REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7557091
Maria Beatriz Nader1
Renata Rangel Spelta Hackbardt2
RESUMO
Transcorridos mais de 100 anos da criação do Código Civil brasileiro de 1916, é de grande relevância interpretar seu significado na história do direito pátrio e na evolução cultural do país. Fruto de várias influências como o positivismo e o movimento de codificação, que dominaram o debate político e jurídico na segunda metade do século XIX, o referido diploma legal foi publicado no Brasil apenas no ano de 1916. Com quase duas décadas de tramitação, entender o sentido e o alcance jurídico dessa codificação exige o delineamento do quadro social e econômico em que se processou a obra dos codificadores. Com vistas à análise dos avanços e retrocessos que marcaram sua criação, propusemos um trabalho que irá analisar as influências da estrutura oligárquica e patriarcal brasileira na passagem do século XIX para o século XX e que impediram avanços liberais nas primeiras normas civis codificadas.
Palavras-chave: Codificação. Liberalismo. Patriarcado.
ABSTRACT
More than 100 years after the creation of the Brazilian Civil Code of 1916, it is of great transformation to interpret its meaning in the history of Brazilian law and in the cultural evolution of the country. As a result of various influences such as positivism and the achieved movement, which dominated the political and legal debate in the second half of the 19th century, the aforementioned legal diploma was published in Brazil only in the year 1916. With almost two decades of progress, feeling the meaning and legal scope of this category requires the outline of the social and economic framework in which the work of the coders was processed. With a view to analyzing the advances and setbacks that marked its creation, we proposed a work that will analyze the influences of the Brazilian oligarchic and patriarchal structure from the 19th to the 20th century and that prevented liberal advances in the first codified civil norms.
Keywords: Coding. Liberalism. Patriarchate.
INTRODUÇÃO
Para uma clara compreensão acerca de determinado sistema jurídico faz-se imperiosa a análise de seu desenvolvimento histórico, considerando não apenas a observação da realidade social e política no momento de elaboração dos diplomas normativos, mas também as influências das ideias, que lhe marcaram no curso do tempo. Percorrendo, pois, os caminhos da interdisciplinaridade propõe-se, no presente artigo científico, um diálogo entre a Ciência Jurídica e a História a fim de se investigar as razões históricas, políticas, sociais e econômicas, que impuseram limites aos avanços liberais do Código Civil de 1916.
Para a realização deste debate iremos analisar temas como o processo de codificação de normas jurídicas como um elemento assecuratório de poder estatal, os avanços dos ideais liberais nas codificações europeias e os fatores impeditivos à construção de normas civis mais igualitárias no que concerne ao Direito de Família.
Utilizaremos o método bibliográfico para as discussões constantes no referencial teórico da pesquisa, dada a sua importância para a pesquisa histórica, com preliminar levantamento de diversas bibliografias tais como livros, publicações em periódicos e trabalhos científicos. Como fonte primária, utilizaremos os documentos legislativos que se referem ao projeto de lei que culminou, no ano de 1916 com a publicação do primeiro Código Civil (Decreto-Lei 3.071). São exposições de motivos, debates parlamentares, relatório, substitutivos, atas de reuniões e emendas que encontram-se acostados ao devido processo legislativo. Todos esses documentos oficiais foram compilados e publicados na Imprensa Oficial do Rio de Janeiro no ano de 1919.
1. MOVIMENTOS EUROPEUS DE CODIFICAÇÃO DO SÉCULO XIX E O CÓDIGO CIVIL DE 1916
Transcorridos mais de 100 anos da criação do Código Civil brasileiro de 1916, é de grande relevância interpretar seu significado na história do direito pátrio e na evolução cultural do país. Partindo da premissa de que a estrutura social é fator dominante no processo criação de normas jurídicas, o presente artigo científico percorre pelos caminhos da Escola Histórica desenvolvida na Alemanha do século XIX, para justificar a importância de analisarmos os fatos sociais que deram ensejo à criação das primeiras leis civis codificadas.
