RESPONSABILIDADE PENAL DO MÉDICO EM CASO DE NEGLIGÊNCIA MÉDICA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202506081454


Daniele de Oliveira Garcia1


RESUMO:

Este trabalho tem como objetivo analisar a responsabilidade penal do médico em casos de negligência médica, considerando os dispositivos legais aplicáveis, os critérios para a configuração da conduta culposa e os limites da atuação judicial frente à complexidade do exercício da medicina. A pesquisa foi desenvolvida com base em legislação, doutrina e jurisprudência, buscando compreender em que situações o profissional da saúde pode ser responsabilizado criminalmente por atos omissivos ou por condutas incompatíveis com os deveres técnicos e éticos da profissão. Também se discutiu a diferença entre responsabilidade penal e civil, ressaltando que a primeira exige prova inequívoca de culpa e nexo de causalidade. Por fim, destaca-se a necessidade de equilibrar a proteção dos direitos dos pacientes com a segurança jurídica no exercício da medicina, assegurando a responsabilidade adequada dos profissionais e a estabilidade do sistema de saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade penal. Médico. Negligência médica. Culpa. Direito penal.

ABSTRACT:

This study aims to analyze the criminal liability of physicians in cases of medical negligence, considering the applicable legal provisions, the criteria for establishing culpable conduct, and the limits of judicial intervention in light of the complexities inherent to medical practice. The research was conducted based on legislation, scholarly doctrine, and case law, with the purpose of understanding under which circumstances healthcare professionals may be held criminally liable for omissions or actions that are incompatible with the technical and ethical duties of the profession. The study also addresses the distinction between criminal and civil liability, emphasizing that the former requires unequivocal evidence of fault and a causal link. Finally, the work highlights the need to balance the protection of patients’ rights with legal certainty in the practice of medicine, ensuring both the appropriate accountability of professionals and the stability of the healthcare system.

KEY WORDS: Criminal liability. Physician. Medical negligence. Fault. Criminal law.

1. INTRODUÇÃO

A responsabilidade penal do médico em casos de negligência médica foi tratada neste estudo como um tema de grande relevância para a sociedade contemporânea. A prática médica, enquanto ciência voltada à preservação da saúde e da vida, envolve naturalmente diversos riscos, porém, quando tais riscos resultam em danos ao paciente, torna-se necessário investigar a eventual responsabilização do profissional. A negligência médica, entendida como o descuido ou a omissão no dever de agir com diligência, é uma das principais questões no campo da responsabilidade penal do médico, especialmente em um contexto de maior consciência social e de evolução do direito penal.

Nesse contexto, destaca-se a importância de distinguir o erro médico, entendido como aquele que decorre de falha não intencional e nem sempre previsível, das condutas caracterizadas por negligência, imprudência ou imperícia, as quais configuram responsabilidade profissional da negligência, que envolve a falta de precaução e de zelo exigidos da atuação médica, foi um dos pontos centrais do trabalho, considerando que o direito penal não deve suprimir a liberdade do exercício médico, mas sim agir quando o profissional desrespeita os parâmetros legais e éticos da profissão.

Diante do aumento dos processos judiciais que envolvem médicos responsabilizados por negligência, surgiu a seguinte questão norteadora: até que ponto o direito penal deve intervir na responsabilização desses profissionais, considerando a complexidade da medicina e os riscos inerentes aos procedimentos? Essa problemática refletiu dúvidas relevantes tanto no campo jurídico quanto no social, como a possibilidade de atribuir culpa a médicos que, mesmo tendo atuado com a intenção de realizar o procedimento corretamente, ocasionaram resultados inesperados.

A hipótese considerada foi a de que, embora o erro médico seja uma realidade comum à profissão, a responsabilização penal deve ocorrer somente quando for demonstrada a violação do dever objetivo de cuidado, ou seja, nos casos em que o dano poderia ter sido evitado com mais cautela ou atualização profissional. Diante disso, o objetivo geral do estudo foi analisar a responsabilidade penal do médico em situações de negligência, concentrando-se nos limites da culpa, nos elementos que caracterizam a negligência e nas implicações jurídicas que recaem sobre o profissional da saúde.

Para isso, foram estabelecidos objetivos específicos, como identificar as principais características da negligência médica com base na doutrina penal e na jurisprudência; analisar as circunstâncias em que o erro médico pode ser enquadrado como negligência, diferenciando-o de outras falhas como a imprudência e a imperícia; e investigar as consequências jurídicas da negligência médica, incluindo as penas previstas e os limites da responsabilidade do médico.

A justificativa deste estudo está relacionada à importância do tema da responsabilidade médica frente ao direito penal. O avanço das ciências médicas, aliado à crescente expectativa da população em relação à qualidade dos serviços de saúde, exige uma resposta equilibrada do direito penal, que deve proteger os pacientes sem tolher injustamente a atuação dos profissionais. A análise jurídica da negligência médica permite esclarecer a linha que separa o erro aceitável daquele comportamento omissivo ou desleixado que deve ser penalizado.

Com isso, busca-se evitar decisões injustas, que prejudiquem tanto médicos quanto pacientes. A escolha do tema também se fundamentou nas transformações sociais e jurídicas que ampliam a participação da sociedade na fiscalização dos serviços médicos e na responsabilização de seus agentes. Assim, o presente trabalho teve como finalidade oferecer uma contribuição teórica e prática para aprimorar a aplicação do direito penal no contexto da medicina, fornecendo elementos que auxiliem a construção de uma atuação jurídica mais consciente, equilibrada e justa.

2. MATERIAIS E MÉTODOS

Este estudo adotou uma metodologia qualitativa, com a realização de uma revisão de literatura sobre a responsabilidade penal do médico em casos de negligência médica. A proposta metodológica teve como objetivo analisar e sintetizar as principais teorias, doutrinas, legislações, estudos acadêmicos e decisões jurisprudenciais relacionadas à temática da negligência médica no contexto da responsabilidade penal.

A pesquisa utilizou fontes acadêmicas, livros especializados, artigos de periódicos científicos, dissertações e teses, bem como decisões jurisprudenciais relevantes. A seleção das fontes foi realizada com base em sua relevância, atualidade e confiabilidade, priorizando publicações dos últimos quinze anos. Foram incluídas obras de autores renomados na área do direito penal e da ética médica, assim como estudos recentes que abordaram a relação entre erro médico e negligência. Decisões judiciais de tribunais superiores, bem como posicionamentos de entidades médicas e jurídicas, também foram considerados.

A revisão de literatura concentrou-se na análise das principais concepções sobre negligência médica, suas características e distinções em relação ao erro médico, à imprudência e à imperícia. Recebeu atenção especial o entendimento dos doutrinadores sobre o dever de cuidado do médico, a configuração da negligência e a definição dos limites da responsabilidade penal. Além disso, foram investigadas as implicações jurídicas da negligência médica a partir da análise de jurisprudências que evidenciam a exigência de prova clara da conduta culposa e do nexo causal, destacando que a responsabilização do profissional da saúde depende da violação do dever objetivo de cuidado e da compatibilidade entre a conduta e os padrões técnicos esperados.

A revisão foi organizada de modo a apresentar uma visão geral dos principais aspectos da responsabilidade penal médica, com ênfase na negligência, nos limites da culpa e nas consequências jurídicas para o profissional da saúde. O objetivo foi construir uma compreensão da aplicação do direito penal à medicina, contribuindo para o aprimoramento das práticas jurídicas e médicas.

