SOLID WASTE AND SOCIO-ENVIRONMENTAL INEQUALITIES IN THE CITY OF RIO DE JANEIRO: BETWEEN PUBLIC POLICIES AND TERRITORIAL INVISIBILITIES
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202504241108
Raíssa Tavares Cortez1
Ricardo Rodrigues Tavares2
Resumo
A gestão dos resíduos sólidos urbanos (RSU) no Município do Rio de Janeiro reflete os desafios históricos e estruturais enfrentados pelas cidades brasileiras no que se refere à universalização do saneamento básico. Este artigo analisa, sob uma abordagem qualitativa, as políticas públicas de resíduos sólidos com foco nas desigualdades sociais e territoriais que caracterizam a cidade. A pesquisa foi conduzida por meio de revisão bibliográfica narrativa, considerando dados institucionais, artigos científicos e documentos legais. Os resultados evidenciam que, apesar dos avanços institucionais e da ampliação do orçamento público destinado à coleta e à triagem de resíduos, as favelas e os territórios informais continuam à margem da política urbana de saneamento. Além disso, são analisadas iniciativas locais, como o projeto Light Recicla, os programas de urbanização de favelas e o papel dos catadores, que apontam caminhos possíveis para a construção de uma gestão mais justa e inclusiva. O estudo conclui que o enfrentamento da desigualdade ambiental exige o reconhecimento dos territórios vulneráveis como espaços legítimos de cidadania e inovação social.
Palavras-chave: resíduos sólidos. saneamento básico. justiça ambiental. favela. rio de janeiro.
Abstract
The management of urban solid waste (USW) in the city of Rio de Janeiro reflects the historical and structural challenges faced by Brazilian cities regarding the universalization of basic sanitation. This article analyzes, through a qualitative approach, public policies related to solid waste with a focus on the social and territorial inequalities that characterize the city. The research was conducted through a narrative literature review, based on institutional data, scientific articles, and legal documents. The results show that, despite institutional advances and the expansion of the public budget allocated to waste collection and sorting, favelas and informal territories remain excluded from the urban sanitation agenda. Moreover, local initiatives such as the Light Recicla project, slum upgrading programs, and the role of waste pickers suggest possible paths for building a fairer and more inclusive waste management system. The study concludes that addressing environmental inequality requires the recognition of vulnerable territories as legitimate spaces of citizenship and social innovation.
Keywords: solid waste. basic sanitation. environmental justice. favela. public policy.
1. INTRODUÇÃO
No contexto carioca, a desigualdade no acesso aos serviços de saneamento ambiental revela disparidades territoriais históricas, particularmente nas favelas, onde a coleta de resíduos é precária ou inexistente. A ausência de infraestrutura adequada e o estigma da informalidade dificultam a universalização dos serviços e agravam os impactos ambientais e sociais.
.A gestão de resíduos sólidos urbanos – RSU constitui uma das maiores fragilidades do saneamento básico brasileiro, especialmente em grandes metrópoles como o Rio de Janeiro. Embora a Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, instituída pela Lei nº 12.305/2010, tenha representado um marco importante ao prever diretrizes e princípios voltados à responsabilidade compartilhada, prevenção e sustentabilidade, sua implementação ainda enfrenta desafios consideráveis.
