BUSINESS SOCIAL RESPONSIBILITY: DILEMMA BETWEEN THE LIBERAL MARKET AND THE SOCIAL STATE
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7810634
Almir Gallassi
João Lucas Silva Terra
Leonardo Cosme Formaio
Resumo: O mercado econômico prezou ao longo da sua história pela menor intervenção estatal, postulando que os negócios empresariais fossem regrados pela liberdade negocial de seus envolvidos, para assim alcançar a finalidade pretendida, a maximização do lucro, dinâmica esta observada durante as duas primeiras revoluções industriais, ocorridas no continente europeu nos séculos XIX e XX. Esse cenário era demarcado pela menor intervenção estatal nas relações empresariais, atrelada à intensificação do processo de globalização criou empresas com atuação para além das fronteiras dos Estados Nacionais com valor de mercado superiores ao Produto Interno Bruto de diversos países, capazes de influenciar na cultura e na economia das sociedades onde operam. Nesta perspectiva, os Estados Nacionais perderam a sua força socialmente pacificadora. Nessa toada, organizações supranacionais como a ONU e blocos econômicos foram criadas, porém, por carecer de força coercitiva e demandarem adesão dos países, o controle econômico e social apresenta-se limitado. Diante deste contexto Jürgen Habermas, com a intenção de harmonização dos postulados privados (lucro) e os públicos (Estado Social), propõe a retomada da razão prática (ética, política e direito), de modo que a atuação privada (mercado) deverá considerar as expectativas das partes interessadas, surgindo, assim, o conceito de Responsabilidade Social Empresarial, o que pode ressignificar a atuação empresarial no contexto global. Adotou-se na pesquisa a metodologia referencial bibliográfica, utilizando-se de livros, artigos que versam a respeito do tema estudado.
Palavras-chave: Mercado Liberal. Estado Social. Responsabilidade Social Empresarial
Abstract: The economic market has valued throughout its history for less state intervention, postulating that corporate business should be governed by the negotiation freedom of its stakeholders, in order to achieve the intended purpose, the maximization of profit. This lesser state intervention, linked to the intensification of the globalization process, created companies that operate beyond the borders of National States with a market value higher than the Gross Domestic Product of several countries, capable of influencing the culture and economy of the societies where they operate. In this perspective, National States have lost their socially pacifying strength. In this light, supranational organizations such as the UN and economic blocs were created, however, because they lack coercive force and demand adherence from countries, economic and social control is limited. In this context, Jürgen Habermas proposes, with the intention of harmonizing private (profit) and public (Social State) postulates, proposes the resumption of practical reason (ethics, politics and law), so that private performance (market) should consider the expectations of the interested parties, thus giving rise to the concept of Corporate Social Responsibility, giving new meaning to business performance in the global context. The bibliographic referential methodology was adopted in the research, using books, articles that deal with the studied theme.
Keywords: Liberal Market. Welfare State. Corporate Social Responsibility
1. INTRODUÇÃO
A intensificação do processo de globalização, consistente na ampliação mundial do comércio e da produção, de mercados financeiros e de bens, de modas, mídias, programas, notícias e redes de comunicação, de fluxos de tráfego, movimentos migratórios, riscos de tecnologia de grande porte, de danos ao meio ambiente, trouxe uma nova dinâmica às relações humanas, agora realizáveis em uma plataforma mundial e interligada.
No âmbito do comércio, a globalização criou grandes conglomerados empresariais, atuantes para além das fronteiras dos Estados Nacionais, com valor de mercado, em muitas vezes, superiores ao Produto Interno Bruto de diversos países desenvolvidos, de modo que a sua atuação transpõem o campo econômico, influenciando também na cultura e na política dos países.
A globalização também alterou a forma de atuação dos Estados, os quais encontram-se limitados em razão das teorias neoliberais preconizadas pelo mercado global, de modo a intervir minimante nas regras econômicas. O Estado estruturou-se para atender as demandas do mercado, desconstruindo os direitos sociais de seu povo, outrora alcançados no Welfarestate.
Nessa toada, os Estados Nacionais não se apresentam mais capaz na pacificação social, não resolvendo os problemas agora existentes em escala global, sendo necessário a criação de organizações supranacionais como a ONU ou a reunião de países em blocos econômicos, como a União Europeia, destinados, respectivamente, na tentativa de regulamentação através de normas jurídicas internacionais, sem grande força coerciva ou na proteção de seus mercados, que, porém, parecem deficitárias, por si só, na regulamentação eficiente desta nova realidade global.
A fim de obter um diagnóstico e consequentemente um prognóstico acerca desta problemática, Jürgen Habermas propõem uma análise crítica dos acontecimentos que mercaram os séculos XIX e XX nos países europeus, dentre eles o crescimento populacional, a expansão do comércio e da comunicação, desenvolvimento tecnológico, a superação do Estado de bem estar social, tal como será abordado no primeiro e no segundo capítulo deste artigo.
Em seguida, será apresentado o prognóstico proposto pelo pensador alemão com a constituição de unidades políticas e econômicas, numa tentativa de proceder a retomada do poder político do Estados, esvaziado pelo capitalismo mundial, avesso à intervenção estatal, uma vez que a regulação estatal não se mostrou capaz em conciliar desenvolvimento econômico e direitos sociais, minorando a sua capacidade de defender os valores éticos nas relações sociais.
Por fim, no último capítulo, considerando a criação de um mundo nos quais os ganhos e as perdas são compartilhados por todo o globo, vivenciada pela sucessão das crises do capitalismo democrático, demonstra-se que a atividade econômica busque uma nova maneira de interação com a sociedade, não mais baseada exclusivamente na razão instrumental e no seu fim último, o lucro, de modo a ser demandado a realização das suas ações na plataforma da razão prática, consistente na internalização de preceitos éticos, de modo a agir de acordo com as expectativas das partes interessadas, surgindo, assim, o conceito de Responsabilidade Social Empresarial, ressignificando a atuação empresarial, de modo que o lucro por ela almejado (dimensão econômica) coexista com o respeito à normas jurídicas e sobretudo éticas, de modo a estabilizar as relações sociais e os efeitos causados pelo capitalismo.
2. A FORMULAÇÃO DE UMA TEORIA CRÍTICA
2.1. Contexto Histórico – Aporte para a Formulação da Teoria do Direito Pós-Nacional
Mudanças de paradigmas sociais não acontecem repentinamente. O mesmo se verifica com o surgimento das teorias1 ou teses de grande repercussão nas diversas áreas de conhecimento.
Tais alterações ou criações teóricas, em regra, precedem de uma conjuntura de acontecimentos, que demonstram que a tradição, o modus operandi, as crenças políticas, filosóficas, jurídicas e mercadológicas pertencentes à determinado grupo social, não se adequam mais à atual realidade, não oferecendo respostas satisfatórias aos problemas sociais apresentados.
