REGIME JURÍDICO DAS POLÍTICAS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E DE CUIDADO DA SAÚDE MENTAL NO CONTEXTO DO SUS

LEGAL FRAMEWORK FOR PSYCHOSOCIAL CARE AND MENTAL HEALTH CARE POLICIES IN THE CONTEXT OF THE SUS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202507152351


Anderson Amorim1


Resumo

Este artigo analisa o regime jurídico que estrutura as políticas de atenção psicossocial e de cuidado em saúde mental no Brasil, com ênfase no Sistema Único de Saúde (SUS). A pesquisa percorre os marcos históricos da assistência psiquiátrica, a transição do modelo hospitalocêntrico para o comunitário e a consolidação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) como instrumento de cuidado em liberdade. Examina-se a legislação pertinente, incluindo leis, portarias e resoluções, além de mecanismos institucionais de financiamento, articulação federativa e parcerias público-privadas. Destacam-se também os desafios operacionais enfrentados pela RAPS, como a insuficiência de recursos, a judicialização da política e os conflitos intersetoriais. O estudo propõe diretrizes para o fortalecimento da rede, com foco na garantia dos direitos humanos, na intersetorialidade e na efetividade do cuidado territorializado.

Palavras-chave: Saúde mental. SUS. Rede de Atenção Psicossocial. Reforma psiquiátrica. Regime jurídico.

Abstract

This article analyzes the legal framework underlying mental health and psychosocial care policies in Brazil, particularly within the Unified Health System (SUS). It addresses the historical evolution from asylum-based care to community-based approaches, highlighting the development of the Psychosocial Care Network (RAPS) as a mechanism for deinstitutionalized care. The study examines relevant laws, regulations, and institutional mechanisms for funding, governance, and public-private partnerships. Operational challenges such as underfunding, judicialization, and intersectoral coordination issues are also discussed. The article proposes strategic guidelines to strengthen the network, emphasizing human rights, intersectorality, and the effectiveness of territorial care.

Keywords: Mental health. SUS. Psychosocial Care Network. Psychiatric reform. Legal framework.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo examinar o regime jurídico que fundamenta e regulamenta as políticas de atenção psicossocial e de cuidado em saúde mental no Brasil, com ênfase nos aspectos normativos, institucionais e políticos que orientam sua construção no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

O regime jurídico dessas políticas configura um dos elementos mais complexos da implementação de políticas públicas de saúde no Brasil. A história da assistência em saúde mental é marcada por tensões e contradições entre discursos e práticas que, muitas vezes, não convergem.

Tal histórico reflete não apenas a transição de modelos assistenciais, do hospitalocêntrico para o comunitário, mas também uma profunda reformulação dos fundamentos éticos, epistemológicos e institucionais do cuidado em saúde mental.

A partir do século XIX, com a consolidação da psiquiatria como ciência, instituiu-se o modelo asilar como paradigma de tratamento. No entanto, a partir da década de 1950, esse modelo passou a ser amplamente questionado, especialmente com o advento da psiquiatria comunitária e das reformas empreendidas em países como a Itália.

No Brasil, a reforma psiquiátrica inspirou-se em tais experiências, mas adquiriu contornos próprios ao se articular com a redemocratização, os movimentos sociais e a consolidação do SUS como sistema de saúde universal, integral e equitativo.

2. METODOLOGIA

A pesquisa adota abordagem qualitativa, com ênfase na análise documental e bibliográfica. Foram utilizados como fontes normativas a Constituição Federal, a Lei nº 10.216/2001, portarias ministeriais, leis complementares e resoluções do Conselho Nacional de Justiça e do Ministério da Saúde. Complementarmente, foram analisadas diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e experiências internacionais. A metodologia inclui ainda análise crítica das estruturas de financiamento, articulação federativa e parcerias com organizações da sociedade civil. A proposta é identificar os principais gargalos jurídicos e operacionais da RAPS e sugerir caminhos para seu aprimoramento.

3. MARCOS HISTÓRICOS DAS POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL NO BRASIL

As preocupações com a saúde pública remontam ao século XVII na Europa, quando medicina e administração pública passaram a assumir responsabilidade pela saúde da população. No entanto, no que diz respeito à saúde mental, predominam concepções místico-religiosas até meados do século XIX.

A “loucura” era vista como uma questão moral ou espiritual, sendo comum o exílio ou o encarceramento em vez do tratamento. Ainda assim, pensadores como Martinho Lutero e Paracelso (1493-1541) se opuseram à ideia de possessão demoníaca, propondo compreensões de cunho médico.

