martire; Mehera San Roque; David White. Public attitudes towards the use of automatic facial recognition technology in criminal justice systems around the world – PMC. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC8513835/ (accessed 2024-10-18).


1Acadêmico de Direito. E-mail: mathaus.alc@gmail.com. Artigo apresentado a Faculdade Unisapiens, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO, 2024.

2Doutorando em Direito, Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia, Bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco (2009), e Bacharel em Direito pela Universidade Cruzeiro do sul (2011), Especialista em Polícia Judiciária Militar pela Polícia Militar do Estado de São Paulo (2012), Especialista em Gestão Pública pela Escola da Magistratura (2020), possui Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais pelo Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Rondônia – CAOPMRO (2017). Atualmente é oficial da polícia militar – Polícia Militar do Estado de Rondônia no posto de Tenente Coronel.