REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202505191157
Nilseia Ketes Costa1
Moisés de Almeida Góes2
RESUMO
O estudo analisa criticamente o regime de responsabilização penal dos agentes públicos em licitações e contratos administrativos à luz da Lei nº 14.133/2021. A pesquisa identifica uma evidente desproporção entre as esferas administrativa e penal, com o agravamento das sanções penais contrastando com a evolução da esfera administrativa para critérios mais objetivos de dosimetria. Demonstra-se que o recrudescimento das penas nos tipos penais migrados para o Código Penal inviabiliza importantes ferramentas de justiça negocial, como o Acordo de Não Persecução Penal, mesmo em casos de mero erro grosseiro sem prejuízo ao erário. Os estudos de caso apresentados revelam situações concretas em que esta desproporção afeta diretamente a segurança jurídica dos gestores. O trabalho propõe a adoção de uma interpretação teleológica e sistemática dos novos tipos penais, com especial atenção à jurisprudência do STJ que vinha exigindo dolo específico e dano efetivo na vigência da Lei 8.666/93, além de maior deferência às análises técnicas dos órgãos de controle sobre o elemento subjetivo.
Palavras-chave: Direito Penal Licitatório; Crimes em Licitações; Lei 14.133/2021; Proporcionalidade; Acordo de Não Persecução Penal.
ABSTRACT
The study critically analyzes the criminal liability regime for public agents in bidding and administrative contracts under Law No. 14.133/2021. The research identifies a clear disproportion between administrative and criminal spheres, with the aggravation of criminal sanctions contrasting with the evolution of the administrative sphere towards more objective criteria for sanctions. It demonstrates that the increased penalties for bidding crimes incorporated into the Penal Code make important negotiation justice tools unfeasible, such as the Non-Prosecution Agreement, even in cases of mere gross error without damage to the treasury. The case studies presented reveal concrete situations in which this disproportion directly affects the legal security of public managers. The work proposes the adoption of a teleological and systematic interpretation of the new criminal types, with special attention to the Superior Court of Justice jurisprudence that had been requiring specific intent and effective damage under Law 8.666/93, as well as greater deference to technical analyses from control bodies regarding the subjective element.
Keywords: Criminal Bidding Law; Crimes in Public Procurement; Law 14.133/2021; Proportionality; Non-Prosecution Agreement.
1. INTRODUÇÃO
A transição da Lei nº 8.666/1993 para a Lei nº 14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos) marca um esforço significativo para modernizar a gestão pública brasileira, buscando maior eficiência, integridade e transparência nas contratações. A responsabilização penal dos agentes públicos neste contexto é tema central, dada a necessidade de coibir práticas ilícitas sem paralisar a administração com o fenômeno que se convencionou chamar de ‘apagão das canetas’ – a hesitação dos gestores em tomar decisões por receio de responsabilização excessiva.
A legislação anterior, embora um marco à sua época, apresentava fragilidades. Como aponta Masson (2021), os crimes previstos na Lei 8.666/1993 eram punidos com sanções muitas vezes consideradas brandas, o que, somado à morosidade processual e à complexidade das investigações, frequentemente levava à prescrição. Masson (2021, p. 1) cita entendimento do STJ que ilustra essa dificuldade reforçando que os crimes de natureza burocrática seguem um ritmo distinto de outras modalidades delitivas.
Em geral, a investigação começa somente depois que órgãos de controle produzem relatórios ou achados em procedimentos instaurados posteriormente, o que cria um hiato claro entre a prática do delito e a adoção de medidas cautelares. Como essas infrações ocorrem no interior da máquina administrativa, elas só se tornam públicas quando surgem novos processos administrativos, muito tempo depois do fato original.
Este paradigma de déficit de efetividade penal não é exclusividade brasileira. Os sistemas jurídicos contemporâneos, tanto na tradição romano-germânica quanto na common law[3], enfrentam desafios similares quanto à responsabilização criminal nas contratações públicas.
Enquanto alguns sistemas privilegiam a responsabilização administrativa e civil, reservando a via penal para casos mais graves, outros adotam modelos mais rigorosos, com a criminalização de múltiplas condutas relacionadas às licitações e contratos, com diferentes graus de sucesso.
Conforme observado por Mazza (2024, p. 757), a Lei nº 14.133/2021 é responsável pela regulação destas contratações ‘como uma espécie de codificação parcial do rito licitatório’ Este avanço indica uma tentativa de modernizar as normas à dinâmica contemporânea, ampliando os mecanismos de controle e fiscalização.
O recrudescimento das penas e a mudança de regime para reclusão em diversos tipos geram consequências processuais relevantes, mas também suscitam debates sobre proporcionalidade e o equilíbrio entre a necessária punição e a garantia de atuação dos gestores probos.
Um desafio fundamental nessa área consiste em distinguir adequadamente quais condutas merecem efetivamente a repressão penal, estabelecendo clara diferenciação entre meras falhas administrativas e atos praticados com intenção deliberada. Nota-se que os tipos penais previstos nos arts. 337-E a 337-P do Código Penal exigem expressamente a presença do elemento subjetivo dolo, o que, aliado à necessária articulação com os preceitos da LINDB e da Lei de Improbidade Administrativa, constitui aspecto determinante para uma análise juridicamente consistente da questão.
O presente artigo, adotando perspectiva crítico-propositiva, busca contribuir com o debate sobre o equilíbrio entre a responsabilização efetiva dos agentes que cometem ilícitos e a proteção do gestor de boa-fé, examinando a sistematização e o recrudescimento das penalidades trazidos pela Lei nº 14.133/2021 e seus reflexos nas esferas administrativa e judicial.
