RELIGIÃO E DIREITO: REFLEXÕES SOBRE SECULARISMO E LAICIDADE ESTATAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10836414


Bruno Amabile Bracco1


RESUMO

Este texto explora as complexas relações entre religião, direito penal e sociedade, destacando como elementos religiosos se secularizam e se entrelaçam com práticas jurídicas e sociais. Aborda-se o culto à figura de Ataturk na Turquia como um exemplo de sacralização de líderes seculares e discute-se a perpetuação de conceitos religiosos nas estruturas e rituais do direito. A análise se aprofunda na filosofia de Anselmo e Kant sobre punição, evidenciando como o direito penal contemporâneo ainda reflete essas noções teológicas. Além disso, o texto questiona a pretensa secularização das sociedades modernas, argumentando que o inconsciente social e as práticas cotidianas mantêm vínculos profundos com o religioso. Por fim, um caso jurídico brasileiro é utilizado para ilustrar como as práticas judiciais podem ecoar fundamentos religiosos, desafiando a noção de um Estado completamente laico.

Palavras-chave: Secularismo; Direito; Inconsciente social; Religião e direito.

ABSTRACT

This text delves into the intricate connections between religion, law, and society, illustrating how religious elements become secularized and intertwined with legal and social practices. It discusses the cult surrounding Ataturk in Turkey as an instance of secular leaders’ sacralization and examines the continuation of religious concepts within the structures and rituals of law. The analysis further explores Anselm and Kant’s philosophies on punishment, revealing how contemporary penal law still mirrors these theological notions. Moreover, the text challenges the supposed secularization of modern societies, arguing that the social unconscious and everyday practices retain deep ties with the religious realm. Lastly, a Brazilian legal case is presented to demonstrate how judicial practices can reflect religious foundations, questioning the notion of a wholly secular state.

Keywords: Secularism; Law; Social Unconscious; Law and Religion.

1. LEI SAGRADA E LEI PROFANA

Mustafa Kemal Ataturk foi o primeiro presidente turco, considerado o fundador da Turquia moderna. Suas colocações a favor do secularismo[2] eram contundentes e, no correr do século XX, a figura de Ataturk consolidou-se como uma figura quase paternal, alvo de reverência por incontáveis turcos que nele viam um símbolo de solidificação de um Estado moderno, racional, desvinculado de crenças religiosas e calcado na ciência.

Algo curioso e emblemático    ali    ocorreu, porém. Desde 1953, institucionalizou-se a prática de realizarem-se visitas cerimoniais ao mausoléu erigido em homenagem a Ataturk, construído no mais alto monte de Ankara – e, nessas visitas, os visitantes devem caminhar em silêncio e respeito.[3] Também se reportam invocações ao espírito de Ataturk, que sempre respondia soletrando as letras da frase “Não me perturbe”.[4] Estátuas reverenciais em homenagem a Ataturk foram erguidas, e comumente retratos, pôsteres e imagens de Ataturk decoravam casas turcas.[5] Até a última década do século XX, sobreviveu a Lei n. 7.872, que punia com três anos de prisão aquele insultasse a memória de Ataturk.[6] E há o costume de recitarem-se frases ditas por Ataturk à maneira islâmica de recitarem-se os hadith atribuídos ao Profeta Maomé.[7] 

2. In illo tempore e communitas

MIRCEA ELIADE fala de um tempo originário, contraposto ao tempo corriqueiro sobre o qual se estendem os fatos concretos do mundo profano.[8] Nos mais diversos mitos sobre o cosmos, conta ELIADE, há a constante insinuação da possibilidade de retorno ao tempo primordial, ao começo absoluto, in illo tempore. É a insinuação de que a vida cotidiana a que estamos tão familiarizados, por mais ricamente que se tenha desenvolvido, é também repleta de perturbações, e os mitos apontam à possibilidade de retorno ao seio absolutamente pacífico do eterno presente – também simbolizado, nas ideias gnósticas, pelo pleroma, e nas tibetanas pelo Bardo: “No estado pleromático ou no de Bardo (como chamariam os tibetanos), o que predomina é um jogo cósmico perfeito”, escreveu JUNG.[9] Todo ciclo cósmico contém uma criação, uma história de vida, uma consumação, uma degenerescência e, enfim, um retorno à plenitude.[10] 

VICTOR TURNER explora, em outros termos, ideia similar. Diz TURNER que, em contraposição ao cotidiano profano, há a communitas: o lugar ao qual o homem, sobretudo por meio de rituais muito especiais, pode ser alçado – lugar sem leis, de união e indiferenciação, em que as personalidades perdem espaço para uma noção maior de pertencimento a um corpo coletivo. A communitas exala eternidade, sacralidade, divindade, indissociável união, e as separações próprias à nossa noção comum de pessoa diluem-se no espírito comunitário. A communitas parece repousar no in illo tempore de ELIADE.

Mas, claro, não é apenas de communitas que se faz o mundo do lado de cá dos ritos. Inúmeras coletividades são muito mais profanas e caóticas, formadas por pessoas separadas que buscam, antes de tudo, seus próprios interesses. Essas coletividades precisam também, evidentemente, de algo que as torne coesas; e, se não há a sacralidade própria à communitas, a necessidade de coesão impõe a existência da figura de uma autoridade capaz de ordenar a vida profana, de maneira que esta possa refletir, tanto quanto possível, o espírito comunitário que não existe naturalmente. 

O mito do Pai da Horda Primitiva, bem explorado por FREUD, exemplifica a ideia: o primeiro agrupamento humano, narra o mito, era guiado pelo Grande Pai, que garantia a ordem do grupo. Quando morre o Grande Pai, deixa de haver qualquer autoridade ou liderança, e o que resta é apenas desamparo, desespero e caos.[11] O líder é, como narra ELIADE, o hierofante: etimologicamente, aquele que revela algo de sagrado.[12] O líder humano pronuncia a ordem, que, encarada como divina por seus destinatários, envolve a coletividade. E assim, se não há o espírito de união natural da communitas, ao menos um convívio coeso torna-se possível.