De igual modo, também é necessário proceder a uma investigação sobre a longevidade das leis civis portuguesas no Brasil. Como será visto, a história do direito brasileiro singulariza-se pela vigência ininterrupta e por mais de três séculos, das Ordenações Filipinas (GOMES, 2003). A longevidade desse corpo legislativo no Brasil, mesmo após a proclamação da república, impedindo que o Brasil participasse dos movimentos de codificação que impressionaram várias nações ocidentais durante o século XIX merece, pois, acurada análise.
Este artigo apresenta-se, nesse diapasão, como um importante mecanismo de investigação acerca da dificuldade na criação das leis civis codificadas no Brasil. Identificar as razões que levaram o país a manter as ordenações portuguesas mesmo quando essas já se encontravam revogadas em Portugal é de grande relevância para os estudos historiográficos.
São fartas as produções historiográficas durante o século XIX no Brasil acerca da necessidade de elaboração de normas civis codificadas que pudessem regulamentar a vida privada dos indivíduos. Era uníssono, naquela quadra histórica, o entendimento segundo o qual o país precisava criar suas próprias leis, considerando que as relações privadas estavam sendo regulamentadas, desde a colonização, pelas ordenações portuguesas e assim permaneceram mesmo após a Independência, em 1822. Nesse contexto, muito se discutiu acerca da apropriação das ideias jurídicas de países europeus como a Inglaterra, a França e a Alemanha, que poderiam influenciar o debate parlamentar brasileiro na criação de seu primeiro Código Civil.
A historiadora Gislene Neder (2011), em sua obra “Duas Margens- Ideias Jurídicas e sentimentos políticos no Brasil e em Portugal na passagem à modernidade” descreve que, em especial na segunda metade do século XIX, é possível observar um processo de ruptura que marca as diferenciações que vão começar a se produzir no campo intelectual brasileiro como, por exemplo, a crítica à Igreja Católica, realizada a partir da escola de Recife e liderada por Tobias Barreto3.
Na evolução do pensamento da Escola de Recife, o ingresso de Tobias Barreto para a Faculdade de Direito em 1882 marca o início do desenvolvimento das ideias jurídico-positivistas. Com trabalhos como “Guizot e a Escola Espiritualista do século XIX”, Tobias começa a tender para o positivismo com a preocupação de derrubar as ideias escolásticas dominantes exaltando, para tanto, que Deus não poderia ser objeto de ciência filosófica4 (ADEODATO, 2003).
Bastante influenciado pelo positivismo germânico, Tobias Barreto insere nos estudos jurídicos de Recife o pensamento de Friedrich Von Savigny, para quem o direito é produto cultural, fruto de uma dada sociedade em seu espaço e tempo próprios. De igual modo, disseminou as lições de outro jurista da Escola Histórica alemã, Rudolph Von Ihering. Desse último, esposava a ideia de interpretar o direito como um fenômeno histórico e cultural, considerando-o, portanto, a disciplina das forças sociais. O direito é, pois, uma criação humana que se desenvolve com a civilização, um produto cultural da própria humanidade5.
O ideário do positivismo difundindo pela Escola de Recife teve repercussões práticas muito grandes, não apenas no campo doutrinário. A partir da segunda metade do século XIX, intensificaram os debates políticos sobre a abolição da escravatura, o advento da República, a separação entre a Igreja e o Estado e diversas formas de liberdade, tais como a defesa do proletariado e da mulher, a liberdade religiosa, a liberdade de ensino, a liberdade de testar, e a liberdade de profissões (ADEODATO, 2003).
As exigências para a realização do projeto de unificação e codificação das normas civis, que pudesse dar contornos liberais à retrógrada ordenação de leis civis importada de Portugal, foram se tornando cada vez mais frequentes nos discursos políticos, ao mesmo tempo em que as presenças francesa, inglesa e alemã foram afastando as produções intelectuais no Brasil de Portugal, como bem historia Gilberto Freyre, em sua obra Ingleses no Brasil.