2. METODOLOGIA DO ESTUDO
Este trabalho caracteriza-se como pesquisa jurídica de natureza exploratórioanalítica com abordagem qualitativa, concentrando-se na análise crítica do regime de responsabilização penal dos agentes públicos no contexto das licitações e contratações administrativas à luz da Lei nº 14.133/2021 e sua interpretação sistemática com outros diplomas normativos correlatos.
2.1 Abordagem metodológica e delimitação do objeto
A pesquisa adota o método dogmático-jurídico, alicerçado na análise do direito positivo, complementado por técnicas de pesquisa jurisprudencial e análise comparativa.
A delimitação do objeto concentra-se na transição normativa da Lei nº 8.666/1993 para a Lei nº 14.133/2021, com ênfase nas alterações dos tipos penais migrados para o Código Penal e suas implicações práticas na responsabilização dos agentes públicos. O trabalho adota uma perspectiva de análise jurídica integrativa, que reconhece a importância de compreender o fenômeno jurídico não apenas em sua dimensão normativa estrita, mas também em suas interações com outras esferas de responsabilização (administrativa e por improbidade) e seus contextos de aplicação prática, especialmente considerando a atuação dos órgãos de controle e do Poder Judiciário.
2.2 Procedimentos de coleta e análise de dados
Para a elaboração da presente pesquisa, foram realizados os seguintes procedimentos:
a) Revisão bibliográfica e documental: Levantamento e análise da produção doutrinária especializada sobre o tema, incluindo obras jurídicas de referência, artigos científicos e publicações técnicas, com recorte temporal concentrado nos últimos cinco anos, mas sem excluir obras seminais anteriores quando pertinentes ao desenvolvimento teórico.
b) Análise legislativa comparativa: Estudo comparativo entre os dispositivos da Lei nº 8.666/1993 e da Lei nº 14.133/2021, com especial atenção aos tipos penais agora inseridos no Código Penal (arts. 337-E a 337-P) e sua relação com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), a Lei de Improbidade Administrativa (LIA) e a Lei Anticorrupção.
3. FUNDAMENTOS TEÓRICOS E CONCEPÇÕES JURÍDICAS APLICÁVEIS
A análise da responsabilização penal em licitações e contratos administrativos beneficia-se de um enquadramento teórico multidimensional que permita compreender as complexas interações entre os diferentes subsistemas jurídicos envolvidos. Este marco teórico pluralista possibilita uma análise crítica mais robusta das escolhas legislativas implementadas pela Lei nº 14.133/2021, especialmente quanto ao recrudescimento das sanções penais.
3.1 O Paradigma do Direito Penal Mínimo e sua Aplicabilidade às Licitações
A doutrina do Direito Penal Mínimo, adotada por significativa corrente doutrinária brasileira, estabelece critérios normativos fundamentais para justificar a intervenção penal em qualquer domínio social, incluindo as contratações públicas. O modelo garantista propõe que a criminalização de condutas só se legitima mediante estrita necessidade, sendo justificável apenas quando outros meios menos invasivos de controle social forem insuficientes para proteger os bens jurídicos relevantes.
No contexto específico das licitações, essa perspectiva teórica questiona diretamente a estratégia legislativa de recrudescimento generalizado das penas como meio primário para assegurar a probidade administrativa, defendendo que a intervenção penal deve ser subsidiária a outros mecanismos de controle.
3.2 Análise Econômica da Responsabilização Penal em Licitações
Segundo Tabak (2015), a perspectiva da Análise Econômica do Direito, desenvolvida por autores como Becker (1968 apud TABAK, 2015) e Posner (2014 apud TABAK, 2015), oferece ferramentas analíticas complementares para avaliar a eficiência das estratégias legislativas de responsabilização penal. Segundo esta abordagem, a eficácia dissuasória de uma norma penal não depende apenas da severidade da sanção, mas principalmente da probabilidade de detecção e punição efetiva.
Aplicando esta perspectiva ao contexto das licitações, é possível inferir que a mera escalada de penas sem correspondente aprimoramento dos mecanismos de detecção pode resultar em eficiência subótima do sistema, além de gerar custos secundários indesejados.
Entre esses custos secundários, destaca-se o que Pascoal (2024) denomina ‘apagão das canetas’ – fenômeno caracterizado pela paralisia decisória de gestores públicos temerosos da responsabilização excessiva. Como observa o autor, a vida do gestor de boa-fé não é simples, pois a legislação é complexa, algumas vezes contraditória e os órgãos de controle geralmente são mais bem estruturados que a própria gestão, especialmente em municípios menores. Além disso, tal cenário pode gerar distorções no mercado de contratações públicas, como a redução da competitividade e aumento de preços para compensar os riscos legais.
Rose-Ackerman e Palifka (2016, p. 257 apud Castro, 2018, p. 221) destacam que os incentivos são importantes, mas as normas internalizadas sobre honestidade, justiça e a disposição de servir aos outros também são fundamentais no combate à corrupção.
Segundo a análise apresentada por Castro (2018), baseada nos estudos desses autores, modelos que privilegiam exclusivamente medidas repressivas tendem a apresentar deficiências quando comparados a abordagens integradas. Alinhado a esta perspectiva, Rose-Ackerman e Palifka (2016 apud Castro, 2018, p. 201-205) defendem a importância de instrumentos preventivos complementares às sanções, como programas de integridade corporativa e mecanismos de proteção a denunciantes.