BARSHAK, em leitura de TURNER, argumenta que, num primeiro momento, o líder, ou o Grande Pai, é envolvido aos olhos de seus subordinados por toda a transcendência e magnificência próprias à communitas: há coesão. Ocorre, porém, que o líder é apenas um ser humano – ou seja: sua própria magnificência e sua própria transcendência não são eternas, como ocorre na communitas, mas sim finitas. Chegará o dia em que o poder aglutinador do líder se esvairá. Chegou o dia em que o Grande Pai, já não mais unanimemente respeitado como havia sido outrora, foi assassinado. E, após este fatídico dia, a communitas e o in illo tempore já não mais reluzem nos olhos de nenhum líder, e a coesão social passa a depender de uma estrutura forjada por leisleis que, por si mesmas, regerão a sociedade.[13] 

O direito e suas leis, nesta leitura, são a tentativa profana de trazer para o mundo profano algo da coesão eterna e sagrada da communitas, sem que se precise, para isso, de qualquer autoridade ou líder que, por sua simples presença, exale ordem e coesão. Após o assassinato do Grande Pai no mito freudiano, seu corpo morto foi servido num banquete aos filhos parricidas, que assim trouxeram as normas para seu próprio sangue. O direito e suas leis são forjados de maneira a alojar-se no sangue da coletividade, garantindo a ordem e a coesão na medida do possível num mundo profano, mas derivando, em boa escala, da communitas e do sagrado. 

3. Conceitos religiosos secularizados

A raiz nomos, da qual se origina nosso termo norma, remete à noção de pastagem e, portanto, de pastor (nomeus). Já em PLATÃO encontramos a ideia de que as leis, embora de origem divina, perdem, no mundo profano, a numinosidade (para ficarmos com o termo utilizado por RUDOLF OTTO para referir-se à qualidade inerente a numen,[14] o divino) própria à vida sagrada. “A política” – assim como o direito – “é o substituto imperfeito do governo dos homens por seres superiores; ela se tornou necessária pela partida destes últimos e o abandono do homem a si mesmo, e se vê secularizada quando a lei (nomos) substitui o pastor (nomeus) divino”, na síntese de BRAGUE sobre a ideia platônica.[15] 

Na mesma linha, CARL SCHMITT escreveria, muitos séculos mais tarde, a frase que, segundo BLUMENBERG, é “a forma mais vigorosa do teorema da secularização: não somente pela afirmação que contém, mas ainda pelas deduções que enceta”.[16] Disse SCHMITT: “Todos os conceitos centrais da moderna teoria do Estado são conceitos religiosos secularizados”.[17]

Para SCHMITT, “Y não é outra coisa além de X secularizado”.[18] O judiciário (“Y”), diz BARSHAK, pouco a pouco assume a função a princípio clerical (“X”) de administrar as relações entre homem e autoridade e entre homem e homem. “Esse desenvolvimento se reflete, por exemplo”, prossegue o autor, “nas elevadas solenidades dos procedimentos judiciais, na consolidação da independência do judiciário em relação aos demais poderes e na gradual consolidação da possibilidade de controle jurisdicional em relação a qualquer ramo do Estado”.[19] 

Talvez não se trate o mundo secular de uma derivação absolutamente clara do mundo religioso, como sugere SCHMITT; talvez a verdade esteja mais próxima à ponderada colocação de MONOD, segundo a qual os temas, concepções e símbolos religiosos podem alimentar e animar experiências mundanas, sobrevivendo, assim, no mundo secular, ainda que de maneira sorrateira.20 De todo modo, a influência religiosa na contemporaneidade pretensamente secular não parece poder ser desprezada. Mustafa Kemal Ataturk, expoente turco da transição para uma realidade secular, foi e segue sendo tratado com devoção verdadeiramente religiosa.

Claro: pode faltar, nas instituições seculares como o direito, a aura numinosa, mas sobrevivem os ritos. Pode não haver pastor, mas sobrevivem as normas. Pode não haver qualquer conteúdo sagrado – e não é difícil notar que qualquer resquício de sacralidade fica longe dos fóruns –, mas sobrevive a forma pela forma. É o juiz que se senta acima dos demais, é o poder sobre a vida dos mortais (“o corpo clerical moderno exerce a mais alta autoridade na ordem social: jurisdição como poder sobre a vida e a morte do sujeito”, escreveu BARSHAK),[20] são os trajes repletos de pompa, é o formalismo absoluto, é a organização fortemente hierarquizada, é a insistência na utilização de termos em latim, é o linguajar.

É o linguajar.

4. O LINGUAJAR DA RELIGIÃO E DO DIREITO

Profano remete, etimologicamente, à ideia de estar fora (do latim “pro”, a significar “ante”, “à frente” ou “fora”) do templo (do latim “fanum”). O profano é aquele que não parece ter acesso aos assuntos do templo, ou, dito de outra forma, aos assuntos sagrados: deve contentar-se em ficar apenas à frente do templo, sem nele entrar.

O linguajar religioso tende, inegavelmente, ao hermetismo. Missas rezadas por séculos a fio em latim apenas ilustram uma realidade muito mais ampla: entre os conhecimentos acessíveis a quem está no templo e os conhecimentos que chegam ao mundo profano há um universo de distância. Todo o simbolismo de que textos religiosos são impregnados traz, ao certo, pelo menos duas funções bastante evidentes: de um lado, expressam ideias que, porque transcendentes, não caberiam numa linguagem puramente racional; de outro, torna absolutamente necessário que quem deseja verdadeiramente compreender aquelas ideias desvende o significado dos simbolismos. E a pessoa profana, por jamais ter entrado no templo, não adquiriu qualquer conhecimento sobre aquela simbologia secreta.

Palavras são símbolos. Apontam a uma ideia ou a uma realidade, mas não se confundem com esta ideia ou esta realidade. 

O renascimento “da água e do espírito” mencionado por João, o Evangelista,[21]esconde um significado que vai certamente muito além das noções corriqueiras sobre água ou espírito. Quem não for introduzido ao conhecimento sobre tais simbologias não será capaz de captar todas as dimensões da passagem bíblica, e este exemplo bem ilustra que a interpretação dos livros sagrados que tende à literalidade tem força muito menor do que a interpretação simbólica.[22] De forma ainda mais elementar e óbvia, quem não possuir conhecimentos de latim será absolutamente incapaz de compreender uma missa rezada – como foi costume durante séculos e séculos – em latim: as palavras podem ser portais para gloriosas realidades e ideias, mas é imprescindível que tenhamos as chaves apropriadas e aprendamos a manuseá-las.

No terreno das religiões, o hermetismo e as chaves secretas ainda guardam, ao menos, uma justificativa que se pode aceitar: como dito, os simbolismos e o linguajar próprios servem a afastar do templo aqueles ainda pouco preparados para o conhecimento sagrado. “Não deem o que é sagrado aos cães, nem atirem suas pérolas aos porcos; caso contrário, estes as pisarão e, aqueles, voltando-se contra vocês, os despedaçaram” – eis o conhecido sermão de Jesus.[23] O profano deve, antes, mostrar-se merecedor de entrar no tempo, para que então possa tocar as coisas sagradas. “O limiar tem os seus ‘guardiões’: deuses e espíritos que proíbem a entrada tanto aos adversários humanos quanto às potências demoníacas e pestilentas”, diz ELIADE.[24] A linguagem pode ser uma excelente sentinela.

Mas, conforme já apontado anteriormente, ao mundo secular parece faltar qualquer aura numinosa. O direito, embora busque suas origens nas sagradas relações entre a coletividade e o líder-hierofante, materializa-se, atualmente, num mundo absolutamente profano. O linguajar hermético é, porém – e ainda que injustificavelmente –, mimetizado.

Concordemos ou não com a ideia, dizíamos, é compreensível que determinadas pessoas acreditem ser necessário algum grau de – por assim dizer – evolução espiritual para que lhes possa ser dada a chave mágica que franqueia acesso às coisas sagradas. Absolutamente inaceitável, porém, seria eventual argumentação no sentido da necessidade de qualquer tipo de evolução, mesmo acadêmica, para que se possa ter mero acesso ao conhecimento jurídico. No direito, é certo que há cães e porcos, mas ainda mais certo é que não há pérolas que possam justificar hermetismos. De todo modo, bem sabemos que muito hermetismo sobrevive – um hermetismo perspicaz e metalinguisticamente ilustrado pela Associação dos Magistrados Brasileiros:

Viceja na dialética meditabunda, ao inverso da almejada simplicidade teleológica, semiótica e sintática, a rabulegência tautológica, transfigurada em plurilingüismo ululante indecifrável. Na esteira trilhada, somam-se aberrantes neologismos insculpidos por arremedos do insigne Guimarães Rosa, espalmados com o latinismo vituperante. Afigura-se até mesmo ignominioso o emprego da liturgia instrumental, especialmente por ocasião de solenidades presenciais, hipótese em que a incompreensão reina. A oitiva dos litigantes e das vestigiais por eles arroladas acarreta intransponível óbice à efetiva saga da obtenção da verdade real. Ad argumentandum tantum, os pleitos inaugurados pela Justiça pública, preceituando a estocástica que as imputações e defesas se escudem de forma ininteligível, gestando obstáculo à hermenêutica.[25] 

Traduz BOURDIEU:

Na realidade, a instituição de um espaço judicial implica a imposição de uma fronteira entre os que estão preparados para entrar no jogo e os que, quando nele se acham lançados, permanecem de facto dele excluídos, por não poderem operar a conversão de todo o espaço mental – e, em particular, de toda a postura linguística – que supõe a entrada neste espaço social. […] O desvio… nada tem de acidental; ele é constitutivo de uma relação de poder.[26]

5. Palavras e poderes

Pensemos no caso do direito penal – que se contorce em esforços para determinar as finalidades da pena, por exemplo. Há quem defenda que o fim da pena é a prevenção, geral ou especial, positiva ou negativa. Há quem defenda que é a mera retribuição: um mal em resposta a um mal anterior. E há aqueles que, familiarizados com a realidade nua e trágica das prisões, concordam com ZAFFARONI: a pena desconhece as finalidades para as quais foi concebida, apresentando-se como nada além de um instrumento de poder exercido pelo mais forte, o Estado, sobre o mais fraco, o indivíduo.[27] Se não se enxerga qualquer finalidade, torna-se mero exercício de poder pelo poder.

As palavras são poderosas. “No princípio era o Verbo” – eis o início do Evangelho segundo João. O nome, a palavra, revela em si um elemento de transcendência. Nome, no sentido genuíno do termo, aponta ao reflexo externo da realidade interna, ou à “função visível da invisível essência do ser”. Podemos pensar no nome Jesus, que, no original hebraico Jeshuah, quer dizer “Deus-salvação” ou “Redentor divino”: esta seria a missão de vida daquele homem. “De maneira que o nome ‘Jesus’ é uma interpretação exata do seu caráter funcional, ou seja, uma revelação externa de sua natureza interna”.[28] Em sentido similar, NÖTH menciona dois outros exemplos do poder dos nomes: a palavra inglesa spell, que ainda hoje significa tanto soletrar quanto fórmula de encantamento; e a velha palavra germânica runa, que não designava somente as letras do alfabeto rúnico, mas também feitiço ou encantamento mágico.[29]

A argumentação poderia prosseguir, mas certamente o ponto central já foi captado: não subestimamos o poder das palavras.

No campo das religiões, existe, como já dito algumas vezes, uma finalidade para o linguajar misterioso e muitas vezes inacessível: o espaço sagrado, a communitas, o in illo tempore, a aura numinosa, nada disso é acessível ao homem profano, que precisa, antes, mostrar-se merecedor de ver diante de si abertos os portais de acesso à divina eternidade. As palavras mágicas, especiais, acessíveis a tão poucos e extremamente poderosas encontram aqui uma razão para que existam, portanto.

No campo do direito, não há transcendência, não há espaço senão o absolutamente profano, não há aura misteriosa e nem mesmo o mais demorado dos processos judiciais, ainda que muito se esforce – e como têm se esforçado neste sentido tantos processos! –, jamais poderá pretender comparar-se à eternidade. “Há apenas”, diz ELIADE, “fragmentos de um universo fragmentado, massa amorfa”.[30] As palavras jurídicas, poderosas que são, perdem-se em sua própria soberba e, autômatas, vivem sem alma e fazem verborragia. Têm poder, mas não têm finalidade. Tornam-se, como a pena aos olhos de ZAFFARONI, mero exercício de poder pelo poder. 

6. O TRAJE, O PÚLPITO, O RITUAL

Pensemos no mais emblemático e evidente dos exemplos que ilustram, de forma inegável, as aproximações entre religião e direito: o tribunal do júri.

Os fóruns judiciais são separados do espaço “profano” das cidades por grandes portas ou escadarias. No júri, há ainda a separação entre o tribunal – jurados, juiz, promotor, defensor etc. – e o auditório, que deve manter-se devidamente calado. 

O juiz, tal como num altar de igreja, está no local mais elevado do recinto – simbolizando, é evidente, sua maior proximidade do céu e do divino. Não à toa, a ele nos dirigimos como excelência, e o tribunal, encabeçado por desembargadores, pode ser egrégio, colendo ou excelso. É comum que, também no púlpito, à direita do juiz sente-se o promotor, o que de pronto nos faz lembrar do credo cristão segundo o qual Jesus Cristo subiu aos céus e lá “está sentado à direita de Deus-pai todo poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos”. 

Não se aplica, no Brasil, a pena de morte, a não ser em situações absolutamente excepcionais e constitucionalmente previstas. Nada obstante, o júri tem verdadeiro poder de vida e morte sobre cada réu: pode conceder-lhe a liberdade, mas pode, também, sentenciá-lo a décadas de cárcere: Céu ou inferno, a depender da decisão do julgador. Ao final de decisões judiciais, encontramos com frequência a soberba determinação: lance-se o nome do réu no rol dos culpados.

O traje em qualquer fórum é bem conhecido: terno e gravata, que de alguma forma já marcam uma diferenciação entre o espaço pretensamente sagrado forense e o espaço leigo. Réus não usam terno e gravata. Eventuais espectadores não usam terno e gravata, que parecem exclusivos, assim, daqueles admitidos no meio jurídico, com poder de fala ou de decisão.

No júri, a questão do vestuário ganha novos contornos. Em vez de terno e gravata, temos a toga: uma toga preta, veste antiquíssima, folgada, sem costuras, à evidente semelhança das batinas dos padres. Em ambos os casos, o corpo fica quase inteiramente coberto, e a cor preta parece simbolizar o desapego pelas cores da vida: o preto é a ausência de cor, é a abnegação. Cada um se recolhe, submete-se ao grande julgamento ainda por vir. Cada um limita-se a desempenhar o papel que deve cumprir naquele jogo ritual: o do defensor, o do acusador, o do julgador – tudo numa sequência de atos complexos e sagrados, que resultará num veredicto: verus dictus, a verdade dita, a ser ouvida por todos de pé.[31]

As descrições poderiam prosseguir, mas certamente o exposto já é mais que suficiente para defender o ponto óbvio: as semelhanças tremendas entre os rituais jurídicos e religiosos. As semelhanças estão, evidentemente, no linguajar, mas não se limitam a ele. Na realidade, as semelhanças estão por todos os lados; e, ainda que atualmente muitos Estados defendam seu caráter secular ou laico, as instituições sociais em geral, e todo o universo jurídico em particular, segue respirando as influências religiosas – porque estas parecem viver em sua essência mais profunda.

“Todos os conceitos centrais da moderna teoria do Estado são conceitos religiosos secularizados”, escreveu CARL SCHMITT.[32] Em outros termos: todo fenômeno social relevante é uma variação de um fenômeno religioso original. DURKHEIM era enfático ao abordar a impositividade absoluta do sentimento de sagrado, e explica como o trabalho de formação moral consiste em desenvolver este sentimento de sagrado em relação à sociedade e suas leis: revestir o profano de sacralidade dá uma força verdadeiramente mágica ao profano.[33] Investigar a religião não é, portanto e certamente, investigar um passado já superado; aliás, poucas ideias poderiam ser mais falaciosas do que essa. Investigar a religião é buscar a essência de qualquer fenômeno social que segue vivo no mundo atual. É buscar os alicerces mais profundos – às vezes tão profundos, tão fora de nossa vista, que pouco desconfiamos de que os mais portentosos edifícios que gritam diante de nossos olhos seriam completamente diferentes se seus alicerces fossem sutilmente modificados.

7. RELIGIÃO, FILOSOFIA E DIREITO PENAL

Detalhando a discussão, PIRES apresenta suas considerações sobre o processo histórico por meio do qual a fundamentação religiosa pôde ser apropriada pelo direito – mais especificamente, pelo direito penal. Em síntese, visualiza três momentos sucessivos: no primeiro, a fundamentação restringe-se ao discurso religioso; no segundo, é apropriada e, em seus próprios termos, reproduzida pela filosofia; no terceiro, ocorre nova apropriação e tradução, desta vez pelo direito. A base, porém, sempre permanece a mesma.

PIRES menciona que os primeiros contornos mais nítidos sobre o conceito de punição tal como aparece no direito penal moderno remontam à época da revolução papal – por volta dos séculos XI e XII – e são baseados em uma Carta Anônima atribuída questionavelmente a AGOSTINHO DE HIPONA, que tratava a punição como um sofrimento causado, por vingança, a um terceiro. BERGMAN salienta que, até o século XII, não havia categorias profissionais de advogados ou juízes, nem havia escolas de direito, e a literatura jurídica e as legislações eram bastante raras; e, portanto, parece ter sido apenas a partir de então que toda a prática discursiva sobre a ideia de punição desenvolveu-se.[34]

Talvez tenha sido com base na Carta Anônima que ANSELMO investigou a – a princípio irreconciliável – dualidade de Deus: a um só tempo, infinitamente bondoso (o que leva invariavelmente ao perdão) e absolutamente justo (o que levaria à punição). Para tentar solucionar a dicotomia, ANSELMO lança mão de um critério espacial e temporal: antes da morte e aqui embaixo, prevalece a justiça; depois da morte e lá em cima, prevalece a bondade. Assim, se Deus se encarregará, futuramente, de ser infinitamente bondoso, a justiça terrena deve ser rígida e, de alguma forma, filtrar aqueles que serão merecedores da benevolência divina.[35]

“Às pessoas injustas não deve ser admitida a felicidade”, escreveu ANSELMO.

“A beatitude não será confiada a ninguém, a menos que seus pecados sejam integralmente remidos”.[36] De acordo com seu pensamento, cabe à justiça terrena impelir o pecador a devolver a Deus a honra que, por seu pecado, roubou; e não seria justo anular quaisquer pecados sem a devida compensação ou punição, o que torna clara a necessidade de infligir-se, no corpo e na alma do pecador, o sofrimento indispensável à redenção.[37]

PIRES nota que os conceitos religiosos sobre a punição forjam uma matriz reproduzida, posteriormente, em outros sistemas. “Convém observar”, diz, “que a teoria de Anselmo antes de tudo produz ao mesmo tempo uma matriz (dos meios e das formas) para a teologia (sistema religioso) e para a filosofia laica subsequente”.39 Mais especificamente, PIRES traça analogias entre as concepções religiosas de ANSELMO e as concepções filosóficas de KANT sobre a punição.

Algumas similaridades merecem destaque. Eis alguns exemplos: 

(i)                 Para ANSELMO, o pecado produz uma ruptura na ordem racional e justa do universo, e, se não for corrigida, a justiça se mostrará deficiente: “Não combina com Deus permitir que, em seu reino, qualquer ato permaneça sem a devida resposta”; [40] para KANT, o crime produz uma ruptura na ordem moral: “A impunidade é a suprema injustiça contra os sujeitos”;[41] 

(ii)              Para ANSELMO, a ordem justa do universo exige que o preço seja pago, e o pecado e a injustiça apenas podem ser remidos pela satisfação ou pela punição: “Todo aquele que peca deve pagar de volta a honra roubada de Deus”;[42] para KANT, apenas a punição do culpado pode restabelecer a ordem e fazer justiça: “A lei penal é um imperativo categórico”;[43] 

(iii)            Para ANSELMO, se a compaixão divina sempre prevalecesse sobre a punição, Deus faria o homem feliz por conta de seu pecado: “E verdadeiramente tal compaixão da parte de Deus é inteiramente contrária à Justiça Divina, que não permite nada a não ser a punição como resposta ao pecado”;44 para KANT, “o direito de conceder graça aos criminoso, seja abrandando a pena, seja remindo-a por completo, é, entre todos os direitos do soberano, o mais delicado”, e o soberano não pode exercer tal direito quando diante de crimes cometidos por um sujeito contra outro; e

(iv)             Para ANSELMO, não deve ser dada benção a ninguém, a menos que os pecados sejam inteiramente remidos, e tal remissão “não deve ocorrer a menos que haja pagamento do débito adquirido em virtude do pecado e de acordo com a magnitude do pecado”;[45] para KANT, o modo e o grau de punição devem reger-se pelo princípio da igualdade:

“Somente a lei de talião… pode determinar com precisão a qualidade (isto é, o tipo de pena) e a quantidade da pena”.[46]

PIRES argumenta, então, que, exatamente da mesma maneira que a teoria de ANSELMO pode ser encarada como a mãe ou a matriz das concepções kantianas sobre punição, a teoria de KANT pode ser encarada como a mãe ou a matriz das concepções sobre punição do direito penal moderno e contemporâneo.[47] Recorrendo às idéias de LUHMANN, procura demonstrar que cada sistema – seja o religioso, o filosófico ou o jurídico – organizará, de maneira autônoma ou autopoiética, de acordo com sua própria lógica ou estrutura, um sentido de punição que permanece, em linhas gerais, invariavelmente o mesmo. Cada sistema, por ser cognitivamente aberto e operacionalmente fechado, adota e adapta alguns elementos cognitivos (p. ex., o conceito de punição como infligir-se sofrimento), traduzindo-os, então, para seus próprios termos.[48] 

BECCARIA, em 1765, defendia a necessidade de escolher-se a pena de maneira a, conservando-se a proporcionalidade em relação ao crime, cravar a impressão mais eficaz e mais dura possível no espírito dos homens. BENTHAM, outro importante teórico do direito, dizia, em 1840, que punir é infligir um mal. STEPHEN, em 1885, era claro: a punição não pretende beneficiar aquele que sofre; antes, seu fim é causar-lhe um mal para o bem dos outros – e este raciocínio vale especialmente para os casos em que grande sofrimento é infligido.[49] HART, em 1968, estabeleceu alguns elementos constitutivos, necessariamente, do conceito de punição: a punição deve envolver dor ou outras consequências consideradas desconfortáveis, deve ser contrária à lei (a autoridade exclui a si mesma da proibição legal) e deve ser aplicada por uma autoridade externa ao criminoso.[50] “Não há pena sem um traço aflitivo”, escreveu, em 1976, BETTIOL.[51] E, ao se fazer uma análise rápida do sistema punitivo dos mais diversos países no mundo contemporâneo, verifica-se facilmente que tais pressupostos sobre a pena e a punição são, ainda hoje, apenas muito raramente questionados.

Da teologia da Carta Anônima e de ANSELMO aos sistemas punitivos contemporâneos, pretensamente laicos ou seculares, quase um milênio se passou. Externamente, não há dúvida de que houve mudanças. Não mais pecado, mas crime. Não mais pecador, mas criminoso. Não mais uma figura religiosa que julga em nome de Deus, mas um juiz que se ampara em leis postas pelo homem. Contudo, a base, a essência, a matriz remanesce intacta: a estrutura hierárquica, a necessidade de remissão do mal, a aflição, o sofrimento, o castigo proporcional, a defesa da ordem, a relutância em aceitar, em resposta a atos problemáticos, consequências que não passem pela inflição de dor. 

8. SECULARISMO E INCONSCIENTE SOCIAL

Dizer que vivemos numa época secular significa muito pouco em termos de desvinculá-la de preceitos religiosos enraizados. Trata-se de uma palavra que, como qualquer outra, tem força, mas por si só não altera profundos contextos históricos. É o que já se disse sobre o júri, por exemplo: ainda que, em teoria, seja o Brasil um Estado secular ou laico, os costumes vistos num júri popular buscam suas origens na vida religiosa do passado – e este exemplo claro ilustra o que ocorre em diversos campos similares. 

“Seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso”, constata ELIADE.[49] Talvez, como sugere CHARLES TAYLOR, devamos começar a admitir que as narrativas de nossa época secular são tão relativas e questionáveis quanto quaisquer outras narrativas observadas ao longo da história, com a diferença de que a contemporaneidade traz uma pretensão especialmente questionável: em seus sonhos de pureza, tenta retirar do mundo uma religiosidade que talvez jamais possa abandonar inteiramente o ser humano.53

WATTS traz ponderações sobre as profundas repercussões do monoteísmo ocidental na coletividade – mesmo após o apogeu científico e a morte de Deus detectada por NIETZSCHE:

A ideia de que estamos sempre sendo observados por alguém que nos conhece a fundo e nos julga é profundamente constrangedora: precisamos nos livrar disso. Assim sobreveio a “Morte de Deus”, isto é, a morte dessa ideia específica de Deus, que foi substituída, no curso do desenvolvimento do pensamento ocidental nos séculos XVIII e XIX, por um outro modelo de universo, conservando porém uma continuidade com o modelo do universo que nos foi passado pela Sagrada Escritura e pela tradição cristã.[54]

É o que já se disse sobre o simbólico processo de secularização na Turquia: Mustafa Kemal Ataturk, o primeiro presidente turco, considerado o fundador da Turquia moderna, consolidou-se como uma figura quase paternal: alvo de reverência, tornou-se símbolo da concretização de um Estado turco enfim alinhado ao espírito de um mundo secular. Ao mesmo tempo, a morte de Ataturk, à maneira do mito freudiano do Pai da Horda, ensejou manifestações diversas de devoção verdadeiramente religiosas: visitas cerimoniais ao mausoléu erigido em sua homenagem, invocações ao espírito do ex presidente, estátuas reverenciais, leis que proíbem a profanação de seu nome, recitação de frases em tonalidades e contextos quase sagrados.55

O molde é o que nos importa – e este permanece. Talvez a autoridade deixe de ser Deus, porque, de repente, a sociedade diviniza a ciência ou o Estado; mas a autoridade permanece. Talvez nossa submissão não se dê pela ameaça de inferno e promessa de Paraíso, mas pela ameaça de sanções penais e a promessa de uma vida relativamente confortável; mas a submissão à autoridade permanece. E assim por diante: é possível dizer que a religião fundou muitos dos alicerces sobre os quais a sociedade tem-se desenvolvido, é possível também parece dizer que o secularismo contemporâneo tem raízes profundamente fincadas no solo das religiões. O louvor sacro a Ataturk é apenas uma ilustração disso.[56]

Mas há ainda outro argumento que certamente faz pousar ainda mais interrogações sobre a ideia de um Estado efetivamente desvinculado da religião.

De acordo com ERICH FROMM,[57] o repertório de valores dominantes num determinado lugar configura uma teia invisível que a todos liga, indistintamente; e as modificações nas tendências culturais a todos atingem, independentemente das inclinações pessoais. Assim, aquilo que a cultura dominante aceita permanecerá na superfície; mas, por outro lado, tudo quanto é reprimido socialmente constelará, no nível subterrâneo, um complexo amálgama de conteúdos que constituirão o que chama de inconsciente social.

A sugestão, em termos mais simples, é no sentido de que o social se estende aos membros da sociedade. Ou seja: a atmosfera cultural da coletividade é alimentada dia a dia, pela aceitação ou rejeição de inúmeras ideias, crenças, palavras e atos, e desta atmosfera cultural ninguém pode alienar-se, ainda que, conscientemente, viva numa cultura bastante diferente.

Dessa forma, se, numa dada sociedade, a maior parte de seus membros é cristã e, portanto, conceitua o bem e o mal de acordo com os preceitos cristãos mais tradicionais, haverá determinadas porções da inteireza de cada uma dessas pessoas bem aceitas, ao mesmo tempo em que haverá porções sumariamente podadas, suprimidas, reprimidas. A ideia de inconsciente social, neste cenário, indica que a cisão entre o permitido e o proibido majoritariamente aceita repercutirá em cada membro desta sociedade – mesmo naqueles que parecem viver alheios à atmosfera cristã dominante.[58] “Visto que o mito judeu-cristão está na base da psique ocidental, todos somos crentes em alguma medida, consciente ou inconscientemente; em outras palavras, todos temos algum resíduo de continência espiritual no interior desse mito… A continência é um fenômeno inconsciente de identificação espiritual”, escreveu EDINGER.59

Ainda que o Estado se diga laico, sua população é, evidentemente, constituída de pessoas. Se a maioria dessas pessoas segue determinada tradição religiosa, haverá, segundo FROMM, uma espécie de teia invisível à qual ninguém pode escapar completamente. Qualquer sociedade é, afinal, um complexo amálgama de relações, de pessoas se influenciando mutuamente, e a força das crenças e dos pensamentos alimentados por um grande contingente populacional não pode ser desprezada. E, como argumenta PIRES, a estrutura básica dos modelos punitivos mais disseminados parece ancorada, primordialmente, em um “um sistema de pensamento ‘pré-político’ ou ‘trans político’, pois se sedimenta antes ou independentemente das visões políticas do mundo”;[60] ou seja: inconscientemente.

As leis não brotam de um ente legislativo abstrato, mas de pessoas. As leis não são aplicadas por um Judiciário mecânico, mas por pessoas. Pessoas que compõem a complexa teia social e são, portanto, por ela influenciadas – absorvendo, ainda que inconscientemente, suas inclinações, suas tendências, suas crenças. A visão de mundo majoritariamente aceita tem uma força que não podemos desprezar: eis a sugestão de FROMM.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito traz um código de prescrições e ameaças de sanções similar às mais antigas idéias religiosas; apresenta linguajar, trajes e ritos que muito mimetizam instituições religiosas; nasce profundamente alicerçado em antiquíssimas bases religiosas; e desenvolve-se num ambiente social em que as crenças religiosas são realimentadas dia a dia por uma infinidade de pessoas. As palavras, claro, têm força. Mas, quando dissociadas da realidade, são falaciosas. Dizer que o Estado é laico ou secular pode ser uma importante verdade ao indicar a inexistência de ligações oficiais com instituições religiosas, mas se torna uma enorme falácia se se pretende sugerir que, de fato, Estado e religião não se vinculam.

Uma ilustração final cabe aqui. Chegou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro recurso de apelação em um processo movido por uma agente de trânsito contra um juiz de direito. Os fatos, bastante simples, podem ser resumidos da seguinte forma: a agente de trânsito abordou o juiz de direito, que conduzia seu veículo sem a carteira de habilitação e outros documentos necessários, e, ao final da abordagem, disse-lhe que, em face das irregularidades, o veículo haveria de ser apreendido. O motorista apresentou, então, documento que o identificava como juiz, ao que a agente de trânsito retorquiu: “É juiz, mas não Deus”, e deveria obedecer às leis. O juiz, em resposta, deu-lhe voz de prisão.

Eis alguns trechos do voto do desembargador-relator:

… não se olvide que apregoar que o réu era “juiz, mas não Deus”, a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado, bem como do que a função representa na sociedade. […]

Outrossim, não se olvide que a prisão fora determinada, não em razão da apreensão do veículo, mas, sim, pelo desacato da demandante ao decretar, para que todos pudessem ouvir, que “juiz não era Deus”. […]

Dessa maneira, em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria magistratura e tudo o que ela representa.[61]

“Todos os conceitos centrais da moderna teoria do Estado são conceitos religiosos secularizados”, escreveu CARL SCHMITT.62 Se se pode questionar se de fato todo fenômeno social relevante é uma variação de um fenômeno religioso original, ao menos do fenômeno jurídico parece possível afirmar-se: é variação de um conceito religioso original, e é fenômeno que segue influenciado, dia a dia, pela religião. É árvore cujas raízes se cravam nas profundezas do solo religioso e envolta por um ambiente que jamais deixou de exalar religiosidade: como poderia a racionalidade pretensamente pura de qualquer era secular ignorar, de fato, essa realidade?


[2] Diga-se desde já que, ao longo destas páginas, se entenderá a secularização, conforme diz Marramao, em sua acepção original, derivada de termos canônicos como saecularis e saeculum, que denotam o temporal, oposto ao eterno e espiritual (MARRAMAO, Giacomo. Céu e Terra: genealogia da secularização, p. 15). No mesmo sentido, escreveu Merton: “Nosso adjetivo ‘secular’ é proveniente do latim saeculum, que significa tanto ‘mundo’ quanto ‘século’. A etimologia da palavra é incerta. Talvez esteja relacionada ao grego kuklon, ‘roda’, do qual tiramos ‘ciclo’. Portanto, originalmente o ‘secular’ era o que percorre, interminavelmente, ciclos sempre recorrentes” (MERTON, Thomas. A experiência interior, p. 72). Não ignoramos a enorme discussão que o conceito de secularização engendra (não sem razão, adverte o próprio Marramao na obra citada: “A literatura sobre secularização é simplesmente inesgotável” [p. 11]), mas esperamos que esta breve menção à etimologia do termo poupe-nos de infindáveis considerações teóricas e transmita a essência do que queremos dizer ao falarmos em secularização. Assim, quando mencionamos que a Turquia passou por um processo de secularização ou que Ataturk era a favor do secularismo, querse simplesmente indicar um movimento em que a ênfase recai não sobre ideais de eternidade, mas sobre o essencialmente temporal; não sobre o divino, mas sobre o essencialmente humano.

[3] NAVARO-YASHIN, Yael. Faces of the State, p. 191-192.

[4] NAVARO-YASHIN, Yael. Faces of the State, p. 194.

[5] NAVARO-YASHIN, Yael. Faces of the State, p. 197.

[6] NAVARO-YASHIN, Yael. Faces of the State, p. 202.

[7] NAVARO-YASHIN, Yael. Faces of the State, p. 199.

[8] V. a respeito, p. ex., ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, p. 63 e ss.

[9] JUNG, Carl Gustav. Resposta a Jó, p. 48.

[10] ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões, p. 330-331.

[11] FREUD, Sigmund. Totem e Tabu, p. 95 e ss.

[12] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, p. 17. Na linha do pensamento de Cícero, a lei, emanada da autoridade, é vista como mens dei: o espírito de Deus revelado ao gênero humano, que conta com a intermediação de seus líderes (cf. BRAGUE, Rémi. A Lei de Deus, p. 42. V. ainda CICERO. Tratado das Leis, Livro I, VI, 236; VII, p. 238-240).

[13] BARSHAK, Lior. “Notes on the clerical body of the law”. 

[14] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, p. 15.

[15] BRAGUE, Rémi. A Lei de Deus, p. 46. V. ainda PLATÃO. Leis, Livro IV, 714a1-2.

[16] Citado por MARRAMAO, Giacomo. Céu e Terra: genealogia da secularização, p. 57.

[17] SCHMITT, Carl. Teología, p. 37.

[18] Trata-se, em verdade, da leitura que Blumenberg faz de Schmitt. Cf., a respeito, MONOD, Jean-Claude. Sécularisation et laïcité, p. 72.

[19] BARSHAK, Lior. “Notes on the clerical body of the law”, p. 1164-1165. No original: “It has gradually assumed the clerical function of administering the cooperation between the human and the Sacred and

[20] BARSHAK, Lior. “Notes on the clerical body of the law”, p. 1181. No original: “the modern clerical body exercises the highest authority within the corporate order: jurisdiction as power over the life and death of the subject”.

[21] João 3:5. Mencione-se que as referências bíblicas se basearão na versão em português “Almeida

Corrigida e Revisada Fiel”, com variações, nos pontos necessários à compreensão, baseadas na “Nova Versão Internacional”.