Nesse contexto de múltiplas influências iluministas na construção do pensamento intelectual e jurídico, é que situa-se Clóvis Beviláqua e Rui Barbosa. Na segunda metade do século XIX, a abolição da escravidão e a ascensão das ideias liberais europeias sobre a elite intelectual, de fato, influenciaram o surgimento da República. Mas, como bem adverte Rui Barbosa6, o período republicano no Brasil não se deu por meio de um processo de rompimento com a ordem política anterior. Foram mantidos os mesmos mecanismos de dominação dos coronéis e o distanciamento do Estado da sociedade. Sem essa ruptura, o país manteve-se com suas estruturas sociais vinculadas às antigas tradições culturais ibéricas e com relações civis ainda inspiradas em aspectos comunitários e religiosos (GOMES, 2003).
Não obstante as duras críticas feitas a esse descompasso entre o texto constitucional liberal e a realidade autoritária, oligárquica e excludente, a Constituição de 1891 acabou por reacender as discussões acerca da premente necessidade de elaborar o Código Civil (LEAL, 2017).
Observa-se, portanto, uma íntima conexão entre a Constituição de 1891 e a codificação que se constituiu em 1916. Indubitavelmente, a articulação entre ideais liberais individualistas e estruturas normativas de baixa força de concretização, associadas a estruturas sociais com forte potencial excludente apartaram o Direito de grande parte da sociedade (NEVES, 2015).
No tocante à historiografia acerca do processo de elaboração do Código Civil de 1916, há importantes obras que muito bem esclarecem essas condições sociais e econômicas em que o diploma civil foi criado. Dentre elas, cita-se a produção de Orlando Gomes intitulada “Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro” publicada em 1958, em que o autor apresenta a estrutura social do país por ocasião de sua primeira codificação civil. Com referências ao privatismo doméstico e o conservadorismo familiar característicos da sociedade da época, o civilista explanou acerca das limitações sociais, políticas e econômicas existentes na sociedade brasileira na criação de normas verdadeiramente liberais e igualitárias.
Já em 1928, Pontes de Miranda observava, em importante análise doutrinária, que o Código Civil de 1916 condensava normas jurídicas mais preocupadas com o círculo social da família do que com os círculos sociais da nação (GOMES, 2003). Esse privatismo doméstico, que parecia ser a nota dominante da legislação recém-criada, explicava-se pela organização social destacada por estudiosos como Oliveira Viana em sua obra Evolução do povo brasileiro e Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Para Holanda (1995) mesmo após a abolição da escravidão a estrutura de nossa sociedade teve suas bases fora das cidades. Natural, segundo o historiador, que repercutisse em sua preparação aquele privatismo patriarcal que tanto caracterizou o estilo de vida da sociedade colonial.
Nesse mesmo sentido, são as lições de Nestor Duarte, em sua obra A ordem privada e a organização política nacional (1939) ao dispor sobre as circunstâncias históricas que modelaram a legislação civil e permitiram a prevalência, na organização social, da ordem privada. Uma sociedade colonial dispersa, com baixa coesão social e de estrutura aristocrática resultou, portanto, numa organização social infensa à politização. Éramos, ao tempo em que Beviláqua apresentou o projeto do Código Civil brasileiro, na precisa observação de Sílvio Romero
“uma nação embrionária, cuja indústria mais importante consistia em uma lavoura rudimentar, extensiva, servida ontem por dois milhões de escravos e, àquele tempo, abolida a escravatura, isto é, na última década do século XIX, por trabalhadores nacionais e algumas dezenas de milhares de colonos de procedência europeia…” (GOMES, 2003, p. 25)
Nesse sentido, faz-se imprescindível delinear o quadro social e econômico em que se processa a obra dos codificadores, de 1889 a 1916, para uma melhor compreensão do sentido e das balizas axiológicas dessa codificação, propósito do presente trabalho. Analisar, em que medida houve avanços liberais nas normas civis na virada do século XIX para o século XX, considerando para se atingir esse mister, os debates legislativos realizados pelos parlamentares e a produção historiográfica do período.