As evidências empíricas coletadas pelos autores em diferentes jurisdições sugerem que o equilíbrio entre medidas preventivas e repressivas produz resultados superiores na mitigação de riscos de corrupção em contratações públicas.
Esta perspectiva teórica econômica oferece importantes subsídios para questionar se o mero recrudescimento das penas promovido pela Lei nº 14.133/2021, sem correspondentes avanços nos mecanismos de detecção e sem adequada calibragem de incentivos, representa a estratégia mais eficiente para promover a integridade nas contratações públicas.
3.3 A Teoria da Interdependência Normativa em Sistemas Jurídicos Complexos
A Teoria Sistêmica do Direito (TsD), desenvolvida por Niklas Luhmann e aplicada ao contexto jurídico por Gunther Teubner, oferece importante arcabouço para compreender as interações entre os diferentes subsistemas jurídicos que regulam as licitações e contratos administrativos.
Conforme destaca Mello (2006), segundo esta perspectiva teórica, o direito pode ser analisado como um subsistema social que, a partir da operação de um código próprio, imprime um sentido e um conteúdo às comunicações dos agentes da ação, operando como um sistema autopoiético que mantém sua coerência interna através de operações recursivas. Luhmann enfatiza que o sistema legal é um sistema normativamente fechado, mas cognitivamente aberto, o que permite compreender como o direito, embora mantenha sua autonomia operacional, interage com outros subsistemas sociais, como o econômico e o político.
No contexto específico da responsabilização em licitações, esta teoria permite identificar potenciais inconsistências entre os diferentes subsistemas normativos: o direito penal, o direito administrativo sancionador, o regime de improbidade administrativa e o sistema de controle exercido pelos Tribunais de Contas. A migração dos tipos penais para o Código Penal, com significativo aumento das penas mínimas, pode gerar desequilíbrios sistêmicos caso não haja adequada harmonização com os demais regimes de responsabilização.
Ost e Van de Kerchove (2002, apud Lopes, 2013, p. 4-5) desenvolvem esta perspectiva ao propor a substituição do modelo piramidal tradicional do direito pelo paradigma da rede, em que múltiplos pólos de produção normativa interagem de forma complexa. Esta abordagem ‘em rede’ é particularmente relevante para compreender como as diferentes instâncias de controle e responsabilização (Tribunais de Contas, Ministério Público, Poder Judiciário, órgãos de controle interno) devem coordenar suas atuações para evitar tanto lacunas quanto sobreposições excessivas.
3.4 O Princípio da Proporcionalidade como Vetor Axiológico da Responsabilização
Segundo Alexy (2003 apud Pulido, 2014, p. 247), o princípio da proporcionalidade, estabelece critérios normativos para avaliação da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito das intervenções estatais restritivas de direitos, incluindo as sanções penais. Este princípio, com status constitucional no ordenamento brasileiro, impõe limites tanto ao legislador, na tipificação de condutas e cominação de penas, quanto ao aplicador da lei, na interpretação dos tipos penais e dosimetria das sanções.
A doutrina constitucional contemporânea, influenciada por estes teóricos, identifica um ‘mandato de proporcionalidade sistêmica’, que exige coerência valorativa entre as diferentes esferas sancionadoras do Estado. Sob esta perspectiva teórica, o desalinhamento entre os regimes penal, administrativo e de improbidade aplicáveis às licitações sugere uma possível violação da proporcionalidade como princípio estruturante do Estado Democrático de Direito.
3.5 Integração dos Referenciais Teóricos: Uma Proposta de Modelo Analítico
A integração dos referenciais teóricos apresentados permite construir um modelo analítico multidimensional para avaliar criticamente a responsabilização penal em licitações após a Lei nº 14.133/2021. Este modelo considera simultaneamente:
1. A conformidade da intervenção penal com os princípios do Direito Penal Mínimo (subsidiariedade, fragmentariedade e lesividade);
2. A eficiência econômica do sistema sancionatório, considerando incentivos, custos de implementação e potenciais efeitos colaterais;
3. A coerência entre os diferentes subsistemas normativos que regulam as licitações públicas;
Este quadro teórico integrado permite uma análise mais sofisticada e multifacetada das mudanças promovidas pela Lei nº 14.133/2021, superando abordagens meramente dogmáticas ou formalistas. A partir dele, é possível identificar não apenas inconsistências normativas, mas também propor critérios hermenêuticos que promovam uma aplicação mais coerente, proporcional e eficiente das normas penais em licitações, sem comprometer a necessária proteção dos bens jurídicos relevantes.
4. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA E ERRO GROSSEIRO
A responsabilização dos agentes públicos passou por mudanças importantes com a Lei nº 13.655/2018, que alterou a LINDB. O art. 28 passou a prever que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. Essa alteração visou afastar a responsabilização por erros escusáveis, focando nas condutas intencionais ou gravemente culposas.
Como alerta Bitencourt (2021, p. 55) ao comentar a legislação anterior, mas com raciocínio aplicável à necessidade de cautela administrativa, existe o risco de agentes públicos serem responsabilizados por licitarem quando deveriam fazê-lo, ou simplesmente por deixarem de observar as formalidades necessárias para não licitar. A LINDB busca justamente oferecer um critério (dolo ou erro grosseiro) para essa diferenciação na esfera de responsabilização pessoal não penal.
O erro grosseiro, definido pelo Decreto nº 9.830/2019 (art. 12, §1º) como ‘aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave’, exige uma análise contextualizada, considerando as dificuldades reais do gestor (art. 22 da LINDB). A responsabilização não pode ser objetiva, devendo considerar as circunstâncias.