3. NEGLIGÊNCIA MÉDICA

A Medicina é uma ciência voltada à preservação da saúde, ao combate de doenças e à promoção de bem-estar físico e mental, tanto no plano individual quanto coletivo. Embora os métodos possam variar conforme a cultura e a religião de diferentes povos, a preocupação com o alívio do sofrimento humano está presente em todas as sociedades (Rama, 2020).

Com o passar dos séculos, a Medicina se beneficiou do desenvolvimento de outras áreas do conhecimento, como a Biologia, a Química e a Física. Essa união resultou em descobertas fundamentais, como vacinas, medicamentos, equipamentos tecnológicos e técnicas terapêuticas adaptadas a diferentes condições clínicas (Faneca, 2017).

Atualmente, médicos e enfermeiros passam por uma formação exigente e contínua. No entanto, mesmo com todo esse preparo, podem ocorrer falhas. A negligência médica diz respeito a condutas impróprias ou à omissão de cuidados necessários, o que pode acarretar danos à saúde do paciente incluindo diagnósticos incorretos, tratamentos inadequados, falhas de supervisão e problemas de comunicação.

Nesse contexto, conforme aponta Dias (2012), a negligência médica é um fenômeno de natureza complexa, que pode surgir a partir de diversos elementos interconectados. Compreender suas origens é essencial para desenvolver estratégias preventivas e promover avanços na assistência à saúde em escala mundial. A análise e divulgação de situações envolvendo condutas negligentes servem não apenas como alerta, mas também como ponto de partida para responsabilizar os profissionais envolvidos e buscar justiça.

Esse tipo de falha acontece quando o atendimento prestado pelo profissional da saúde fica aquém do que é esperado dentro dos parâmetros técnicos e éticos da profissão, ocasionando prejuízos ao paciente. A verificação de negligência leva em conta as circunstâncias específicas de cada situação e as habilidades que se espera de um profissional atuando naquela especialidade (Dias, 2012). Entre os fatores mais recorrentes que contribuem para esse tipo de ocorrência, destacam-se a sobrecarga nos serviços de saúde, deficiências na formação técnica dos profissionais, limitação de recursos financeiros, falhas na comunicação e influência de aspectos econômicos. Embora existam outras causas, essas figuram entre as mais frequentes nos casos relatados (Rama, 2020).

A demanda excessiva nos serviços de saúde representa um desafio constante, pois compromete a capacidade de resposta tanto dos profissionais quanto das estruturas do sistema. Com jornadas prolongadas e um grande número de atendimentos diários, os médicos acabam tendo pouco tempo para dedicar a cada paciente, o que eleva a probabilidade de falhas em diagnósticos ou no tratamento (Mascarello; Bertoglio, 2019).

Prates e Marquardt (2020) destacam ainda que a insuficiência na formação continuada dos profissionais da medicina agrava esse cenário. Como o conhecimento médico evolui de forma contínua, impulsionado por inovações científicas e tecnológicas, é essencial que os profissionais estejam em constante atualização. A ausência desse aprimoramento pode levar a práticas desatualizadas e inadequadas frente aos desafios modernos da saúde.

Além disso, conforme Teixeira (2021) a limitação de recursos financeiros e a infraestrutura deficiente em muitos estabelecimentos públicos ou privados criam condições adversas para o trabalho médico. A escassez de equipamentos, medicamentos e equipes reduzidas gera um ambiente desfavorável para o atendimento seguro, favorecendo a ocorrência de equívocos que comprometem o bem-estar dos pacientes.

Segundo Prates e Marquardt (2020), uma das falhas mais recorrentes na área da saúde está na comunicação ineficiente entre os profissionais e também entre eles e os pacientes. Quando não há clareza nas trocas de informações, podem surgir mal- entendidos que comprometem o diagnóstico, a escolha do tratamento e até mesmo a administração de medicamentos. Essa falta de sintonia agrava o risco de equívocos e gera conflitos que poderiam ser evitados com uma comunicação mais precisa e empática.

No que se refere às questões econômicas, elas exercem um peso relevante no agravamento da negligência médica. A realidade social diversa da população brasileira exige sensibilidade quanto à desigualdade de acesso aos cuidados. Pessoas em situação de maior vulnerabilidade social são frequentemente as mais afetadas pela precariedade dos serviços, o que aumenta sua exposição a erros e omissões no atendimento (Teixeira, 2021).

Paulo Amorim (2020) aponta que o cenário brasileiro é marcado por obstáculos como dificuldade no acesso a unidades de saúde, falta de recursos financeiros por parte dos pacientes, baixo nível de educação em saúde, barreiras linguísticas e culturais, excesso de demanda nos serviços públicos e escassez de políticas preventivas. Esses fatores contribuem para um ambiente de instabilidade no qual a qualidade do cuidado prestado é diretamente comprometida.

Os custos decorrentes da negligência médica podem ser bastante expressivos para os pacientes. Em muitos casos, é necessário iniciar um novo ciclo de tratamentos para reparar os prejuízos causados, o que inclui novas consultas, medicamentos, exames e sessões terapêuticas. Além disso, a pessoa afetada pode enfrentar a perda temporária ou permanente da capacidade de trabalhar, exigindo a presença de cuidadores ou apoio familiar constante, o que aumenta ainda mais os gastos envolvidos (Mascarello; Bertoglio, 2019).

Conforme aponta Piacentini (2017), os impactos da negligência não se limitam ao corpo. As consequências emocionais podem ser tão intensas quanto as físicas. Sentimentos de angústia, revolta, insegurança e medo tomam conta dos pacientes, podendo evoluir para quadros mais sérios, como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A confiança, tanto no profissional quanto no próprio sistema de saúde, costuma ser profundamente abalada, prejudicando futuras relações médico- paciente.

Ainda segundo Piacentini (2017), tornar públicos os casos de negligência médica é fundamental para estimular mudanças. Divulgar essas experiências não apenas ajuda as vítimas a reivindicarem seus direitos, como também serve de alerta para outros pacientes e profissionais. A transparência nessa discussão favorece a revisão de protocolos, a adoção de normas mais rígidas, a melhoria da formação dos profissionais e o fortalecimento da fiscalização dos serviços, contribuindo para evitar a repetição dos mesmos erros e promovendo um atendimento mais seguro e humanizado.

Segundo informações divulgadas pela Organização Mundial da Saúde, os efeitos da negligência médica podem comprometer profundamente o bem-estar dos pacientes. Dependendo da gravidade do ocorrido, a pessoa afetada pode deixar de realizar atividades simples do dia a dia, perder o prazer por hobbies, se afastar da vida social e ter dificuldades em manter vínculos familiares ou profissionais. Esses impactos acabam refletindo em sentimentos como solidão, impotência e desânimo, prejudicando de forma direta sua qualidade de vida (Prates; Marquardt, 2020).

Além disso, é fundamental garantir que essas vítimas tenham acesso a apoio adequado. Criar espaços onde possam expressar o que viveram, encontrar acolhimento emocional e receber orientações sobre seus direitos é uma forma de ajudar na superação dos traumas físicos, psicológicos e até financeiros.

Fomentar o diálogo sobre negligência médica também pode ser uma estratégia eficiente para o avanço dos serviços de saúde. Quando há abertura para reconhecer erros e refletir sobre eles, os profissionais se sentem mais motivados a corrigir falhas, buscar atualizações e desenvolver práticas mais seguras. Isso favorece um ambiente hospitalar mais responsável e centrado no cuidado real com o paciente.