2. ANÁLISES HISTÓRICAS E SOCIOLÓGICAS DAS NORMAS FAMILIARISTAS DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
Na segunda metade do século XIX, era uníssono o entendimento segundo o qual o Brasil instava pela criação de suas próprias leis. Entendia-se que a ideia de criação de um sistema jurídico único de normas permitiria aos operadores do direito uma melhor compreensão da legislação aqui vigente. Dessa forma, o movimento de codificação na criação das normas jurídicas foi sustentado, ao longo da história, por fortes correntes políticas que viam, na promulgação de códigos, a necessária unificação do direito para garantia da ordem estatal7. Adotava-se o princípio “um Estado, um código” e essa nacionalização do direito contrapunha-se aos costumes e outras fontes jurisprudenciais (CAENEGEM, 2000).
No Brasil, embora D. Pedro I tivesse proclamado a independência da metrópole portuguesa em 1822, foi mantido pelo imperador o arcabouço normativo que aqui vigorava desde a chegada dos portugueses. Referidas leis originavam-se do próprio sistema legislativo também em vigor em Portugal, um ordenamento legislativo que compreendeu, primeiro, as Ordenações Afonsinas, substituídas posteriormente pelas Ordenações Manuelinas para, finalmente, cederem lugar as Ordenações Filipinas. Essas últimas consistiram em uma consolidação das normas anteriores e permaneceram aplicáveis mesmo após sua revogação em Portugal no ano de 1867, data da primeira codificação portuguesa. Trata-se, portanto, de um fato histórico curioso: revogadas em Portugal pelo primeiro código civil, a legislação portuguesa continuou vigente no Brasil, mesmo após sua independência.
Tal fato se explica pela conjuntura social e política aqui existente. Segundo Oliveira (2002), uma possível razão para tão longa vigência das Ordenações é a abundância de omissões em seu texto, o que lhe conferia um caráter de flexibilidade, permitindo a regência subsidiária dos direitos canônico e romano.
Editada no regime de Marquês de Pombal em agosto de 1769, a “Lei da Boa Razão” procurou enfrentar esse problema oferecendo critérios para a supressão das lacunas na legislação civil portuguesa, permitindo sua vigência até o primeiro quartel da República, contrariando o que determinara a própria Constituição imperial brasileira de 1824 que exigia a organização de um código civil pelo legislador pátrio (NEVES, 2015).
Cita-se, ainda, o fato de que, comparativamente a Portugal, o Brasil conservou por mais tempo as condições e formas de vida que conformaram o contexto em que foi editada tal legislação (LEAL, 2017). As práticas costumeiras do Brasil no século XIX, relacionadas ao colonialismo, à escravidão e à estrutura patriarcal familiar, dificultaram a criação da primeira codificação civil brasileira. Para a elite latifundiária daquela época, criar um novo código para a regulamentação do direito privado representava, pois, a libertação desse passado colonial e a implementação, no Brasil, de um pensamento liberal que poderia desestabilizar as bases sociais e econômicas daquele período.
Nesse sentido, precisas são as descrições de Caio Prado Junior (1972) e Gilberto Freyre (2000) sobre a vida social brasileira, em especial pela forma como a exploração econômica baseada no latifúndio monocultor e na propriedade escravista caracterizou a aristocracia colonial e acabou impedindo que avanços liberais ocorressem no Brasil, a exemplo dos movimentos de renovação de leis civis que se iniciaram na Europa já no século XVIII.
Nessa seara, têm-se as análises históricas de Orlando Gomes (2003), um referencial teórico importante para a presente pesquisa. Até meados do século XVIII, a história jurídica dos dois povos fora comum. “Daí por diante, bifurca-se” (GOMES, 2003, p. 11). O Brasil permaneceu fiel à tradição ao passo que Portugal, influenciado pelas ideias iluministas, seguiu o movimento de codificação e promulgou seu Código Civil em 1867.