Em linha com a jurisprudência consolidada pelo Tribunal de Contas da União, o erro grosseiro tem sido consistentemente caracterizado como o que decorreu de uma grave inobservância de um dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave, conforme estabelecido nos precedentes dos Acórdãos 2.391/2018, 2.860/2018 e 2.924/2018 do Plenário.
Reafirmando e aprofundando esse entendimento, o recente Acórdão 591/2025-TCU-Plenário, de relatoria do Min. Aroldo Cedraz, acrescentou importante detalhamento ao conceito, definindo que o erro grosseiro seria aquele que poderia ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal, ou seja, que seria evitado por pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, consideradas as circunstâncias do caso concreto (item 8 do voto).
Desta forma, a Corte de Contas mantém e refina os parâmetros objetivos para identificação da culpa grave no âmbito da responsabilização de agentes públicos.
5. CRIMES EM LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS (AGORA NO CÓDIGO PENAL)
Estabelecido o panorama teórico e normativo que fundamenta a análise crítica das alterações promovidas pela Lei nº 14.133/2021, convém agora examinar suas implicações práticas na responsabilização dos agentes públicos.
A aplicação concreta do modelo analítico multidimensional desenvolvido na seção 3.5 permite compreender como os referenciais do Direito Penal Mínimo, da Análise Econômica do Direito e da Teoria da Interdependência Normativa manifestam-se em situações reais enfrentadas por gestores públicos e julgadores.
Nos tópicos seguintes, serão analisadas as principais inconsistências entre as esferas sancionadoras, estudos de casos reais que ilustram os dilemas práticos da nova legislação, bem como propostas de harmonização interpretativa que possam contribuir para um sistema mais coerente, eficiente e proporcional de responsabilização.
5.1 Tipificação penal e alterações promovidas pela Lei nº 14.133/2021
A Lei nº 14.133/2021 (art. 178) revogou os crimes da Lei nº 8.666/1993 e os inseriu no Código Penal (arts. 337-E a 337-P). Essa mudança topológica centraliza a matéria criminal e acompanha um recrudescimento geral das penas, com aumento dos limites e substituição de detenção por reclusão na maioria dos tipos, o que acarreta consequências processuais mais gravosas.
Pascoal (2024) observa que o agravamento punitivo em crimes licitatórios ‘reflete uma avaliação legislativa da gravidade das infrações praticadas’, embora pondere que a premissa de que penas mais severas necessariamente reduzem a criminalidade nem sempre se confirma empiricamente.
O autor critica a desproporcionalidade ao comparar as penas mínimas de 4 anos para diversos crimes licitatórios (impedindo a aplicação do Acordo de Não Persecução Penal) com a pena mínima de 2 anos para corrupção passiva, caracterizando este desequilíbrio como um dos fatores que contribuem para o chamado ‘apagão das canetas’.
É fundamental reiterar que os crimes são dolosos, não havendo punição na modalidade culposa (Bitencourt, 2021).
A jurisprudência mais recente do Superior Tribunal de Justiça tem edificado importantes balizas interpretativas sobre os crimes licitatórios após a Lei nº 14.133/2021. No AgRg no HC 669.347/SP (5ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 08.02.2022, DJe 14.02.2022), a Corte estabeleceu a continuidade normativo-típica entre os crimes da Lei 8.666/93 e os novos tipos penais inseridos no Código Penal, afirmando textualmente que não houve abolitio criminis da conduta tipificada no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, que permanece integralmente criminalizada pelo art. 337-E do Código Penal.
O princípio da insignificância deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do direito penal, representando importante limitador da atuação estatal na seara criminal.
Essa posição foi reiterada em julgados recentes, com ênfase na impossibilidade de retroatividade benéfica, uma vez que as penas mínimas e o regime de cumprimento foram significativamente agravados. Em decisão de 2024, o STJ reafirmou que não houve abolitio criminis de nenhuma das condutas anteriormente tipificadas na Lei n. 8.666/1993, apenas a sua realocação topográfica para o Código Penal (STJ, AgRg nos EDcl no REsp 2103506/RN, Rel. Min. Daniela Teixeira, Sexta Turma, julgado em 23/10/2024, DJe 29/10/2024).
6. CASOS ILUSTRATIVOS E COMPARAÇÃO DOS REGIMES SANCIONATÓRIOS
Para melhor compreender os impactos concretos das mudanças legislativas introduzidas pela Lei nº 14.133/2021, recorre-se à análise de dois casos reais julgados sob a vigência da Lei nº 8.666/93. Os casos foram selecionados por representarem situações práticas em que houve a tipificação das infrações penais mais recorrentes no âmbito das licitações públicas: a dispensa ilegal e a fraude ao caráter competitivo.
Embora tais exemplos não possam ser considerados paradigmáticos ou emblemáticos no contexto nacional, servem adequadamente à finalidade didática de ilustrar como as alterações legislativas afetariam a resposta penal na nova sistemática.
Notadamente, não foram localizadas situações já julgadas sob a nova lei vigente que pudessem ser objeto de comparação, razão pela qual optou-se por demonstrar, a partir dos casos reais julgados à luz da legislação anterior, de que modo a responsabilização ocorreria conforme o novo regime penal.