Este artigo é um desdobramento de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado na pós-graduação em Engenharia Ambiental de um dos autores. Para esta versão, com vistas à publicação científica, o trabalho foi reformulado com a colaboração de um segundo autor, que contribuiu com a redação e com a incorporação de dados e análises atualizadas sobre o Município do Rio de Janeiro. O objetivo é promover uma reflexão crítica sobre os avanços, os limites e as perspectivas da gestão de resíduos sólidos na cidade, com ênfase na integração entre participação social e justiça ambiental.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 Fundamentos e Desafios da Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos
A gestão de resíduos sólidos urbanos tem raízes que remontam às civilizações antigas, revelando uma relação intrínseca entre saúde pública e organização do espaço urbano. Conforme destacado pela Fundação Nacional de Saúde, os registros históricos indicam que as práticas de saneamento sempre acompanharam os estágios civilizatórios, oscilando entre avanços e retrocessos conforme o grau de desenvolvimento sociopolítico (Brasil, 2004). Exemplo notório dessa dinâmica é a experiência do Império Romano, cuja engenharia permitiu a construção de aquedutos e sistemas de esgoto eficazes, posteriormente desmantelados ou negligenciados durante a Idade Média, ocasionando sucessivas epidemias — como a peste bubônica — fruto da precariedade sanitária e da ausência de políticas públicas de higiene urbana (Brasil, 2004).
A compreensão contemporânea do saneamento amplia o seu escopo, articulando-o à promoção da saúde, à proteção ambiental e ao desenvolvimento socioeconômico. Segundo Batista (2012, p. 9), o saneamento envolve um “conjunto de medidas que visa preservar ou modificar as condições do meio ambiente com a finalidade de prevenir doenças, promover a saúde, melhorar a qualidade de vida da população e a produtividade do indivíduo e facilitar a atividade econômica”. Destarte, ele transcende o mero abastecimento de água e esgotamento sanitário, incorporando práticas sustentáveis e integradas de gestão urbana.
Mesmo com o advento da modernidade, os desafios persistem. A própria Fundação Nacional da Saúde – FUNASA ressalta que, apesar do avanço das tecnologias de comunicação, o conhecimento técnico sobre saneamento ainda é pouco difundido, dificultando sua efetiva implementação em diversas regiões do país (Brasil, 2004). A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, estabeleceu diretrizes importantes, como a Agenda 21, que reconhece a centralidade do saneamento nas estratégias de desenvolvimento sustentável (Brasil, 2004).
“A Conferência do Rio de Janeiro (1992), realizada pela ONU, com a participação da maioria dos países do mundo, teve como resultado mais significativo o documento, assinado por mais de 170 países, sobre a Agenda 21, onde esses países se comprometem a adotar um conjunto de medidas visando a melhorar a qualidade de vida do nosso planeta” (Brasil, 2004, p. 11).
O saneamento ambiental começou a ser compreendido como um direito fundamental e uma necessidade coletiva, integrando-se a políticas públicas de saúde, desenvolvimento urbano e preservação ambiental.
2.2 Panorama Histórico e Político do Saneamento no Brasil
A trajetória das políticas públicas de saneamento no Brasil reflete uma combinação de avanços institucionais e entraves estruturais. Conforme Batista (2012), entre as décadas de 1950 e 1970, os investimentos no setor eram provenientes, em sua maioria, dos orçamentos gerais, com apoio de financiamentos externos. Este modelo foi substituído, nos anos 1970, pelo Plano Nacional de Saneamento (Planasa), que impulsionou a criação das Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs), centralizando a gestão sob a coordenação da União.
O declínio dos investimentos públicos, agravado pela crise econômica dos anos 1980, impulsionou a participação da iniciativa privada na década de 1990, com a concessão de serviços em municípios como Limeira e Ribeirão Preto (Batista, 2012). Paralelamente, a agenda internacional, especialmente com os Objetivos do Milênio (ONU, 2000) e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC, 2007), incentivou o retorno de aportes financeiros voltados à universalização do saneamento básico.
Nessa trajetória, o Brasil estabeleceu marcos regulatórios importantes, como a Lei nº 11.445/2007, que instituiu a Política Nacional de Saneamento Básico (Brasil, 2007). Esta legislação consagra princípios como a universalização do acesso, a eficiência na prestação dos serviços e a articulação com políticas de saúde pública, habitação e desenvolvimento urbano.
Contudo, como adverte a FUNASA, é imprescindível romper com a lógica predatória de uso dos recursos naturais, substituindo modelos econômicos extrativistas por alternativas sustentáveis que respeitem os limites ecológicos do planeta (Brasil, 2004).