Em sentido oposto, tivemos no Brasil uma estrutura social que não comportava essa influência liberal alienígena. Como bem assevera Orlando Gomes em sua obra “Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro” (2003), sobre o vasto Império ainda existiam os tentáculos de uma sociedade colonial ainda fortemente marcada pelo trabalho escravo impedindo, pois, qualquer avanço em termos legislativos.
A dificuldade em consolidar a legislação vigente também foi constatada por Teixeira de Freitas, jurista que iniciou, em 1855, um processo de unificação das leis civis no Brasil. Duas foram as principais dificuldades encontradas por ele para a conclusão do trabalho: a promulgação do Código Comercial em 1850, que já havia, segundo o jurista, mercantilizado as relações privadas e a problemática envolvendo o escravismo (NEVES, 2015). Sobre essa última questão, justificou sua posição em 1857:
Cumpre advertir, que não há um só lugar de novo texto, onde se trate de escravos. Temos, é verdade, a escravidão entre nós; mas, se esse mal é uma exceção, que lamentamos, condenado a extinguir-se em época mais ou menos remota, façamos também uma exceção, um capítulo avulso, na forma das nossas Leis Civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir à posteridade; fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso. As Leis concernentes à escravidão (que não são muitas) serão pois classificadas à parte e formarão o nosso Código Negro (FREITAS, 1857)
Tem-se, por evidente, o complicado convívio entre os ideais liberais disseminados em vários países que já haviam alterado suas leis civis e o Brasil, nas décadas que antecederam à república. Posteriormente, em 1859, sua tentativa de elaborar um esboço do código civil também se frustrou e o contrato com Teixeira de Freitas acabou sendo rescindido em 1872 pelo governo imperial8.
Havia, portanto, a impossibilidade de conciliar um código necessariamente liberal, no qual os direitos de cidadania devem ser concedidos a todas as pessoas, com o sistema escravista, fundamentado juridicamente na distinção entre pessoas (livres) e coisas (escravos). Era juridicamente inviável tratar da codificação do direito civil sem levar em conta o elemento servil (GOMES, 2003). Indubitavelmente, isso acabou representando um atraso para o movimento de elaboração do primeiro código brasileiro.
Há também outro fator que foi decisivo para que a codificação brasileira fosse implementada apenas no século XX, qual seja, a própria estrutura familiar característica da sociedade daquele período. Para a elite latifundiária da época, criar um novo código para a regulamentação do direito privado poderia ameaçar as estruturais sociais vigentes, com uma consequente libertação de seu passado colonial e a desestabilização das bases do patriarcado. Era apropriado que um novo diploma refletisse os interesses dessa sociedade patriarcal que não perdera esse privatismo doméstico nem se libertara de seu sistema de produção agrária. A partir de referências teóricas de historiadores como SAMARA (1998), FREYRE (2000) e PRADO (1972) que, com muita propriedade, descreveram as características da família patriarcal à época da elaboração do primeiro Código Civil, é possível observar como se deu o fortalecimento da família patriarcal no período colonial bem como suas influências no debate político na passagem do século XIX para o século XX.
Esse sistema econômico, embora tivesse se reduzido pela abolição da escravatura em 1888, ainda mantinha uma realidade que arraigava os costumes e impunha a dominação da elite senhorial (HACKBARDT, 2016). Assim, mesmo com a abolição da escravatura, mantiveram-se as estruturas do colonialismo que, nos primeiros anos do século XX, atingiu seu maior grau, estimulado principalmente pela facilidade na exploração do trabalho dos imigrantes e pelo incremento do comércio internacional (GOMES, 2003).