A presente seção adota uma análise por amostragem representativa, focada em dois tipos penais específicos, visando ilustrar com maior profundidade as implicações práticas das alterações legislativas sem comprometer a concisão necessária a um artigo científico. Esta escolha metodológica permite um exame mais detalhado dos elementos dogmáticos e das consequências concretas da transição normativa, ao invés de uma abordagem mais superficial de todos os tipos penais.
6.1 Caso 1: Dispensa indevida de licitação[4]
Situação recorrente na Administração Municipal: o prefeito do município de Guaxupé/MG autorizou contratação direta por dispensa de licitação para fornecimento de medicamentos, alegando situação emergencial. O Ministério Público, ao investigar o caso, comprovou que a emergência havia sido ‘fabricada’ pelo próprio gestor, que não adotou as providências necessárias para realizar o procedimento licitatório em tempo hábil, mesmo tendo pleno conhecimento prévio da necessidade de contratação.
A denúncia foi recebida com fundamento no art. 89 da Lei nº 8.666/93, resultando na condenação do agente público, posteriormente confirmada pelo Tribunal de Justiça.
Caso esta mesma situação fosse analisada sob o novo regime introduzido pela Lei nº 14.133/2021, a conduta seria tipificada no art. 337-E do Código Penal, cuja pena mínima foi elevada de 3 para 4 anos, havendo ainda mudança de detenção para reclusão. Isso afastaria a possibilidade de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) e limitaria severamente a aplicação de penas substitutivas.
6.2 Caso 2: Fraude ao caráter competitivo[5]
Em certame promovido pela Prefeitura Municipal de Ipiranga/PR para aquisição de equipamentos odontológicos, restou demonstrado que o edital possuía especificações técnicas excessivamente restritivas, direcionadas para beneficiar determinada empresa, resultando em reduzido número de participantes. O Tribunal de Justiça do Paraná concluiu pela existência de dolo específico na frustração do caráter competitivo, confirmando a condenação dos envolvidos nos termos do art. 90 da Lei nº 8.666/93, pois o direcionamento da licitação resultou em ‘quebra da impessoalidade e da concorrência’.
Se tal conduta fosse analisada sob a ótica da Lei nº 14.133/2021, haveria o enquadramento no art. 337-F do Código Penal, com consequências significativamente mais gravosas. A pena mínima foi elevada de 2 para 4 anos, havendo ainda mudança de detenção para reclusão. Além disso, o prazo prescricional seria ampliado de 8 para 12 anos, impossibilitando a aplicação do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) e tornando improvável a substituição por penas restritivas de direitos.
O agravamento punitivo é particularmente relevante neste caso porque, embora o direcionamento represente violação aos princípios da administração pública, a jurisprudência anterior exigia a comprovação do dolo específico de fraudar o caráter competitivo para fins de obtenção de vantagem. Com o novo regime, o mesmo comportamento será submetido a sanções desproporcionalmente mais severas, mesmo quando não houver evidência de dano efetivo ao erário ou enriquecimento ilícito dos agentes envolvidos.
6.3 Quadros comparativos dos regimes sancionatórios[6]
Para sistematizar as diferenças entre os regimes e permitir a visualização dos impactos práticos nos casos analisados, apresentam-se os seguintes quadros comparativos:
Quadro 1 Dispensa indevida de licitação
Aspecto | Lei nº 8.666/93 (art. 89) | Código Penal (art. 337-E) |
Pena | Detenção, de 3 a 5 anos | Reclusão, de 4 a 8 anos |
Prescrição | 12 anos | 12 anos |
Ação Penal | Pública incondicionada | Pública incondicionada |
ANPP possível? | Sim | Não |
Elemento subjetivo exigido | Dolo | Dolo |
Substituição por penasrestritivas | Possível, se pena ≤ 4 anos | Improvável |
Regime inicial, pena mínima | Aberto (pena < 4 anos) | Semiaberto |
Fonte autores 2024
Quadro 2 Fraude ao caráter competitivo
Aspecto | Lei nº 8.666/93 (art. 90) | Código Penal (art. 337-F) |
Pena | Detenção, de 2 a 4 anos | Reclusão, de 4 a 8 anos |
Prescrição | 8 anos | 12 anos |
Ação Penal | Pública incondicionada | Pública incondicionada |
ANPP possível? | Sim | Não |
Elemento subjetivo exigido | Dolo | Dolo |
Substituição por penasrestritivas | Possível, se pena ≤ 4 anos | Improvável |
Regime inicial, pena mínima | Aberto (pena < 4 anos) | Semiaberto |
Fonte autores 2024
Como evidenciado nos quadros e nos casos analisados, observa-se um significativo recrudescimento penal com impactos diretos na aplicação prática da lei. A elevação das penas mínimas para 4 anos em ambos os tipos impede não apenas a aplicação do ANPP como também restringe substancialmente o acesso a outros institutos despenalizadores.
Nos casos concretos analisados, enquanto na lei anterior seria possível a aplicação de penas alternativas ou regimes mais brandos, no novo regime os agentes estariam sujeitos a penas iniciais em regime semiaberto, com impactos significativos nos direitos fundamentais dos acusados e questionável ganho em termos de proteção ao erário.
Este recrudescimento generalizado das penas mínimas, que se observa também nos demais tipos penais relacionados a licitações e contratos administrativos, suscita importantes questionamentos quanto à proporcionalidade das sanções e à coerência interna do sistema jurídico-penal brasileiro, especialmente quando comparado a outros crimes contra a Administração Pública de similar gravidade, como a corrupção passiva (art. 317 do CP), que mantém pena mínima de 2 anos.
