REVOLUÇÃO PASSIVA E REFORMA DO ENSINO MÉDIO: UMA LEITURA POSSÍVEL

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202507211235


Tuca Henrique Verçosa Carneiro de Andrade1


Resumo

O aparato teórico deixado por Gramsci nos seus cadernos do cárcere (2024) pode ser usado para entender as políticas públicas para o Ensino Médio no Brasil nos últimos anos. O presente artigo aborda a categoria de Revolução Passiva como possibilidade analítica dos fatos que desencadearam as reformas no Ensino Médio em 2024, iniciando com a análise dos desdobramentos da reforma de 2017. Nesse sentido, a reforma de 2024 é entendida como uma ação apassivadora que busca perpetuar a dualidade educacional brasileira por meio da precarização do trabalho docente.

Palavras-chave: Gramsci; Revolução Passiva; Reformas do Ensino Médio.

Introdução

A redemocratização do Brasil ocorreu paralelamente ao momento em que se estabeleceram as bases do neoliberalismo em Estados chaves pelo mundo, a saber: os EUA, com Regan; A Inglaterra, com Tatcher; o Chile, com Pinochet. Nesse sentido, a Constituição brasileira de 1988 foi posta, na sua concepção, sob forte disputa entre os setores progressistas e o bloco formado por conservadores e reacionários.

Cury (2018) observa que a carta magna de 1988, mesmo no contexto de estabelecimento neoliberal, trouxe avanços ao tratar da educação como um direito social. Por um momento, a constituição apontou para um movimento contrário à maré neoliberal que começava a assolar o mundo, retirando direitos sociais e precarizando as relações de trabalho em nome do ordenamento fiscal.

No entanto, as leis infraconstitucionais, como a LDB, trataram de dar o tom neoliberal às políticas educacionais no Brasil. Ora, podemos ter como exemplo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que trata da educação a partir de mínimos; trazendo uma concepção de qualidade baseada em avaliações em larga escala; entre outros aspectos que enfraquecem a educação pública de qualidade social.

Nesse sentido, uma série de reformas moleculares vêm alterando as mais diversas etapas de ensino, minando o parco avanço que a Constituição de 1988 trouxe. Adorno e Horkheimer, influenciados por Walter Benjamin, nos ajudam a entender o neoliberalismo com o conceito de organização administrada (1985, p. 134). O entendimento do conceito nos faz compreender o neoliberalismo como uma forma de totalitarismo, pois ele administra todas as esferas da existência humana, idealizando o modelo empresa.

Sendo assim, as políticas públicas nas mais diversas áreas do Estado, apontam para uma mercantilização do que é estatal, seja por meio da venda explícita do patrimônio estatal, vide privatização; seja pelo processo de absorção do modo empresarial de ser – práticas de quase-mercado. Nesse sentido, as reformas educacionais vêm seguindo a cartilha neoliberal, abrindo cada vez mais a educação ao mercado, num processo de negação do direito à educação.

Esse processo tem como desdobramento a precarização das condições de trabalho dos diversos profissionais que atuam na educação pública. Essa precarização se dá nas condições objetivas do trabalho, por meio de uma racionalização material, que compromete a carreira, as condições de trabalho; mas se dá também por condições subjetivas que, no caso do professor e da professora, os afastam da identidade docente, criando fronts de precarização subjetiva.

O cânone interpretativo que usaremos para analisar a mais recente Reforma do Ensino Médio buscará analisar a política pública sobre essa etapa do ensino à luz da categoria de Revolução Passiva (Gramsci, 2024), avançando nos meandros dessas modificações moleculares no intuito de perceber os aspectos preponderantes do processo e das consequências de tais modificações. 

Revolução Passiva ou Contrarreforma

A primeira seção do presente trabalho busca sintetizar um esforço que justifique a escola pela chave interpretativa da Revolução Passiva em detrimento de leituras mais consolidadas como a que toma as reformas, do ensino médio, trabalhistas e outras, como contrarreformas. Não será apresentado aqui uma discordância do termo contrarreforma2, uma vez que concordamos, em partes, com àqueles e àquelas que usam esse termo. O que buscaremos é trazer novas possibilidades interpretativas para o fenômeno da Reforma do Ensino Médio de 2024.

Historicamente os governos de Lula, na leitura elaborada por Francisco de Oliveira, buscaram minar, nas disputas pela Hegemonia, o componente da força, criando o que o autor chama de Hegemonia às avessas (Oliveira, 2007). Ora, essa nova forma de hegemonia utiliza-se amplamente do consenso como forma de regulação dos conflitos sociais, caracterizando-se, portanto, de um chamado constante para a conciliação.