Nesse sentido, oportuno os ensinamentos do professor Sérgio Costa:
Não obstante, na modernidade, a tradição perde o lugar privilegiado que dispunha nas sociedades pré-modernas, como mecanismo de coordenação das práticas sociais. Menos que pela tradição, as ações sociais são permanentemente renovadas e reavaliadas mediante a apropriação dos conhecimentos que vão sendo produzidos sobre as próprias ações e os sistemas sociais nos quais elas têm lugar. Isso não significa que a tradição desapareça; ela passa, contudo, a subordinar-se ao crivo da avaliação reflexiva. (COSTA, 2006, p. 15).
Para o supracitado professor, diante da nova dinâmica social, a tradição tem diminuída a sua importância como base para as regras de coordenação social, de modo que o conhecimento que baliza a modernidade é renovado de maneira permanente, de acordo com o contexto social.
Para Theodor W. Adorno, pensador antecedente a Habermas, a análise estrutural, apoiada em bases históricas (constelação) permite a compreensão estrutural do objeto em análise:
Perceber a constelação na qual a coisa se encontra significa o mesmo que decifrar aquilo que ele porta em si enquanto algo que veio a ser. Por sua vez, o chorismos [separação, cisão] entre fora e dentro é condicionado historicamente. Somente um saber que tem presente o valor conjuntural do objeto em sua relação com os outros objetos consegue liberar a história no objeto; atualização e concentração de algo já sabido que transforma o saber. O conhecimento do objeto em sua constelação é o conhecimento do processo que ele acumula em si. Enquanto constelação, o pensamento teórico circunscreve o conceito que ele gostaria de abrir, esperando que ele salte, mais ou menos como os cadeados de cofres-fortes bem guardados: não apenas por meio de uma única chave ou de um único número, mas de uma combinação numérica. (ADORNO, 2009, p. 141-142)
A análise conjuntural proposta por Adorno tem por finalidade desvelar a resultante do conhecimento dos diversos fatores históricos existentes, ou seja, a análise da estrutura pretérita permitirá conhecer das consequências presentes de determinado fato que se analisa.
Marcos Nobre também compartilha deste entendimento científico estruturante: “nesse sentido, a “teoria”, ao pretender explicar ou compreender uma conexão de acontecimentos, tem como intuito mostrar como as coisas são, (NOBRE, 2011, p. 7). O desvelar do ser das coisas (descrição como as coisas são) também possui por escopo a apresentação do prognóstico, do dever ser (mostrar como as coisas deveriam ser).
Em se tratando de uma teoria científica, a explicação deve ser capaz também de prever eventos futuros, ou então de compreender os eventos no mundo de tal maneira a produzir também prognósticos a partir das conexões significativas encontradas. E uma teoria é confirmada ou refutada conforme as previsões e os prognósticos se mostrem corretos ou incorretos. (NOBRE, 2011. p. 7).
Para Habermas, segundo Bannwart Júnior, a Teoria Crítica:
Desconsiderando a pretensão de uma filosofia da história que almeja o espectro contemplativo da história como um todo, não apenas em sua visão retrospectiva, mas também prospectiva, a qual visa a assegurar um progresso necessário firmado por pressupostos metafísicos provenientes de Deus, da natureza, da razão ou do espírito, Habermas irá posicionar o estatuto da história como contingente em relação tanto às condições empíricas quanto às mudanças que ocorrem na prática e no envolvimento dos agentes sociais. Com isso, ele retira toda hipostasiação metafísica da história para sinalizá-la sob outro foco de luz: o da projeção prática. (BANNWART. 2013. p. 68) .
Partindo destes pressuposto, é fixada a análise tríade dos fatores amplos que demarcaram o século XX, como o desenvolvimento demográfico, a mudança estrutural do trabalho e o curriculum dos progressos científicos-tecnológicos, os quais serviram de aporte para a formulação da teoria habermasiana a respeito da constelação pós nacional.
2.2. O Contexto Ensejador das Mudanças
Como demostrado no tópico anterior, a mudança de paradigma ou de qualquer teoria social, precede de um movimento ou movimentos sociais relevantes que demonstram que a teoria até então vigente já não mais oferta respostas e soluções demandadas.
A teoria habermasiana possui como contexto histórico as mudanças ocorridas no continente europeu nos séculos XIX e XX, destacando o desenvolvimento demográfico, a mudança na estrutura do trabalho e o curriculum dos progressos científicos-tecnológicos.
O crescimento populacional do continente europeu, no século XIX, ocorreu graças ao progresso da medicina, com o desenvolvimento de novas vacinas, novas técnicas médicas, possibilitando à sociedade a diminuição das mortes prematuras, principalmente a mortalidade infantil ocorridas nos grandes centros, assolados pela pobreza e baixa infraestrutura.
Além disto, como denota-se de alguns movimentos ocorridos nos países europeus, conforme leciona Jean-Charles Sournia (1992, p. 255-250) o século XIX, também foi marcado por diversas reformas na infraestrutura, com melhor distribuição de água potável, saneamento dos bairros operários, construção de esgotos, desenvolvimento de uma educação sanitária nas escolas primárias, de modo que em apenas um século, além do nascimento de mais pessoas, também houve acréscimo nas respectivas expectativas de vida, proporcionando de maneira exponencial o crescimento demográfico, tal como se aufere dos gráficos abaixo:
Isto é, em apenas 40 anos (1990 – 2030), a população mundial terá um acréscimo de 3.3 bilhões de pessoas, um movimento até então inexistente.
Conforme destaca Habermas (HABERMAS, 2001, p. 54), a concentração em massa das pessoas migraram da zona rural para os perímetros urbanos, principalmente em razão das grandes industrias em desenvolvimento no século XIX.
Porém, no século seguinte, tal concentração passa a ser ressignificada, em virtude das organizações e ações concatenadas dessa população (ações de massa2), de modo a também alterar a visão sobre os indivíduos, os quais passaram a ser visto como um conjunto organizado, muitas vezes atrelados à imagem de um macro sujeito de agir coletivo.
Todavia, Habermas destaca, que desde os meados do século passado que esta concentração de massas é “dissolvida pela inclusão simbólica das consciência em redes de comunicação cada vez mais abrangentes” (HABERMAS, 2001, p.54), de modo a dispersar a concentração das massas, tornando obsoleto o convívio estritamente físico. Agora, a plataforma das interações humanas ocorrem através das diversas mídias eletrônicas e não mais sob as plataformas até então usais, como ruas e praças.
Outro fator relevante para a formação da teoria crítica habermasiana diz respeito a mudança estrutural do trabalho, pautados pela “introdução de métodos de produção que economizam trabalho”(HABERMAS, 2001, p.54), acarretando no aumento de produtividade, em que pese a diminuição do esforço humano.
Habermas faz um importante diagnóstico, de modo a classificar o trabalho, em decorrência da Revolução Industrial Inglesa do século XVIII, em setor primário (agricultura); secundário da indústria de bens de consumo, e, posteriormente, para o setor terciário do comércio, transportes e serviços, estrutura econômica a qual se estendeu para todo o globo terrestre, estabelecendo um cultura de trabalho e convívio predominantemente urbano, tal como denota-se do gráfico comparativo abaixo3.