Além disso, o crescimento da classe média se fez, não pela urbanização oriunda da industrialização, como já ocorria em várias nações europeias, mas sim pela expansão do comércio de produtos agrícolas nas cidades. Assim, fixava-se nos centros urbanos, uma classe média que não tinha ideologia própria e que mantinha o conservadorismo dos setores agrários. A codificação civil é obra dessa classe média: interessada no sistema capitalista de produção, porém, sem o sentimento liberal da burguesia industrial presente nos países europeus.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS: ANÁLISES DE DEBATES PARLAMENTARES DURANTE A TRAMITAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
Vinculados aos interesses dos latifundiários, os parlamentares produziram um Código Civil que se opunha a alguns ideais libertários o que, inevitavelmente, explica a ausência também de interesses sociais no diploma civil, impregnado por normas individualistas e patrimonialistas. Não por outra razão, Orlando Gomes descreveu o primeiro código civil brasileiro como “um monumento legislativo do século XIX”. Ao tempo de usa elaboração, complementa o civilista, “o país não alcançara ainda, na sua marcha evolutiva, a faixa que outros povos mais adiantados, já haviam ultrapassado. Histórica e socialmente, estávamos no século passado quando começou a viger” (2015, p. 22).
Tratava-se, de um projeto de código que correspondia, apenas em alguma medida, ao modelo de codificação liberal que se consolidou em diversos países europeus. O projeto de Beviláqua de 1899 mostrou-se mais sensível às transformações sociais do século seguinte. Em dois aspectos, essa diferença pode ser verificada, a saber, na questão social e na questão familiar (NEVES, 2015). É objetivo do presente artigo, investigar as perdas havidas durante o processo de tramitação no Congresso Nacional e que resultaram em uma codificação menos liberal que a proposta apresentada por seu autor quase vinte anos antes.
Para cumprir esse desiderato, é necessário avaliar em que medida as práticas costumeiras desse período, relacionadas às estruturas familiares e sociais da época, dificultaram a criação da primeira codificação civil brasileira e foram capazes de alterar o projeto original de Beviláqua, além de impedir que outros avanços normativos ocorressem.
Nesse sentido cita-se, de modo não exaustivo, o Art. 279 do Projeto do Código Civil, cuja redação original tornava a mulher casada companheira e sócia do marido, ao contrário da redação final que dispunha assumir a mulher a condição de companheira, consorte e auxiliar no encargo doméstico (BEVILÁQUA, 1906). Consta de seu projeto original a seguinte motivação
Desenvolvendo o mesmo pensamento, procurando atender às justas aspirações femininas e querendo fazer do casamento uma sociedade igualitária, embora sob a direção do marido, concedeu o Projeto maior soma de direitos, maior liberdade de ação à mulher casada do que o direito que atualmente vigora entre nós (BEVILÁQUA, 1906, p. 93)
Acrescentou ainda o autor que “o Projeto tencionou reconhecer na mulher um ser igual ao homem, mas sem desviá-la das funções que lhe indica a própria natureza, racionalmente interpretada” (BEVILÁQUA, 1906 p. 95). Beviláqua apontava, ao contrário da versão final aprovada pelo Congresso Nacional, para uma solução em direção à igualdade de gêneros. Complementa afirmando ainda que tinha “o autor do Projeto convicção de que foi, neste ponto, tão liberal quanto lhe era permitido ser” (BEVILÁQUA, 1906 p. 96 apud NEVES, 2015).
De igual modo e no que se refere ao regime de capacidades da mulher casada para a prática de atos da vida civil, sua posição inicial foi contrária à incapacidade relativa, solução diversa da adotada no Código Civil em sua versão final e apenas superada com o advento da Lei 4.121/62, o Estatuto da Mulher Casada (NEVES, 2015). Era mais um ponto em que o projeto inicial mostrava-se mais liberal e igualitário do que a versão final aprovada pelo parlamento brasileiro.
É interessante acrescentar que, ainda a respeito da questão familiar, o Projeto de Beviláqua foi bem mais favorável à situação jurídica dos então chamados “filhos ilegítimos”, assim compreendidos como aqueles não oriundos da família matrimonializada, quando comparado à versão final aprovada pelo Congresso Nacional (NEVES, 2015) distanciando-se, assim, das concepções morais e religiosas dominantes à sua época9. Nessa questão, importante citação pode ser feita à obra de Paulo Merêa intitulada “Condição jurídica dos filhos ilegítimos: estudos de legislação comparada”. Publicada em 1922, o autor procedeu a uma análise comparativa de outras ordenações civis, a exemplo da legislação soviética, que já previa direitos sucessórios decorrentes do estado de filiação, mesmo aos filhos de pais não casados.
