RESUMO DO LIVRO INTRODUÇÃO AO DIREITO ECLESIAL

GHIRLANDA, Gianfranco. Introdução ao Direito Eclesial. Ed. Loyola: São Paulo, 1998, 147p.

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7845249


Lano Alves Costa
Antônio Eduardo de Oliveira


NATUREZA DO DIREITO ECLESIAL

DEFINIÇÃO: DIREITO CANÓNICO OU DIREITO ECLESIAL?

“Canônico”, etimologicamente, vem do grego kanón, que significa “regra”. No Concílio de Nicéia (325), os kánones contrapõem-se às nómoi, designando os primeiros as normas eclesiásticas e as segundas, as leis civis. Os Concílios distinguem entro cânones fidei (da fé), cânones morum (da moral) e cânones disciplinares (da disciplina); esses últimos, muitas vezes, mais do que obrigar coercitivamente, querem persuadir. Portanto, desde os primeiros séculos, os cânones indicam todas aquelas normas que, estabelecidas pela autoridade eclesiástica, direcionam a vida da comunidade eclesial e de cada um dos fiéis, não assumindo as características formais que as Ieges têm no âmbito civil.

Quando se fala do direito canónico ou eclesial, pode-se fazer referência a três realidades distintas, embora estreitamente ligadas entre si: a) direito da Igreja em sua essencialidade e globalidade; b) direito da Igreja em sua formulação positiva; c) ciência do direito canónico.

O direito eclesial deve ser definido como o conjunto das relações entre os fiéis dotadas de obrigatoriedade, enquanto determinadas pelos vários carismas, pelos sacramentos, pelos ministérios e funções, que criam regras de conduta. A ciência do direito canónico é o estudo e o ensino dele.

ESSÊNCIA E FORMA HISTÓRICA DO DIREITO ECLESIAL

O direito canónico, em essência, está contido nessa realidade dogmática da Igreja como povo de Deus; enquanto conjunto de normas positivas, portanto, exprime historicamente essa realidade em nível institucional, regulando a vida desse povo.

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DO DIREITO ECLESIAL

DIREITO NATURAL E DIREITO POSITIVO

A lei natural e o direito natural exprime, como realidades ontológicas, a dignidade da pessoa humana, determinando seus direitos e deveres naturais. O direito eclesial positivo, então, é uma manifestação da reintegração do homem e da vitória sobre o pecado, porque não só faz com que seja superada a desconfiança nas relações entre os homens, seja vencida a divisão e realizadas as possibilidades de convivência, com base no respeito da dignidade de cada homem e de seus direitos inalienáveis, mas também promove a comunhão com Deus e entre os homens, para a salvação dos membros da comunidade eclesial.

FUNDAMENTOS ECLESIOLÓGICOS DO DIREITO ECLESIAL

O DIREITO NO MISTÉRIO DA IGREJA

O bem comum da Igreja alcança, por isso, um mistério divino, o da vida da graça, que todos os cristãos, chamados a ser filhos de Deus, vivem na participação da vida trinitária: Ecclesia in Trinitate. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II falou da Igreja também como “comunhão”, trazendo assim à luz o fundamento espiritual do Direito na Igreja e sua ordenação para a salvação do homem: de modo que o Direito se torna Direito de caridade nessa estrutura de comunhão e de graça para todo o corpo social.

O DIREITO NA IGREJA, SACRAMENTO DE COMUNHÃO E CORPO MÍSTICO DE CRISTO

Podemos, assim, compreender como toda a ação visível da Igreja está a serviço da salvação, embora nem todos seus atos sejam imediatamente salvos. Tendo a atividade jurídica da Igreja sua raiz primeira na natureza do homem, o qual entra na salvação com todas suas exigências e estruturas naturais, o direito eclesial positivo é um meio, um instrumento, a serviço do fiel para alcançar a salvação na Igreja. Nesse sentido lato, pode-se dizer que o direito canónico participa da sacramentalidade da Igreja. Contudo a Igreja, embora humana em sua visibilidade e historicidade, só é compreensível na fé, justamente por seu caráter sacramental e pelo fato de ser uma realidade que procede do mistério da vida trinitária.

SÍNTESE

Em síntese, uma vez que em sua origem não é produto da vontade humana, mas da vontade divina, a Igreja como sociedade juridicamente perfeita é o instrumento concreto de uma força divino-sobrenatural, a força do Espírito Santo (LG 8a). A comunhão invisível, enquanto obra do Espírito Santo, alma sobrenatural da Igreja (LG 7g; AG 4), é a realidade mais profunda constitutiva dessa e assume em si a realidade humana sociológico-jurídica, como alma natural e corpo, mas sem esvaziá-la de sua própria natureza, ou até levando à consumação seu conteúdo, seu fim e seu significado imanentes; a comunhão visível, institucionalizada como comunhão hierárquica e eclesiástica entre os membros da Igreja, é o signo humanamente perceptível da ação de Cristo, que a constitui e a refere à comunhão no Espírito, a qual é comunhão trinitária.

Tendo em conta o que foi dito até agora, devemos admitir o valor salvífico também do direito eclesial positivo humano, que pode ser definido como “direito sagrado” (“ius sacrum”) e “direito de comunhão” (“ius communionis”), enquanto expressão e instrumento de encarnação do direito divino, quer natural, quer revelado, voltado para a proteção e para a promoção da comunhão eclesial.

A LEI NA IGREJA

NATUREZA E FIM

A LEI POSITIVA NO NOVO TESTAMENTO

Podemos dizer que nos Evangelhos Sinóticos se encontra a afirmação da continuidade e da permanência da lei mosaica, em virtude da consumação dessa por Jesus, mas, ao mesmo tempo, também a novidade absoluta do modo de agir dos fiéis em Cristo, até a crítica radical aos fariseus (Mt 23.1-31).