Porém, devido a intensificação das tecnologias, as sociedades pós-industriais estabeleceram o denominado setor quaternário de trabalho, tendo como matéria-prima o saber, destacando as “indústrias high-tech ou os serviços de saúde, os bancos ou a administração pública -, que dependem da afluência de novas informações e, em última análise, de pesquisa e inovação” (HABERMAS, 2001, p. 55), decorrentes, segundo o pensador alemão, de uma revolução na educação, responsável pela drástica redução do analfabetismo, aliado a crescente sistemas de ensino secundário e terciário, tornando efetivamente público o acesso ao ensino.
Essa nova dinâmica no mundo do trabalho, tecnologia e educação, segundo o expoente da Escola de Frankfurt, proporcionou a atual realidade dos países desenvolvidos um grande rompimento com o passado rural, alterando não apenas a realidade no mundo do trabalho, mas também a realidade urbana, impactada diretamente com o aumento desenfreado da sua população, trazendo fatos e problemáticas até então não vivenciadas pelo homem:
Na moeda fenomenológica da experiência no mundo da vida isso significou uma quebra radical com o passado. A forma de vida campestre que marcou com o mesmo selo todas as culturas do Neolítico até quase todo o século XIX tomou-se uma ilusão nos países desenvolvidos. O declínio da situação dos camponeses também revolucionou a relação tradicional entre a cidade e o campo. Hoje mais de quarenta por cento da população mundial mora nas cidades. O processo de urbanização destrói a própria cidade juntamente com as formas de vida urbanas nascidas na antiga Europa. Se Nova York, mesmo no seu núcleo metropolitano de Manhattan, recorda apenas longinquamente a Londres e Paris do século XIX, por outro lado as regiões urbanas transbordantes de Cidade do México, Tóquio, Calcutá, São Paulo, Cairo, Seul ou Xangai explodiram as dimensões habituais da “cidade”. Os perfis confusos dessas megalópoles – apenas desde há duas ou três décadas pululantes – brindam-nos com uma imagem para a qual nos faltam ainda os conceitos. (HABERMAS, 2001, p. 56).
Além destes eventos com repercussão social, Habermas também destaca o progresso científico e técnico (formas de energia, novas tecnologias industriais, militares e medicinais, os novos meios de transportes e comunicação), como fator preponderante para a formulação da sua teoria, uma vez que tal conhecimento (conhecimento das ciência naturais) é o alicerce da economia, formas de circulação (mundo de sistema) e também do mundo da vida4
A crescente evolução tecnológica e a extensão do conhecimento produzida estabeleceram diversas especialidades no mundo do sistema, até então inexistentes, como a viagem especial, manipulação da energia atômica, decodificação do código genético e a sua inserção na agricultura e medicina.
Segundo Habermas, a descoberta e o aprofundamento dessas novas tecnologias modificam a nossa consciência de risco e até mesmo a nossa compreensão ética (HABERMAS, 2001, p. 56), afinal, a vida na Terra pode ser dizimada com o apertar de apenas um botão, e a vida humana alterada dentro de um laboratório.
Porém, o mundo da vida, embora laico quanto a compreensão dos inúmeros mundos sistêmicos, não é desestabilizado pela assente consciência do perigo, mantendo a estabilidade entre os mundos.
Não somente as técnicas de manipulação de energia e do genoma humana alteraram a percepção da realidade do mundo da vida, a rápida evolução dos transportes (terrestre e aéreo) e também da comunicação relativizaram a objetividade do tempo e do espaço, os quais passaram a ser visto do ponto de vista da subjetividade, como explica Habermas:
No século XX o transporte automobilístico e o aéreo civil novamente aceleraram o transporte das pessoas e dos bens e fizeram com que as distâncias continuassem a se encolher também do ponto de vista subjetivo. A consciência do espaço e do tempo é afetada de um outro modo pelas novas técnicas de transmissão, armazenamento e elaboração de informações. Já na Europa do final do século XVIII a impressão de livros e jornais contribuiu para o surgimento de uma consciência histórica global e orientada para o futuro; no Final do século XIX, Nietzsche reclamou de um Historicismo de uma elite culta que presentificava tudo. Entrementes, a separação disseminada entre o presente e os passados objetivados de forma museológica tomou conta da massa dos turistas da cultura. Também a imprensa de massa é um fruto do século XIX; mas o efeito de máquina do tempo da mídia impressa é intensificado no correr do século XX graças à fotografia, ao cinema, ao rádio e à televisão. As distâncias espaciais e temporais não são mais “vencidas”; elas desaparecem sem deixar marcas na presença ubíqua de realidades duplicadas. A comunicação digital finalmente ultrapassa em alcance e em capacidade todas as outras mídias. Mais pessoas podem conseguir e manipular quantidades maiores de infom1ações múltiplas e trocá-las em um mesmo tempo que independe das distâncias. Ainda é difícil de se avaliarem as consequências mentais da Internet, cuja ac1imatação no nosso mundo da vida resiste de um modo mais enérgico do que a de um novo utensílio doméstico. (HABERMAS, 2001, p. 58).
A globalização5 aproximou as diversas culturas existentes pelo mundo. A tecnologia propiciou a aproximação das pessoas, conforme ilustra Peter Singer:
Quando a tecnologia venceu as distâncias, a globalização econômica se estabeleceu. Nos supermercados de Londres legumes frescos vem de avião do Quênia são oferecidos ao lado dos que vem do vizinho condado de Kent. Aviões trazem imigrantes ilegais que procuram melhorar a própria vida num país que admiram a muito tempo. Nas mãos erradas, os mesmos aviões se tornam armas letais que derrubam altos edifícios. A comunicação digital instantânea faz com que não só bens concretos, mas também serviços especializados se tornem mercadoria no comércio internacional. Ao final das operações de um dia, um banco sediado em Nova York pode ter suas contas equilibradas por funcionários que vivem na Índia. A Crescente presença de uma única economia mundial se reflete no desenvolvimento de novas formas de governabilidade global, a mais controversa das quais é a Organização Mundial do Comércio; mas a OMC não é ela mesma a criadora da economia global. (SINGER, 2004, p. 13)
A globalização trouxe grandes mudanças à dinâmica no âmbito relacional pessoal, econômico, cultural, alterando de maneira significativa a percepção da realidade, transcendendo a importância
Assim, verifica-se que a teoria apresentada por Habermas encontra-se alicerçada nas grandes e aceleradas mudanças vivenciadas entre os séculos XIX e XX, demandando dos cientistas sociais, um importante posicionamento perante a realidade, considerando a complexidade da base empírica e a coexistência de dois mundos com racionalidades distintas: o mundo da vida e os sistemas.