Oliveira (2007) indica que o avesso pode ser observado em quem consente, afinal, na hegemonia às avessas não são os dominados que consentem, mas os dominantes que aceitam ser conduzidos, desde que se preserve a forma capitalista de exploração. Assim, o Estado é moralmente guiado em termos capitalistas, com algum acolhimento de demandas dos dominados.

A conciliação, nesses termos, realiza a função de domesticação da dialética, reforçando as teses neoliberais com partes das antíteses promovidas pelos trabalhadores. O reforçamento constante da tese, somado a um forte processo de cooptação e decapitação das lideranças populares, no que Gramsci chama de transformismo (Gramsci, 2024), tem como consequência a manutenção da subalternização.

É verdadeiro, no entanto, que mesmo a dialética domesticada é capaz de gerar avanços, afinal, a revolução passiva é caracterizada pela incapacidade da classe dominante de fazer uma restauração completa e a incapacidade dos subalternos de fazer uma revolução profunda. O que é reforçado, porém, é a regressividade, ou seja, no somatório final o saldo é superavitário para as elites que conservam o seu poder e criam possibilidades de reformas.

Nesse processo, temos o fortalecimento da hegemonia da classe dominante brasileira, que cria formas de se converter em classe dirigente, pois as suas ideias se tornam cada vez mais dominantes. Assim, se fortalece o consentimento, pois as classes subalternas são o reflexo das classes dominantes. Nesses termos, o que observamos é um processo profundo de apassivamento das tensões de classe.

Em tempos neoliberais, o conceito de Reforma ganha novas conotações, pois no passado ela estava associada às conquistas dos subalternos em contextos de disputa política. Agora, o termo reforma foi cooptado pelos intelectuais orgânicos das elites neoliberais e passou a significar a retirada de direitos. Assim, o conceito de reforma está associado à expropriação de direitos conquistados.

Nesses termos podemos considerar que no neoliberalismo, que redireciona a luta, afinal não se luta mais, num primeiro momento, pela conquista de direitos, mas pela manutenção do que já foi conquistado; temos uma constante contrarreforma. Ou seja, com o paradigma neoliberal, contrarreformas passou a significar a forma como a política é operada em detrimento da classe trabalhadora.

O foco, portanto, é a austeridade, marcada pela retirada de direitos reforçada por um discurso de responsabilidade fiscal que propala que para manter o Estado minimamente viável é preciso que cada indivíduo seja o máximo possível responsável por si. A contrarreforma carrega a desresponsabilização do Estado e a responsabilização máxima do sujeito.

Na nossa hegemonia às avessas esse discurso se fortalece na sociedade brasileira3 e as ideias das classes dominantes se fortalecem entre os dominados, abrindo espaço para novas modificações moleculares que buscam gerar novas formas de dominação. É nesse contexto que se enquadra a Reforma do Ensino Médio de 2024, nas disputas pela hegemonia, no campo de disputa pela formação dos sujeitos.

A chave da Revolução passiva, ou revolução sem revolução (Gramsci, 2024, p. 52) se dá no entendimento de três pontos. Salientamos, inicialmente, que a revolução passiva é uma acomodação que busca adiar os conflitos sociais, sendo assim, ela se dá modificando e conservando ao mesmo tempo, com o intuito de gerar as condições para a manutenção do poder nas mãos da burguesia.

Para Gramsci (2024) a revolução passiva ocorre pelo alto, ou seja, ela é uma tomada de decisão pela classe dominante que busca inviabilizar ou se antecipar a um levante jacobino – ou seja, uma revolução de fato revolucionária. A primeira característica é, portanto, a exclusão do povo do processo revolucionário. No entanto, a classe dominante não reúne as condições para fazer uma restauração completa, exige-se, dessa maneira, que se realize algumas concessões aos subalternos.

A concessão aos subalternos é o que reforça a tese, apassivando a antítese e adiando o conflito. Essas concessões que aparecem como vitórias, embora sejam importantes, demonstram também a impossibilidade dos subalternos de radicalizar e sair vencedores. Sendo assim, a nova acomodação se dá pelo alto, atendendo às demandas dos subalternos, mas sem alterar estruturalmente a sociedade.