A análise destes casos reais ilustra como as escolhas legislativas da Lei nº 14.133/2021 privilegiaram uma abordagem punitivista em detrimento de mecanismos alternativos de resolução de conflitos penais, o que pode contribuir para o fenômeno conhecido como ‘apagão das canetas’, em que gestores públicos probos evitam tomar decisões por receio de responsabilização excessiva, especialmente em situações que demandam celeridade ou interpretação de conceitos jurídicos indeterminados.
6.4 Considerações sobre os casos analisados
A análise comparativa dos casos selecionados revela uma nítida disparidade entre a evolução garantista da responsabilidade administrativa (após as alterações da LINDB) e o recrudescimento da responsabilidade penal. Esta contradição sistemática afeta diretamente a segurança jurídica dos gestores públicos.
A ausência de critérios claros para diferenciar o erro grosseiro administrativo da conduta criminosa gera um cenário de incerteza que pode contribuir para o fenômeno do ‘apagão das canetas’ na administração pública, com impactos negativos na eficiência administrativa e na própria efetividade da política de contratações públicas.
Os quadros comparativos evidenciam não apenas o aumento quantitativo das penas, mas também alterações qualitativas significativas no regime de responsabilização, como a impossibilidade de aplicação de institutos despenalizadores e a mudança do regime inicial de cumprimento da pena.
Esta constatação reforça a necessidade de uma interpretação sistemática e teleológica dos novos tipos penais, que preserve as conquistas jurisprudenciais anteriores quanto à exigência de dolo específico e dano efetivo, harmonizando o sistema punitivo e garantindo sua proporcionalidade.
6.5. O dolo na responsabilização penal em licitações
A exigência do elemento subjetivo dolo é central para a configuração dos crimes licitatórios sob a nova sistemática penal. Bitencourt (2021, p. 20) reitera que os crimes licitatórios não admitem modalidade culposa (princípio da excepcionalidade do crime culposo). Isso significa que a acusação tem o ônus de provar que o agente público agiu com a intenção livre e consciente de praticar a conduta descrita no tipo penal.
Carvalho (2021) estabelece uma distinção crucial entre ‘contratação direta indevida’ (infração administrativa prevista no art. 72, VIII, c/c art. 155 e seguintes da Lei nº 14.133/2021) e ‘contratação direta ilegal’ (crime do art. 337-E do Código Penal). Enquanto a infração administrativa pode ocorrer por ‘dolo, fraude ou erro grosseiro’ , o crime exige dolo. A mera contratação direta considerada irregular administrativamente, especialmente se baseada em erro grosseiro (culpa grave), não configura automaticamente o crime, que demanda a intenção de contratar fora das hipóteses previstas em lei. Carvalho (2021)
Essa diferenciação dialoga com o art. 28 da LINDB. Embora a LINDB discipline a responsabilidade pessoal (administrativa e civil) do agente, a exigência de dolo ou erro grosseiro nessa esfera serve como um parâmetro interpretativo relevante também para a esfera penal, ajudando a delimitar as condutas que ultrapassam a mera irregularidade administrativa.
O STJ tem mantido consistência quanto à exigência do elemento subjetivo para configuração dos tipos penais licitatórios. Nos casos envolvendo os arts. 337-E e 337-F do CP (correspondentes aos anteriores arts. 89 e 90 da Lei 8.666/93), a Corte reitera que é imprescindível a demonstração do dolo específico. No AgRg no AREsp 2.319.106/RS (5ª Turma, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 27.02.2024), o STJ destacou que o delito somente se configura se houver demonstração inequívoca do dolo específico, sendo necessária a comprovação da existência de favorecimento ilegal a terceiro e a intenção específica de lesar os cofres públicos.
A mesma orientação foi seguida no AgRg no AREsp 2103058/PR (6ª Turma, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 27.06.2023), quando o tribunal reafirmou que para a configuração do crime previsto no art. 90 da Lei n. 8.666/1993, exige-se a comprovação do dolo específico, que consiste na finalidade específica de obter vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação. Este entendimento jurisprudencial evidencia uma importante salvaguarda contra a criminalização excessiva de condutas administrativas irregulares.
6.6 A desproporcionalidade entre as esferas administrativa e penal no sistema sancionador licitatório
Diante do panorama legislativo atual, constata-se uma evidente desproporção interna no sistema sancionador brasileiro aplicável às contratações públicas. De um lado, a esfera administrativa, com a Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021, art. 156, §1º) e a Lei de Improbidade Administrativa (após as alterações da Lei 14.230/2021), evoluíram para estabelecer critérios mais objetivos de dosimetria das sanções e passaram a exigir a comprovação do dolo específico, e, em diversas hipóteses, o dano efetivo ao erário. De outro lado, observa-se que a esfera penal seguiu caminho inverso, com significativo recrudescimento das penas mínimas para os crimes licitatórios após sua incorporação ao Código Penal.
Esta desproporcionalidade entre esferas se insere em uma problemática mais ampla do direito sancionador brasileiro: a ausência de uma política sancionadora integrada e coerente. Segundo Leite (2021 apud Scalcon; Campana, 2021, p. 388), o fenômeno da fragmentação punitiva das diversas estatais resulta frequentemente em superposição irracional de sanções, gerando verdadeira dupla ou até múltipla punição pelo mesmo fato, sem qualquer tipo de coordenação.
A fragmentação normativa e a falta de coordenação entre as diferentes esferas punitivas não apenas comprometem a segurança jurídica, mas também fragilizam princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, como a proporcionalidade e a vedação ao bis in idem. Como destaca Daguer (2023, p. 118), a multiplicidade de instâncias punitivas estatais, sem uma coordenação adequada entre elas, cria um ambiente propício à incidência de sanções múltiplas pela mesma infração, sem que haja sopesamento da resposta conjunta do Estado.