Os hospitais psiquiátricos surgiram como iniciativas privadas, apenas posteriormente absorvidas pelas políticas estatais. As transformações sociais do século XIX e XX ensejaram novas concepções de cidadania e direitos sociais, com o reconhecimento da necessidade de políticas públicas voltadas aos vulneráveis.

Constituições como a mexicana de 1917 (art. 123), a de Weimar de 1919 (art. 161) e a soviética de 1936 (art. 120) consagraram o direito à saúde como dever do Estado. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Constituição da OMS reforçaram esse entendimento ao definir saúde como bem-estar físico, mental e social.

Esses marcos jurídicos e políticos contribuíram para o desenvolvimento das políticas de saúde mental e da própria psiquiatria como ciência.

No Brasil, a assistência psiquiátrica iniciou-se com a fundação do Hospício D. Pedro II (1852), seguido de normativos como o Decreto nº 1.132/1903 e o Decreto nº 24.559/1934, que introduziram medidas de regulação e profilaxia.

Durante o século XX, prevaleceu o modelo hospitalocêntrico, especialmente após a ampliação dos convênios com o INAMPS nas décadas de 1960 e 1970, marcando o período com internações prolongadas e desumanização.

A contestação desse modelo ganhou força nas décadas de 1970 e 1980, com o Movimento da Luta Antimanicomial, influenciado pela reforma italiana (Basaglia) e por autores como Foucault2 e Goffman.

Com a Constituição de 1988 e a criação do SUS (Lei nº 8.080/1990), consolidou-se o paradigma da atenção psicossocial, com foco na cidadania e na humanização do cuidado.

A Lei nº 10.216/2001 representou o marco jurídico da Reforma Psiquiátrica brasileira, garantindo direitos aos portadores de transtornos mentais e priorizando o cuidado comunitário, vedando instituições de caráter asilar.

No mesmo sentido, a recente Lei nº 14.821/2024, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua, reforça a necessidade de integração entre SUS, SUAS e outros sistemas, reconhecendo a saúde mental como eixo essencial de cuidado.

A norma amplia o entendimento da saúde como elemento da existência digna e impõe ao Estado a construção de fluxos intersetoriais de cuidado.

4. A CONSTITUIÇÃO E ESTRUTURAÇÃO DA REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (RAPS)

A RAPS foi instituída pela Portaria GM/MS nº 3.088/2011, atualizada pela Portaria GM/MS nº 757/2023. Seu objetivo é integrar os pontos de atenção à saúde mental em uma rede regionalizada e territorializada. Fazem parte da RAPS os CAPS, residências terapêuticas, unidades de acolhimento e leitos em hospitais gerais, entre outros.

Essa estruturação concretiza a política do cuidado em liberdade, conforme os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica. Trata-se de uma política intersetorial, ancorada no direito à saúde e à dignidade humana.

Antes de adentrar na estrutura formal da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), é fundamental resgatar a evolução jurídica que permitiu a transição do modelo hospitalocêntrico e medicalizador para o modelo psicossocial de cuidado em saúde mental.

Durante cerca de dois séculos, o hospital psiquiátrico foi o único recurso terapêutico oferecido às pessoas consideradas “loucas”.

Esse modelo esteve associado à exclusão, à violência institucional, à violação de direitos humanos e à desumanização, sustentando uma visão que reduz o sofrimento psíquico a uma anormalidade civil e subjetiva.

Com a mobilização por uma Reforma Psiquiátrica, foram conquistados avanços importantes, como a promulgação da Lei nº 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial, a edição de portarias ministeriais para estruturação dos serviços de saúde mental e o fortalecimento do movimento social em defesa dos direitos civis das pessoas em sofrimento psíquico.

Inicialmente, estruturas como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Serviços de Residências Terapêuticas (SRTs) surgiram como iniciativas locais. Posteriormente, esses serviços foram incorporados como programas oficiais de governo, passando a contar com regulamentação própria e financiamento previsto no SUS, o que propiciou uma expansão significativa de sua oferta em todo o país.

A Portaria nº 224, publicada em 1992 pelo Ministério da Saúde, instituiu os CAPS como serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, rompendo com a lógica da internação como regra e propondo um modelo de cuidado territorial, interdisciplinar e voltado para a singularidade da pessoa usuária.

Em 2000, a Portaria nº 106 instituiu os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), moradias assistidas voltadas a pessoas que passaram anos internadas em hospitais psiquiátricos. Esses serviços têm como finalidade promover a reintegração comunitária e a autonomia das pessoas, em articulação com os demais dispositivos da rede.

Contudo, foi com a edição da Portaria nº 3.088/2011 que a RAPS foi formalmente constituída como política nacional. A partir desse marco, CAPS e SRTs passaram a integrar uma rede articulada, com diretrizes assistenciais, previsão orçamentária e normativas claras de funcionamento.

A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) não se resume a uma estrutura administrativa, mas representa uma ruptura com o modelo asilar de exclusão, ao promover uma concepção de cuidado integral centrada na pessoa como sujeito de direitos, com atuação articulada entre o poder público, a sociedade e a família.

Oficializada pela Portaria nº 3.088/2011 e posteriormente incorporada pela Portaria nº 3/2017 do Ministério da Saúde, a RAPS teve sua estrutura atual redefinida pela Portaria nº 757/2023. A rede é composta por diversos pontos de atenção, integrados entre si:

  • Atenção Básica em Saúde: realizada pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS), Centros de Convivência e Cultura, Equipes de Saúde da Família (ESF) e pelas Equipes Multiprofissionais de Apoio (eMulti), que são a porta de entrada para o cuidado em saúde mental na atenção primária.
  • Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): unidades que oferecem atendimento multiprofissional, territorializado e estruturado a partir de Projetos Terapêuticos Singulares.
  • Atenção de Urgência e Emergência: inclui SAMU, Salas de Estabilização, UPAs 24h, Prontos-Socorros e UBS, voltados ao manejo de crises e intercorrências agudas.
  • Atenção Residencial de Caráter Terapêutico: inclui as Unidades de Acolhimento (UA), para pessoas em vulnerabilidade social e dependência química, e os Serviços de Atenção em Regime Residencial (SARR), que prestam cuidados transitórios e os SRTs, que acolhem pessoas desinstitucionalizadas.
  • Atenção Hospitalar: composta por leitos de saúde mental em hospitais gerais, voltados a situações agudas, sempre articulados com os CAPS.
  • Hospitais Psiquiátricos: utilizados somente em última instância, quando inexistirem alternativas terapêuticas no território.
  • Estratégias de Reabilitação Psicossocial: iniciativas de inserção socioprodutiva, como cooperativas, projetos de geração de renda e empreendimentos solidários.

Todos esses componentes funcionam de modo interdependente, articulando-se por meio do matriciamento e da gestão compartilhada, compondo uma rede que visa garantir cuidado integral, humanizado e territorializado.

A contribuição essencial da RAPS é a reorganização do cuidado em rede, substituindo a lógica da institucionalização pela lógica do cuidado em liberdade.

A porta de entrada da RAPS é a Atenção Primária, por meio das UBS e das ESF, com apoio das Equipes Multiprofissionais (eMulti). Essas equipes realizam escuta qualificada, acolhimento e, quando necessário, encaminham os usuários a outros pontos da rede.

Nos casos de maior complexidade, os usuários são direcionados ao CAPS, onde uma equipe interdisciplinar elabora o Projeto Terapêutico Singular (PTS), envolvendo, quando necessário, outros serviços da RAPS.

Em situações de crise aguda, o CAPS pode realizar o acolhimento imediato ou encaminhar o usuário para leito em hospital geral. A internação é compreendida como medida excepcional, com tempo limitado e com previsão de reinserção comunitária.

Outras possibilidades incluem o encaminhamento para Unidades de Acolhimento (UAs), para suporte provisório, ou para os SRTs, nos casos de desinstitucionalização.

A internação, seja voluntária, involuntária ou compulsória, exige laudo médico com fundamentação técnica. No caso de internação involuntária, a Lei nº 10.216/2001 impõe que o Ministério Público seja notificado em até 72 horas.

Após a estabilização clínica, o acompanhamento do usuário é retomado no CAPS, em articulação com a Atenção Primária e os demais setores, como assistência social e educação.

5. RESPONSABILIDADES FEDERATIVAS

Ao analisar o regime jurídico da RAPS, é imprescindível considerar a organização federativa do SUS, marcada pela descentralização político-administrativa e pela cooperação entre os entes federados: União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Essa descentralização, embora prevista constitucionalmente, pode gerar descontinuidade e desigualdade na oferta de serviços, caso não seja acompanhada de mecanismos eficazes de coordenação e financiamento.

Na RAPS, a responsabilização segue o princípio da regionalização da assistência, com distribuição de competências por complexidade:

  • Municípios: são os principais executores das ações de baixa complexidade, sendo responsáveis pela Atenção Primária e pelos CAPS I (para territórios de 20 mil a 70 mil habitantes).
  • Municípios e Estados: compartilham a execução da média complexidade, por meio dos CAPS II (70 mil a 200 mil habitantes), CAPS III (mais de 200 mil habitantes), CAPS AD (para usuários de álcool e outras drogas) e CAPS i (infantojuvenis).
  • Estados com apoio da União: atuam na alta complexidade, provendo leitos de saúde mental em hospitais gerais e ações em situações de urgência, como risco iminente de suicídio ou heteroagressividade.

Essa divisão de responsabilidades requer articulação intergovernamental efetiva para garantir a integralidade e a continuidade do cuidado em todos os níveis de atenção à saúde mental.

6. PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS

As parcerias com entidades privadas representam uma dimensão relevante da estruturação da RAPS, especialmente diante da insuficiência de oferta pública para atender integralmente à demanda existente. Em diversos municípios, a cooperação com organizações da sociedade civil tem sido uma estratégia adotada para complementar a rede assistencial.

Entre os principais instrumentos jurídicos utilizados nessas parcerias, destacam-se:

  • Convênios e termos de colaboração com entidades filantrópicas: viabilizam serviços como casas de acolhimento, centros de convivência e apoio terapêutico. Esses instrumentos podem ser firmados por meio de chamamento público ou contratação direta, conforme o marco regulatório das organizações da sociedade civil (Lei nº 13.019/2014).
  • Contratos de gestão com Organizações Sociais (OSs): aplicados, por exemplo, na administração de CAPS ou unidades hospitalares, mediante seleção pública e metas de desempenho.
  • Acordos com Comunidades Terapêuticas: voltados majoritariamente à população com dependência de substâncias psicoativas. Essas entidades têm uma abordagem frequentemente centrada na abstinência e na disciplina religiosa. Embora sejam reconhecidas como integrantes da RAPS, não são considerados equipamentos de saúde, pois não oferecem cuidado baseado em diretrizes do SUS. Seu financiamento é realizado principalmente pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, e não pelo Ministério da Saúde.

Apesar de ampliarem a cobertura, essas parcerias impõem desafios relevantes do ponto de vista jurídico e político. Em especial, as comunidades terapêuticas 3têm sido alvo de críticas quanto à ruptura com os princípios da Reforma Psiquiátrica, ao adotarem estratégias de isolamento, controle moral e disciplinamento dos usuários.

Além disso, essas entidades têm recebido expressivos recursos públicos, tanto de forma direta (via repasses) quanto indireta (por meio de imunidades tributárias). Desde 2016, observa-se uma crescente politização de suas atividades, com mobilização para eleição de representantes legislativos comprometidos com sua agenda.

Cabe destacar ainda a edição da Lei nº 13.840/2019, que incluiu uma seção específica sobre comunidades terapêuticas na Lei de Drogas, consolidando seu papel no âmbito da política sobre drogas, ainda que em descompasso com as diretrizes da saúde mental.

Diante disso, o fortalecimento da RAPS exige não apenas previsão legal, mas também vontade política, coordenação federativa efetiva e mecanismos sólidos de fiscalização e qualificação das parcerias público-privadas, de modo a garantir que estas respeitem os princípios da reforma psiquiátrica, da desinstitucionalização e dos direitos humanos.

7. FINANCIAMENTO E DESAFIOS ESTRUTURAIS / ACESSO A MEDICAMENTOS

O financiamento da saúde mental no âmbito do SUS constitui um dos principais pontos de tensão entre a robustez normativa da política psicossocial e sua efetivação nos territórios. Embora o Brasil tenha avançado na formulação de um modelo comunitário de cuidado, esse modelo ainda sofre com o subfinanciamento crônico e com instabilidades nos fluxos orçamentários.

Segundo dados de 2023, apenas 0,28% do orçamento federal da saúde foi destinado à saúde mental — um valor substancialmente inferior à recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que sugere a alocação mínima de 5%. Tal discrepância evidencia a distância entre o discurso institucional e a prática orçamentária.

Observa-se também uma mudança no perfil do gasto: enquanto os investimentos em internações psiquiátricas diminuíram progressivamente, os gastos extra-hospitalares aumentaram, alcançando cerca de 80% do total em 2022, conforme levantamento do Ministério da Saúde e da Fiocruz4. Apesar desse avanço, parte dos recursos economizados com o fechamento de leitos psiquiátricos não foi redirecionada integralmente para os serviços substitutivos da RAPS.

Esse descompasso decorre de diversos fatores, dentre os quais se destacam:

  • A ausência de uma regra de transição orçamentária que assegure a realocação dos recursos da hospitalização para a rede territorial;
  • A Emenda Constitucional nº 95/2016, que impôs teto de gastos primários, restringindo a expansão de políticas sociais, inclusive a saúde mental;
  • A falta de prioridade política conferida à saúde mental, especialmente no plano federal, o que compromete a continuidade e a integração das ações;
  • A fragmentação federativa, com atrasos nos repasses financeiros e desarticulação entre os entes;
  • As falhas na informatização e integração de sistemas de dados, dificultando o planejamento, a transparência e o monitoramento das políticas;
  • A carência de profissionais capacitados e a insuficiência de recursos humanos nas redes locais.

Outro ponto sensível diz respeito ao acesso a medicamentos psicotrópicos, garantido por meio da RENAME — Relação Nacional de Medicamentos Essenciais. 

A responsabilidade pela aquisição e distribuição desses medicamentos é descentralizada, recaindo sobre estados e municípios, com apoio financeiro da União.

A versão mais recente da RENAME (2024) contempla antidepressivos, ansiolíticos e antipsicóticos. O Ministério da Saúde repassa recursos aos fundos estaduais e municipais de saúde, cabendo a cada ente organizar sua logística de compra e dispensação de acordo com a realidade local.

A garantia da assistência farmacêutica em saúde mental depende, portanto, de planejamento integrado, alocação adequada de recursos e fortalecimento da capacidade de gestão nos níveis locais.

8. DIRETRIZES DE FORTALECIMENTO DA RAPS

A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), instituída pela Portaria nº 3.088/2011, constitui a principal estratégia do Sistema Único de Saúde (SUS) para a organização da atenção em saúde mental no Brasil. Fundamentada nos princípios da reforma psiquiátrica e da Lei nº 10.216/2001, a RAPS tem como finalidade oferecer cuidado integral, comunitário, territorializado e em liberdade. No entanto, o pleno funcionamento da rede tem sido sistematicamente comprometido por um cenário de subfinanciamento crônico, que fragiliza sua expansão e manutenção.

Para que se efetive o cuidado psicossocial no SUS, a recomposição orçamentária torna-se imprescindível e deve ser estruturada a partir de um cofinanciamento tripartite, com valores obrigatórios e previamente definidos entre União, estados e municípios. Além disso, é necessário que os repasses sejam regulares, proporcionalmente adequados à demanda populacional dos territórios e vinculados à ampliação de serviços substitutivos, tais como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) e os Consultórios na Rua, evitando, assim, a destinação de recursos a hospitais psiquiátricos, o que contraria os fundamentos da desinstitucionalização.

Outro desafio enfrentado pela RAPS reside na ausência de diretrizes unificadas entre os setores da Saúde, Assistência Social, Justiça e Segurança Pública. A fragmentação intersetorial tem gerado lacunas nos fluxos de cuidado, sobreposições de competência e frequente judicialização da política pública de saúde mental. Para superar tais entraves, é fundamental a elaboração de normativas conjuntas que definam com clareza as atribuições de cada esfera governamental, os fluxos de encaminhamentos e os mecanismos de monitoramento e responsabilização federativa em casos de omissão ou conflito. Essa articulação fortalece a integração entre as redes, assegura a continuidade do cuidado e previne interrupções nos processos terapêuticos.

A tomada de decisão judicial e administrativa em matéria de saúde mental demanda qualificação técnica específica. Contudo, frequentemente, decisões relativas à internação ou ao tratamento de pessoas com transtornos mentais são proferidas por profissionais sem formação adequada na temática, o que pode resultar em determinações equivocadas, como internações indevidas, desconsideração do Projeto Terapêutico Singular (PTS) e violação de direitos. Nesse sentido, a formação continuada de magistrados, promotores, defensores públicos e demais operadores do direito deve contemplar conteúdos relacionados ao direito sanitário, à reforma psiquiátrica, às políticas de drogas e à atenção psicossocial, preferencialmente em articulação com profissionais do SUS e do SUAS. Encontros interdisciplinares e formativos regulares contribuem significativamente para o aprimoramento da atuação institucional e a proteção dos direitos dos usuários.