Abre-se, portanto, novas possibilidades de modificações que podem aprofundar aspectos regressivos ou aspectos progressivos. Sem as alterações estruturais o que decorre como saldo ao final do processo é a manutenção fortalecida do poder nas mãos das classes dominantes, uma vez que ela cede um pouco de poder para se manter no poder. Ao se manter no poder, a classe dominante pode utilizar-se de outras e novas formas de perpetuação e aprofundamento da dominação.

As Reforma do Ensino Médio – ataque ao trabalho docente. 

A análise do processo como se deu a reforma do Ensino Médio de 2024, vide lei 14.945/2024, é reveladora para o entendimento desse movimento enquanto uma revolução passiva. Para buscar uma compreensão mais total desses fenômenos nos determos, no primeiro momento, a uma análise contextual da reforma, em seguida o foco será a reforma em si.

A reforma de 2024 pode ser entendida como uma resposta aos efeitos devastadores da reforma do Ensino Médio de 2017, vide lei 13.415/20174. Essa resposta foi esperada por amplos setores da sociedade, esses apoiaram a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à presidência da república em 2022. A vitória de Lula nas eleições marcou a esperança dos setores progressistas na revogação da reforma de 2017.

A recente reforma do Ensino Médio, Lei 13 14.945/2024, pode ser entendida como um processo de Revolução Passiva. Para lançar luz a esse processo reforçamos que a reforma é mais que uma contrarreforma, visto que se apresenta como desdobramento de um processo de modernização que busca manter a sonegação de uma educação de qualidade para as classes subalternas. Sendo assim, as reformas do Ensino Médio são vistas como instrumentos de manutenção da hegemonia burguesa.

O pensamento de Marx e Engels são o primeiro passo para compreender as ideias que operam a reforma, pois eles expressam que as ideias das classes dominantes são as ideias dominantes. Sendo assim, as ideias neoliberais para uma educação empobrecida para os subalternos são disseminadas, pelos aparelhos privados de hegemonia, a fim de se tornarem ideias dominantes.

Mas é em Gramsci (2024) que se expressa como as ideias da classe dominante se revelam em mecanismos de dominação, pensando a partir da categoria hegemônica. Historicamente, desde a reforma de 2017, vide lei 13.415/2017, podemos perceber lutas fragmentárias, a partir dos anos 2013, pela reforma no Ensino Médio. A movimentação dos diversos grupos ressoou na então presidente Dilma Rousseff que passou a defender uma Reforma para o Ensino Médio, iniciando em seu segundo governo o processo de escuta de estudantes, professores, entidades e empresários.

Com o golpe que retira da presidente Dilma do poder em 2016, as elites tomam ainda mais o controle sobre a reforma. Ora, a revolução passiva se dá dentro dos conflitos de classe da sociedade. Com a chegada de Michel Temer ao poder, é editada uma Medida Provisória n° 746/2016 que faz a reforma do Ensino Médio. Aqui podemos ver se desenhado a mudança – Revolução carregada pela permanência – Passiva.

Ora, a MP encerrou o debate com a sociedade civil e instaurou uma reforma feita de cima para baixo, pensada pelas elites e imposta ao povo como se fosse o que há de mais moderno. Diz Gramsci

Ter-se-ia uma revolução passiva no fato de que, por intermédio da intervenção legislativa do Estado e através da organização corporativa, teriam sido introduzidas na estrutura econômica do país modificações mais ou menos profundas para acentuar o elemento ‘plano de produção’, isto é, teria sido acentuada a socialização e cooperação da produção, sem com isso tocar (ou limitando-se apenas a regular e controlar) a apropriação individual e grupal do lucro” (2024, p.1228).

A manutenção de uma educação para a desigualdade é o cerne das reformas pensadas em 2017 e 2024, no entanto, essas reformas buscaram atender algumas demandas dos subalternos. Afinal “na oposição entre o velho e o novo, uma tentativa de síntese conservadora, que acolhe ‘algo das exigências de baixo’ para salvar o velho (Gramsci, 2024, p.1325).

O moderno estava em pensar o Ensino Médio de forma mais atrativa para a juventude, remodelar os currículos para atender ao aluno do século XXI. O velho estava no coração da proposta, recuperar um empoeirado discurso da pedagogia das competências (Saviani, 2018); empobrecer o currículo sonegando saberes e aumentar a pressão por resultados. A reforma buscava castrar intelectualmente a escola pública, jogando no colo dos professores e das professoras a responsabilidade pelo sucesso e pelo fracasso da educação. O coração pulsante desse processo de castração da escola foi a Base Nacional Comum Curricular -BNCC, que se presta a ser um elemento de controle do trabalho docente, induzindo uma desprofissionalização ao passo que converte o/a professor/a em um mero reprodutor de políticas preestabelecidas pelos técnicos.