2.3 Resíduos Sólidos Urbanos: Aspectos Conceituais e Legais
No campo da gestão dos resíduos sólidos urbanos, a Lei nº 12.305/2010 representa um divisor de águas. Ela institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que determina como prioridade a não geração, seguida pela redução, reutilização, reciclagem, tratamento e, por fim, a disposição final ambientalmente adequada (Brasil, 2010). Esse ordenamento legal estabelece ainda a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, integrando fabricantes, comerciantes, consumidores e o poder público (Brasil, 2010).
Conforme a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT NBR 10004/87), resíduos sólidos são definidos como aqueles materiais nos estados sólido e semissólido provenientes de atividades industriais, urbanas, hospitalares e agrícolas, incluindo lodos de tratamento e materiais que, por suas características, não podem ser descartados diretamente no meio ambiente (Ferreira et al., 2019).
Apesar da importância do tema, o saneamento no Brasil historicamente privilegiou os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, relegando a gestão de resíduos a um plano secundário (Mambretti e Nascimento, 2022). Segundo dados do SNIS (2021), cerca de 40% dos resíduos sólidos urbanos ainda são descartados de forma inadequada, o que representa não apenas um risco ambiental, mas também uma ameaça à “saúde coletiva” (Campos, 2024).
Entre os mecanismos institucionais previstos pela PNRS, para garantir a saúde coletiva, destacam-se o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) e os acordos setoriais, como instrumentos de planejamento e cooperação entre entes públicos e privados (Brasil, 2010). Além disso, a logística reversa emerge como uma estratégia de reintrodução dos resíduos na cadeia produtiva, promovendo economia de recursos e redução de impactos ambientais.
Dentre as estratégias adotadas para cumprir a PNRS está a responsabilidade compartilhada, que é uma política de responsabilidade entre fabricantes, consumidores e governos, com o objetivo de prevenir a geração de resíduos de difícil manejo, estimulando práticas de produção mais limpas e o descarte adequado. Como é possível observar na Lei 12305/2010:
Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por: I – acordo setorial: ato de natureza contratual firmado entre o poder público e fabricantes, importadores, distribuidores ou comerciantes, tendo em vista a implantação da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida do produto. (Brasil, 2010)
Essas informações também estão presentes no Inciso XVII::
XVII – responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos: conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos desta Lei. (Brasil, 2010)
Outras abordagens eficazes incluem o uso de tecnologias como a compostagem, biodigestão anaeróbica e a recuperação energética via incineração e gaseificação (Machado, 2022). Para resíduos não recicláveis e não perigosos, os aterros sanitários continuam sendo a alternativa mais segura, desde que devidamente controlados. Em âmbito internacional, países da União Europeia têm adotado o modelo da economia circular, que busca manter os materiais em uso pelo maior tempo possível, diminuindo o descarte e a exploração de novos recursos (Weetman, 2019; Parlamento EU, 2024). Na Alemanha e Suécia, por exemplo, a taxa de reciclagem supera os 50%, enquanto no Brasil ainda gira em torno de 5% (Silva e Capanema, 2019).
A gestão de resíduos sólidos deve considerar, também, os aspectos sociais envolvidos na cadeia produtiva. A atividade dos catadores de materiais recicláveis, responsáveis por cerca de 90% da reciclagem realizada no Brasil, ainda é marcada pela informalidade e pela precariedade (IPEA, 2013; Souza, 2018). A inclusão desses trabalhadores nas políticas públicas é fundamental para garantir a equidade e a eficácia dos programas de coleta seletiva.
Além disso, como ressaltam Feitosa e Machado (2018), a PNRS se articula diretamente com o direito à cidade e com a justiça ambiental, promovendo uma distribuição equitativa dos serviços urbanos e o acesso aos bens ambientais. Nesse sentido, a universalização do saneamento deve ser compreendida não apenas como uma meta técnica, mas como uma estratégia de redução das desigualdades territoriais e socioeconômicas (Custódio, 2022; Rath, 2024).