4. RESPONSABILIDADE DO MÉDICO

A responsabilização dos profissionais da medicina é uma questão debatida desde tempos muito antigos, passando por várias transformações até os dias atuais. Nas sociedades primitivas, a prática médica era cercada por elementos místicos e religiosos acreditava-se que as enfermidades eram causadas por forças sobrenaturais, sendo tratadas por meio de rituais, encantamentos e costumes populares. Nesse contexto, o médico ocupava um papel sagrado, sendo visto como um mensageiro ou servo das divindades. Apesar desse status quase espiritual, erros cometidos por esses curandeiros ou sacerdotes não deixavam de ter consequências severas (Dias, 2012).

À medida que a prática médica se distanciou dos rituais místicos e assumiu contornos técnicos mais definidos, o aumento de falhas e mortes associadas a intervenções clínicas impôs a necessidade de regulamentação estatal. O poder público, então, passou a intervir de forma mais direta, estabelecendo normas jurídicas com o objetivo de proteger a integridade dos pacientes e responsabilizar profissionais que agissem de maneira negligente ou imprudente. Essa intervenção inicial marca a transição da medicina como arte sagrada para uma atividade sujeita ao controle legal e ético, evidenciando a importância do ordenamento jurídico na delimitação das condutas médicas aceitáveis (Rama, 2020).

Nesse contexto histórico, destaca-se o Código de Hamurabi, elaborado na Babilônia por volta do século XVIII a.C., como um dos primeiros marcos legais voltados à responsabilização médica. O referido código previa sanções rigorosas para médicos que causassem danos aos seus pacientes, como a amputação das mãos nos casos em que procedimentos cirúrgicos resultassem em morte ou mutilação, e a obrigação de indenizar o proprietário em situações que envolvessem escravos (Guimarães, 2018). Tais dispositivos revelam uma concepção punitivista e compensatória da medicina, ainda distante das noções modernas de responsabilidade penal, mas já apontando para a necessidade de controle jurídico sobre o exercício profissional.

Normas tão rigorosas provavelmente desencorajavam intervenções mais arriscadas, sendo comum na época recorrer a práticas como exorcismos, uso de ervas e amuletos para afastar males, em vez de procedimentos invasivos. Mais adiante, no Direito Romano, consolidou-se a ideia de que condutas médicas marcadas por descuido grave deveriam ser punidas, equiparando-se ao dolo. Ainda assim, registros mostram que punições por falhas médicas não eram frequentes, levando autores como Plínio a ironizar que apenas os médicos tinham o privilégio de matar sem sofrer consequências. Montesquieu também apontou esse paradoxo, destacando que os acertos médicos ganhavam fama, enquanto seus erros eram enterrados (Guimarães, 2018).

Na Grécia Antiga, Hipócrates (460–351 a.C.) propôs uma visão mais ética da medicina, introduzindo o princípio do “Primum Non Nocere”, ou seja, “em primeiro lugar, não causar dano”. Essa noção moral foi um marco na prática médica e ainda hoje influencia o exercício da profissão. Em Roma, com a Lei das Doze Tábuas, surgiram os primeiros princípios que relacionavam a prática médica à responsabilidade legal. A profissão passou a ganhar reconhecimento, e os médicos começaram a ser vistos com mais respeito (Faneca, 2017).

Durante a Idade Média, o entendimento predominante era o de que o simples fato de um paciente falecer não era, por si só, evidência de erro médico. A Academia de Paris, em 1829, estabeleceu que somente haveria responsabilidade se ficasse provada uma conduta imprudente, uma falha notória ou uma incapacidade técnica clara. Nessa época, só se imputava culpa ao médico quando sua conduta fosse tão negligente que qualquer pessoa comum poderia ter evitado o erro (Rodrigues, 2013). Segundo o mesmo autor, o erro médico, para ser punível, precisava ser evidente, grosseiro e resultado de ignorância inaceitável. Na atualidade, porém, o cenário é outro. A medicina, em muitos contextos, passou a se associar ao lucro e à busca por prestígio, o que alterou profundamente a relação médico-paciente. A antiga imagem do médico como uma figura infalível e incontestável cedeu espaço à responsabilização jurídica e ética diante de falhas no atendimento (Rodrigues, 2013). Embora o tema da responsabilização médica seja amplamente abordado na literatura jurídica e bioética, muitos estudos ainda se concentram nas abordagens contemporâneas, com menor ênfase na reconstrução histórico-normativa desse processo. No entanto, é possível afirmar que a punição por condutas imprudentes na medicina possui raízes antigas, remontando a códigos legais como o de Hamurabi e evoluindo de forma significativa ao longo dos séculos. Historicamente, houve momentos de rigor e também de proteção ao profissional. No entanto, com o avanço da judicialização da saúde e a mudança de valores sociais, tornou-se indispensável analisar os fatos com base nas ciências médicas e jurídicas, evitando injustiças na apuração da responsabilidade.

4.1 DA RESPONSABILIDADE PENAL

A responsabilização penal do profissional médico ocorre quando sua conduta, seja por ação ou omissão, enquadra-se em tipo penal previsto expressamente na legislação criminal. Para que essa responsabilização ocorra, é indispensável a verificação de certos elementos: descuido com os deveres exigidos pela prática profissional, ocorrência de dano ou ameaça concreta a um bem jurídico tutelado pelo Direito Penal (como a vida ou a saúde), relação direta entre a conduta do médico e o resultado danoso, possibilidade de prever as consequências do ato, além da tipificação legal da ação cometida. Em outras palavras, o comportamento deve estar descrito na lei penal como crime (Faneca, 2017).

Diferentemente da responsabilidade civil, que possui caráter reparatório, a penal tem natureza sancionatória e está voltada à proteção de interesses essenciais para a coletividade, sendo, portanto, mais severa em seus efeitos e exigências. Para que qualquer indivíduo, inclusive o médico, possa ser penalmente responsabilizado, é imprescindível que sua conduta se enquadre no conceito jurídico de crime (Mascarello; Bertoglio, 2019).

Embora o Código Penal não traga uma definição expressa do que seja crime, a doutrina jurídica brasileira reconhece três concepções fundamentais: a legal, a material e a analítica. Na concepção legal, crime é toda conduta descrita em lei como infração penal, conforme o princípio da legalidade previsto no art. 1º do Código Penal. Já sob o enfoque material, conforme defende Dias (2012), crime é toda ação ou omissão que ofende ou coloca em risco um bem jurídico relevante para a ordem social e tutelado pela norma penal.

Por fim, na concepção analítica, também chamada de tripartida, Guilherme de Souza Nucci (2014) define crime como um fato típico, antijurídico e culpável, ou seja, uma conduta que se amolda ao tipo penal, viola o ordenamento jurídico e pode ser juridicamente imputada ao agente a título de culpa. Assim, não basta que o médico tenha cometido um erro para que responda penalmente; é necessário que todos os requisitos do crime estejam presentes tipicidade, ilicitude e culpabilidade e que não haja causas legais que excluam a tipicidade, a ilicitude ou a culpabilidade.

A conduta médica pode ser dolosa, quando praticada com consciência e vontade de realizar a ação típica, ainda que sem intenção deliberada de causar o resultado, ou culposa, nos casos em que o resultado decorre de imperícia (falta de conhecimento técnico), imprudência (ato precipitado) ou negligência (omissão de cuidados). É justamente neste último tipo o culposo que se concentram a maioria dos casos de responsabilização penal na medicina (Nucci, 2014).