Os/as docentes seriam os responsáveis, mas não teriam nenhuma melhora nas condições de trabalho. A máxima fazer mais com menos era o cerne da Reforma. A consequência no trabalho docente pode ser entendida como excesso de trabalho (Freitas, 2018) e uma desmoralização do magistério (Freitas, 2014). Nessas circunstâncias, os/as docentes buscaram adaptar-se à lógica da reforma. Retomamos o conceito de organização administrada, para formas docentes para a subjetividade neoliberal era preciso aparelhar a escola com a forma neoliberal de ser e de pensar.

Observa Adorno que “se as pessoas querem viver em sociedade, nada lhe resta senão se adaptar à situação existente, se conformar; precisam abrir mão daquela subjetividade autônoma a que remete a ideia de democracia.” (1995, p. 43). Assim, a reforma teve um efeito apassivador. Mandonesi (2018) aponta para a necessidade de percebermos, nas análises das políticas públicas, os consensos passivos, ativos, elementos de resistência e de mobilização controlada (p. 101), afinal a Revolução Passiva busca garantir o fortalecimento do capitalismo.

O atendimento de demandas populares ocorre para manter a passividade das massas, mas operacionaliza-se essas concessões de forma que se conserve o cerne das necessidades burguesas. Nesse sentido, a revolução passiva se dá como um movimento de operacionalização política das demandas populares a fim de que, por uma ação técnica, sejam feitas concessões aos subalternos, abrindo espaço para mudanças mais profundas que mantém a subalternidade.

A reforma de 2017 atendeu a demanda latente em setores da sociedade brasileira por uma modernização do Ensino Médio, no entanto, essa modernização não foi operacionalizada para gerar as condições de um Ensino Médio que prezasse por uma formação omnilateral, mas sim para um Ensino Médio baseado numa educação em tempo integral.

Assistimos assim a uma “ampliação para menos” (Algebaile, 2009) que foi cuidadosamente operacionalizada para apassivar a luta histórica dos setores populares por uma educação de qualidade, portanto que não se baseasse em mínimos. Diversas entidades de grupos de estudantes se mobilizaram contra a Reforma, mas a correlação de forças não gerou condições para um enfrentamento mais direcionado. 

Após o governo Temer, foi eleito como presidente da República Jair Bolsonaro. O governo Bolsonaro foi marcado pela ampliação dos retrocessos e pela implementação da Reforma do Ensino Médio, concluída em 2022. Neste mesmo ano, foi eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva, marcando a volta do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder.

A plataforma que elegeu Lula foi composta por um amplo arco de alianças que congregou entidades, grupos e diversos partidos – à esquerda e à direita. Os setores mais progressistas desse arco que elegeram o presidente esperavam a revogação da lei 13.415/2017. 

O governo Lula instituiu uma série de fóruns e debates sobre o Novo Ensino Médio, no entanto o intuito era explicitamente de reformar, não de revogar. Sendo assim, a mobilização feita pelos setores de esquerda da sociedade junto com os movimentos estudantis e de trabalhadores docentes pode ser entendida como uma mobilização controlada (Mandonesi, 2018, p. 101).

Mandonesi (2018) afirma que a mobilização controlada é uma maneira de estabelecer consenso ativo, ou seja, busca gerar um convencimento de que o que foi conquistado é o máximo possível, dessa forma os setores que se julgam beneficiados se eximem da crítica e se colocam como participantes da política.

Ora, os diversos setores que participaram das consultas públicas e que opinaram sobre as mudanças que caracterizariam a reforma de 2024, julgaram-se coparticipes desse processo, julgando-se vencedores. O que parece mais claro é que esses setores e essas demandas foram engolidos pela burocratização técnica do Estado que reproduzem os interesses das classes dominantes. Em termos gramsciano essa mobilização controlada, que fala Mandonesi, neutralizou a antítese à reforma de 2017. 

A Reforma de 2024, vide lei 14.945/2024, pode ser enquadrada em outra característica da Revolução Passiva, que é a realização de concessões aos subalternos. A reforma de 2017 reduziu drasticamente a carga horária disponível para os componentes curriculares tradicionais – exemplo História, Matemática e Biologia, sendo uma reivindicação de sindicatos de professores, associação de alunos e inúmeras entidades o aumento da carga horária destinada a esses componentes.