Na primeira codificação civil brasileira, como não havia certeza quanto à paternidade, o Código de Beviláqua apenas concedia direitos aos filhos havidos no casamento. Para DIAS (2001), o nascimento do filho fora do casamento colocava-o em uma situação de extrema vulnerabilidade, tudo para garantir a paz social do lar formado pelo casamento do pai. Negar a existência da prole ilegítima simplesmente beneficiava o genitor e prejudicava o filho. Nas palavras da jurista, Ainda que tivesse sido o pai quem cometera o delito de adultério, o filho era o grande perdedor. Singelamente, a lei fazia de conta que ele não existia. Era punido pela postura do pai, que se liberava do ônus do poder familiar. (HACKBARDT, 2016)
Todas essas disposições relativas à filiação legítima evidenciam a importância da família matrimonializada para a sociedade brasileira do século passado. Reconhecido pela lei civil como o único meio legítimo de se unir a outrem e procriar, o casamento traduzia a hierarquização e a supressão de diversos direitos familiares, em especial aqueles relacionados à mulher e aos filhos. Nessa seara, era muito difícil normatizar a dissolução do vínculo matrimonial pelo divórcio, instituto que não teve espaço nem mesmo no projeto inicial de Beviláqua.
Esse mecanismo jurídico de dissolução do casamento já tinha previsão até mesmo no Código Napoleônico de 1804. Ao fazer a corajosa e decisiva opção pelo casamento civil, atribuindo-lhe natureza contratual, o Código civil francês enfraqueceu a influência da Igreja. No momento em que se vislumbrava no casamento a existência de um contrato, era imperiosa a adoção de sua dissolubilidade pela via do distrato, rompendo a tradição do direito canônico e permitindo o desenvolvimento de uma visão mais moderna do direito de família (SOUZA, 2004).
Em sentido diametralmente oposto, o instituto do divórcio não foi contemplado pelo projeto de Beviláqua. A indissolubilidade do vínculo conjugal chegou a ser discutida pelos juristas nas deliberações que antecederam à promulgação do Código Civil. Coelho Rodrigues na Exposição de Motivos de seu projeto de codificação expôs sua intenção de tornar possível juridicamente o divórcio em caso de adultério, notadamente o masculino, mas acabou recuando10.
Beviláqua, convicto de que o divórcio causaria a ruptura de toda a estrutura social e, temendo a instauração de uma espécie de poligamia sucessiva, articula suas razões que, em sua compreensão, eram suficientes para a preservação do princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial no ordenamento jurídico. Sobre o tema, dizia o autor
Se for concedido o divórcio a vínculo, facilitar-se-á o incremento das paixões animais, enfraquecer-se-ão os laços da família, e essa fraqueza repercutirá desastrosamente na organização social. Teremos recuado da situação moral da monogamia para o regímen da poligamia sucessiva, que, sob a forma de poliandria, é particularmente repugnante aos olhos do homem culto. (BEVILAQUA, 1906, p. 97)
Segundo historia Marques, os congressistas não ousaram em alterar as disposições constantes no projeto de Beviláqua para implementar o divórcio no Brasil pois isso representaria um rompimento com o conservadorismo existente na sociedade brasileira, de modo que a código em sua versão final, apenas contemplou o desquite como modalidade de extinção da sociedade conjugal, mas não do vínculo matrimonial. Mantivera, portanto, a impossibilidade jurídica de novas núpcias em caso de rompimento fático da convivência conjugal.