Pode-se afirmar que o desenvolvimento de políticas públicas voltadas ao saneamento básico requer, de forma imprescindível, uma perspectiva participativa, em que a população esteja inserida no processo decisório, atuando como agente ativo e corresponsável pelas ações implementadas. Nesse sentido, o Instituto Trata Brasil, por meio do manual elaborado por Batista (2012), reforça que “é responsabilidade dos municípios desenvolver o Plano Municipal de Saneamento Básico e agendar reuniões com a comunidade” (Batista, 2012, p. 15), evidenciando a importância da escuta pública e da integração comunitária na formulação das diretrizes locais.
Partindo desse princípio de participação social, é possível contextualizar os desafios históricos da gestão dos resíduos sólidos urbanos (RSU) na cidade do Rio de Janeiro. No século XIX, a capital fluminense foi palco de amplas intervenções urbanísticas, denominadas reformas sanitárias. Tais reformas, entretanto, não tinham como único objetivo a promoção da saúde pública. Havia também um propósito estético e social, que consistia em remodelar a paisagem urbana conforme padrões europeus e excluir os pobres das regiões centrais. Como apontam Rodrigues e Miranda (2014), “o modelo são as cidades europeias, com a ‘limpeza e o arejamento do ar’ e, principalmente, com o afastamento da população pobre do centro da cidade. Assim, fundam-se as bases para a normatização e para o controle da sociedade” (Rodrigues e Miranda, 2014, p. 25).
3. METODOLOGIA
O presente estudo adota uma abordagem qualitativa e exploratória, baseada em uma revisão bibliográfica narrativa sobre a gestão de resíduos sólidos urbanos no Município do Rio de Janeiro. A escolha por essa metodologia se justifica pela intenção de interpretar e discutir, de forma abrangente, os conhecimentos já produzidos sobre o tema, a partir de diversas fontes acadêmicas e institucionais.
A análise é classificada como qualitativa por não buscar a quantificação de dados empíricos, mas sim a interpretação crítica dos discursos e políticas sobre o saneamento ambiental, com ênfase no contexto urbano carioca (Gil, 2017). A revisão narrativa, segundo Rother (2007), constitui uma forma ampla de publicação científica que visa descrever e discutir o desenvolvimento de determinado tema sob diferentes enfoques teóricos e contextuais.
A seleção das fontes foi realizada em bases de dados acadêmicas reconhecidas, como SciELO, Google Scholar, Periódicos CAPES e repositórios institucionais de universidades brasileiras. Foram também analisados artigos científicos, dissertações, teses, relatórios técnicos, documentos legais, matérias jornalísticas e sites especializados em resíduos sólidos urbanos. Os estudos que abordassem especificamente a gestão de resíduos no município do Rio de Janeiro, bem como textos voltados para o saneamento ambiental e seus impactos sociais e ecológicos foram o foco, assim como as fontes institucionais, como manuais do Instituto Trata Brasil, documentos do SNIS e do Ministério do Meio Ambiente, também foram incorporadas com o objetivo de fortalecer a análise normativa e a discussão crítica das políticas públicas existentes.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
A gestão de resíduos sólidos urbanos (RSU) no Município do Rio de Janeiro revela avanços localizados, mas ainda enfrenta obstáculos estruturais que dificultam a universalização dos serviços. A realidade das favelas, nas quais o descarte irregular é comum e a coleta seletiva muitas vezes inexistente, evidencia o quanto as desigualdades socioespaciais se refletem nas políticas de saneamento e gestão de resíduos (Souza, 2018).
Estima-se que cerca de 42% dos resíduos domésticos gerados nas favelas cariocas sejam descartados de forma inadequada, agravando os impactos ambientais e sanitários nessas áreas (Souza, 2018). Essa condição é resultado da ausência de infraestrutura básica, da estigmatização desses territórios e da dificuldade de integrar as favelas às políticas públicas urbanas formais. A Lei nº 11.445/2007, que estabelece o princípio da universalização do saneamento, e a Lei nº 12.305/2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), são frequentemente negligenciadas na prática, especialmente em territórios marcados pela informalidade.