O EVANGELHO DE JOÃO

Para o Evangelho de João, a economia do Antigo Testamento consiste no dom da lei, ao passo que a do Novo se baseia na graça da verdade de Jesus Cristo, que superabunda em relação à lei de Moisés, porque a revelação de Cristo a supera (Jo 1,16-17).

Tal lei de Cristo não é um novo Código de normas positivas, mas é o conhecimento do mistério da salvação cumprido em Cristo. Trata-se de uma lei inscrita pelo Espírito no coração dos homens, que conduz à liberdade.

SÃO PAULO

S. Paulo é o autor do Novo Testamento que mais tratou da lei. Em seus escritos, encontramos alguns textos em que é negada à lei toda função positiva na vida cristã, e outros em que, pelo contrário, afirma-se uma função positiva, e até textos nos quais vemos que o próprio Paulo dá normas às comunidades.

A afirmação fundamental de Paulo é a liberdade dos crentes em Cristo em relação à lei externa. A lei não pode ser considerada meio e via de justificação.

Paulo considera que o homem renascido em Cristo por si só não precise de normas e de regras, mas, uma vez que também na vida de tal homem não há coerência entre a vida interior da graça e o modo externo de viver, o mesmo Paulo dá normas e regras às comunidades, principalmente com o fim de reprimir falsas interpretações acerca da liberdade cristã. (1Cor 6,12; 10,23).

SÍNTESE

Em síntese, podemos afirmar que nos escritos do Novo Testamento encontramos uma continuidade de ensinamento. A afirmação fundamental é que todas as regras, normas e leis positivas têm sentido na comunidade cristã só em relação a Cristo. O comportamento dos fiéis em suas relações mútuas e a ordem da comunidade não se fundamentam nas leis positivas em si mesmas, mas na comunhão com Cristo. A norma na vida cristã não tem seu sentido no fato de conter uma ordem que deva ser executada, mas no fato de que é o fruto da autocompreensão da comunhão dos indivíduos da comunidade em seu conjunto com Cristo. A obrigação da observância da lei na comunidade cristã não surge tanto do fato de que a lei é dada e promulgada por um legítimo legislador dotado de poder, mas sobretudo pelo fato de que é animada pelo Espírito de Cristo. A lei positiva da comunidade cristã, em seguida, não só deve mostrar onde está o pecado, mas, antes de tudo, deve indicar qual é o comportamento que se deve ter segundo a lei interna do amor, segundo a ação do Espírito Santo, para poder alcançar e reforçar a comunhão com Deus em Jesus Cristo e com os irmãos. O legislador eclesiástico, então, quer no momento da primeira produção das normas, quer para prover à renovação delas, deverá confrontar-se com o mistério da salvação, que se torna presente na vida de cada um dos fiéis e de toda a comunidade.

DEFINIÇÃO DE LEI CANÓNICA OU ECLESIÁSTICA

A DEFINIÇÃO DE LEI EM STO. TOMÁS

O próprio Sto. Tomás explica essa definição. “Lei” vem de “ligar”, uma vez que obriga a determinada ação, cuja regra e medida é a própria lei. A lei eclesiástica deve ser considerada uma ordenação da razão do homem iluminada pela fé e moldada pela caridade do Espírito Santo, promulgada pela autoridade competente.

RAZOABILIDADE DA LEI

A lei positiva, então, deve ter uma razoabilidade intrínseca, ou seja, deve ter uma correspondência com aqueles valores, bens e direitos inalienáveis de que cada pessoa é portadora pelo simples fato de existir, os quais por si mesmos fazem surgir a obrigação do Respeito por parte de todos os outros sujeitos, sem nenhum tipo de diferença.

BEM COMUM

O bem comum em sentido antropológico é o complexo dos bens o dos valores que por si sós são atinentes à pessoa humana; e o bem comum em sentido jurídico é constituído pelos meios para a obtenção da própria perfeição da pessoa humana (por exemplo, o exercício da autoridade, as leis, as instituições etc), porque protegem e promovem aqueles bens e valores.

Como se pode ver, uma oposição entre o bem comum e o bem de cada um na Igreja só pode ser superada em referência a Cristo, princípio do bem tanto do indivíduo como de toda a comunidade eclesial.

OBRIGATORIEDADE DA LEI

OBRIGAÇÃO DE CONSCIÊNCIA

Para que, então, uma lei obrigue, é necessário haver no legislador a autoridade legal e, portanto, a competência, expressão do poder de governo pastoral confiado por Cristo à Igreja; no que diz respeito ao objeto da lei, é necessário que o que é pedido seja moralmente bom, portanto não contrário à lei natural e ao direito divino natural ou revelado, oportuno, enquanto tendo como fim o bem comum, e possível física e moralmente, ou seja, exeqüível pela média dos homens. Existindo essas condições, a lei deve ser considerada justa e obrigatória, enquanto razoável determinação secundária da lei interna do amor e concretização histórica do direito divino.

A obrigação de consciência é dupla: executar a lei e, em caso de infração, aceitar a pena, se prevista pela lei ou decretada pela autoridade. A obediência na Igreja não pode simplesmente ser uma submissão externa à autoridade. Ela é um meio para crescer em outras virtudes, como a fé, com a qual o fiel se submete, com um ato de livre adesão interior, à autoridade do magistério. A obrigação de consciência das leis eclesiásticas baseia-se no fato de que o exercício da autoridade na Igreja só pode ser concebido como um ministério sagrado, um serviço, porque se trata de uma autoridade magisterial, conferida por Cristo para que a palavra de Deus seja anunciada autenticamente; sagrada, dada para a santificação com o anúncio da palavra de Deus e a administração dos sacramentos; enfim, pastoral para que, por meio das leis proclamadas e dos juízos pronunciados, a palavra de Deus continue a ser anunciada com fidelidade em sua integridade, os sacramentos e o culto continuem a ser celebrados segundo a instituição divina e a vida cristã se desenvolva segundo as exigências da radicalidade do Evangelho, expressa no Sermão da Montanha (LG 27).

A lei eclesiástica, então, não pode ser considerada, num sentido pragmático, só em sua factualidade de organização da vida social da Igreja, mas necessariamente numa referência direta à esfera moral do homem.

O direito eclesial, mais do que qualquer outro direito positivo, é fragmentário e sempre o será, porque, por seu caráter de abstração e generalidade, nunca poderá esgotar todas as dimensões do fiel e traduzir nem a lei interior do amor nem a essência da Igreja numa perfeita forma histórica.

Tanto a autoridade eclesiástica, no momento da produção e aplicação da lei, como o canonista, em sua atividade de estudo e explicação dela, deverão estar conscientes da perpétua fragmentariedade de cada uma das leis eclesiásticas positivas e do direito positivo da Igreja em seu conjunto, se quiserem que esses desempenhem sua função tanto para o bem sobrenatural de cada um dos fiéis como para o bem comum. Assim, a autoridade, ao regulamentar positivamente os institutos eclesiásticos, e o canonista, em sua atividade científica, devem estar conscientes da inadequação das leis positivas em traduzir a essência da estrutura da Igreja e, ao mesmo tempo, da diferente imutabilidade delas, conforme sua mais ou menos direta derivação do direito divino.

EXCEÇÕES

De grande importância é o princípio da epikeia, princípio não somente moral, mas também plenamente jurídico: por meio dele se constata que a lei em questão não obriga num caso particular. Uma vez que é geral e abstrata em sua proposição, a lei obriga todos em circunstâncias normais e não pode prever a cada um dos casos particulares, caso seja moralmente certo que, se o legislador conhecesse o caso particular nas circunstâncias que se opõem à aplicação da lei, dispensaria dela, e quem está na impossibilidade de pedir a dispensa pode aplicar tal princípio.

Na mesma consciência da fragmentariedade da lei se baseia também a prática da tolerância e do fechar de olhos pela autoridade perante a violação de uma lei humana, sem provocar escândalo e dano a terceiros.

A LEI DA CARIDADE NA ORDENAÇÃO ECLESIAL

Todas essas regras típicas do direito eclesial manifestam que na base dele está a lei interior do amor e que as leis positivas são apenas determinações segundas dela; além de que o fim da lei eclesiástica é o bem comum, como acima o entendemos.

A lei externa escrita, que deve ser manifestação da lei interior, a graça do Espírito Santo, e regrar as relações entre os irmãos na mesma fé, não pode deixar de ter como elemento constitutivo a caridade.

DIREITO ECLESIAL E TEOLOGIA

O ESTUDO DO DIREITO ECLESIAL NA FORMAÇÃO TEOLÓGICA

O ensino dele deve inserir-se harmonicamente no resto dos estudos teológicos, e para tanto devem ser indicados os fundamentos teológicos gerais do direito canónico enquanto tal e os fundamentos particulares de cada instituto jurídico e o ensino dele será ministrado dentro de uma perspectiva pastoral.

O reto conhecimento e interpretação das normas eclesiásticas, especialmente por aqueles que terão na Igreja uma responsabilidade pastoral ou prestarão serviços e exercerão ministérios ou ofícios, levará a uma aplicação delas para o bem sobrenatural de cada um dos fiéis e da comunidade cristã em seu conjunto.

A atividade jurídica é de tal forma inerente ao homem, que uma antropologia teológica não pode prescindir da consideração dela, para explicar o homem em sua dimensão social. A dimensão jurídica da Igreja é parte constitutiva dela, de modo que, sem a consideração dessa dimensão, a própria eclesiologia ficaria carente.

O DIREITO ECLESIAL:

CIÊNCIA TEOLÓGICA OU CIÊNCIA JURÍDICA

A teologia é a “ciência da revelação cristã”, e o objeto de que se ocupa são “as verdades reveladas por Deus e conhecidas mediante a fé”. Portanto, a teologia “indaga e aprofunda o dado revelado, circunscreve os limites e coopera em seu desenvolvimento homogêneo, segundo as exigências da fé e as indicações dos sinais dos tempos, em que ela lê os sinais mesmos de Deus”. A teologia tem como base “o estudo das fontes da revelação, dirigido a estabelecer o que Deus revelou” (teologia positiva), e, além disso, “procura penetrar o sentido e descobrir as conexões das verdades reveladas, para coordenadas de modo orgânico e unitário” (teologia sistemática).

O direito canónico é a ciência que estuda e explica aquelas relações entre os fiéis que determinadas pelos carismas, pelos sacramentos, pelos ministérios e pelas funções são dotadas de obrigatoriedade e criam regras de conduta formuladas em leis e normas positivas dadas pela autoridade legítima, constituindo, em seu conjunto, as instituições eclesiais. O direito eclesial positivo fundamenta-se não só no direito divino natural, mas, sobretudo, no direito divino revelado. Ou melhor, muitos cânones do Código de Direito Canónico são dogmáticos, porque exprimem de maneira imediata tal direito divino revelado (p. ex. cc. 96; 204; 205; 208; 209, § 1; 330; 331; 333; 336 etc). Por essa razão, o objeto da investigação do canonista deve ser antes de tudo a consideração global do lugar que ocupa a atividade jurídica no mistério geral da Igreja, portanto o estudo daquele “jurídico dogmático” de que falamos no primeiro capítulo e que constitui o direito divino revelado, de que nasce a definição das relações fundamentais entre os fiéis e de sua obrigatoriedade não só na esfera da consciência, mas também na do viver social externo da comunidade eclesial. Nesse âmbito, o método a ser aplicado é o teológico.

Tendo a ciência do direito canônico, então, o direito da Igreja como objeto, com plena razão se pode dizer, ao mesmo tempo, uma ciência teológica e jurídica; portanto, o canonista deve ser, ao mesmo tempo, teólogo e jurista.