Esta incongruência sistêmica produz efeitos práticos preocupantes. Em primeiro lugar, cria-se uma inversão paradoxal onde condutas podem ser consideradas menos graves na esfera administrativa e de improbidade, mas são severamente punidas no âmbito penal, mesmo sem a demonstração de especial fim de agir ou efetivo prejuízo. Conforme sustenta Leite (2021, p. 47), um dos maiores problemas que o sistema administrativo sancionador enfrenta é a ausência de diálogo entre os diversos microssistemas de apuração de responsabilidades.
Em segundo lugar, a elevação das penas mínimas nos tipos penais licitatórios dificulta a aplicação de institutos despenalizadores como a transação penal e o acordo de não persecução penal, mesmo em casos em que o próprio Tribunal de Contas reconheceu apenas erro grosseiro sem intenção de lesar o erário. Esta disparidade praticamente inviabiliza a aplicação de importantes ferramentas de justiça negocial, mesmo em situações em que não há comprovação de prejuízo aos cofres públicos.
Por fim, estabelece-se uma situação de insegurança jurídica em que o gestor público pode ser absolvido nas esferas administrativa e de improbidade, mas ainda assim enfrentar severas consequências penais pela mesma conduta. Esta realidade contradiz o princípio da interdependência das instâncias punitivas, que pressupõe, segundo Binenbojm (2020, p. 91), uma racionalidade integrada na aplicação das diversas sanções, de modo a evitar que o somatório das respostas estatais se torne desproporcional ao ilícito praticado.
A evolução jurisprudencial do STJ parecia caminhar para uma maior harmonização entre as esferas ao exigir dolo específico e dano efetivo para a configuração do crime do art. 89 da Lei 8.666/93. Contudo, a reforma legislativa que incorporou os crimes licitatórios ao Código Penal não incorporou expressamente esses avanços, gerando um retrocesso na integração sistêmica.
Diante deste cenário, propõe-se uma interpretação sistêmica e constitucionalmente orientada dos novos tipos penais licitatórios, de modo que a jurisprudência consolidada para o art. 89 da Lei 8.666/93 seja transposta aos arts. 337-E e 337-F do Código Penal.
Adicionalmente, defende-se uma maior deferência às análises técnicas dos Tribunais de Contas sobre o elemento subjetivo, especialmente quando concluem pela ausência de dolo ou pela presença de mero erro grosseiro. Dessa forma, busca-se promover maior coerência entre as diferentes esferas de responsabilização.
Somente assim será possível preservar a racionalidade do sistema sancionador e evitar que o direito penal, em vez de ultima ratio, transforme-se na prima ratio no contexto das contratações públicas. Como bem observa Greco (2017, p. 139 apud Daguer, 2023, p. 97), um sistema punitivo desproporcional e desarticulado não apenas compromete a segurança jurídica, mas também a própria legitimidade do poder sancionador do Estado.
Esta necessária reconfiguração interpretativa dos tipos penais licitatórios, à luz da evolução administrativa e da improbidade, afigura-se como uma exigência do próprio princípio da proporcionalidade, permitindo que as diferentes esferas sancionadoras operem de modo harmonioso e sistemicamente coerente.
6.7 A Interface Técnico-Jurídica: O Valor Probatório dos Pareceres e Decisões de Controle na Esfera Penal
A ‘acessoriedade administrativa’ dos tipos penais licitatórios (Scalcon; Campana, 2021, p. 3), que remetem a conceitos e normas do Direito Administrativo, torna crucial a análise do contexto administrativo na esfera penal. Decisões de Tribunais de Contas e pareceres jurídicos e técnicos, embora não vinculem o juízo penal, possuem forte peso argumentativo. Os autores destacam que essa característica é aplicável tanto a licitantes quanto a agentes públicos (sobretudo em processos administrativos ou ações de improbidade). Muitas condutas sancionadas administrativamente também podem configurar ilícitos penais, gerando potencial sobreposição de esferas sancionatórias.
Embora a independência das instâncias seja a regra, a aplicação cumulativa de sanções severas (administrativas e penais) pelo mesmo fato levanta questões sobre o princípio do ne bis in idem material e a proporcionalidade global da resposta estatal.
Bitencourt (2021, p. 20-21) afirma ser atípica a conduta do servidor que decide pela contratação direta respaldado em fundado parecer jurídico. Cita o STJ (HC 404.436/SP): não é razoável que se reconheça ou presuma vício justamente na conduta de ter agido segundo aquelas manifestações [técnicas], salvo se comprovada má-fé ou vício no próprio parecer. Isso reforça a importância da análise do dolo e das circunstâncias concretas.
Esse diálogo entre as esferas jurídica e de controle pode ser observado no Acórdão 591/2025-TCU-Plenário, onde o TCU, após caracterizar a conduta do responsável como erro grosseiro, determinou o encaminhamento do caso ao Ministério Público Federal para avaliação de eventuais medidas civis e penais cabíveis. Tal procedimento evidencia como a definição administrativa do erro grosseiro pode influenciar análises futuras sobre a presença de dolo ou culpa em outras esferas, embora sem vinculação obrigatória.
Da análise dos julgados citados ao longo deste trabalho, é possível concluir que, embora haja independência entre as instâncias, as avaliações técnicas realizadas pelos Tribunais de Contas sobre a configuração de erro grosseiro têm sido progressivamente valorizadas como elementos importantes para a análise do elemento subjetivo na esfera penal.