Antes de se discutir sobre a imperícia médica, é preciso esclarecer melhor os aspectos ligados à caracterização da culpa. Conforme o arcabouço doutrinário citado por Kuster (2024), a culpa é compreendida como um dos fundamentos centrais da responsabilidade civil subjetiva. Segundo Flávio Tartuce (2020), essa forma de responsabilização exige a demonstração de uma conduta culposa, caracterizada por negligência, imprudência ou imperícia, conforme estabelece o art. 186 do Código Civil.

Essa conduta pode ser ativa ou omissiva, e deve se vincular diretamente ao dano mediante o nexo de causalidade. A autora ressalta que, mesmo nos casos de responsabilidade objetiva, a culpa não desaparece por completo, já que ainda subsiste a necessidade de demonstrar o dano e sua conexão com a conduta do agente, conforme previsto no art. 927 do Código Civil (Kuster, 2024). Adicionalmente, a doutrina de Gagliano e Pamplona Filho (2020) reforça que a culpa, como elemento da responsabilidade subjetiva, implica em uma violação de um dever preexistente, legal ou contratual.

Eles apontam que a atividade médica, quando não relacionada à cirurgia plástica estética, é qualificada como obrigação de meio, exigindo apenas a demonstração de que o profissional agiu conforme os conhecimentos técnicos disponíveis. Nesses casos, a comprovação de negligência, imprudência ou imperícia é indispensável para configurar o dever de indenizar. No entanto, quando se trata de obrigação de resultado — como na cirurgia plástica estética —, a responsabilidade passa a ser objetiva, dispensando a demonstração de culpa, desde que não se alcance o resultado prometido (Kuster, 2024).

Nesse contexto, o entendimento de Gonçalves (2017), é determinante ao afirmar que toda atividade que acarreta prejuízo suscita o problema da responsabilidade. Ele argumenta que a função primordial do instituto da culpa é restaurar o equilíbrio moral ou patrimonial rompido pela conduta do agente, sendo a culpa, portanto, um fator determinante na imposição da obrigação de indenizar. Esse raciocínio também é compartilhado por Pereira (2018, p. 10), para quem a culpa está na origem da responsabilidade, pois a ação ou omissão antijurídica, se causadora de dano, impõe ao agente a obrigação de reparação, reforçando que a culpa está no cerne da imputabilidade da conduta lesiva.

Por fim, no campo penal, Kuster (2024) apresenta o conceito analítico de crime com base em Masson (2022), destacando que a culpabilidade é um dos seus elementos estruturais, ao lado da tipicidade e da ilicitude, segundo a concepção tripartida. Nessa acepção, a culpa adquire um papel dogmático específico, pois configura uma falha na autodeterminação do agente que, mesmo sem dolo, age de modo reprovável e lesivo. Assim, a responsabilização penal por culpa depende da comprovação de que a conduta violou um dever de cuidado objetivo, gerando risco proibido.

Logo, a culpa no Direito Penal não se reduz a mera imprudência, negligência ou imperícia, mas representa a violação de um dever normativo de agir com diligência, conforme os parâmetros da boa conduta exigida pelo tipo penal. Diante dessa contextualização, é preciso abordar sobre a imperícia, caracterizada pela falta de habilidade ou de conhecimento técnico necessário para o desempenho adequado de uma profissão ou tarefa. Já a negligência refere-se a uma atitude de desleixo ou falta de cuidado, resultando em uma falha em cumprir o dever de diligência que se espera, seja por desatenção ou desprezo pelas obrigações.

A imprudência, por sua vez, envolve a falta de cautela ou reflexão antes de agir, levando o profissional a tomar decisões apressadas e sem a devida consideração das consequências (Prates; Marquardt, 2020). Diante desse cenário, é preciso reconhecer que, embora o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) represente formalmente a consagração da autonomia do paciente, sua aplicação concreta nos hospitais brasileiros muitas vezes revela a permanência de uma lógica paternalista.

Como analisado por Santos et al. (2024,), é comum que pacientes sejam submetidos a procedimentos invasivos sem orientação adequada sobre riscos, alternativas terapêuticas ou possíveis impactos na qualidade de vida, o que descaracteriza o consentimento como expressão da autodeterminação. Isto ocorre porque o paternalismo médico se sustenta na suposição de que o médico detém o conhecimento e, portanto, sabe mais do que o paciente sobre o que é melhor para ele.

Essa ideia ignora o princípio ético da autonomia que, conforme Diniz (2010), implica respeito às decisões do indivíduo sobre sua integridade físico-psíquica, mesmo diante da autoridade técnica do profissional de saúde. Ademais, Santos et al. (2024) corroboram a crítica de que o TCLE é frequentemente tratado como formalidade burocrática e não como processo ético comunicacional. Isso se confirma, por exemplo, pela alta proporção de pacientes que não se recordam da assinatura do termo, não compreendem seu conteúdo e tampouco têm suas dúvidas esclarecidas como mostram também os estudos de Meneguin et al. (2010) e Minossi (2011), citados pelos autores.

Para Marques-Filho (2011), o esclarecimento deve ser adaptado ao contexto cultural e educacional do paciente, sendo imprescindível à legitimidade do consentimento. Ignorar esses fatores e limitar o consentimento à mera assinatura de um documento padronizado é reproduzir uma estrutura vertical de poder, que esvazia o sujeito de sua capacidade decisória e reforça o modelo biomédico autoritário criticado há décadas pela bioética clínica.

O erro pode ocorrer por não ter previsto os riscos envolvidos ou, caso tenha reconhecido o perigo, por ter agido de maneira irresponsável, presumindo de forma imprudente que o dano não aconteceria. Contudo, algumas considerações devem ser feitas antes de se prosseguir com a discussão sobre responsabilidade profissional. Com base em Costa e Jesus (2025), é possível afirmar que a responsabilização penal no Brasil, embora devesse seguir critérios objetivos e legais, opera frequentemente por meio de filtros sociais marcados pelo racismo estrutural e pela seletividade penal, afetando desproporcionalmente indivíduos negros, pobres e oriundos das periferias.

Os autores demonstram, a partir de dados do CNJ, Condege e DPE/RJ, que o reconhecimento pessoal mesmo quando feito em desacordo com o rito legal tem servido de base para prisões preventivas injustas majoritariamente direcionadas a pessoas negras, enquanto categorias profissionais privilegiadas, como médicos, raramente enfrentam o mesmo rigor penal. Assim, a crítica criminológica é plenamente justificada: embora o Direito penal não deva se fundar em presunções, na prática, certos corpos sociais são presumidos culpados, revelando uma assimetria estrutural que desvirtua o princípio da isonomia e reforça a impunidade seletiva.

Diante disso, nota-se que, no Capítulo III do Código de Ética Médica (2019) aborda a responsabilidade profissional, estabelecendo que:

É vedado ao médico:
Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.
Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.

Desse modo, embora o Direito Penal exija que a responsabilização se fundamente em critérios objetivos, Costa e Jesus (2025) demonstram que, na prática, essa exigência nem sempre se concretiza de maneira equânime. Sob esse prisma, os autores revelam que o sistema penal brasileiro opera seletivamente, atingindo com mais rigor sujeitos negros e pobres, especialmente quando procedimentos como o reconhecimento pessoal ocorrem em desacordo com as normas legais.

Nessa perspectiva, ainda que seja correto afirmar que nenhuma condenação inclusive a de médicos deva se apoiar apenas em presunções, é preciso reconhecer que tal zelo técnico e pericial não se distribui igualmente entre os diferentes grupos sociais. Ao exporem que muitos acusados são condenados com base em provas frágeis e estigmas sociais, Costa e Jesus (2025) sugerem que a lógica do princípio da culpa, embora formalmente universal, é aplicada com mais rigor a uns e com mais benevolência a outros.

Assim, a exigência de um juízo minucioso, técnico e individualizado, tão defendida nos casos envolvendo erro médico, deveria ser igualmente observada nas situações que envolvem réus vulnerabilizados o que, segundo os dados apresentados pelos autores, claramente não ocorre. Nesse cenário, torna-se imprescindível refletir sobre os limites éticos do exercício da atividade médica, especialmente diante da persistência de práticas paternalistas que desconsideram a autonomia dos pacientes.

Conforme apontam Brauner e Pereira (2021, p. 158-159), embora o respeito ao consentimento livre e informado seja previsto por normas jurídicas e éticas, muitas vezes esse consentimento é tratado como mera formalidade, desprovido de um diálogo efetivo que garanta ao paciente o direito de decidir conscientemente sobre o próprio corpo. Além disso, conforme destacam as autoras, mesmo quando há informação, o consentimento só se legitima se ocorrer em condições de liberdade real, o que inclui tempo para reflexão, linguagem acessível e ausência de coação.

Nessa perspectiva, há que se pontuar que o problema é que, na prática, muitos pacientes ainda são induzidos a aceitar condutas médicas sem compreender plenamente suas implicações, devido à assimetria de poder e à fragilidade institucionalizada do sistema de saúde (Brauner; Pereira, 2021, p. 161-163). Essa disparidade compromete a autodeterminação do sujeito e reforça a ideia de que o médico sabe o que é melhor, mesmo que isso contrarie a vontade expressa do paciente.

Portanto, a superação do modelo paternalista exige não apenas protocolos formais, mas uma transformação cultural na relação médico-paciente, baseada na escuta ativa e no reconhecimento da pessoa como agente moral e jurídico pleno. Como sublinham as autoras, o exercício da medicina deve ser permeado por uma ética da responsabilidade, que valorize a dignidade do paciente e reconheça que a decisão sobre se submeter ou não a determinado tratamento pertence, em última instância, ao próprio indivíduo (Brauner; Pereira, 2021, p. 164-167).

Por tais motivos, a liberdade concedida ao profissional não deve ser confundida com imunidade profissional, já que o médico tem a responsabilidade ética e profissional de agir com prudência, diligência e competência, visando sempre à saúde e ao bem-estar de seu paciente e da sociedade em geral (Prates; Marquardt, 2020).

Desse modo, embora o Código Penal, em seu art. 18, inciso II, estabeleça que o crime culposo se configura quando o agente, por imprudência, negligência ou imperícia, causa resultado lesivo, essa responsabilização nem sempre é aplicada de forma equânime. Conforme problematiza Costa (2020), o nexo causal entre a conduta médica e o dano ao paciente, embora juridicamente necessário para a imputação penal, é muitas vezes interpretado com benevolência quando se trata de determinados profissionais.

Isso revela uma assimetria estrutural, pois enquanto sujeitos socialmente vulneráveis são penalizados com rigor, erros cometidos por médicos tendem a ser enquadrados sob lógicas técnicas ou cíveis, deslocando a responsabilização penal para a esfera da exceção e não da regra. Nesse sentido, o art. 13 do Código Penal dispõe que o resultado é penalmente imputável quando decorre de ação ou omissão sem a qual ele não teria ocorrido, estabelecendo o nexo causal como critério jurídico fundamental.

No entanto, salienta-se que, quando se trata da atuação médica, essa relação de causalidade entre conduta e dano nem sempre é enfrentada com o mesmo rigor conferido a sujeitos comuns. Mesmo em situações em que o profissional omite a realização de um exame indispensável antes de um procedimento cirúrgico e o paciente sofre, em decorrência disso, uma sequela grave, a responsabilização penal tende a ser suavizada ou deslocada para esferas éticas ou cíveis.

Conforme sustenta Costa (2020), esse tratamento indulgente revela a assimetria estrutural do sistema penal, que, ao invés de aplicar com equidade o princípio do nexo causal, opera com filtros seletivos que protegem certos grupos profissionais da responsabilização penal efetiva. Ademais, a responsabilidade penal do médico pode ocorrer não apenas na modalidade culposa, mas também na forma dolosa, quando há intenção manifesta de provocar o resultado lesivo ou quando o profissional assume conscientemente o risco de produzi-lo.

No presente contexto, a análise focará principalmente nos crimes culposos, especificamente em relação aos crimes contra a vida e às lesões corporais. Quando uma conduta errônea de um médico resulta em homicídio culposo, a pena é aumentada em um terço, conforme o §4º do art. 121, do Código Penal, se o crime decorrer da inobservância de regras técnicas da profissão ou se o médico não prestar o devido socorro à vítima, não minimizar as consequências do ato ou fugir para evitar a prisão em flagrante. Da mesma forma, no caso de lesão corporal culposa, o Código Penal prevê o aumento da pena em um terço, conforme o §7º do art. 129, se houver o descumprimento das normas previstas para a preservação da saúde e integridade física do paciente (Mascarello; Bertoglio, 2019).

Desse modo, ao se considerar a responsabilidade penal nos crimes comissivos por omissão, torna-se imprescindível distinguir o nexo de causalidade físico do vínculo normativo que fundamenta a imputação do resultado ao agente. Conforme destaca Araújo (2024, p. 182), o simples fato de uma conduta estar fisicamente relacionada a um evento não autoriza, por si só, a responsabilização penal, sendo necessário comprovar que o agente atuou com dolo ou culpa.

Essa exigência decorre da Teoria Finalista da Ação, segundo a qual o dolo e a culpa integram o próprio conceito de conduta e funcionam como filtros subjetivos que impedem o regressus ad infinitum da imputação penal, restringindo-a aos agentes que efetivamente tenham atuado com vontade dirigida à produção do resultado ou com inobservância do dever objetivo de cuidado. Além disso, é preciso compreender que nos crimes omissivos impróprios, o resultado não é produto direto da conduta do agente, mas de um processo causal autônomo que o omitente tinha o dever jurídico de interromper.

Como explica Araújo (2024), nesses casos o nexo existente entre a conduta omissiva e o resultado lesivo é um nexo de não impedimento, e não de causalidade material. Assim, o agente responde pelo resultado não por tê-lo causado, mas por não tê-lo impedido, desde que estivesse juridicamente obrigado a agir para evitá-lo. Essa responsabilização, entretanto, somente se legitima se for demonstrado que o agente agiu com culpa — isto é, com violação ao dever de cuidado exigido pela sua posição de garante — ou com dolo eventual, caso tenha assumido conscientemente o risco de produzir o resultado.

Por conseguinte, a omissão penalmente relevante depende da presença de um dever jurídico de agir aliado à possibilidade concreta de intervenção e, sobretudo, à demonstração do elemento subjetivo na forma de dolo ou culpa. Conforme observa Araújo (2024), a mera inatividade não é suficiente para configurar responsabilidade criminal, sendo necessário estabelecer critérios de imputação objetiva que determinem em que medida o agente criou ou realizou um risco juridicamente proibido.

Em síntese, a doutrina penal contemporânea inclusive por meio da teoria da imputação objetiva reafirma que a responsabilização penal por omissão só é admissível quando há o descumprimento consciente e evitável de um dever normativo, permeado pelo dolo ou pela culpa, capazes de limitar de forma legítima o exercício do jus puniendi. Dessa forma, é evidente que a responsabilidade penal do médico está diretamente relacionada à observância do dever de cuidado, já que o exercício da medicina envolve riscos inerentes que podem causar danos ao paciente. A negligência no cumprimento dos protocolos médicos pode resultar em consequências legais graves, destacando a importância da atuação ética e responsável dos profissionais de saúde para prevenir lesões, complicações ou até mesmo a morte de seus pacientes.

4.2 O DEVER DO CUIDADO MÉDICO

O cuidado é um aspecto essencial da natureza humana, fundamental nas relações sociais, e antecede até mesmo as normas legais. Segundo o teólogo e filósofo Leonardo Boff (2014), o cuidado envolve ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento afetivo com o outro. Para Miguel Reale (2013), o cuidado pode ser considerado um fato social, que, ao ser valorizado, deve ser regulado por normas. Reale (2013) propõe uma concepção tridimensional do direito, composta por fato, valor e norma, que coexistem de forma interligada e interdependente, com o direito sendo moldado pela interação desses elementos.

Assim, o cuidado não é apenas um fato isolado, mas passa a ser integrado ao mundo jurídico, sendo valorizado por meio das normas. Conforme explica Antônio Carlos Mathias Coltro (2019, p. 165),

Tratar o cuidado como um princípio jurídico reflete a primazia do ser humano sobre outros seres e objetos, levando à conclusão de que o ser humano é a base fundamental de todos os demais valores, sendo os outros valores considerados como derivados desse princípio essencial.

A juridicidade do cuidado se estrutura a partir da distinção tradicional entre obrigação, dever e ônus, conceitos fundamentais no direito. Eros Roberto Grau (1982) define o dever jurídico como uma restrição imposta à vontade do sujeito, obrigando-o ao cumprimento de determinado comportamento, sob pena de sanção.

O termo “obrigação” pode ser entendido de forma ampla, referindo-se ao aspecto passivo de qualquer relação jurídica, ou de maneira mais estrita, caracterizando um vínculo em que uma parte (devedor) deve cumprir uma prestação em favor da outra (credor). Diferente dos conceitos de “obrigação” e “dever”, que envolvem a restrição da liberdade do devedor e a imposição de sanções caso não haja cumprimento, o ônus implica uma exigência imposta ao sujeito, mas sem a previsão de sanções legais, sendo mais voltado para o interesse próprio do indivíduo (Costa, 2020).

Nesse contexto, o cuidado, quando analisado sob a ótica jurídica, configura-se como um dever. Ele impõe uma responsabilidade ao destinatário, estabelecendo uma obrigação de comportamento, especialmente no contexto médico, onde sua não observância pode resultar em sanções legais previstas.

Considerando o papel central do cuidado na atual estrutura jurídica, ele se apresenta como uma parte fundamental da proteção das relações humanas, conforme estipulado pela Constituição Brasileira, que se fundamenta na dignidade da pessoa humana. O ideário solidarista, que permeia a Constituição de 1988, traz o cuidado como um desdobramento natural dessa concepção. Cioatto (2022) explica que a solidariedade exige uma nova abordagem jurídica, que seja materialmente focada na proteção das partes mais vulneráveis, especialmente em relações sociais cada vez mais complexas.

Esse princípio solidário, que se tornou um direito constitucional, fundamenta o cuidado como uma obrigação legal, refletindo o compromisso do Estado em garantir sua aplicabilidade nas interações sociais. A Constituição de 1988, ao conferir à pessoa o status de sujeito de direitos, reforça que o cuidado é essencial para a efetivação dos direitos fundamentais. Assim, sem a prática do cuidado, direitos como à vida, saúde, liberdade e bem-estar não podem ser plenamente exercidos (Carneiro; Brito, 2023).

Portanto, o fato de o cuidado ser entendido como um dever jurídico não depende de uma norma explícita que o defina. Em vez disso, esse dever se revela ao ser comparado com outras disposições legais, funcionando como uma ferramenta para a interpretação e integração de normas abertas e conceitos jurídicos indeterminados. Isso permite que tais normas permaneçam aplicáveis e relevantes sem a necessidade de alterações formais.

Embora haja uma certa banalização dos princípios constitucionais, que frequentemente são usados como justificativa para uma variedade de direitos, este estudo busca ressaltar a importância de uma interpretação cuidadosa dentro do direito civil e penal e a valorização do texto normativo. A pesquisa, portanto, foca nas normas abertas e nos conceitos jurídicos indeterminados, reconhecendo sua relevância no ordenamento jurídico, especialmente em relação aos valores éticos que o fundamentam (Carneiro; Brito, 2023).

É amplamente reconhecido que o profissional médico está submetido a um dever especial de zelo no desempenho de suas funções. Ruy Rosado de Aguiar Júnior (2000) destaca que o exercício da medicina exige do médico uma postura diligente e cuidadosa, compatível com os conhecimentos científicos atuais e com os padrões consagrados da prática clínica. O autor também aponta que, mesmo quando não expressamente pactuadas, certas obrigações acompanham o vínculo entre médico e paciente. Entre elas, destacam-se três compromissos centrais: fornecer informações adequadas, oferecer cuidados compatíveis com a boa prática médica e evitar qualquer forma de abuso ou uso indevido de sua posição profissional (Cioatto 2022).

Desta forma, o dever de cuidado médico não se resume a um compromisso ético, mas adquire contornos jurídicos claros dentro do ordenamento brasileiro. A relação entre médico e paciente é marcada por um vínculo de confiança que impõe ao profissional a responsabilidade de agir com diligência, perícia e prudência. A omissão ou o descuido nesse contexto pode configurar infração legal, sendo passível de responsabilização nas esferas cível, administrativa e, em casos mais graves, penal. Essa responsabilidade é reforçada por princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana e o direito à saúde, que exigem do médico não apenas conhecimento técnico, mas também sensibilidade e comprometimento com o bem- estar do paciente. Assim, o dever de cuidado médico transcende a obrigação contratual, sendo considerado um imperativo ético-jurídico que visa proteger vidas e garantir a efetividade dos direitos fundamentais no âmbito da saúde. O desrespeito a esse dever compromete não apenas a relação médico-paciente, mas também a confiança na própria estrutura do sistema de saúde e na segurança jurídica que dele se espera.

4.3 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

Este capítulo aborda a responsabilidade penal do médico em casos de negligência médica, uma questão de grande relevância no direito contemporâneo, especialmente quando se consideram os desafios de comprovação de culpa e a proteção dos direitos dos pacientes. O foco recai sobre as diferentes formas de responsabilização que podem ser aplicadas ao profissional de saúde, tanto no contexto privado quanto público, e a análise das decisões judiciais que envolvem tais situações.

À medida que se intensificam os debates jurídicos e sociais sobre os limites da atuação médica, as cortes brasileiras vêm enfrentando a difícil tarefa de distinguir, no plano penal, o erro humano justificável da conduta culposa passível de responsabilização. Um exemplo representativo dessa complexidade está no julgamento da Apelação Criminal nº 70046030748, apreciada pela Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

A decisão, proferida em 15 de dezembro de 2015 e publicada em 23 de fevereiro de 2016, teve como relator o Desembargador Sandro Luz Portal e tratou da imputação de homicídio culposo a um médico, em razão do falecimento de um paciente após procedimento cirúrgico de emergência:

HOMICÍDIO CULPOSO. ERRO MÉDICO. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA NA ORIGEM. MANUTENÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA DA NEGLIGÊNCIA E DA IMPERÍCIA IMPUTADAS AO PROFISSIONAL. RESPONSABILIDADE
PENAL QUE EXIGE PROVA SEGURA. O paciente foi submetido a ato cirúrgico de emergência em virtude de lesão abdominal altamente invasiva causada por instrumento cortante. Submetido a exames clínicos, recebeu alta, vindo a apresentar quadro de agravamento dias depois em razão de infecção que levou ao óbito. A prova técnica não evidencia a relação entre o agravamento do quadro e qualquer má execução do procedimento cirúrgico, o mesmo ocorrendo com a liberação do paciente, que se fez à luz de exames clínicos que atestavam normalidade. Surgimento de fístula que não decorreu de mau procedimento, podendo decorrer das peculiares condições pessoais do paciente. Responsabilidade do profissional não demonstrada. Absolvição mantida. RECURSO IMPROVIDO (TJRS, Apelação Criminal nº 70046030748, 2ª Câmara Criminal, Rel. Des. Sandro Luz Portal, j. 15 dez. 2015, publ. 23 fev. 2016).

No caso concreto, o ponto central da acusação era a suposta negligência médica na condução do pós-operatório e na decisão de conceder alta hospitalar. Entretanto, a corte concluiu que não houve omissão do médico em adotar as medidas necessárias para garantir a segurança do paciente, tampouco descuido no acompanhamento clínico imediato. A alta foi concedida com base em exames que atestavam normalidade, o que afasta a hipótese de negligência em sentido técnico, entendida como o não cumprimento de um dever objetivo de cuidado.

Além disso, destaca-se que o surgimento da fístula fator que levou à infecção e ao óbito não foi atribuído a qualquer falha no procedimento, mas sim às condições fisiológicas particulares do paciente. Esse elemento foi determinante para o afastamento da responsabilização penal, pois, sem a demonstração clara de que a omissão ou inação do profissional contribuiu diretamente para o agravamento do quadro, não se pode afirmar a existência do elemento subjetivo da culpa.

Com isso, a decisão reforça que a imputação de negligência no âmbito penal não pode ser sustentada por presunções ou resultados trágicos isoladamente. É imprescindível a demonstração inequívoca de que o médico deixou de agir quando objetivamente deveria tê-lo feito, e que tal omissão foi decisiva para o resultado lesivo. Ao manter a absolvição, o Tribunal reafirma que a responsabilidade penal não admite flexibilizações interpretativas quando se trata de condutas médicas, exigindo prova concreta de violação ao dever de cuidado profissional.

Ainda que a maioria dos casos envolvendo erro médico seja tratada sob a ótica da culpa, os tribunais também enfrentam situações nas quais se discute a possibilidade de dolo eventual, especialmente quando há indicativos de que o profissional assumiu conscientemente o risco de produzir o resultado lesivo. Um caso paradigmático é o julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, na Apelação Criminal nº 0119236-54.2006.8.09.0051, da 2ª Câmara Criminal, relatada pela Dra. Lilia Monica C.B. Escher. A decisão foi proferida em sessão realizada em 23 de abril de 2013 e publicada no Diário da Justiça nº 1295, em 3 de maio de 2013.

APELAÇÃO CRIMINAL. LESÕES CORPORAIS GRAVES. ERRO MÉDICO. DOLO EVENTUAL COMPROVADO. CONDENAÇÃO IMPOSITIVA. 1)
Assumindo o acusado o risco de produzir o resultado, resta configurada a essência do dolo na sua modalidade eventual, impondo a reforma da sentença absolutória. 2) Recurso conhecido e provido (TJGO, Apelação Criminal nº 0119236-54.2006.8.09.0051, 2ª Câmara Criminal, Rel. Des. Lilia Monica C.B. Escher, j. 23 abr. 2013, publ. DJ nº 1295 de 03 maio 2013)

No presente caso, o Tribunal de Justiça de Goiás reformou sentença absolutória e impôs condenação ao médico com base na constatação de dolo eventual, e não apenas de culpa. O acórdão afirma que o profissional assumiu o risco de provocar lesões corporais graves no paciente, o que caracteriza uma conduta mais grave do que a simples negligência. Essa qualificação jurídica indica que, embora o agente não desejasse diretamente o resultado, ele agiu com plena consciência de sua possibilidade, aceitando sua ocorrência.

Ainda que o acórdão seja sintético, a menção ao dolo eventual revela que o tribunal entendeu existir elementos objetivos suficientes para demonstrar que o médico optou por prosseguir com determinada conduta, mesmo diante da previsibilidade concreta de causar danos graves ao paciente. Isso afasta, portanto, a ideia de descuido ou desatenção, típica da negligência, e a substitui por uma atitude deliberadamente arriscada, que configura uma forma qualificada de imputação subjetiva.

Trata-se de uma jurisprudência relevante porque, ao contrário da maioria das decisões que absolvem médicos por ausência de prova segura da culpa, aqui se reconhece a responsabilização penal com base na violação consciente e reiterada de protocolos, com aceitação do risco de resultado danoso. Tal posicionamento demonstra que o Poder Judiciário admite a configuração do dolo eventual quando a conduta médica revela desprezo ativo pelo dever de cuidado — sendo, assim, mais do que omissiva ou negligente: francamente temerária.

A responsabilização penal de médicos por negligência em atendimentos pediátricos tem merecido atenção especial nos tribunais, dada a vulnerabilidade acentuada da vítima e o elevado padrão de diligência exigido. Um caso paradigmático é o julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na Apelação Criminal nº 70065191827, relatada pelo Desembargador Victor Luiz Barcellos Lima, apreciada pela Segunda Câmara Criminal em sessão de 10 de setembro de 2015, com publicação em 23 de setembro do mesmo ano. O réu, médico plantonista, foi condenado por homicídio culposo em decorrência da morte de uma criança de um ano e um mês, após queda significativa e atendimento médico considerado deficiente sob diversos aspectos.

APELAÇÃO CRIME. HOMICÍDIO CULPOSO. ERRO MÉDICO.
CONDENAÇÃO MANTIDA. O acervo probatório confortou a narrativa da denúncia, uma vez que a negligência e imprudência médica consistiram, inicialmente, em não prever o que era previsível se adequado fosse o atendimento, liberando ou dando alta a uma criança de um ano e um mês de idade que sofrera uma queda de mais de dois metros de altura, vindo a bater a cabeça contra o solo, máxime em paciente que, pela idade, ainda não tinha as suturas cranianas bem formadas. Em um segundo momento, o réu agiu culposamente por haver sido comunicado pela enfermeira, que a criança havia retornado ao hospital, no final da manhã, em estado grave, e o acusado haver comparecido para atendimento somente à noite. O depoimento prestado pelo médico que recebeu a criança no serviço de plantão, desacordada, com edema de face acentuado, indagando as razões por que dita criança não lhe havia sido encaminhada antes, bem como o depoimento prestado por outro médico quando esclarece que não se tratava de uma queda corriqueira e normal, motivo por que tratou de encaminhar a vítima ao médico especialista, no caso, o réu, demonstram o seu agir culposo. Além disso, há relato nos autos também de profissional da medicina, indicando a obrigatoriedade da investigação tomográfica nas hipóteses de traumatismo craniano. Não é possível, da mesma forma, o afastamento da causa especial de aumento de pena, prevista no § 4º do art. 121 do Código Penal, sob o argumento de que não há previsão pelo Conselho Federal de Medicina, de regra técnica quanto à providência médica, que depende de caso a caso. Ora, o Conselho trazido à colação não dispõe de autoridade para legislar ou criar regras de atendimentos a pacientes. E, como afirma a própria Defesa, a adequação do atendimento há de variar de caso para caso. Assim, a adequação do atendimento irá exigir do profissional da medicina a necessária dedicação e aplicação de seus conhecimentos técnicos, justamente o que não foi observado pelo réu no caso concreto. Daí por que incide na espécie o disposto no § 4º do art. 121 do CP. APELAÇÃO IMPROVIDA (TJRS, Apelação Criminal nº 70065191827, 2ª Câmara Criminal, Rel. Des. Victor Luiz Barcellos Lima, j. 10 set. 2015, publ. 23 set. 2015).

No caso concreto, a corte reconheceu, com base em ampla prova testemunhal e técnica, que a negligência do réu manifestou-se de forma objetiva em duas etapas distintas: na alta prematura da criança, após trauma craniano severo, e na omissão no segundo atendimento, mesmo após alerta formal da equipe de enfermagem quanto à gravidade do estado clínico da vítima. A decisão é enfática ao afirmar que o médico deixou de adotar conduta compatível com os protocolos mínimos exigidos para casos de queda com impacto craniano em pacientes infantis, o que demonstra o rompimento claro do dever objetivo de cuidado.

Diferentemente de casos em que se discute a ausência de nexo causal ou incerteza quanto à conduta do profissional, o acórdão assevera que a morte poderia ter sido evitada caso o réu tivesse agido com a diligência mínima esperada. O atraso de horas para atendimento, mesmo ciente do retorno urgente da criança ao hospital, configurou omissão grave e inaceitável diante do risco evidente de lesão intracraniana. A negligência aqui não se baseia em erro de julgamento médico razoável, mas em verdadeira ausência de resposta frente a sinais clínicos alarmantes.

Além disso, o acórdão refuta o argumento defensivo de ausência de norma técnica específica expedida pelo Conselho Federal de Medicina, sustentando corretamente que a ausência de um protocolo rígido não isenta o profissional do dever de agir conforme a lex artis ad hoc. O Tribunal destaca que o cuidado médico deve ser individualizado, o que exige do profissional aplicação consciente de seus conhecimentos técnicos, especialmente diante de quadros clínicos críticos dever esse que, no caso, foi negligenciado de forma manifesta.

Trata-se, portanto, de um julgado emblemático que reforça a possibilidade de responsabilização penal do médico com base na negligência, quando esta é comprovada por condutas omissivas, desatentas ou incompatíveis com o risco previsível do caso. A manutenção da condenação reafirma que o exercício da medicina não está imune à responsabilização penal quando se comprova o descumprimento grave do dever de cuidado e a existência de nexo direto entre a omissão e o resultado fatal.

A partir das três jurisprudências analisadas, é possível delinear os contornos da negligência médica como fundamento da responsabilização penal, sobretudo em situações nas quais a omissão ou o descuido do profissional se desvia do dever objetivo de cuidado e compromete a segurança do paciente. Na Apelação Criminal nº 70046030748 (TJRS), a absolvição do médico baseou-se na ausência de provas robustas que demonstrassem a negligência na condução do pós-operatório.

Embora o paciente tenha vindo a óbito por infecção dias após a alta, o Tribunal entendeu que a conduta médica estava respaldada por exames clínicos que indicavam normalidade. O surgimento posterior de complicações, sem vínculo comprovado com ação ou omissão do médico, inviabilizou a imputação de culpa. Assim, o julgado reforça o princípio da responsabilidade penal subjetiva, segundo o qual não basta a existência do resultado trágico; é imprescindível a demonstração concreta de que o profissional deixou de agir quando objetivamente deveria fazê-lo.

Em contraposição, o caso julgado pelo TJRS na Apelação nº 70065191827 evidencia uma configuração típica de negligência penalmente relevante. O tribunal confirmou a condenação do médico por homicídio culposo, assentando que a conduta omissiva e desatenta se manifestou em dois momentos críticos: a alta precoce de um bebê com trauma craniano e a demora injustificável para atender a mesma criança após agravamento do quadro clínico. Ao enfatizar que o profissional ignorou sinais clínicos graves e alertas da equipe de enfermagem, o acórdão demonstra que o rompimento do dever de cuidado foi decisivo para o resultado morte, caracterizando, assim, a culpa por negligência em sua acepção técnica.

Já o julgado do TJGO na Apelação nº 0119236-54.2006.8.09.0051 desloca o debate para a esfera do dolo eventual, demonstrando que a responsabilização penal do médico pode ultrapassar os limites da culpa, quando se comprova que o profissional optou conscientemente por agir, mesmo ciente do risco concreto de provocar danos severos. Embora não tenha havido intenção direta de lesionar, o tribunal reconheceu que o médico assumiu o risco de produzir o resultado lesivo, afastando a ideia de negligência como simples descuido. Este caso revela que, em determinadas circunstâncias, a temeridade deliberada na prática médica pode justificar a imputação mais grave de dolo eventual, com todas as suas implicações penais.

Dessa forma, conclui-se que a negligência médica, para configurar crime, exige prova inequívoca da omissão ao dever de cuidado e do nexo causal entre essa omissão e o resultado lesivo. A jurisprudência brasileira tem sido rigorosa na distinção entre o erro justificável e a culpa penalmente relevante, exigindo que a conduta negligente se traduza em falha clara diante de riscos previsíveis, especialmente quando envolvem pacientes vulneráveis, como crianças. Ao mesmo tempo, reconhece-se que em casos extremos de desconsideração consciente dos riscos, a responsabilidade penal pode ser agravada para abarcar o dolo eventual, marcando o limite ético e jurídico da atuação médica.

Portanto, a responsabilização por negligência médica, seja na esfera pública ou privada, exige um exame técnico minucioso dos elementos que compõem o ato ilícito, especialmente do vínculo direto entre a conduta médica e o dano alegado, o que demonstra o rigor probatório exigido pelos tribunais para a procedência das demandas dessa natureza.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto, observa-se que a responsabilidade penal do médico em caso de negligência médica é uma questão que exige análise cautelosa e equilibrada, considerando tanto os direitos dos pacientes quanto as particularidades do exercício da medicina. O estudo demonstrou que a negligência médica, quando comprovada, pode configurar crime previsto no Código Penal, especialmente nos artigos que tratam de lesão corporal culposa ou homicídio culposo, conforme a gravidade do dano causado.

Ao longo do trabalho, foi possível compreender que o elemento central da responsabilização penal é a comprovação da conduta negligente, caracterizada pela omissão de um dever objetivo de cuidado, pela inobservância de regras técnicas ou pela conduta incompatível com os padrões esperados de um profissional da saúde. No entanto, diferentemente da responsabilidade civil, a penal requer prova inequívoca da culpa do agente, o que envolve uma análise mais rigorosa e criteriosa dos fatos.

Além disso, discutiu-se a importância dos princípios constitucionais, como o devido processo legal e a presunção de inocência, que devem ser respeitados para que o médico não seja punido injustamente. A responsabilização penal, portanto, deve ocorrer apenas quando houver provas claras de que a conduta do profissional ultrapassou os limites da atuação aceitável, causando efetivamente um dano à saúde ou à vida do paciente.

Por fim, ressalta-se a importância da formação ética e técnica dos médicos, da atuação preventiva por meio de protocolos e boas práticas clínicas, e da constante atualização profissional. A responsabilização penal deve atuar como instrumento de justiça e proteção social, mas jamais como forma de intimidação ao exercício da medicina, que é, por natureza, repleta de riscos e incertezas.

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1Graduando(a) do curso de Direito do Centro Universitário FG – UNIFG.