Então, para compreender as coisas, quando falamos de Teologia do direito, devemos fazer referência, primeiro, ao sentido teológico da experiência jurídica humana, em seguida, ao sentido desta última no interior da realidade mistérica da Igreja. Portanto, pode-se distinguir entre Teologia do direito em geral, como experiência humana, e Teologia do direito eclesial, mas a segunda, fundamentada na eclesiologia, pressupõe e compreende a primeira, que se fundamenta na antropologia teológica, porque não se dá uma eclesiologia sem uma antropologia.

DIGRESSÃO HISTÓRICA SOBRE A CIÊNCIA E AS FONTES DO DIREITO ECLESIAL

A história da ciência canônica é geralmente dividida em sete períodos.

O primeiro período vai dos inícios até o Decreto de Graciano (cerca de 1140). Nesse período, não se têm exposições sistemáticas do direito canónico, porque ele não era uma ciência autônoma em relação à teologia, mas sim uma parte especialmente da teologia prática.

O segundo período vai do Decretum de Graciano até o Liber Extra de Gregório IX.

Graciano († 1158), cálculo do mosteiro dos santos Félix e Nabor (ou do de S. Proclo), ensinava “theologia practica na Universidade de Bolonha e compôs, com o auxílio dos monges (em especial de Paucapalea), o Decretum, por volta de 1140 (de qualquer modo, entre 1139 e 1148). O título original, Concordantia discordantium canonumrevela a novidade do método dessa coleção de leis, que, embora não tenha um caráter oficial, toma o lugar de todas as coleções anteriores, impondo-se nas escolas da época, a começar pela de Bolonha. Nascem a disciplina e a ciência autônoma do direito canônico.

O terceiro período vai da promulgação das Decretais de Gregório IX (Liber Extra) em 1234 até o ano de 1348.

Com a invasão dos tribunais e das escolas pelas coleções autênticas e privadas das decretais posteriores ao Liber Extra, tornou-se necessária uma nova compilação, o Liber VI Bonifacii VIII. que é universal, única, exclusiva, autêntica, porque promulgada pela comunicação às escolas de Bolonha, Paris e Salamanca.

O quarto período vai de 1348 ao Concílio de Trento (1563). É um período de decadência, devido ao chamado cativeiro dos papas em Avinhão, ao Cisma do Ocidente, desvirtuado pelo espírito conciliarista e pelo secularismo humanismo, e à Reforma protestante. Os canonistas caem antes na casuística minuciosa e se dão a coletâneas de questões, formulários, manuais de procedimento penal, sumários práticos (Summae confessorum).

O quinto período decorre entre o Concílio de Trento e a Revolução Francesa. O Concílio de Trento trouxe muitas inovações e reformas na disciplina eclesiástica, mas Pio IV proibiu comentários ou glosas aos decretos conciliares. Todavia, os decretos conciliares, os documentos e a prática das Congregações da Cúria Romana, as Bulas pontifícias oferecem nova matéria de reflexão e de desenvolvimento à ciência canônica. Também as concordatas e as convenções com os Estados oferecem um gênero especial de fontes do direito canónico.

Nesse período, a situação do estudo do direito canónico varia de região para região.

Recordemos que nesse período nasce e se desenvolve a escola de direito público eclesiástico.

O sexto período transcorre entre a Revolução Francesa e a promulgação do CIC de 1917. Çjorn a Revolução Francesa em toda a Europa, exceto no império dos Habsburgos, ocorre um processo de secularização das instituições eclesiásticas, e também dos centros de formação.

Nesse período, afirma-se a escola romana de direito público eclesiástico.

O sétimo período vai da promulgação do CIC de 1917 aos dias de hoje.

A multiplicidade das leis canónicas e a dificuldade de sua consulta e aplicação tornam cada vez mais necessárias uma revisão e uma reordenação de toda a matéria. Já no Concílio Vaticano I foram feitos pedidos nesse sentido.

PRINCÍPIOS DIRETIVOS DA REFORMA DO CÓDIGO

Foram dez os princípios estabelecidos pela primeira assembléia geral do Sínodo de 1967 (30 de setembro – 4 de outubro):

Índole jurídica do Código. O Código deve conservar, embora, com um espírito próprio, seu caráter jurídico, requerido pela natureza social da Igreja. Assim, não pode propor apenas uma “regula fidei et morum”, mas oferecer cânones em que os fiéis possam encontrar o modo como deverão comportar-se na Igreja, se quiserem participar dos bens que ela oferece para a obtenção da salvação eterna.

O Código, com efeito, é resultado de uma experiência que durou cerca de vinte anos, após o fechamento do Concílio, o qual não teve nem tempo nem modo de amadurecer tantos problemas abertos ou apenas apresentados (por exemplo, origem e exercício do poder sagrado, órgãos de co-responsabilidade ou de participação, como o Sínodo dos bispos, as Conferências dos bispos, os Conselhos presbiterais, os Conselhos pastorais etc).

Enfim, o Código é resultado do acurado estudo final do supremo Legislador, que, promulgando-o assumiu a doutrina e a disciplina nele contidas. Com João Paulo II, podemos afirmar que: “Último documento conciliar, o Código será o primeiro a inserir todo o Concílio em toda a vida”.

Foro externo e foro interno. Devem ser confirmadas a natureza jurídica do Código, no que diz respeito ao foro externo e a necessidade do foro interno, como vigoraram por séculos na Igreja. Portanto, o Código deve conter normas que dizem respeito ao foro externo e também, se o exigir a salvação das almas, normas que dizem respeito a providências a tomar no foro interno.

Critérios de distinção e individuação do exercício do poder para o foro externo e para o interno não podem ser respectivamente o bem comum externo da comunidade visível e o bem espiritual do indivíduo, nem a regulamentação das relações sociais com os outros membros da Igreja e das relações com Deus, porque, dada a natureza da Igreja, como vimos no segundo capítulo, o bem comum da Igreja é sempre também o bem do indivíduo e vice-versa e as relações entre os membros da Igreja não são estranhas à relação com Deus e vice-versa.

Os dois foros devem ser distinguidos, mas não separados, como na Igreja o elemento invisível e o visível devem ser distinguidos, mas não podem ser separados. É a solicitação pastoral da Igreja, a caridade, lei suprema de toda a vida da Igreja e de toda a ordenação canônica, que exige, em casos particulares, o exercício do poder no foro interno antes que no externo.

Meios para favorecer o cuidado pastoral. Todas as instituições eclesiais devem ser ordenadas para a promoção da vida sobrenatural, e por isso a ordenação canônica, as leis e os preceitos, os direitos e os deveres que daí se seguem devem sempre estar de pleno acordo com o fim sobrenatural da Igreja. Por isso, deve estar manifesto no Código espírito de caridade, de temperança, de humanidade e de moderação, que, enquanto virtudes sobrenaturais, fazem com que as leis canônicas se distingam das cíveis.

Inserção das faculdades especiais no código. Deve ser revisto o sistema das faculdades especiais concedidas aos ordinários e outros superiores, de modo que muitas delas, em especial no que diz respeito às dispensas das leis universais, comecem a fazer parte do conteúdo do poder ordinário e próprio dos bispos e dos outros ordinários e sejam estabelecidos os casos de reserva à Santa Sé ou, a outra autoridade.

Aplicação do princípio de subsidiariedade. O princípio de subsidiariedade será aplicado levando em conta a necessária unidade legislativa de uma parte e a utilidade de cada uma das instituições, quer por meio do direito particular, quer de uma sã autonomia do poder executivo a elas reconhecido. Com efeito, o sistema do direito canônico deve ser único para toda a Igreja nos princípios primeiros, em relação às instituições fundamentais, aos meios próprios da Igreja para alcançar seu fim,à técnica legislativa.

Tal princípio quer dizer que os vários grupos devem resolver com seus próprios meios os problemas e tomar as decisões que habitualmente não ultrapassam suas possibilidades.

Portanto, querendo aplicá-lo na Igreja, devemos fazê-lo de modo análogo em relação à sociedade civil, no interior de seu quadro institucional, ou seja, daquela estrutura já preexistente da Igreja, dela conservando antes de tudo o que é de instituição divina.

Defesa dos direitos das pessoas. O uso do poder dos superiores, em todos os níveis, não pode ser arbitrário, porque encontra seu limite no direito natural, no direito divino e também no direito eclesiástico. Por isso, devem ser reconhecidos e defendidos os direitos de cada fiel. Além disso, pela radical igualdade vigente entre todos os fiéis, quer por sua dignidade humana, quer pelo batismo, deve ser determinado o estatuto jurídico comum a todos, antes que sejam estabelecidos os direitos e os deveres pertinentes às diversas funções eclesiásticas.

A igreja não é como a sociedade civil, simplesmente o efeito da socialidade humana, mas o efeito da presença da obra salvadora de Deus na natureza humana, dom que Deus faz aos homens.

A Igreja deve realizar no máximo possível a integração entre o progresso ordenado da vida da comunidade e a plena realização da pessoa humana, que, como fiel, vive na dimensão sobrenatural da fé, da esperança e da caridade. A função própria do direito eclesial é fazer com que os fiéis superem seu individualismo e realizem sua vocação ao mesmo tempo pessoal e comunitária, porque o fim do direito na Igreja é duplo: proteger a comunhão eclesial e os direitos de cada um dos fiéis.

Procedimento para proteger os direitos subjetivos. Para que se tenha uma proteção eficiente dos direitos subjetivos, é necessária a instituição de tribunais administrativos, segundo diversos graus e de diferentes espécies. Como regra, cada processo deveria ser público, a menos que, segundo o critério do juiz, em certos casos se exigisse o segredo.

Ordenação territorial. A territorialidade das circunscrições eclesiásticas é a regra geral, mas o território não deve ser considerado um elemento constitutivo, mas só determinativo de uma parcela do povo de Deus, e por isso, para exigências pastorais, o rito ou a nacionalidade dos fiéis ou outras diferentes razões que não o território podem ser determinativos de uma parcela do povo de Deus. Tais unidades jurisdicionais podem ser instituídas tanto pela Santa Sé como pela autoridade local.

Revisão do direito penal. Antes de tudo, devem ser reduzidas as penas, que em geral devem ser ferendas sententiae e irrogadas e remidas apenas no foro externo; as penas latae sententiae devem ser previstas apenas para pouquíssimos e gravíssimos delitos.

É deixado um amplo espaço para o discernimento da autoridade na aplicação das penas, multas das quais não são preceptivas, mas facultativas (cc. 1364; 1367; 1370, § 1; 1375; 1390, § 3; 1391); as mesmas penas preceptivas são muitas vezes previstas de modo genérico, ou seja, impõe-se que a autoridade determine ou uma justa e proporcionada pena ou então uma censura a seu juízo ou então uma dentre as penas estabelecidas (cc. 1365; 1366; 1368; 1369; 1370, § 3; 1371, 1º, 2º; 1372; 1373; 1375; 1376; 1377; 1379; 1380; 1381; 1384; 1385; 1386; 1387; 1388; 1389; 1390, § 2; 1391; 1392; 1393; 1395; 1396).

As penas maiores, como a excomunhão e o interdito, justamente porque privam de bens espirituais fundamentais, têm caráter medicinal, ou seja, tendem à conversão do delinquente, para que ele se reintegre em plena comunhão com Deus e com a Igreja. Ou seja, a Igreja, ao impor tais censuras, observa e declara o estado em que o fiel se encontra em relação a Deus e à Igreja, pelo qual não poderá salvar-se se não se arrepender; permitindo a pena, ela declara que o fiel, porque arrependido, restaurou sua plena comunhão com Deus e, portanto, também com a Igreja.

Nova disposição sistemática do Código. Este princípio estabelecia que, para refletir o espírito do Vaticano II, a ordem sistemática da matéria do novo Código deveria ser diferente da do CIC 1917, defeituoso nos livros II e III.

O CIC 1917 seguia fundamentalmente a antiga sistematização das Institutiones pós-tridentinas que, como vimos no capítulo anterior, seguindo o modelo das instituições de direito romano, dividia a matéria em pessoas (personae), coisas (res) e ações (actiones). Esse esquema fornece o esqueleto do CIC 1917. O livro II, De personis – sobre os clérigos, em geral, e os religiosos e os leigos, em especial, dá excessiva prevalência aos clérigos e ao exercício do poder por parte deles, ao passo que quase não trata dos leigos; dois cânones sem nenhuma relevância e o resto sobre as associações de fiéis; o livro III, De rebus, engloba uma matéria muito ampla e variada: os sacramentos, os lugares e os tempos sagrados, o culto divino, o magistério eclesiástico, os benefícios e os outros institutos eclesiásticos não-colegiais, os bens temporais; o livro IV De processibus, trata do exercício do poder judicial e dos procedimentos a serem seguidos. O livro I, Normae generales, é colocado como introdutório, porque compreende as definições e as aplicações gerais do direito (leis, costumes, prescritos, privilégios, dispensas), e o livro V, De delictis et poenis, sobre o exercício do poder coativo ou penal na Igreja, serve de fecho ao Código. Assume um esquema independente da tradição romanística.

São configurados os diversos órgãos de governo em nível universal e particular, portanto o exercício pessoal ou colegial do poder por quem o detém, e os modos de participação nesse exercício por todas as categorias de pessoas. A Igreja, assim, aparece como uma comunhão orgânica hierarquicamente constituída, na qual cada um tem uma responsabilidade específica. Falta, infelizmente, uma definição de Igreja universal paralela à que é dada de Igreja particular (c. 369).

Por fim, devemos constatar que o Código atual não segue um esquema sistemático unitário, que reflita uma lógica interna coerente. Com efeito, afasta-se do esquema do CIC 1917 e certamente se mostra teologicamente mais fundado, em especial nos títulos dos livros, mas apenas em parte.

Um Código não pode deixar de refletir a teologia do tempo em que é redigido e promulgado. O Código atual reflete, e devia refletir a eclesiologia do Vaticano II. Quando se tornar inadequado do ponto de vista disciplinar, deverá ser revisto, porque isso quererá dizer que não mais corresponderá ao progresso da reflexão teológica.

O Código atual, como vimos, dedica o livro III ao múnus de ensinar e o livro IV ao de santificar, invertendo a ordem do CIC 1917 no livro III e seguindo o esquema teológico segundo o qual é o anúncio da salvação que leva aos sacramentos, meios da salvação.

Livro I: O povo de Deus; atual livro II, acrescentando os cânones sobre as pessoas físicas e jurídicas e sobre os atos jurídicos (cc. 96-128) e os cânones sobre a prescrição e sobre a contagem do tempo (cc. 197-203), mas subtraindo a parte II.

Livro II: A função de santificar da Igreja: atual livro IV.

Livro III: A função de ensinar da Igreja: atual livro III.

Livro IV: A função de governar da Igreja: composto pelos cânones sobre o poder de governo (cc. 129-144);  sobre os ofícios eclesiásticos (cc. 145-196); sobre as leis, sobre os decretos e sobre as instruções, sobre os atos administrativos singulares, sobre os estatutos e sobre os regulamentos (cc. 7-95); sobre a administração dos bens temporais (atual livro V); sobre as sanções (atual livro V); sobre as sanções (atual livro VI) e sobre os processos (atual livro VIII). 

Livro V: A constituição hierárquica da Igreja (cc. 330-572), que, com a organização do povo de Deus e a disciplina sobre os órgãos que exercem as três funções acima, unifica todos os carismas, os ministérios e os ofícios. 

A “COMMUNIO”: REGRA DA ORGANIZAÇÃO DO POVO DE DEUS

PRINCÍPIO NÃO-EXPRESSO

De tudo o que foi dito até agora, desponta a importância da noção de comunhão. Ela constitui a conexão direta entre a antropologia teológica e a eclesiologia, estando na base de ambas. O homem é criado para estar em comunhão com Deus e com os irmãos, e isso se realiza na Igreja, que é o sacramento, instrumento eficaz, de tal comunhão. O direito eclesial, como vimos, foi definido por Paulo VI como “direito de comunhão” (“ius communionis”), porque as leis positivas, como determinação da lei interna do Espírito, devem ser um auxílio para os fiéis realizarem e reforçarem a comunhão com Deus e com os irmãos; além disso, o bem comum e o dos indivíduos para a busca do qual está voltada toda a ordenação eclesial, ao disciplinar as várias funções na Igreja, assim como o exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres definem-se justamente em relação a tal comunhão.

A comunhão, então, não é só uma noção, mas a realidade mesma, da Igreja. Trata-se de explicitar como ela pode ser uma chave de leitura do direito eclesial e como é reguladora da vida jurídica da Igreja.

COMUNHÃO DOS FIÉIS – COMUNHÃO ENTRE AS IGREJAS

A noção de “fiel de Cristo” (“christifidelis“) é, no CIC 1983, uma noção fundamental (c. 204, § 1), à qual se referem todas as outras noções acerca das pessoas e das instituições eclesiais. A comunhão, como obra do Espírito, é constitutiva e reguladora tanto da igualdade fundamental vigente entre todos os fiéis, como da desigualdade entre eles, pela diversidade dos carismas, das funções e dos ministérios (cc. 204, § 1; 208).

A igualdade entre os fiéis é dada pela comunhão fundada no batismo (“communio fidelium“), numa relação direta com a Eucaristia, cuja participação conduz à comunhão com Cristo e com a Trindade (UR 2b; 15a; 22a; AG 39a; LG 3; 7b).

Sobre a verdadeira igualdade na dignidade e no agir entre todos os fiéis e a simultânea desigualdade baseia-se o fato de que todos cooperam, como co-responsáveis, na edificação do Corpo de Cristo, mas cada um segundo sua condição e suas tarefas (LG 32b.c.d; cc. 208; 212, §§ 2, 3). Sob esse aspecto, como vimos, todos os fiéis estão submetidos a obrigações iguais e gozam dos mesmos direitos (cc. 208-223), os quais, porém, se especificam segundo diversas tarefas e ministérios, que determinam diversas condições jurídicas, das quais, por sua vez, surgem também deveres e direitos específicos.

A Igreja, então, é uma comunhão orgânica, porque é um corpo orgânico, em que os vários dons do Espírito e, portanto, os vários ministérios e as diferentes funções de seus membros são unificados pela ação do Espírito único, que é sua fonte e seu aperfeiçoador (LG 7c.f.h).

Encontramos essa estrutura fundamental da Igreja em nível universal, particular e local. A comunidade de todos esses bens espirituais, que constitui a base da comunhão dos fiéis, é também a base da comunhão entre as Igrejas particulares (“communio inter Ecclesias”; LG 13b), nas quais e a partir das quais existe a una e única Igreja católica (LG 23a; c. 368). A qual, então, é constituída por tal comunhão. A comunhão é o critério básico no qual se estabelecem as relações não só entre cada um dos fiéis, mas entre as várias Igrejas.

COMUNHÃO ECLESIÁSTICA – COMUNHÃO CATÓLICA

Segundo o Código, com base na doutrina conciliar, para que se possa dizer que a Igreja católica se realiza devem estar presentes os seguintes elementos essenciais: 1) o batismo, que constitui fiéis e povo de Deus (LG 10a; 11a; AG 6c; c. 204, § 1); 2) uma diferenciação orgânica dos fiéis pelos diversos dons hierárquicos e carismáticos, todos eles dados pelo mesmo espírito  (LG 4a; 12b; 13c: AG 4; GS 32d; cc. 204, § 1; 208); 3) a aceitação de toda a ordenação da Igreja visível e de todos os meios de salvação nela instituídos, dentre as quais se destacam a proclamação do Evangelho e a celebração da Eucaristia; 4) a união com Cristo na Igreja visível, nos vínculos da profissão da fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, do governo, portanto, do Sumo Pontífice e dos bispos (LG 9a; 14b; OE 2; AG 6c; cc. 96; 204, § 2; 205). Isto constitui a comunhão eclesiástica (communio ecclesiastica) entre todos os batizados na Igreja católica ou nela recebidos (LG 14b; 15; SC 69b; cc. 96; 205; 316, § 1; 840; 1741, 1°). Tais elementos essenciais não mudam, se considerarmos a Igreja em nível universal, particular ou local, na medida em que a universalidade, a particularidade e a localidade devem ser consideradas atributos do sujeito Igreja, que, por outro, lado, não existe em abstrato, mas sempre numa especificação, ou universal ou particular ou local.

Dado que nas Igrejas particulares e a partir delas existe a una e única Igreja católica universal, comunhão entre todas as Igrejas (LG 23a; c. 368), a Igreja universal, a Igreja particular e a Igreja local devem ser consideradas uma única realidade mistérica, o Corpo Místico, de que Cristo é a Cabeça.

COMUNHÃO HIERÁRQUICA

A comunhão hierárquica (“hierarchica communio“) é elemento constitutivo da comunhão eclesiástica ou católica.

Pode-se, com efeito, em sentido próprio considerar Igreja particular apenas aquela parcela de povo de Deus que está sob a guia pastoral de um bispo legítimo ou de outro legítimo pastor a ele equiparado no direito (c. 381, § 2). Dessa presença de seu legítimo pastor, a Igreja particular recebe a característica da apostolicidade. O bispo, com efeito, insere-se na sucessão apostólica, em virtude da consagração episcopal, mas essa sucessão apostólica manifesta-se plenamente apenas se ele está na comunhão hierárquica com o Chefe do Colégio Episcopal e os membros dele, porque só assim ele é membro de tal Colégio (LG 20; 22a; cc. 330; 336).

Isso se fundamenta no fato de que o ministério do bispo jamais deve ser considerado isoladamente, mas sempre relacionado a todo o Colégio Episcopal que sucede ao Colégio Apostólico.

A realidade da comunhão entre os bispos, comunhão não apenas sacramental, mas hierárquica, vista em relação à comunhão eclesiástica, lança uma luz ainda maior sobre o fato de que a comunhão é o princípio regulador das relações entre as Igrejas e entre os pastores.

CARIDADE E COMUNHÃO ECLESIAL

Como vimos, o que constitui a Igreja, em todos os níveis, é a comunhão criada pelo Espírito Santo. O laço de comunhão, porém, pela própria natureza da Igreja, análoga à do Verbo encarnado (LG. 8a), não permanece só dentro dos limites da esfera invisível e espiritual, mas exige uma forma jurídica, que seja ao mesmo tempo animada pela caridade (NEP 2).

Como dom do Espírito, a caridade constitui a comunhão entre todos os fiéis, de qualquer categoria e ordem, em nível universal, particular e local. No interior da comunhão dos fiéis, é sempre a caridade que constitui a comunhão dos bispos entre si e com seu Chefe, o Romano Pontífice. As relações jurídicas, sancionadas pelas leis, e o funcionamento dos institutos jurídicos, por si mesmos, postulam o exercício da caridade e são previamente determinados pela ação mesma do Espírito, que distribui os vários dons. Essa união na caridade, justamente por ser tal, exige a subordinação hierárquica de todos os fiéis: como indivíduos e como associados, dos leigos e dos consagrados aos pastores prepostos por Cristo; dos presbíteros aos bispos e ao Romano Pontífice; dos bispos a seu Chefe, sucessor de Pedro, e ao Colégio.

COMUNHÃO – CO-RESPONSABILIDADE – PARTICIPAÇÃO

Baseiam-se na realidade da comunhão os conceitos de co-responsabilidade e participação.

Da comunhão vigente entre os fiéis em virtude do batismo pelo qual, como dissemos várias vezes, vige entre eles uma verdadeira igualdade na dignidade e no agir com iguais direitos e deveres, nasce uma co-responsabilidade geral e fundamental de todos em relação à edificação do Corpo de Cristo e ao cumprimento da missão da Igreja (cc. 208; 204, § 1). A Co-responsabilidade, com efeito, indica que muitos sujeitos têm todos a mesma capacidade ou o mesmo poder, portanto os mesmos direitos e deveres em relação a um objeto.

A participação exprime a relação da totalidade (participado) com o particular (participante), portanto a relação do que realiza por sua natureza a globalidade (participado) com o que realiza apenas uma parte da totalidade (participante).

Aplicando isso ao governo na Igreja, devemos dizer que aquele que tem em si todo poder é Cristo. É Cristo, constituído cabeça da Igreja, que continua a governá-la pelas mediações humanas, portanto pelos ministros por ele constituídos, quer no que diz respeito à estrutura hierárquica dela, quer no que concerne aos institutos de vida consagrada.

A Cúria Romana, como conjunto de Dicastérios e Organismos, coadjuvando o Romano Pontífice no exercício de seu supremo ofício pastoral para o bem e o serviço da Igreja universal e das Igrejas particulares, reforça a unidade da fé e a comunhão do povo de Deus e promove a missão própria da Igreja no mundo (cc. 360; 334; CD. 9a). A função da Cúria Romana, na realidade, deve ser entendida num sentido não burocrático-administrativo, mas pastoral, porque ela nasce do próprio serviço que, na caridade, o Sucessor de Pedro, Pastor supremo de toda a Igreja, tendo como modelo o Bom Pastor, desenvolve em favor da comunhão eclesial, constituída sobre a unidade da fé e da caridade e expressa na unidade da disciplina eclesiástica.

Em nível diocesano, existem apenas formas de participação e não de co-responsabilidade.

O Conselho presbiteral é um órgão consultivo peculiar de participação como grupo de sacerdotes que, representando o presbitério, desempenha a função de senado do bispo, para ajudá-lo no governo, a fim de que seja promovido do modo mais eficaz o bem pastoral da parcela de povo de Deus a ele confiada (c. 495, § 1; cf. CD 27b; PO 7a). O fundamento teológico do Conselho presbiteral, bem como dos outros órgãos consultivos do bispo formados por presbíteros, encontra-se na unidade entre presbíteros e bispo, baseada na comunhão ontológico-sacramental entre eles, apesar da diferença de grau de participação no ministério único de Cristo, transmitido pelos Apóstolos (PO 2b.d; 10a).

Outros organismos de participação de natureza sacerdotal são: o Colégio dos consultores (c. 502); o Capítulo da Igreja catedral nas funções que lhe sejam confiadas pelo Bispo (c. 503) e no caso em que, por deliberação da Conferência dos bispos, ele assuma as tarefas do Colégio dos consultores (c. 502, § 3); o Conselho episcopal, composto pelos vigários gerais e pelos vigários episcopais (c. 473 § 4).

No Conselho pastoral, porém, estão representadas todas as categorias de fiéis (clérigos, membros de institutos de vida consagrada e especialmente leigos: (c. 512, § 1), portanto ele é a manifestação da comunhão entre todos os fiéis, que, sob o comando do bispo, exercem o direito e cumprem o dever de cooperar ativamente cada um segundo seu carisma e sua condição, para a edificação do Corpo Místico de Cristo, em virtude de sua participação no triplo múnus de Cristo pelo batismo e pela confirmação (AA 2a; LG 32c; 30; CD 16a; cc. 208; 209, § 2; 210; 211; 212, §§ 2, 3; 216).

Em nível de paróquia, o pároco tem uma participação parcial do poder de Cristo e, dentro de seu âmbito, tem uma responsabilidade pessoal total, que desempenha no exercício do poder que lhe é conferido com seu ofício (cc. 515 § 1; 519). Caso a paróquia seja confiada a mais sacerdotes solidariamente (517, § 1), tem-se uma verdadeira co-responsabilidade no cuidado pastoral e no exercício do poder executivo e das faculdades próprias do ofício de pároco. O vigário paroquial é o cooperador do pároco e participa de sua solicitude (cc. 545, § 1; 548, § 2). São órgãos consultivos de participação na responsabilidade pessoal do pároco o Conselho pastoral (c. 536) e o Conselho para os negócios econômicos (c. 537).

O principal fundamento eclesiológico das Conferências dos bispos é a comunhão entre os bispos.

No que diz respeito aos institutos de vida consagrada e às sociedades de vida apostólica, deve-se partir do fato de que existe uma igualdade fundamental entre todos os membros de um instituto, baseada na participação no mesmo carisma e na mesma missão fundamento da comunhão da comunhão fraterna (cc. 574, § 2; 602).

Nessa co-responsabilidade geral fundamental se inserem os órgãos de co-responsabilidade particular. Antes de tudo, no âmbito de governo de todo o instituto ou sociedade, temos o capítulo ou assembléia ou congregação geral, como órgão colegial de governo extraordinário e supremo, no qual todos aqueles que o formam, em representação de todos os membros do instituto, têm igual responsabilidade e, portanto, igual poder (cc. 596; 631, §§ 1, 2; cf. 717. § 1; 734).

Como se pode ver, a comunhão é o princípio fundamental que regra toda a organização do povo de Deus. Os órgãos de governo, tanto de co-responsabilidade como de participação, na Igreja não podem ser reduzidos simplesmente a uma questão de administração e exercício do poder, porque, em sua organicidade, são manifestação da comunhão eclesial.

GHIRLANDA, Gianfranco. Introdução ao Direito Eclesial. Ed. Loyola: São Paulo, 1998, 147p.