2.3 O Diagnóstico
A análise dessa nova realidade do século, segundo Habermas, recebe uma fisionomia, dividida em três leituras. A primeira, marcada pelo sistema capitalista mundial, demarcado pela experimentação com seres humanos e também designado pela a industrialização forçada promovida pela união Soviética que tentava apresentar uma solução ao modelo econômico e político ocidental.
A segunda leitura, é abalizada pelas ideologias totalitaristas no século XX, empregadas pelos próprios Estados, destruindo a harmonia das relações sociais, desrespeitando normas de direito internas e externas. A terceira via é demarcada pela cruzada ideológica entre partidos políticos (social e capitalista), que visam combater a visão antagônica das respectivas convicções ideológicas (HABERMAS, 2011, p 60).
Contudo, indiferentemente da leitura adotada, o século XX foi pautado e diagnosticado pela barbárie6, guerras e extermínios, realidade que também permitiu a domesticação das forças bárbaras. O mal extremo também serviu para aprimorar a humanidade, em que pese as suas cicatrizes.
Por outro lado, a mencionada terceira via possibilitou um ganho às democracias dos países ricos europeus e também ao país norte americano, sendo desenvolvida, segundo Habermas, economias mistas, (HABERMAS, 2011, p. 63), mantidos diante de políticas de estabilidade interna com a construção de um amplo sistema de segurança nacional, de modo a compatibilizar os vieses do sistema capitalista de produção e do Estado Social.
Na figura de democracias de massa de Estados sociais, a forma econômica altamente produtiva do capitalismo foi sujeitada pela primeira vez de modo social e mais ou menos harmonizada com a autocompreensão normativa de Estados constitucionais democráticos (HABERMAS, 2011. p. 64).
Wolfgang Streeck caracteriza essa compatibilização das tensões entre os Estados Sociais e capitalistas como o Capitalismo Democrático.
Para o presente fim, vou caracterizar o capitalismo democrático como uma economia pautada por dois princípios ou regimes conflitantes de alocação de recursos: o primeiro opera de acordo com a produtividade marginal, ou com aquilo que é exposto como uma vantagem por um “livre jogo das forças de mercado”, e o outro se baseia em necessidades ou direitos sociais, tal como estabelecidos por escolhas coletivas em contextos democráticos. Sob o capitalismo democrático, os governos são teoricamente instados a cumprir ambos os princípios simultaneamente, ainda que eles quase nunca se alinhem de forma substantiva. (STREECK, 2012, p. 37 e 38).
Tais conjunturas, segundo Habermas, apenas se faz possível nos estados mistos, demarcadas por políticas estatais de infraestrutura, de emprego e de teor social, intervenções estas que tem por escopo a “influência nos âmbitos da produção e da distribuição com o intuito de alcançar crescimento, estabilidade dos preços e pleno emprego” (HABERMAS, 2001, p. 65), de modo que a figura do Estado intervencionista apenas se justificaria na promoção simultânea de regras de mercado, pautados na liberdade, de modo a garantir a interação social. Ou seja, é função do Estado garantir o bem-estar social7.
Todavia, o fim do século XX, em sua dimensão política, é designado pelo “risco estrutural de um capitalismo domesticado de modo social e do renascimento de um neoliberalismo indiferente ao social (HABERMAS, 2001, p. 64/66), uma vez que os países participantes da OCDE passaram a diminuir os valores de seus pagamentos, dificultando também o acesso aos sistemas de segurança social, de modo a aumentar a pressão sobre os seus desempregados.
Esse fenômeno, conhecido como desconstrução do Estado Social é demarcado por uma política econômica que preconiza a menor intervenção junto ao mercado, pautados pela privatização de empresas estatais, redução de tributos, dentre outros procedimentos.
Essa menor intervenção estatal nas regras de mercado acarretou a desintegração social, com o crescimento da pobreza e da instabilidade social, tendo em vista o aumento do desemprego, criando uma classe subalterna de trabalhadores, que, devido a sua extrema hipossuficiência, se apresentam inaptos na promoção de qualquer melhoria.
Tal condição, isto é, a aceitação desta disparidade social, é reforçada pelos defensores da doutrina neoliberal8, e ampliada em razão das novas diretrizes da ordem econômica do século XX e XXI, agora atuante e relevante em âmbito internacional e globalizado.
A partir dos anos de 1980, inicia-se um processo de implantação de princípios neoliberais na economia e na concepção de Estado. Desta forma intensifica-se a desregulamentação dos mercados, a redução de impostos, o encolhimento do Estado com privatizações, a redução do investimento em políticas sociais, além de outras práticas similares. Como consequência, as crises sociais contidas pelas políticas compensatórias se agravam e passam a ameaçar a capacidade de integração das sociedades de orientação liberal. Chega-se a um tempo em que as metas econômicas só são alcançadas com custos sociais e políticos significativos que inclusive ameaçam a própria democracia. Neste cenário, o Estado sente-se de mãos atadas, já que para manter a competitividade e ser atraente aos mercados, precisa oferecer atrativos. Por outro lado, tais atrativos implicam na aceitação das condições impostas, o que significa redução de impostos, diminuição do poder de atuação e da capacidade de intervenção nos problemas sociais. A globalização do sistema econômico mundial limita a tal ponto as possibilidades de ação dos Estados nacionais que a atuação destes resulta insuficiente para amortizar os efeitos colaterais (CENCI, 2005, p. 64-65).
Agora, o Estado de bem-estar social, que empunhava a tutela de direitos sociais, associadas às regras de mercado, visando equacionar a relação material discrepada pelo sistema capitalista, passa a se ater às necessidades do mercado global, caracterizados pela intensa competitividade, mesmo que para tanto, sejam derrogados direitos sociais, por serem considerados custosos às regras do mercado internacional:
Os seus diagnósticos convergem no sentido de coagir os governos nacionais a um jogo de soma zero, no qual os grandes objetivos econômicos inevitáveis podem ser alcançados à custa dos objetivos sociais e políticos. No âmbito de uma economia globalizada, os Estados Nacionais só podem melhorar a capacidade competitiva internacional das suas posições trilhando o caminho de uma autolimitação da capacidade de realização estatal; isto justifica políticas de desconstrução que danificam a coesão social e que põe à prova a estabilidade democrática da sociedade. (HABERMAS, 2001, p. 67).
O Estado Nacional, neste novo contexto e estrutura existente em razão do processo de globalização, parece sucumbir à vontade do mercado, estruturando-se de forma atraí-lo para as suas fronteiras, confrontando com os postulados de um estado democrático, contrariando qualquer teoria geral do Estado, ressignificando os valores da sua existência e modo de atuação, ao ponto de minorar o seu campo de atuação e de intervenção frente à economia globalizada.
Nesse contexto, Habermas explica que o Estado Nacional encontra-se fragilizado, de modo que políticas econômicas atreladas à demanda, o protecionismo do mercado interno e os programas estatais de emprego, não mais dão conta no enfretamento das ameaças promovidas pelo mercado livre e globalizado:
Os programas estatais de emprego fracassam não apenas devido ao limites de endividamento dos orçamentos públicos, mas também mas porque eles não são mais efetivos dentro do âmbito nacional. Sob as condições de uma economia globalizada, o “Keynesianismo em um país” não funciona mais. É mais promissora uma política antecipadora, inteligente e cuidadosa de adaptação das condições nacionais à competição global. Fazem parte dessa política as conhecidas medidas de uma política industrial prospectiva (…) como qualificação da força de trabalho com base em uma melhor formação e especialização, bem como uma “flexibilização” refletida no mercado de trabalho. Essas medidas trazem a médio prazo vantagens para a posição, no entanto não modificam em nada o modelo de concorrência internacional por posições. Não importa o que se faça com a globalização econômica, ela destrói uma constelação histórica que havia provisoriamente permitido o compromisso do Estado Social (HABERMAS, 2001, p. 68)
O controle do movimento do capital globalizado não se faz mais possível pelos Estados Nacionais, de modo que a sua atuação deverá ser revista, aperfeiçoando-se na medida em que os Estados passam a atuar como organismos políticos que assimilem o processo global, de modo a atuarem em uma economia transnacionalizada.
Isto é, o Estado não mais é regido pelos institutos jurídicos exclusivamente internos, que permitiam a existência de um Estado mais regulador, mas disciplinado por sistemas reguladores globais, pluralística e liberal do Estado, de modo que a esfera econômica sobrepõe-se a política.
Em suma, os processos de globalização ressignificaram as bases Estado. Com isso, no campo político, a democracia liberal é considerada como regime político universal, e por conseguinte, vem a orientar no campo econômico a base de desenvolvimento estatal para o mercado como sendo o único modelo compatível com o novo regime global de acumulação e excluindo de seu campo de consideração quaisquer ponderações extra econômicas (OLIVEIRA, 2009, p. 74).
3. DA NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DA FIGURA DO ESTADO NACIONAL
Como visto, a globalização transcende a natureza meramente econômica, tratando-se de um processo que evidência a “estreiteza dos teatros sociais, o caráter público dos riscos e o enredamento dos destinos coletivos” (Habermas, 2001. 72), tendo como consequências o atrofiamento das distâncias espaciais e temporais; a expansão dos mercados e a exploração dos recursos naturais que operam globalmente, de modo que as externalidades advindas deste processo romperam as fronteiras dos Estados Nacionais.
Essa dinâmica interacional passa a demandar dos Estados Nacionais a construção de instituições supranacionais, destinadas à ordenação desta relação global, movimento já iniciado, pautados em “alianças econômicas continentais como o NAFTA ou a APEC, que permitem realizar entre os governos acordos que estabelecem obrigações ainda que dotados de sanções brandas” (HABERMAS, 2001. 69). Tal dinâmica também opera-se em projetos mais amplos, como a União Europeia.
Para Habermas, “a constituição de unidades políticas maiores leva a alianças defensivas contra o resto do mundo, no entanto, não altera nada no modus da concorrência pelas posições enquanto tal” (HABERMAS, 2001, p. 70).
Todavia, essas alianças políticas possibilitam aos Estados Nacionais um resgate de seus poderes polí00ticos, capazes de atuar frente ao mercado globalizado, de forma a também agir em amplitude global, estabelecendo condições gerais destinadas ao regramento interrelacional, agora em maior escala:
Por outro lado, fusões políticas desse gênero constituem uma condição necessária para uma “recuperação” da política diante das forças da economia globalizada. Com cada novo regime supranacional diminui o número de atores políticos e preenche-se o clube dos poucos capazes de agir globalmente, ou seja, também dos atores capazes de cooperação que têm condições de assumir acordos que estabelecem obrigações quanto às condições gerais, pressupondo-se que haja uma vontade política correspondente. (HABERMAS, 2001, p. 70)
A vontade política, advogada por Habermas, transpõe a volição individual de cada Estado ou a ideia de nação. A nova dinâmica global revela que a democracia estatal consiste no preenchimento das lacunas da integração social nas relações transnacionais, com participação política dos diversos cidadãos.
Uma ordem democrática não precisa inerentemente estar enraizada mentalmente na “nação” como uma comunidade pré-política de destino compartilhado. A força do Estado constitucional democrático repousa precisamente em sua habilidade em tampar os buracos da integração social através de uma participação política dos cidadãos (HABERMAS, 2001, p. 76).
Essa unificação de Estados para além das suas nações, como parametrizado pela União europeia, desagua em uma união política destinada não apenas à “criação e institucionalização jurídica dos mercados, mas sim que introduza elementos de uma vontade política mundial”, possibilitando a domesticação das externalidades oriundas do comércio globalizado, mantendo os níveis sociais dentro de parâmetros aceitáveis (HABERMAS, 2011, p 70/71).
Essa “vontade política mundial” é percebida desde 1945 com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), que atualmente conta com 193 Países-membros, os quais estão, na dicção habermasiana, “ligadas uns aos outros por uma densa teia de instituições”, além da existência de cerca de 350 organizações governamentais atuantes para além das suas fronteiras territoriais, entes os quais possuem funções não apenas econômicas, mas também sociais, destinados a manutenção da paz.
A organização transnacional relativiza a independência soberana dos Estados, os quais se veem entrelaçados e interdependentes entre si, de modo que as suas regulações internas deverão ser ponderadas a partir das consequências em relação aos demais entes inter-relacionais estatais ou privados, visto que “não podem mais garantir sozinhos as fronteiras do próprio território, os meios de subsistência da própria população ou os pressupostos para a existência da própria sociedade” (HABERMAS, 2006, p. 183).
Diante dessa nova realidade, os Estados Nacionais tiveram a sua soberania e a prática de ações individualizadas limitadas à vontade e à necessidade global, de modo que as suas decisões e ações são tomadas ponderando questões de âmbito interno e externo, de forma individual e ao mesmo tempo coletiva, através de acordos e instrumentos jurídicos ou de negociação internacionais.
Habermas acredita no desenvolvimento desta consciência da “obrigação da solidariedade cosmopolita nas sociedades civis e nas esferas públicas políticas dos regimes geograficamente amplos que estão se desenvolvendo”, ressignificando a sua existência, agora inseridos como membros do quadro de uma comunidade internacional, com respeito recíproco de interesses (HABERMAS, 2001, p. 73), entendimento este também apoiado na teoria kantiana:
Devemos direcionar nossa atenção a estes processos se quisermos compreender porque os Estados ingressam em redes transnacionais e até mesmo admitem fusões supranacionais […]. Pois a globalização da economia e da sociedade consolidou o contexto de inserção que Kant discutira em relação à ideia de um estado cosmopolita na constelação pós-nacional… Os Estados nacionais enredam-se em dependências de uma sociedade mundial progressivamente interdependente, cuja especificação funcional avança de modo totalmente indiferente às fronteiras territoriais (HABERMAS, 2006, p. 183).
Habermas acredita que os Estados estão aptos na adoção de uma nova perspectiva, comutando da mera atuação em âmbito internacional para uma política interna mundial, isto é, os Estados Nacionais internalizariam os processos de internacionalização e integração a partir da sua própria legislação, de modo que tais “procedimentos para a sintonização mundial dos interesses para a universalização dos interesses e a construção criativa de interesses comuns não poderão se consumar na figura organizadora de um Estado mundial” (Habermas, 2001, p. 74), mas também considerando as peculiaridades dos Estados Nacionais, que seria regulado por um direito transnacional.
4. RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL – PARA ALÉM DO DIREITO NACIONAL
Como exposto até aqui, o mundo cosmopolita foi formado em razão do movimento globalizado, caraterizado pela ampliação mundial do comércio e da produção, de mercados financeiros e de bens, de modas, mídias, programas, notícias e redes de comunicação, de fluxos de tráfego, riscos de tecnologia de grande porte e de danos ao meio ambiente.
Na ordem econômica, a globalização é mercada pelo surgimento de grandes conglomerados empresariais, atuantes por todo o globo territorial, as quais possuem valores de mercado muitas vezes superior ao Produto Interno Bruto (PIB) de diversos países, destacando, de acordo com ranking 2018 das maiores empresas do mundo, divulgado pela Forbes: a Industrial & Commercial Banks of China, com valor de mercado equivalente à US$ 311 bilhões; Itaúsa Investimentos Itaú (brasil), com US$ 26,8 bilhões; Petrobrás, com valor de US$ 92 bilhões; Apple, com valor de US$ 926,9 bilhões, dentre outras.
Para ilustrar, o valor de mercado da Apple é maior do que o PIB de países como a Holanda (US$ 909,887 bilhões); Suíça (US$ 709,118 bilhões), Chile (US$ 299,88 bilhões), demonstrando a grande força econômica destes grandes conglomerados, capazes de influenciar não apenas nas questões econômicas mundiais, mas também nas esferas políticas, culturais e também legais, pois, tal como exposto nos capítulos anteriores, o mercado demanda uma maior autonomia legislativa frente aos Estados Nacionais.
Outrossim, nesse novo contexto transnacional, em que pese os esforços das figuras sociais, são demarcadas por uma lacuna legislativa, seja quanto ao sujeitos legitimados, capazes de legislar num contexto global, seja quanto ao efeito cogente de tais normas, de modo a acarretar em sanções mais relevantes, em caso de seu descumprimento.
Ou seja, o Direito, por si só, ao menos neste momento, não apresenta uma resolução consensual destinada a regulamentação da relação entre os grandes agentes econômicos (estado e entes privados) e também para problemas agora existentes em macro escala, decorrentes de um capitalismo global não domesticado.
Como ensina (BANNWART e DEMICIANO, 2016, p. 160), “a sucessão de crises do capitalismo democrático sugerem que a atividade econômica busque uma nova maneira de interação com a sociedade, não mais baseada exclusivamente na razão instrumental”, mas agora também em preceitos éticos9 (razão prática), tal como nos ensina Cassiano Reimão:
No mundo da tecnologia em que hoje está mergulhado, o ser humano perdeu o sentido da sua existência, sentindo-se vítima das forças que ele próprio criou; perdeu o protagonismo da sua história e da história do mundo que habita. Nesta conjuntura, só um sistema coerente de valores pode garantir uma correta unidade e funcionalidade à vida social. A ética apresenta-se, deste modo, como um regulador urgente da evolução do mundo e da percepção que os homens possuem da sua construção. É esta a situação em que nos encontramos nos diversos contextos da transformação por que passam as sociedades contemporâneas, marcadas pela secularização, pelo pluralismo e pela autonomia. (REIMÃO, 2011, p 84)
Esse comportamento ético é a base normativa para o comportamento da empresa, denominado Responsabilidade Social Empresarial, um modus reflexivo acerca do atual papel e significado da atividade empresária, atrelada às consequências das suas externalidade positivas e negativas, como defende Barbieri e Cajazeira:
As preocupações com o bem-estar humano, com o meio ambiente, com a capacidade de influência das empresas, principalmente das grades corporações multinacionais, trazem novos questionamentos sobre a responsabilidade social das empresas. O poder crescentes das empresas, que suplanta em muitos casos dos Estados Nacionais, também contribuiu para esta nova teoria. Como observam Berle e Means, a moderna sociedade anônima acumula um tremendo poder econômico controlado por poucos, podendo prejudicar e beneficiar multidões, afetar distritos inteiros, deslocar correntes comerciais, trazer ruína ou prosperidades às comunidades. (BARBIERI e CAJAZEIRA, 2009 p. 25).
As relações empresariais atrelam-se não apenas aos seus interesses próprios (lucro), mas também às necessidades dos atingidos pelas suas externalidades, os stakeholders (parte interessada). Agora, além de unidade econômica básica da sociedade, destinada a produção de bens, a empresa também é capaz de produzir valores éticos, destinados à satisfação e legitimação valorativa no contexto social no qual se insere:
A questão ética, associada à da responsabilidade social das empresas é, hoje, uma questão crucial e civilizacional. Perante transformações profundas do tecido e das estruturas produtivas, com a instituição de novas tecnologias e de novas formas de comunicação, perante novos paradigmas de desenvolvimento, foram introduzidos novos comportamentos individuais e colectivos, bem como novos padrões culturais. Esta nova dinâmica que atravessa o mundo empresarial faz emergir novos grupos de interesses em busca de uma legitimação nem sempre aceita, desenvolvendo-se numa zona minimalista de valores. E, todavia, na empresa convergem múltiplos factores e diversos interesses, potencialmente legítimos, como são os dos clientes, dos trabalhadores, dos fornecedores, dos accionistas e de outros stakeholders. (REIMÃO, 2011, p. 88).
A ética e a responsabilidade social empresarial apresentam-se como caminho para a excelência empresarial, apresentando-se como uma “bússola” orientadora dos negócios jurídicos empresariais (REIMÃO, 2011, p.89).
Nesse contexto, a empresa ética e responsável socialmente deverá compreender “as expectativas econômicas, legais, éticas e discricionárias que a sociedade tem em relação às organizações em dado período” (CARROL, 1979, p. 500, apud BARBIERI E CAJAZEIRA, 2009, p. 53), de modo a gerar lucro aos seus acionistas e, concomitantemente, respeitando as legislações legais e valorativas, em escala global.
Com efeito, a empresa também possui responsabilidade junto à toda uma cadeia de interessados, de modo que estes passam a demandar daquela não apenas o cumprimento da legislação, mas também a incorporação de preceitos éticos, de modo a também cooperar com o Estado para a prática de ações socialmente justas. A Responsabilidade Social Empresarial, como se vê, tem por escopo a compatibilização entre os interesses econômicos da empresa com os anseios e as necessidades sociais, até então incompatíveis com as teorias neoliberais e pelo capitalismo selvagem, resgatando, de certa forma, características dos Estados de bem estar social. A empresa responsável, defende Reimão, deve responder às sensibilidades sociais:
As empresas, orientadas neste modelo de economia de mercado e de deveres de cidadania, são mais capazes de responder a novas sensibilidades sociais, gerindo adequadamente os seus activos, determinantes para a obtenção de uma desejável legitimação social. (REIMÃO, 2011, p. 84).
Peter Singer acredita nesta ética mundial, uma vez que as nossas ações devam ser justificada não apenas sob o viés da legalidade, mas também sob a perspectiva do outro, que, devido à amplitude das comunicações, possibilita a valoração das ações em escala global, de modo a permitir o desenvolvimento de valores amplamente compartilhados:
[…] se o grupo diante do qual temos que justificar nosso comportamento é a tribo ou a nação, nossa moralidade tende a ser tribal ou nacionalista. Se, no entanto, a revolução das comunicações criou um público global, podemos sentir a necessidade de justificar nosso comportamento perante o mundo inteiro. Essa mudança cria a base material para uma nova ética que atenda aos interesses de todos os habitantes do Planeta. (SINGER, 2004. p. 13).
Diante dessa nova realidade planetária, a qual relativizou o papel do Estados Nacionais, a Responsabilidade Social Empresarial apresenta-se como um mecanismo orientador na realização da cidadania social cosmopolita, gerenciando as ações em escala global que visam o bem viver humano, tal como defende Reimão:
A ética, no contexto empresarial, aponta para a “altura humana” das práticas, procurando, por isso, como mínimo de justiça, encarnar o ideal de uma cidadania social cosmopolita, de modo a conseguir que todos e cada um dos seres humanos vejam protegidos os seus direitos. É o mínimo de justiça que nós mesmos nos impomos. Exige-se, então, que, no horizonte da globalização, essa “governança global” de que fala o Banco Mundial, capaz de dispensar bens públicos globais, tais como o bem-estar global, que inclui acesso à saúde, ao ar puro, à água potável, à educação, ao emprego e ao trabalho, promova um sistema económico mundial aberto e inclusivo, ao serviço do desenvolvimento humano, uma ordem legal internacional enraizada nos valores partilhados e também mecanismos capazes de garantir a estabilidade e a segurança humanas. […] Os intervenientes no processo empresarial só podem desempenhar bem o seu papel se possuírem as virtudes do carácter sem as quais não é possível sustentar a construção de uma “sociedade civilizada” (REIMÃO, 2011, p 87).
A atividade empresarial, passa a se encontrar à serviço da sociedade, podendo ser considerando como o bem público, devendo contribuir para a construção de uma sociedade global justa, pautada na ideia de uma cidadania cosmopolita, que preconiza o estabelecimento do Estado de justiça em que os direitos estendem-se aos cidadãos do mundo, o que se faz possível através da conduta ética empresarial (razão prática), resultante em ações socialmente responsáveis.
Deste modo, a empresa contemporânea deve coadunar as razões práticas e teóricas, de modo que a empresa se faça inserir também no mundo da vida, responsabilizando-se, juntamente com o Estados Nacionais e instituições transnacionais, quanto ao alcance do desenvolvimento sustentável, compatibilizando ideais liberais e sociais, através das normas legais e preceitos eticamente compartilhados globalmente.
5. CONCLUSÃO
Os acontecimentos compreendidos entre os séculos XIX e XX marcaram profundamente a humanidade e suas relações. O grande aumento da população, o emprego de novas tecnologias pelas indústrias e o aumento de produção, os novos meios de comunicação e transporte que aproximaram as pessoas, mudaram o paradigma relacional entre pessoas e países. As relações sociais agora ocorrem numa plataforma global, transcendendo os limites geográficos dos Estados.
Além disto, o avanço do comércio em escala mundial esvaziou os poderes políticos e econômicos dos Estados Nações, rompendo com o capitalismo democrático estabelecido no Welfare state, acarretando em perdas sociais, uma vez que tais direitos eram custosos ao livre comércio. O Mercado, agora composto por grandes conglomerados, economicamente superiores à muitos países, parecia impor as suas vontades (obtenção do lucro) sobre qualquer outra vontade ou necessidade, não importando os meios empregados para tanto.
O Estado sucumbia à vontade do mercado livre, de modo a não mais apresentar as soluções necessárias para a manutenção da harmonia social tanto internamente como nas relações globais.
Diante deste diagnóstico, os Estados Nacionais constituíram unidades políticas maiores (supranacionais) levando à alianças defensivas contra o resto do mundo capitalista, tentando preservar a sua influência econômica e política, agora demasiadamente influenciadas pelo mercado. Porém, essa junção supranacional e a dinâmica global revelaram que a democracia estatal consiste na sua competência do preenchimento das lacunas da integração social nas relações transnacionais, com participação política dos diversos cidadãos, inclusive das empresas.
Essa nova dinâmica política demonstrou uma vontade política mundial, possibilitando a domesticação das externalidades oriundas do comércio globalizado, mantendo os níveis sociais dentro de parâmetros aceitáveis. O mundo reconhece a existência de uma sociedade cosmopolita, onde ônus e bônus são mundialmente compartilhados.
Porém, a atuação dos entes supranacionais, por si só, não é capaz na obtenção da cidadania mundialmente compartilhada, demandando a adesão dos grandes conglomerados empresariais, atuantes internacionalmente, evidenciando uma lacuna legislativa que fosse capaz de integrar os mundos da vida e os mundos sistêmicos.
Nesta conjuntura, só um sistema coerente de valores compartilhados poderiam garantir uma correta unidade e funcionalidade à vida social, de modo que preceitos éticos também ordenam as relações sociais em seus diversos níveis.
A conduta ética passou a ser introduzida no comportamento das empresas, de modo que as relações empresariais atrelam-se não apenas aos seus interesses próprios (lucro), mas também às necessidades dos atingidos pelas suas externalidades, os stakeholders (parte interessada). Agora, além de unidade econômica básica da sociedade, destinada a produção de bens, a empresa também é capaz de produzir valores éticos, destinados à satisfação e legitimação valorativa no contexto social no qual se insere, de modo que a ética agora é comutada em Responsabilidade Social Empresarial
Além dos Estados, os interessados também passaram a cobrar um comportamento ético das empresas, inclusive com a aplicação de “sanções”, não de aspecto legal, mas social, como a perda de consumidores, valor de mercado, dentre outras.
A ética e a responsabilidade social empresarial apresentam-se como caminho para a excelência empresarial, apresentando-se como uma “bússola” orientadora dos negócios jurídicos empresariais, preenchendo a lacuna legislativa deficitária num mundo global.
Deste modo, a responsabilidade social empresarial visa compatibilizar as expectativas econômicas, legais, éticas e discricionárias, de modo a gerar lucro aos seus acionistas e, concomitantemente, respeitando as legislações legais e valorativas, em escala global.