Esse era, portanto, o Código Civil de 1916: embora inspirado pelos ideais libertários dos movimentos de codificação europeus, possuía um conteúdo jurídico retrógrado, patriarcal e patrimonialista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Publicado tardiamente no século XX, após décadas de tentativas frustradas de codificar o direito civil brasileiro, o diploma de Beviláqua acabou por revelar um conjunto de normas que dispunha sobre uma família hierarquizada, com forte submissão da mulher casada ao seu marido, chefe da sociedade conjugal, um casamento indissolúvel e, portanto, distante da natureza contratual da legislação francesa e filhos ilegítimos desprovidos de qualquer tutela jurídica.
Ao analisar alguns discursos parlamentares que antecederam a publicação das referidas normas civis, o que ser verifica é uma forte influência do conservadorismo e das ideias dominantes de uma sociedade oligárquica, rural e fortemente marcada pelo privatismo doméstico na manutenção do status quo. Em uma sociedade agrária, com a escravidão recém abolida e ainda muito influenciada pelos interesses de uma elite ruralista, a manutenção de normas familiaristas conservadoras era a garantia da permanência dessa estrutural social, o que explica a razão pela qual, apenas no século seguinte, foi possível alterar essas normas desiguais e estruturantes de uma ordem familiar retrógrada e hierarquizada.
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SOUZA, Silvio Capanema de. O código napoleão e sua influência no direito brasileiro. Revista da EMERJ, v. 7, n. 26, 2004.
3Tobias Barreto foi advogado e membro do Partido Liberal. Foi fundador do jornal “O Americano” além de um grande difusor das ideias políticas liberais. Nesse periódico, divulgou vários artigos de crítica religiosa e é arrastado a uma acirrada polêmica com católicos (BARRETO, 1977).
4Outros trabalhos importantes de Tobias Barreto que deixaram transparecer seu engajamento com ideias anti-católicos são “A Propósito de uma Teoria de Santo Tomás de Aquino” e “Teologia e Teodicéia. (ADEODATO, 2003)
5BARRETO, 1977.
6Esse descompasso entre o novo texto constitucional e as estruturas sociais da época foi relatada pelo próprio jurista Rui Barbosa quando da publicação do “Parecer do senador Ruy Barbosa sobre a redação do projecto da Câmara dos Deputados”, em 1902 no Diário do Congresso Nacional. Em outra oportunidade, descreveu o contexto social que se discutia liberalismo e republicanismo tecendo duras críticas as oligarquias dominantes. Nas palavras do jurista: “Um dos flagelos que desgraçam hoje este país, são as chamadas oligarquias locais estaduais, que o Governo da União acoroçoa, explora, sustenta e agrava, servindo-se, para isso, já dos exércitos militares de mar e terra, já do exército civil, que o nosso inumerável funcionalismo lhe proporciona.” (BARBOSA, 1934, p. 17)
7Na França, o golpe de 18 brumário, em 1799, marcou o início do regime napoleônico e uma das preocupações de Napoleão era fornecer à nação uma compilação de códigos. Era necessário garantir à população um ordenamento jurídico que pudesse encerrar as incertezas jurídicas reinantes através dos usos, das práticas jurídicas e de códigos universalmente válidos (Caenegem, 2000).
8Sobre o tema, cabe observar que, embora não tenha sido adotado no Brasil, o Esboço de Teixeira de Freitas teve considerável influência na legislação de outros países, como Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile (MIRANDA, 1928).
9A esse respeito, manifestou-se Pontes de Miranda (1928, p; 424) “Foi Clóvis Beviláqua mais favorável à mulher (arts. 251 e parágrafo único, 254, 287, 393 e 414, I), à filiação ilegítima (art. 367) e à solidariedade familiar (arts. 332, 409, 416, 447 e 467)”.
10Disse o jurista em seu projeto “se não estou muito enganado, no dia da exequibilidade da lei, que o fizer, noventa por cento, pelo menos, das senhoras casadas da nossa sociedade poderão propor a dissolução de seu casamento, o que equivaleria à dissolução da própria sociedade.” (GOMES, 2003, p.15)
1Doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo, Brasil
Professora Titular da Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
2Mestre em História pela Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil