RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO ANESTESIOLOGIA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10251227


Luana Soido Teixeira e Silva


RESUMO: Na área médica, poucas especialidades tiveram uma evolução tão expressiva e marcante como a anestesiologia, e esses profissionais ganharam notória importância ao procedimento cirúrgico, tal qual o cirurgião, atuando paralelamente. Assim, a responsabilidade civil do anestesiologista é, hodiernamente, uma das mais abordadas judicialmente no que concerne à área médica. O presente trabalho possui como objetivo  analisar a  responsabilidade civil do médico anestesiologista. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, o ordenamento jurídico brasileiro vigente, a doutrina, bem como a jurisprudência aplicável e outros artigos a respeito do tema. A problemática envolve a caracterização da responsabilidade civil do médico especialista em anestesiologia e a responsabilidade solidária do chefe de equipe médica. Procurou-se demonstrar as controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias, bem como construir um pensamento esclarecedor para o tema. A prestação obrigacional está dividida em dois tipos: de meio ou de resultado. Tema este de muitos embates literários, contudo, prevalece majoritariamente o entendimento de que a prestação obrigacional do médico anestesiologista é de meio, em regra. Outro ponto de discussão é a análise do fundamento da responsabilidade civil, que, sendo subjetiva ao invés de objetiva, é justificada na análise da culpa ou no dolo, por ação ou omissão na seara do profissional médico anestesiologista. Acrescente-se ainda a relevante discussão acerca da responsabilidade solidária do chefe de equipe médica, que durante muitos anos foi admitida, porém em recente julgado do Superior Tribunal de Justiça foi desconsiderada.   

Palavras-chave: anestesiologista; responsabilidade civil; responsabilidade solidária; chefe de equipe.   

1. Introdução  

Desde as civilizações mais antigas havia a preocupação com o controle da dor em operações cirúrgicas. No início, a atividade anestésica era acessória à do cirurgião e ficava à cargo de qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento, até mesmo leigos, desde que autorizados pelo cirurgião chefe.   

Contudo, a anestesiologia foi uma das áreas da medicina que mais evoluiu e tornou-se um ramo especializado e autônomo, tendo um papel absolutamente independente dentro da equipe cirúrgica e sendo esse o único profissional integrante da equipe médica que possui o direito de intervir no trabalho do cirurgião, propondo interrupção do ato operatório, na dependência de alguma complicação que comprometa a vida do paciente.  

Devido à relevância do ofício, a atividade do anestesista é, hodiernamente, uma das mais abordadas judicialmente no que concerne à área médica.   

A problemática envolve a caracterização da responsabilidade civil do médico especialista em anestesiologia e a responsabilidade solidária do chefe de equipe médica. Procurou-se demonstrar as controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias, bem como construir um pensamento esclarecedor para o tema.  

O presente trabalho possui como objetivo geral analisar a responsabilidade civil do médico anestesiologista e de forma específica verificar a evolução histórica da anestesia, a caracterização da responsabilidade, se de meio ou de resultado, objetiva ou subjetiva e a responsabilidade solidária do chefe da equipe médica por erro exclusivo do anestesiologista, de acordo com as decisões do Superior Tribunal de Justiça.     

A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, o ordenamento jurídico brasileiro vigente, a doutrina, bem como a jurisprudência aplicável e outros artigos a respeito do tema.   

O artigo analisa, preliminarmente a responsabilidade civil de um modo geral: a evolução histórica da responsabilidade civil, elementos da responsabilidade civil e a responsabilidade profissional. E posteriormente, passa a discutir a responsabilidade civil do médico anestesiologista, avaliando os erros que este profissional pode cometer (erros de diagnóstico, erros de terapêutica ou conduta e erros de técnica), a responsabilidade objetiva ou subjetiva, de meio ou de resultado e a responsabilidade solidária do chefe de equipe médica.   

2. Evolução histórica da responsabilidade civil   

Como é sabido, para o estudo de diversos institutos do direito privado é necessário que se faça uma regressão ao Direito Romano, buscando nele suas raízes históricas, pois, como afirma Coulanges (2009, p. 18), “o passado jamais morre completamente para o homem […] e se descer ao fundo de sua alma, pode reencontrar e distinguir essas diferentes épocas pelo que cada uma delas nela deixou.” E com a responsabilidade civil essa realidade não se distingue.   

A origem desse instituto está fincada na vingança privada ou vendetta, que era uma “lídima reação pessoal contra o mal sofrido” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013, p. 54). Logo depois o Direito Romano passou a intervir na sociedade instituindo-se a Pena de Talião, onde encontrava-se traços da Lei da XII Tábulas (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013).  

Contudo, o marco da responsabilidade civil, para a sociedade ocidental, foi a formulação da  Lex Aquilia, onde há o início de princípios norteadores para a reparação do dano. Essa regulava o “damnum injuria datum”, consistente na destruição ou deterioração da coisa alheia por fato ativo que tivesse atingido coisa corpórea ou incorpórea, sem justificativa legal. Por isso a Lei de Aquilia também é vista como marco fundamental para a aplicação da culpa na obrigação de indenizar, originando a responsabilidade extracontratual, também denominada “responsabilidade aquiliana” a partir da qual a conduta do causador do dano é medida pelo grau de culpa com que atuou (PENAFIEL, 2013).  

Na Idade Média, como consequência dos princípios e normas romanas, o direito foi aperfeiçoando a responsabilidade civil em toda a Europa Medieval, notadamente no direito francês (PENAFIEL, 2013). Este deu grandes passos na evolução da responsabilidade civil, notadamente com a elaboração do Código Civil Francês, promulgado em 21 de março de 1804 – Código de Napoleão.   

Os institutos do Direito Francês espalharam-se por diversas legislações, inclusive na elaboração dos Códigos Civis Brasileiros de 1916 e 2002. O primeiro, com projeto elaborado por Clóvis Beviláqua, filiou-se à teoria subjetiva da responsabilidade civil, exigindo prova robusta da culpa do agente causador do dano, e, em determinados casos, presumindo-a (PENAFIEL, 2013). O segundo inovou adotando a teoria dos riscos, também de origem francesa.   

3. Elementos da responsabilidade civil   

Ao se fazer uma análise do art. 186 do Código Civil, que é a base fundamental da responsabilidade civil, é possível identificar três elementos ou pressuposto da responsabilidade civil (conduta humana, dano e nexo causal):  

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito (BRASIL, 2002).   

1. Conduta humana

De acordo com Gagliano e Pamplona (2013, p. 73), “o núcleo fundamental […] da noção de conduta humana é a voluntariedade, que resulta exatamente da liberdade de escolha do agente impulso, com discernimento necessário para ter consciência daquilo que faz.”  

Classifica-se em positiva e negativa, a primeira deriva de um comportamento ativo, positivo e a segunda constitui-se em uma omissão, conduta omissiva ou negativa.    

2. Dano

Sem a existência do dano não haveria motivos para a responsabilidade, de modo que esse é indispensável, chamado inclusive de “pedra de toque” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013, p. 81).  

Para que um dano seja indenizável, Stolze e Pamplona Filho (2013, p. 90) enumeram atributos que consideram essenciais para a caracterização: “a) violação de um interesse jurídico – patrimonial ou moral; b) a efetividade ou certeza; c) subsistência.”   

3. Nexo de causalidade  

Pode-se conceituar o nexo de causalidade como uma relação necessária entre o efeito danoso e a ação que o produziu. A doutrina costuma referir-se a teorias que buscam explicar o nexo de causalidade e citam três: a) teoria da equivalência de condições (ou “conditio sine qua non”): qualquer motivo que colaborou para o evento danoso deve ser buscado; b) a teoria da causalidade adequada: busca-se a conduta capaz de causar prejuízo e c) a teoria da causalidade direta ou indireta (interrupção do nexo causal): busca-se a conduta com maior proximidade com o dano (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013).  

4. Responsabilidade subjetiva e a noção de culpa    

A responsabilidade subjetiva é aquela que tem como fundamento a culpa do agente e, de acordo com Gagliano e Pamplona Filho  

a culpa (em sentido amplo) deriva da inobservância de um dever de conduta, previamente imposto pela ordem jurídica, em atenção à paz social. Se esta violação é proposital, atuou o agente com dolo; se decorreu de negligência, imprudência ou imperícia, a sua atuação é apenas culposa, em sentido estrito (2013, p. 177-178).  

5. Responsabilidade civil profissional  

No âmbito da responsabilidade civil, uma das áreas mais abordadas doutrinária e jurisprudencialmente é a responsabilidade civil dos profissionais liberais. Essa atividade é conceituada como o “conjunto de atos praticados por um sujeito, em decorrência do exercício de seu ofício (profissão autônoma ou subordinada)” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013, p. 262). O Código de Defesa do Consumidor (CDC) disciplina a atividade com responsabilidade objetiva em seu art. 14, §4º: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.” (BRASIL, 1990).  

E dentro de tal responsabilidade encontramos a responsabilidade civil médica, e, mais especificadamente, a responsabilidade civil do médico anestesiologista, que será abordada em tópicos seguintes.    

6. Responsabilidade civil do médico anestesiologista   

1. Considerações preliminares

Desde civilizações mais antigas havia a preocupação com o controle da dor nas operações cirúrgicas. Nas civilizações egípcias, segundo pergaminhos datados de mais de quarenta séculos atrás, já se utilizava substâncias de natureza anestésica em seus procedimentos médicos. E outras empregavam diversos produtos, como a papoula, folhas de coca, raiz de mandrágora, álcool e até flebotomia para permitir as operações (LICINIO FILHO, 2007). Contudo, foi somente em 1842 que Crawford Willianson Long usou o éter para diminuir a dor em um procedimento cirúrgico e, assim, deu-se início ao moderno conceito de anestesia (REIS JÚNIOR, 2006).  

No início, até cerca da primeira metade da década de 50, a atividade anestésica era acessória à do cirurgião, não sendo considerada especialidade autônoma, e ficava a cargo de qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento, até mesmo leigos, desde que autorizados pelo cirurgião chefe (KFOURI NETO, 2001).  

Não obstante, nos dias hodiernos, a anestesia tornou-se um ramo especializado e autônomo da medicina, tendo um papel absolutamente independente dentro da equipe cirúrgica (FRACASSO, 2007).  

A atividade do anestesista é de tão essencial importância, que este profissional é o único integrante da equipe médico-cirúrgica que hierarquicamente pode interferir no trabalho do cirurgião, propondo interrupção do ato operatório, na dependência de alguma complicação que comprometa a vida do paciente (BITTAR apud FRACASSO, 2007).  

Devido à tal relevância do ofício, o anestesista também passou a ser responsabilizado por seus atos de forma apartada do cirurgião chefe, como será analisado a seguir, em recente decisão do Superior Tribunal de Justiça.   

2. Erros do anestesiologista  

De acordo com a monografia elaborada por Oliveira (apud KFOURI NETO, 2001), os erros do profissional anestesiologista dividem-se em três: erros de diagnóstico, erros de terapêutica ou conduta e erros de técnica.   

1. Erros de diagnóstico  

Referem-se às falhas de diagnóstico, em que o anestesiologista avalia de forma equivocada os riscos que os pacientes podem vir a se submeter e resistência ao pós-operatório. Para que o procedimento seja realizado de forma adequada o profissional deve ter em mãos exames essenciais do paciente, a exemplo dos exames bioquímicos, eletrocardiográficos, imagenológicos e outros que julgar necessários, para que possa, a partir desses dados, avaliar se a anestesia pode ser realizada sem maiores riscos (KFOURI NETO, 2001).  

2. Erros de terapêutica ou conduta  

 Esse tipo de erro é mais associado à negligência do anestesiologista, e ocorrem quando, por exemplo, este deixa o paciente sem vigilância, haja vista que complicações podem ocorrer seja no período pré-anestésico, transoperatório ou pós anestésico, bem como quando o profissional não trata devidamente do estresse cirúrgico anestésico ou qualquer outro quadro patológico (KFOURI NETO, 2001).   

3. Erros de técnica  

 Esses são os mais destacados, a exemplo do uso de anestésico local em paciente hipersensível, o uso inadequado de substância anestésica ou oxigenação insuficiente, já que durante a anestesia, a ventilação, oxigenação e circulação são parâmetros que devem ser avaliadas continuamente (KFOURI NETO, 2001).  

3. Caracterização da atividade do anestesiologista dentro responsabilidade civil   

1. Responsabilidade subjetiva: a culpa na seara do anestesiologista   

Sabe-se que a responsabilidade civil do médico é em regra, subjetiva, pois esse é considerado um profissional liberal, nos termos do Código de Defesa de Consumidor, que apregoa, em seu art. 14, §4º: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.” (BRASIL, 1990). Essa responsabilidade subjetiva encontra fundamento também no art. no art. 951 do Código Civil, tipificado da seguinte maneira:   

Art. 951 O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda nos casos de indenização devida por aquele que, no exercício da atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, gravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho (BRASIL, 2002).  

Quanto à análise da culpa, podemos distinguir a imprudência, imperícia e negligência. Imprudência é definida como a falta de cautela na prática de determinados atos. Imperícia, por sua vez, é conceituada como a falta de habilidade para praticar determinados atos, tem certa dificuldade de ser detectada no trabalho do anestesista, pois sendo ele um especialista, é um possuidor desta qualificação. Negligência trata-se da falta de observância aos deveres e cuidados que a situação demanda (FRACASSO, 2007).  

2. Obrigação de meio  

Em relação à obrigação do médico anestesiologista – se de meio ou de resultado –  há muitas divergências doutrinárias e jurisprudenciais a respeito. É entendimento minoritário na doutrina e nos Tribunais Superiores que a responsabilidade desse profissional é de resultado, pois o anestesiologista teria como dever fundamental acompanhar o paciente antes, durante e após o procedimento cirúrgico até a total recuperação dos efeitos da anestesia, para garantir que o paciente retornasse ao seu estado normal, física e mentalmente. Este ensejaria, portanto, uma finalidade específica a ser alcançada pela atividade e como conclusão, a responsabilidade do anestesiologista era considerada de resultado (FRACASSO, 2007). Desse pensamento, comunga Bittar:  

Daí porque considero a anestesia uma obrigação de resultado, haja vista a responsabilidade do médico de anestesiar o paciente e, após, recuperálo, dentro de suas condições normais, devolvendo-lhe por completo todos os sentidos. Na medida em que aquele profissional examinou o paciente, no período pré-operatório, fez os exames necessários e o considerou apto para ser submetido àquele tipo de anestesia, obriga-se a recobrá-lo, de forma consciente e plena, se assim ele se encontrava, anteriormente ao ato anestésico (apud FRACASSO, 2007, p. 49-50).  

Em que pese tal posicionamento, é majoritário o entendimento que a responsabilidade civil do médico anestesiologista seja de meio, devido às peculiaridades de cada organismo, como defende França:  

Dizer-se que a obrigação do anestesiologista é de resultado, porque ele se compromete em anestesiar o paciente, e depois reanimá-lo às condições normais é, no mínimo, um absurdo. Primeiro porque a função de um anestesiologista não é apenas fazer o paciente dormir e depois acordá-lo. Depois, fazê-lo dormir e não acordá-lo, podem constituir ocorrências cujas razões são independentes de sua vontade, ligadas às condições fisiológicas e patológicas do doente e decorrentes da própria limitação de sua ciência, ainda mais quando foram realizados todos os cuidados pré- anestésicos e solicitados todos os exames complementares. O anestesiologista não tem como prever as muitas conseqüências oriundas das condições multifárias do organismo humano (apud FRACASSO, 2007, p. 50).  

Nesse sentido, argumentam também Stolze e Pamplona Filho (2013, p. 269), pois, segundo eles, a finalidade da anestesia “é justamente possibilitar a atividade cirúrgica, pelo que o elemento culpa deve ser provado, sendo hipótese de responsabilidade civil subjetiva.”  

3. Responsabilidade solidária do chefe de equipe médica     

Outro ponto relevante é a responsabilidade solidária do chefe de equipe médica quanto aos erros praticados exclusivamente pelo anestesiologista. Tema esse de extremo dissenso na doutrina e na jurisprudência, inclusive dos Tribunais Superiores.   

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), a responsabilidade solidária do cirurgião-chefe foi levada a debate ainda em 1997, através do REsp 53104 / RJ e em 2009 pelo REsp 605435 / RJ, respectivamente:  

CIVIL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – ERRO MEDICO – RESPONSABILIDADE SOLIDARIA DO CIRURGIÃO (CULPA IN ELIGENDO) E DO ANESTESISTA RECONHECIDA PELO ACORDÃO RECORRIDO – MATERIA DE PROVA – SUM. 7/STJ. I – O MÉDICO CHEFE E QUEM SE PRESUME RESPONSÁVEL, EM PRINCÍPIO, PELOS DANOS OCORRIDOS EM CIRURGIA POIS, NO COMANDO DOS TRABALHOS, SOB SUAS ORDENS E QUE EXECUTAM-SE OS ATOS NECESSÁRIOS AO BOM DESEMPENHO DA INTERVENÇÃO.  

II – DA AVALIAÇÃO FATICA RESULTOU COMPROVADA A RESPONSABILIDADE SOLIDARIA DO CIRURGIÃO (QUANTO AO ASPECTO “IN ELIGENDO”) E DO ANESTESISTA PELO DANO CAUSADO. INSUSCETIVEL DE REVISÃO ESTA MATERIA A TEOR DO ENUNCIADO NA SUM. 7/STJ.  III – RECURSO NÃO CONHECIDO.  

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONSUMIDOR. REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E MATERIAIS. CIRURGIA PLÁSTICA. ERRO MÉDICO. DEFEITO NO SERVIÇO PRESTADO. CULPA MANIFESTA DO ANESTESISTA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO CHEFE DA EQUIPE E DA CLÍNICA.  

1. O Tribunal a quo manifestou-se acerca de todas as questões relevantes para a solução da controvérsia, tal como lhe fora posta e submetida. Não cabe alegação de violação do artigo 535 do CPC, quando a Corte de origem aprecia a questão de maneira fundamentada, apenas não adotando a tese da recorrente. Precedentes.  

2. Em regra, o cirurgião chefe dirige a equipe, estando os demais profissionais, que participam do ato cirúrgico, subordinados às suas ordens, de modo que a intervenção se realize a contento.  

3. No caso ora em análise, restou incontroverso que o anestesista, escolhido pelo chefe da equipe, agiu com culpa, gerando danos irreversíveis à autora, motivo pelo qual não há como afastar a responsabilidade solidária do cirurgião chefe, a quem estava o anestesista diretamente subordinado.  

4. Uma vez caracterizada a culpa do médico que atua em determinado serviço disponibilizado por estabelecimento de saúde (art. 14, § 4o, CDC), responde a clínica de forma objetiva e solidária pelos danos decorrentes do defeito no serviço prestado, nos termos do art. 14, § 1o, CDC.  

5. Face às peculiaridades do caso concreto e os critérios de fixação dos danos morais adotados por esta Corte, tem-se por razoável a condenação da recorrida ao pagamento de R$ 100.000,00 (cem mil reais) a título de danos morais.  

6. Recurso especial conhecido em parte e, nesta parte, provido.  

Foi decido pelo STJ nesses dois julgados transcritos que haveria responsabilidade solidária do cirurgião-chefe por sua culpa in elegendo, ou seja, por sua má escolha (anestesiologista), pois todos os outros profissionais que participam do ato cirúrgico estão sob suas ordens, subordinados, inclusive o anestesiologista.  

Desses julgados, percebe-se que houve um desprezo da doutrina, pois como já foi afirmado, o profissional anestesiologista adquiriu com a evolução das técnicas médicas autonomia e independência em relação ao seu ofício.   

Não obstante, somente em 2011, com o EREsp 605435 / RJ, que o Superior Tribunal de Justiça reconheceu tal autonomia do anestesista:   

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. 

PROCESSUAL CIVIL. CIVIL E CONSUMIDOR. ERRO MÉDICO. RESPONSABILIDADE DOS MÉDICOS CIRURGIÃO E ANESTESISTA. CULPA DE PROFISSIONAL LIBERAL (CDC, ART. 14, § 4o). RESPONSABILIDADE PESSOAL E SUBJETIVA. PREDOMINÂNCIA DA AUTONOMIA DO ANESTESISTA, DURANTE A CIRURGIA. SOLIDARIEDADE E RESPONSABILIDADE OBJETIVA AFASTADAS.  

1. Não se conhece dos embargos de divergência apresentados pela Clínica, pois: (I) ausente o necessário cotejo analítico entre os acórdãos embargado e paradigma, para fins de comprovação da divergência pretoriana (RISTJ, arts. 255, §§ 1o e 2o, e 266, § 1o); e (II) o dissídio apontado baseia-se em regra técnica de conhecimento do recurso especial.  

2. Comprovado o dissídio pretoriano nos embargos de divergência opostos pelo médico cirurgião, devem ser conhecidos.  

3. A divergência cinge-se ao reconhecimento, ou afastamento, da responsabilidade solidária e objetiva (CDC, art. 14, caput) do médico cirurgião, chefe da equipe que realiza o ato cirúrgico, por danos causados ao paciente em decorrência de erro médico cometido exclusivamente pelo médico-anestesista.  

4. Na Medicina moderna a operação cirúrgica não pode ser compreendida apenas em seu aspecto unitário, pois frequentemente nela interferem múltiplas especialidades médicas. Nesse contexto, normalmente só caberá a responsabilização solidária e objetiva do cirurgião-chefe da equipe médica quando o causador do dano for profissional que atue sob predominante subordinação àquele.  

5. No caso de médico anestesista, em razão de sua capacitação especializada e de suas funções específicas durante a cirurgia, age com acentuada autonomia, segundo técnicas médico-científicas que domina e suas convicções e decisões pessoais, assumindo, assim, responsabilidades próprias, segregadas, dentro da equipe médica. Destarte, se o dano ao paciente advém, comprovadamente, de ato praticado pelo anestesista, no exercício de seu mister, este responde individualmente pelo evento.  

6. O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 14, caput, prevê a responsabilidade objetiva aos fornecedores de serviço pelos danos causados ao consumidor em virtude de defeitos na prestação do serviço ou nas informações prestadas – fato do serviço. Todavia, no § 4o do mesmo artigo, excepciona a regra, consagrando a responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais. Não há, assim, solidariedade decorrente de responsabilidade objetiva, entre o cirurgião-chefe e o anestesista, por erro médico deste último durante a cirurgia.  

7. No caso vertente, com base na análise do contexto fático-probatório dos autos, o colendo Tribunal de Justiça afastou a culpa do médico cirurgião – chefe da equipe -, reconhecendo a culpa exclusiva, com base em imperícia, do anestesista.  

8. Embargos de divergência da Clínica não conhecidos.  

9. Embargos de divergência do médico cirurgião conhecidos e providos.  

Portanto, esse julgado, mostra-se deveras inovador, pois até então o STJ havia considerado a responsabilidade solidária do cirurgião-chefe quanto aos erros cometidos de forma exclusiva pelo médico-anestesista. Contudo, foi lúcida a decisão que reconheceu as funções específicas desempenhadas por cada profissional no momento do ato cirúrgico. O julgado também pacificou o entendimento já majoritário quanto à responsabilidade de meio e subjetiva do médico anestesiologista.   

7. Conclusão  

Diante do exposto, foi possível verificar a responsabilidade civil do médico anestesiologista. Essa, caracteriza-se como subjetiva, tendo em vista que esse profissional submete-se ao Código de Defesa do Consumidor (CDC, art. 14, §4º), que preconiza tal responsabilidade aos profissionais liberais. É responsabilidade do meio, de acordo com a doutrina majoritária, devido às peculiaridades que cada organismo humano possui. E quanto à análise da responsabilidade do chefe da equipe médica, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que não há responsabilidade solidária entre esse e o anestesiologista, devido às funções específicas de cada profissional no procedimento cirúrgico. Não obstante, ainda é necessário maiores discussões à respeito de tal responsabilidade civil, não só para o aperfeiçoamento doutrinário e jurisprudencial, mas principalmente para a medicina e para os profissionais médicos, que diariamente ocupam-se com o organismo humano, de tão intrincada peculiaridade.     

REFERÊNCIAS  

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 53104 / RJ. Relator: Ministro Waldemar Zveiter. Brasília, DF, 04 de março de 1997. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/listarAcordaos?classe=&num_processo=&nu m_registro=199400260229&dt_publicacao=16/06/1997 >. Acesso em: Out. 2013.  

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 605435 / RJ. Relator: Ministro João Otávio de Noronha. Brasília, DF, 22 de setembro de 2009. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/5723115/recursoespecial-resp-605435-rj-2003-0167564-1>. Acesso em: Out. 2013.  

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 605.435 – RJ. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, DF, 14 de novembro de 2011. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22905278/embargos-de-divergenciaem-recurso-especial-eresp-605435-rj-2011-0041422-0-stj/inteiro-teor22905279>. Acesso em: Out.2013.  

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, v. 3.   

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. 4.ed. São Paulo: Martin Claret, 2011.     

PENAFIEL, Fernando. Evolução histórica e pressupostos da responsabilidade civil. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 111, abr 2013. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13110>. Acesso em Out.2013.   

FRACASSO, Elydio Palmas. Responsabilidade civil do médico anestesista. Itajaí: UNIVALI, 2007. Disponível em: < http://siaibib01.univali.br/pdf/Elydio%20Palmas%20Fracasso.pdf>. Acesso em: Out.2013  

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