Iniciativas locais têm buscado responder a esse cenário, ainda que de maneira desigual. O projeto Light Recicla, implementado em 2011, permitiu que moradores trocassem resíduos recicláveis por bônus na conta de luz, promovendo uma interface entre educação ambiental, inclusão social e economia circular (Souza, 2018). A criação de estações de transferência de resíduos, voltadas para a otimização da logística da coleta, também representa um avanço técnico importante (Mendonça, 2023), especialmente em áreas de difícil acesso ou grande densidade populacional.
A Comlurb, Companhia Municipal de Limpeza Urbana, registrou um avanço expressivo na coleta seletiva: o percentual de resíduos recicláveis coletados aumentou de 6,6% em 2020 para 11,3% em 2024 (Rio de Janeiro, 2024). O investimento no setor também cresceu: o orçamento da Comlurb para 2025 foi “fixado em R$ 2,87 bilhões, o maior da história da companhia” (Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 2024). No entanto, ainda há uma dependência significativa de frotas terceirizadas e falhas operacionais em regiões periféricas.
Apesar da precariedade dos serviços em muitas favelas, dados da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de 2015 mostram que 17% dos moradores já realizavam separação de resíduos, mesmo sem cobertura adequada da coleta seletiva. Esse dado revela uma disposição da população em participar de práticas sustentáveis, sinalizando um potencial subutilizado para políticas de mobilização e inclusão ambiental. Entre as tentativas de redução das desigualdades na prestação dos serviços, destaca-se a adoção do Índice de Limpeza Padrão (IPL), que orienta o investimento da Comlurb nas regiões mais críticas (Rio de Janeiro, 2017). Contudo, a efetividade dessa ferramenta ainda depende da integração com políticas territoriais mais amplas, que considerem a diversidade urbana do município.
Diversos programas de urbanização de favelas também merecem destaque por abordarem, mesmo que de forma indireta, aspectos da gestão de resíduos. Os programas Favela-Bairro, Morar Carioca, Bairrinho, PAC, Projeto Rio e o sistema de alerta e alarme comunitário buscaram, em diferentes momentos, melhorar as condições de infraestrutura nas favelas do Rio de Janeiro. Embora nem sempre tenham contemplado a gestão de resíduos de forma central, essas iniciativas contribuíram para a visibilidade dessas áreas e para a ampliação de seu acesso a serviços urbanos.
Outro esforço relevante foi a parceria firmada entre a COPPE/UFRJ e a Comlurb, com a instalação de uma planta piloto para a recuperação energética a partir de resíduos, localizada na estação de transbordo do Caju (BNDES, 2018). Essa iniciativa, voltada para a geração de biogás, representa um passo na direção da diversificação tecnológica da gestão de resíduos, ainda que com baixa escala de implementação até o momento.
No que diz respeito à participação social, a integração dos catadores ao sistema formal ainda é insuficiente. Segundo o IPEA (2013), estima-se que esses trabalhadores sejam responsáveis por cerca de 90% do material reciclado no Brasil, atuando em condições de precariedade e informalidade (Demajorovic et al., 2014). A ausência de incentivos estruturantes e de políticas de valorização das cooperativas de catadores compromete a consolidação de uma cadeia de reciclagem mais justa e eficiente.
Por fim, é importante reconhecer que a atual configuração da gestão de resíduos no Rio de Janeiro tem raízes profundas em processos históricos de segregação urbana. As reformas sanitárias do século XIX, embora tenham promovido melhorias na salubridade da cidade, também serviram para afastar a população pobre do centro e estabelecer normas que excluíam parte da sociedade urbana dos serviços essenciais (Rodrigues e Miranda, 2014). Como dito por Harvey (2014), o direito à cidade é também o direito à infraestrutura dessa cidade.