Assim, a Responsabilidade Social Empresarial possui grande relevância nas relações sociais mundiais, compatibilizando os preceitos de um capitalismo liberal e de um estado social, os quais foram excedidos pelo capitalismo globalizado, resgatando de certa forma, através das prescrições éticas e morais, os preceitos de um Estado de Bem Estar Social.
Na verdade ocorre um deslocamento do Estado social – condicionado a permanentes crises em decorrência do caráter fiscal e da insuficiência de albergar o gasto dos direitos sociais – para a empresa social, crente de que as instituições empresariais podem suportar as condições de regular o custo social a partir das riquezas que geram e das externalidades que dividem com a sociedade. Nesse deslocamento do Estado social para a empresa social há uma transferência, ainda que indireta, da responsabilidade antes gerida sob o domínio do Estado, e que agora é atribuída ao balancete social das empresas. Em boa medida, há uma privatização da responsabilidade social. O ente privado assume o encargo de responder às demandas apresentadas pela sociedade, não podendo mais se furtar de ter um compromisso socialmente responsável, até porque uma recusa nesse sentido pode afetar o seu lucro.
O artigo buscou mostrar, em linhas gerais, o processo de implosão do Estado social, que, pelas razões históricas apresentadas, cedeu lugar ao neoliberalismo, modelo este que vem ganhando força desde os anos de 1970. O modelo liberal dá liberdade a volatilidade do capital no plano global, enfraquece o poder dos Estados nacionais e, por consequência, os parâmetros legais assentados na democracia. Isso impõe fragilidade aos padrões de responsabilidade social, já que a responsabilidade lato sensu passa a ser respondida pelo viés privado, quanto à eficiência de realização de fins perseguidos individualmente e não socialmente. Deixa-se, portanto, indefesa uma quantidade de problemas não resolvidos privadamente, como a questão ambiental, a regulação e legitimidade do sistema financeiro, o aumento da pobreza, o analfabetismo, entre outros. A responsabilidade social desses temas passa a ser cobrado de que detém o poder econômico, a saber, das empresas. A elas atribui-se um papel social que antes era monopólio do Estado social. O artigo buscou radiografar essa mudança, visando, porém, firmar em outra ocasião, as condições para discutir as consequências desse processo ainda em andamento.
REFERÊNCIAS
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1Na dicção de Marcos Nobre, “quando se diz que alguém tema uma “teoria” sobre determinado tema ou assunto, pretende-se com isso, na maioria das vezes, dizer que esse alguém tema uma hipótese ou um conjunto de argumentos adequados para explicar ou compreender um determinado fenômeno ou uma determinada conexão de fenômenos. (NOBRE, 2011, p7).
2Habermas assim explica: Na mobilização em massa da Segunda Guerra Mundial e no sofrimento em massa dos campos de concentração, assim como, após 1945, nas caminhadas em massa dos fugitivos e no caos em massa das displaced persons desdobrou-se um coletivismo [Kollektivismus] que já se anunciara na imagem de capa do Leviatã de Hobbes: já aí os inúmeros indivíduos encontram-se anônimos, fundidos na figura superforte de um macro-sujeito que age coletivamente (HABERMAS, 2001, p. 54).
3United Nations. Economic & Social Affairs. New York, 2007, p.15.
4José Marcelino de Rezende Pinto assim conceitua o mundo da vida de Habermas: mundo da vida (Lebenswelt), entendido como o contexto não problematizável, o pano de fundo que propicia os processos de se alcançar o entendimento. Como ele afirma, no sentido cotidiano o mundo da vida pode ser entendido como aquele em que “os atores comunicativos situam e datam seus pronunciamentos em espaços sociais e tempos históricos” (1987a, p. 136). Ele é constituído por um saber implícito sobre o qual nós, normalmente, nada sabemos porque ele é simplesmente não problemático, não atinge o limiar dos pronunciamentos comunicativos que podem ser válidos ou não. Como ele escreve, … se a verdade é o que é fundamentado, então o fundamento não é verdadeiro, ou falso (1987a, p. 337). [Mesmo porque], os atores estão sempre se movendo dentro do horizonte do seu mundo da vida, eles não podem se colocar de fora dele. Como intérpretes, eles próprios pertencem ao mundo da vida, por meio de seus atos de fala, mas não podem se referir a “algo no mundo da vida” da mesma forma que podem fazer com fatos, normas e experiências subjetivas (1987a, p. 125, 126).
5Com o termo “globalização” designamos os processos dirigidos à ampliação mundial do comércio e da produção, de mercados financeiros e de bens, de modas, mídias, programas, notícias e redes de comunicação, de fluxos de tráfego, movimentos migratórios, riscos de tecnologia de grande porte, de danos ao meio ambiente e epidemias, do crime organizado e do terrorismo. (HABERMAS, 2006, p. 183).
6Habermas lembra que o século XX foi demarcado pelo seguinte diagnóstico: “a câmara de gás e a guerra total, o genocídio levado a cabo pelo Estado e o campo de extermínio, a lavagem cerebral, o sistema de segurança estatal e a vigilância panóptica de populações inteiras. Esse século “produziu” mais vítimas, mais soldados mortos, mais cidadãos assassinados, civis mortos e minorias expulsas, mais torturados, violentados, famintos e mortos de frio, mais prisioneiros políticos e fugitivos do que se pôde imaginar até então’ (HABERMAS. 2011. p. 60).
7A definição de welfare state pode ser compreendida como um conjunto de serviços e benefícios sociais de alcance universal promovidos pelo Estado com a finalidade de garantir uma certa “harmonia” entre o avanço das forças de mercado e uma relativa estabilidade social, suprindo a sociedade de benefícios sociais que significam segurança aos indivíduos para manterem um mínimo de base material e níveis de padrão de vida, que possam enfrentar os efeitos deletérios de uma estrutura de produção capitalista desenvolvida e excludente. (Gomes. 2006, p. 203)
8 Para Habermas, o neoliberalismo concentra-se em uma defesa pura e simples da modernização econômica, baseada na economia de mercado, a contrapeso da correlação daquela com essa mesma modernidade cultural. Assim, a modernização econômica desenvolver-se-ia em um caminho estranho e paralelo à igualdade e à democratização, que seria emperrado no momento em que esta democracia igualitária adentrasse para o horizonte econômico. De um modo geral, o significado deles consiste em uma postura economicista calcada na defesa de um Estado mínimo, de uma centralidade da modernização econômica capitalista, bem como da ética do trabalho liberal-protestante e do individualismo possessivo – em uma postura anti-Estado social. HABERMAS, 2011, p. 2)
9Enquanto sabedoria prática, a ética é categoricamente orientadora dos actos humanos, à luz da razão; inserida na vida humana, é delineada pelos juízos da consciência; o dever de os praticar designa-se por moral; esta, segundo Paul Ricoeur, é inseparável da ética enquanto portadora de um crivo de normatividade dos juízos de consciência (Cf. RICOEUR, P., “Éthique et Morale”, in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo XLVI, Fasc. 1, Janeiro-Março,1990).