A Reforma de 2024 faz a concessão do aumento da carga horária, propagada pelo governo e por setores da mídia como uma vitória da educação pública. Para os docentes, o aumento da carga horária significou a recuperação, em partes, de uma certa dignidade, uma vez que os professores e as professoras puderam ter sua carga horária preenchida com os componentes para os quais são formados. No entanto, a reforma manteve o coração da mercantilização da educação: a Base Nacional Comum Curricular.

Os técnicos, que operam a política, ao ampliar a carga horária das disciplinas da FGB operaram um consenso passivo caracterizado por um fatalismo (Gramsci, 2024), marcado pela ideia de que o aumento da carga horária já foi o máximo de avanço que poderia ser alcançado. Assim, houve a amortização das ações de oposição. 

Ora, o que temos é uma síntese conservadora, a luta do movimento sindical, dos docentes e das docentes – luta legítima e que conseguiu o aumento de carga horária para a FGB – parece ter sido engolida por um reformismo que não rompe, mas apenas aprofunda a dualidade do ensino médio.

A ação do Estado, nos termos das reformas do Ensino Médio, foi de garantir a hegemonia da classe dominante, por meio de algumas concessões aos subalternos. Nos diz Gramsci “que não seja um grupo social o dirigente de outros grupos, mas que um Estado, embora limitado como potência, seja o “dirigente” do grupo que deveria liderar e possa colocar à disposição deste um exército e uma força político-diplomática (2024, p. 1958).

O Estado disponibilizou à classe dominante as condições para reforçar a sua apropriação sobre a educação pública, garantindo uma educação empobrecida e precarizando o trabalho dos/ das docentes. Nesse sentido o que vimos com as reformas foi “um reformismo que desmobiliza, uma revolução passiva, busca neutralizar o potencial revolucionário ativo, opera um retorno à subalternidade que implica um retrocesso, uma regressão […]trata-se de um processo que desloca o conflito para frente” (Mandonesi, 2018, p. 105).

A reforma de 2024 pode ser vista como um avanço, já que trouxe o aumento da carga horária das disciplinas da FGB, no entanto observamos esse processo dentro da lógica da Teoria da Curvatura da Vara (Saviani, 2018, p. 29). A reforma de 2017, feita como um laboratório, curvou a vara demasiadamente para a mercantilização da educação; os reformadores empresariais viram a possibilidade de insurreição fruto do descontentamento com tal reforma e encurvaram a vara um pouco para o outro lado, restabelecendo o tempo das disciplinas.

Ora, a vara segue apontando para a perspectiva empresarial/empobrecedora, mas o conflito foi jogado para frente, mais uma vez houve um apassivamento, criou-se um consenso passivo baseado na ideia de que chegamos ao avanço máximo que foi possível. Ora, a reforma de 2024 reforçou o posicionamento dos empresários pois amorteceu as ações de oposição à reforma e conservou o que há de mais arcaico na lei 13.415/2017.

Considerações Finais

Em Gramsci podemos entender que a Revolução Passiva 

Dir-se-á que não foi compreendido nem mesmo por Gioberti e pelos teóricos da revolução passiva e “revolução-restauração”, mas a questão se modifica: neles a “incompreensão” teórica era a expressão prática das necessidades da “tese” de se desenvolver integralmente, até o ponto de conseguir incorporar uma parte da própria antítese, para não se deixar “superar”, isto é, na oposição dialética somente a tese realmente desenvolve todas as possibilidades de luta, a ponto de capturar os supostos representantes da antítese: exatamente nisto consiste a revolução passiva ou revolução-restauração (Gramsci, 2024, p. 1906).

Sendo assim, as reformas do Ensino Médio podem ser entendidas enquanto Revolução Passiva seja pelo tipo de consenso que produziram, seja nos aspectos progressivos e regressivos que produziram. Afinal, as duas reformas buscam produzir a privatização endógena da escola, assumindo a racionalidade neoliberal.

A análise detalhada desse processo, que engloba as duas reformas, embora não possa ser feito aqui pelos limites deste artigo, poderá indicar as continuidades e rupturas entre ambas. A hipótese que buscamos reforçar aqui é que a reforma de 2017 teve sua conclusão na reforma de 2024 ao reorientar o ensino médio mantendo a seu caráter privatista ao passo que apassivou as vozes dissonantes.