A desigualdade na gestão dos resíduos sólidos no Município do Rio de Janeiro revela não apenas um problema de eficiência urbana, mas um quadro mais profundo de injustiça social e ambiental, que se manifesta na forma como os serviços são distribuídos no território. Como observam Rodrigues e Miranda (2014), o saneamento e a limpeza urbana sempre estiveram associados a processos de controle social e exclusão, historicamente usados para afastar populações pobres dos espaços centrais da cidade. Nas favelas e áreas periféricas, a precariedade da coleta, a ausência de políticas específicas e a informalidade das soluções adotadas pela população escancaram uma estrutura que naturaliza a desigualdade como parte da paisagem urbana.
Essa realidade ganha contornos ainda mais graves quando se consideram os princípios da justiça ambiental, que, segundo Rath (2024), exige a distribuição equitativa dos benefícios e riscos ambientais entre todos os grupos sociais. No caso do Rio, a maior parte da população vulnerável é quem mais sofre com os efeitos da má gestão dos resíduos — como acúmulo de lixo, enchentes, proliferação de vetores e contaminação de corpos d’água —, ao mesmo tempo em que menos se beneficia dos programas formais de coleta seletiva e reciclagem. Como defendem Feitosa e Machado (2018), o direito à cidade está diretamente relacionado ao direito à salubridade, e a universalização do saneamento básico — incluindo a gestão de resíduos — deve ser entendida como um caminho para a construção de uma cidade mais justa, saudável e democrática.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da gestão de resíduos sólidos no Município do Rio de Janeiro evidencia que o problema ultrapassa a esfera técnica da coleta e do tratamento de resíduos, e se inscreve diretamente nas dinâmicas históricas e estruturais da desigualdade urbana. O cenário atual, embora marcado por avanços pontuais, revela a permanência de lógicas excludentes que dificultam o acesso equitativo aos serviços públicos de saneamento, sobretudo em territórios informais.
A persistência da informalidade, o estigma territorial das favelas e a descontinuidade de políticas estruturantes apontam para uma gestão que ainda não incorpora plenamente os princípios da universalização, da participação social e da sustentabilidade. Ao mesmo tempo, os dados analisados demonstram que existe um potencial social latente: parte da população mais afetada já adota práticas ambientais, mesmo em contextos adversos, o que reforça a importância de reconhecer os saberes e iniciativas locais na formulação das políticas públicas.
Programas como o Light Recicla, as estações de transbordo e os centros de triagem demonstram que há capacidade institucional e técnica para avançar. No entanto, tais medidas ainda carecem de escala, integração intersetorial e continuidade. A elevação do orçamento da Comlurb para 2025, se bem conduzida, pode representar uma janela de oportunidade para a construção de um modelo de gestão mais justo e eficiente — desde que acompanhado de uma reestruturação do olhar sobre o território e suas populações.
O desafio da cidade, portanto, não se limita a ampliar sua infraestrutura, mas a reconstruir o pacto entre o poder público e as populações historicamente negligenciadas. Superar a desigualdade na gestão dos resíduos sólidos implica reconhecer que o direito ao saneamento é parte do direito à cidade. Exige-se um novo ciclo de políticas públicas que priorize os territórios vulneráveis não como espaços de carência, mas como lugares legítimos de pertencimento, participação e inovação social.
O caso do Rio de Janeiro ensina que, mais do que tecnologias ou normativas, é a inclusão que redefine o sucesso de uma política de saneamento. Promover justiça ambiental não é apenas uma exigência ética, mas um caminho necessário para a construção de cidades mais saudáveis, resilientes e democráticas.
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1Geógrafa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Especialista em Políticas Públicas e Mestre em Estudos Populacionais, Território e Estatísticas Públicas pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas
2Engenheiro de Produção e Têxtil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pós-graduado em Engenharia Ambiental pela Casper Líbero.