[22] Para um maior aprofundamento sobre a interpretação literal, simbólica ou alegórica dos livros sagrados, cf. SCHOLEM, Gershon. As Grandes Correntes da Mística Judaica, p. 29. A discussão será, evidentemente, aprofundada ao longo da pesquisa.

[23] Mateus 7:6. Deve-se ressalvar, claro, que o conhecimento profundo da hermenêutica bíblica talvez revele que, em verdade, o mais profundo sentido desta passagem não guarda qualquer relação com o sentido que lhe é atribuído aqui. 

[24] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, p. 29.

[25] ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS – AMB. O judiciário ao alcance de todos.

[26] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico, p. 225.

[27] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito Penal Brasileiro I, p. 99. 

[28] ROHDEN, Huberto. Metafísica do Cristianismo, p. 33.

[29] NÖTH, Winfried. “Semiótica da Magia”, p. 31.

[30] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, p. 28.

[31] V., para mais detalhes, SANTOS, Luís Claudio Almeida. “O sagrado e o profano no tribunal do júri brasileiro”, p. 161-179. Cf. ainda GARAPON, A. Bien juger. Cf., por fim, SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. “Etnografia dissonante dos tribunais do júri”.

[32] SCHMITT, Carl. Teología Política, p. 37.

[33] Cf., sobre Durkheim e suas relações com o desenvolvimento moral, LA TAILLE, Yves de. Moral e ética, p. 12 e ss.

[34] Cf. PIRES, Alvaro. “L’adoption intersystémique des énoncés de sens”, p. 20-21.

[35] PIRES, Alvaro. “L’adoption…”, p. 22.

[36] ANSELMO, citado por PIRES, Alvaro. “L’adoption intersystémique des énoncés de sens”, p. 23. Na versão em francês: “Mais alcune personne injuste ne doit être admise à la félicité… la beatitude ne será donnée à personne à moins que ses péchés soient intégralment remis…”.

[37] PIRES, Alvaro. “Réflexions théoriques et méthodologiques sur les transferts des valeurs”, p. 29-30. 39 PIRES, Alvaro. “Réflexions…”, p. 20. No original: “Il convient donc d’observer la théorie d’Anselme avant tout comme produisant en même temps une matrice (des médiums et des formes) pour la théologie (système religieux) et pour la philosophie laïque subséquente”.

[38] PIRES, Alvaro. “Réflexions….”, p. 29: “It is not fitting for God to pass over anaything in his kingdom undischarged”.

[39] PIRES, Alvaro. “Réflexions…”, p. 29: “L’impunité est la suprème injustice envers les sujets”.

[40] PIRES, Alvaro. “Réflexions…”, p. 29: “Every one who sins ought to pay back the honor he has robbed God”.

[41] PIRES, Alvaro. “Réflexions…”, p. 29: “La loi pénale (Die Strafgesetz) est un impératif catégorique”. 44 PIRES, Alvaro. “Réflexions…”, p. 30: “And truly such compassion on the part of God is wholly contrary to the Divine justice, which allows nothing but punishment as the recompense of sin”.

[42] PIRES, Alvaro. “Réflexions…”, p. 30: “… and.. this remission ought not be done except by the payment of the debt which is owed because of sin [and] according to the magnitude of sin”.

[43] PIRES, Alvaro. “Réflexions…”, p. 30: “Seule la loi du talion… peut fournir avec précision la qualité [i.e., le type de peine] et la quantité de la peine”.

[44] PIRES, Alvaro. “L’adoption…”, p. 22.

[45] PIRES, Alvaro. “L’adoption…”, p. 38-39.

[46] PIRES, Alvaro. “L’adoption…”, p. 36-37.

[47] PIRES, Alvaro. “L’adoption…”, p. 19.

[48] Citado por PIRES, Alvaro. “L’adoption…”, p. 15. Na versão em francês: “Il n’y a pas de peine sans caractère afflictif”.

[49] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, p. 28. 53 Cf. TAYLOR, Charles. A secular age.

[50] WATTS, Alan. “Mitologia Ocidental: Dissolução e Transformação”, p. 17. Destacamos. 55 Cf. NAVARO-YASHIN, Yael. Faces of the State, p. 191 e ss.

[51] E diga-se que, posteriormente à “Era Ataturk”, surgiram novamente, a partir do final do último século, governos turcos ligados oficialmente ao Islamismo, fato que, mais uma vez, reforça a tese de que a religiosidade segue bastante viva, ainda que passe anos em condição de latência, em épocas que se imaginam seculares.

[52] Cf. FROMM, Erich. A descoberta do inconsciente social.

[53] FROMM, Erich. Meu Encontro com Marx e Freud, p. 109.  59 EDINGER, Edward. A criação da consciência, p. 60.

[54] PIRES, Alvaro. “A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos”, p. 45.[55] Apelação Cível, TJ/RJ. Processo nº 0176073-33.2011.8.19.0001.  62 SCHMITT, Carl. Teología Política, p. 37.

56 E diga-se que, posteriormente à “Era Ataturk”, surgiram novamente, a partir do final do último século, governos turcos ligados oficialmente ao Islamismo, fato que, mais uma vez, reforça a tese de que a religiosidade segue bastante viva, ainda que passe anos em condição de latência, em épocas que se imaginam seculares.

57 Cf. FROMM, Erich. A descoberta do inconsciente social.

58 FROMM, Erich. Meu Encontro com Marx e Freud, p. 109.

59 EDINGER, Edward. A criação da consciência, p. 60.

60 PIRES, Alvaro. “A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos”, p. 45.

61 Apelação Cível, TJ/RJ. Processo nº 0176073-33.2011.8.19.0001.

62 SCHMITT, Carl. Teología Política, p. 37.


REFERÊNCIAS

Apelação Cível. Processo nº 0176073-33.2011.8.19.0001. Relator: desembargador José Carlos Paes. 14ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

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1Mestre e Doutor em Direito Penal e Criminologia pela USP. Defensor Público do Estado de São Paulo.