Os precedentes jurisprudenciais recentes do Superior Tribunal de Justiça demonstram uma tendência de reconhecer que, embora não sejam vinculantes, as conclusões das Cortes de Contas sobre a ausência de dolo ou sobre a caracterização de mero erro grosseiro constituem elementos técnicos relevantes para a avaliação da tipicidade subjetiva dos crimes licitatórios, especialmente aqueles previstos nos arts. 337-E e 337-F do Código Penal.
Esse movimento jurisprudencial reforça a importância da análise técnico administrativa especializada para a adequada delimitação entre simples irregularidades administrativas e efetivos ilícitos penais, contribuindo para uma aplicação mais racional e sistematicamente coerente do direito sancionador.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa buscou analisar criticamente o regime de responsabilização penal dos agentes públicos em licitações e contratos administrativos, sob a égide da Lei nº 14.133/2021, mediante abordagem multidimensional que considerou aspectos dogmáticos e comparativos.
A análise do marco teórico, alicerçada nas contribuições do Direito Penal Mínimo, da Análise Econômica do Direito, da Teoria dos Sistemas e do princípio da proporcionalidade, evidenciou que o recrudescimento generalizado das penas implementado pela nova legislação suscita questionamentos quanto à sua conformidade com os princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade, especialmente quando considerada a existência de mecanismos paralelos de responsabilização administrativa e civil.
A investigação da inter-relação entre as diferentes esferas de responsabilização (penal, administrativa e por improbidade) identificou potenciais inconsistências sistêmicas, como a divergência nos critérios de configuração do elemento subjetivo (dolo) e na abordagem da proporcionalidade entre as sanções.
A análise de casos práticos revelou que a ausência de orientações objetivas para diferenciar erro grosseiro administrativo e conduta criminosa resulta em insegurança jurídica para os gestores públicos. Foi possível constatar, por meio dos exemplos concretos estudados, que condutas semelhantes podem receber tratamentos sancionatórios drasticamente diferentes, a depender da interpretação do elemento subjetivo adotada, prejudicando a previsibilidade e a coerência do sistema jurídico como um todo.
O estudo evidenciou que o reconhecimento do valor probatório dos pareceres técnicos e das decisões dos Tribunais de Contas na esfera penal pode contribuir significativamente para uma aplicação mais harmônica e proporcional do sistema sancionador. Esta deferência às análises especializadas promove maior integração entre as instâncias punitivas e reduz o fenômeno do ‘apagão das canetas’, sem comprometer a independência das instâncias e a devida responsabilização de condutas efetivamente dolosas.
Conclui-se que, não obstante o avanço representado pela modernização e sistematização do regime jurídico das licitações e contratos administrativos, a estratégia legislativa de migração dos tipos penais para o Código Penal com significativo aumento das penas mínimas pode produzir efeitos indesejados, como a limitação de institutos despenalizadores (ANPP) e a potencial exacerbação do fenômeno conhecido como ‘apagão das canetas’, em que gestores públicos probos hesitam em tomar decisões por receio de responsabilização excessiva.
Recomenda-se, como diretrizes para aprimoramento do sistema: (i) a adoção de uma interpretação teleológica e sistemática dos tipos penais, que valorize adequadamente a exigência de dolo e diferencie claramente as condutas penalmente relevantes das meras irregularidades administrativas; (ii) o fortalecimento dos mecanismos preventivos e de controle prévio, seguindo tendências internacionais bem-sucedidas; (iii) a especialização dos órgãos de controle e persecução criminal; e (iv) o desenvolvimento de critérios hermenêuticos que promovam maior harmonização entre as diferentes esferas de responsabilização.
A análise da jurisprudência recente do STJ sobre os arts. 337-E e 337-F do CP revela um paradoxo na política criminal em matéria de licitações após a Lei 14.133/2021: enquanto a Corte mantém exigências rigorosas quanto à caracterização do elemento subjetivo (dolo específico) e à distinção entre erro grosseiro administrativo e conduta criminosa, o legislador optou por substancial agravamento das sanções penais. Este cenário confirma a necessidade de uma interpretação sistêmica que transpõe a jurisprudência consolidada para o art. 89 da Lei 8.666/93 aos novos tipos penais, preservando as garantias fundamentais e a racionalidade do sistema sancionador.
Este estudo não pretende esgotar a complexa temática da responsabilização penal em licitações e contratos administrativos, mas oferecer contribuições teóricas e práticas para o aprimoramento da interpretação e aplicação do novo marco normativo, visando o equilíbrio entre a necessária repressão a condutas lesivas ao interesse público e a garantia de segurança jurídica para os gestores que atuam com probidade e boa-fé.
REFERÊNCIAS
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[3] Common law é o sistema jurídico de origem inglesa, fundamentado nos costumes e precedentes judiciais.
[4] TJMG, Apelação Criminal 0052304-97.2013.8.13.0287, 2018.
[5] TJPR, Apelação 0003612-71.2017.8.16.0181, 2021
[6] TRF4, Apelação Criminal nº 5015319-98.2017.4.04.7200/SC, Rel. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus, j. 14/08/2019.
1 Acadêmico de Direito. E-mail: nketes@gmail.com. Artigo apresentado à Faculdade UniSapiens, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO.
2 Professor Orientador. Professor Doutor Moisés de Almeida Góes do curso de Direito. E-mail: moises.goes@guposapiens.com.br