O impacto desse processo no trabalho docente é uma reconversão do trabalho docente que, ao perder sua identidade, produz o adoecimento e a exaustão dos/das trabalhadores em educação, com consequência para a qualidade do Ensino. Nesse sentido, podemos entender as reformas do Ensino Médio como ferramentas de perpetuação da hegemonia da classe burguesa.

Ora, a reforma visa reforçar os consensos para convertes/reconverter a classe dominante em classe dirigente, já apontava Gramsci

Se a classe dominante perdeu o consenso, isto é, deixou de ser “dirigente”, mas unicamente “dominante”, detentora da pura força coercitiva, isso justamente significa que as grandes massas se distanciaram das ideologias tradicionais, já não acreditam no que antes acreditavam etc. A crise consiste propriamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: nesse interregno ocorrem os fenômenos morbosos mais variados (2024, p. 343).

O que observamos ao analisar as reformas é que a ausência de um programa efetivamente popular por parte das esquerdas, como é o caso do PT, gera as condições para que os moderados induzam consensos políticos que reforcem a tese das classes dominantes. Desta forma, a hegemonia dominante é reforçada, tal como a hegemonia às avessas.

A negação de uma educação crítica e a precarização/desmoralização do magistério é mais um reforçador da hegemonia da classe dominante, que democratiza o acesso a escola ao passo que sonega saberes e drena as riquezas do país por meio de privatizações endógenas.

Assim, a reforma se coloca na contramão de uma educação omnilateral, reforçando a histórica dualidade educacional que o Brasil vive. É fundamental que continuemos a denunciar as contradições irreconciliáveis entre as reformas do Ensino Médio e uma educação de qualidade socialmente referendada. 


2O conceito de contrarreforma aparece de forma marginal nos trabalhos de Antônio Gramsci. Nesse sentido, partindo da chave interpretativa gramsciana entendemos que o termo contrarreforma empobrece nossas possibilidades de análise.

3Podemos ver esse movimento nas redes sociais em que jovens rejeitam o trabalho via CLT (Consolidação das leis trabalhistas) ou nos motoristas de aplicativo que não querem trabalhar com carteira assinada. O que temos aí é uma rejeição da proteção estatal, baseada na materialidade da precarização imposta pela desregulamentação neoliberal. Notícias disponíveis em<https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2023/10/04/carteira-assinada-para-motoristas-e-entregadores-de-aplicativo.htm> e <https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/05/24/medo-jovens-clt-o-que-esta-por-tras.ghtml>

4Sobre a reforma do Ensino Médio de 2017 ver os trabalhos de Ferretti, C. J. A reforma do Ensino Médio e sua questionável concepção de qualidade da educação. Estudos Avançados, v. 32, n. 93, p. 25–42, maio 2018; Motta, V & Frigotto, G. Por Que A Urgência Da Reforma Do Ensino Médio? Medida Provisória Nº 746/2016 (LEI Nº 13.415/2017). Educ. Soc., Campinas, v. 38, nº. 139, p.355-372, abr.-jun., 2017.

Referências

ADORNO, T. Educação e EmancipaçãoRio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ADORNO, T; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. São Paulo, Zahar, 1985.

ALGEBAILE, E.  B. Escola Pública e pobreza no Brasil: A ampliação para menos. Rio de Janeiro: Lamparina, Faperj, 2009.

CURY, C. R. J. Do público e do privado na constituição de 1988 e nas leis educacionais. Educação & Sociedade, v. 39, n. 145, p. 870–889, out. 2018. 

FREITAS, L. C. de. A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias. São Paulo, expressão popular, 2018.

FREITAS, L. C. de. Os Reformadores Empresariais da Educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educ. Soc. Campinas, v.35, n. 129, p. 1085-1114, out./dez. 2014.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere (livro eletrônico): obra completa. Tradução IGS-Brasil. Rio de Janeiro: IGS-Brasil, 2024.

MANDONESI, M. Revoluções passivas na América Latina. Revista Outubro, n. 30, maio de 2018.

OLIVEIRA, Francisco. Hegemonia às avessas. Piauí. Rio de Janeiro/São Paulo, n. 4. jan. 2007.

OLIVEIRA, Francisco; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (Orgs). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.

SAVIANI. D. Escola e Democracia. 43° edição, Campinas, Autores Associados, 2018.


1Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestre em educação pelo Programa de pós -graduação em Educação (PPGEdu) da UFPE, atualmente é estudante do curso de doutorado em Educação PPGEdu – UFPE