No contexto das comunidades terapêuticas (CTs), muitas vezes administradas por entidades religiosas e privadas, têm-se observado denúncias recorrentes de práticas abusivas, como internações involuntárias sem respaldo legal, privação de liberdade, violência física e psicológica. O §9º do art. 23-A da Lei nº 11.343/2006 veda expressamente a realização de internações involuntárias nesses espaços, reforçando a necessidade de fiscalização rigorosa por parte dos órgãos públicos competentes, como os Conselhos de Saúde, Ministérios Públicos, Defensorias Públicas e Vigilâncias Sanitárias. Tal fiscalização deve obedecer a critérios técnicos e sanitários, assegurando a desativação de unidades que desrespeitem os direitos fundamentais dos usuários.

Para subsidiar adequadamente as decisões judiciais, é recomendável a constituição de núcleos interdisciplinares, compostos por profissionais das áreas da saúde, assistência social, psicologia e serviço social. Tais núcleos podem emitir pareceres técnicos sobre diagnóstico, condições clínicas, riscos, rede de apoio e necessidades específicas dos usuários, orientando decisões judiciais relativas à internação, curatela, guarda, tutela, entre outras medidas protetivas. A atuação desses núcleos favorece a qualificação da decisão judicial, previne judicialização indevidas e fortalece a segurança jurídica e institucional dos serviços.

Ainda que a RAPS tenha sido concebida como uma estratégia inovadora de cuidado em liberdade, alterações normativas recentes suscitaram críticas ao se observar uma tendência de retorno à lógica hospitalocêntrica. Algumas diretrizes vêm sendo acusadas de priorizar a hospitalização em detrimento do cuidado comunitário, enfraquecer a autonomia dos CAPS e retomar o modelo biomédico que a reforma psiquiátrica buscou superar. Nesse contexto, torna-se urgente a revisão dessas normativas, com o objetivo de reafirmar os princípios da Lei nº 10.216/2001, fortalecer os serviços comunitários e territoriais, e priorizar o vínculo terapêutico com o usuário e sua rede sociofamiliar.

Por fim, destaca-se a importância do fortalecimento do controle social na formulação, implementação e fiscalização das políticas públicas de saúde mental. A participação ativa dos usuários, familiares e trabalhadores nos Conselhos de Saúde e nas Conferências é um direito constitucionalmente assegurado e fundamental para garantir legitimidade, efetividade e aderência às reais necessidades da população. Para tanto, é necessário investir na formação continuada dos conselheiros, assegurar transparência na gestão dos recursos públicos e promover o protagonismo dos sujeitos diretamente afetados pelas políticas em questão. A gestão participativa é condição imprescindível para a construção de uma política de saúde mental inclusiva, democrática e baseada na defesa intransigente dos direitos humanos.

9. FLUXO IDEAL DE FUNCIONAMENTO DA RAPS

O processo de atenção psicossocial deve se iniciar, preferencialmente, na Atenção Primária à Saúde (APS) ou nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), locais onde se realiza o acolhimento inicial do usuário. Esse primeiro contato é essencial para a construção de um vínculo terapêutico e deve ocorrer por meio de uma escuta qualificada e humanizada, capaz de identificar as demandas emergentes e promover os encaminhamentos adequados às necessidades do indivíduo. A partir desse momento, a equipe multiprofissional — composta por profissionais como psicólogos, assistentes sociais, médicos, enfermeiros, entre outros — elabora, conjuntamente com o usuário, o Projeto Terapêutico Singular (PTS), instrumento central da política de saúde mental. Esse projeto deve refletir não apenas as condições clínicas do sujeito, mas também suas especificidades sociais e culturais, garantindo, assim, um cuidado personalizado e integral.

Nos casos em que forem identificadas situações de vulnerabilidade social, como ausência de moradia, pobreza extrema, abandono familiar ou outras formas de exclusão, é imprescindível a ativação imediata da rede socioassistencial. Por meio da articulação com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), são acionadas unidades do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), abrigos ou programas de transferência de renda, de modo a assegurar o suporte material e a proteção social necessários à dignidade do usuário.

O cuidado em saúde mental deve ser contínuo, territorializado e integrado à vida cotidiana dos sujeitos. Isso se traduz em estratégias como visitas domiciliares, atividades em grupo, oficinas terapêuticas e intervenções comunitárias, que mantêm o vínculo com os usuários e contribuem para a prevenção de recaídas e de internações desnecessárias. Nesse sentido, o cuidado se consolida no espaço do território, como lugar de pertencimento, reconstrução de laços sociais e fortalecimento da autonomia.

A atuação do sistema de justiça deve ser considerada apenas como medida excepcional, reservada a situações extremas, tais como risco grave à integridade física ou mental do sujeito, recusa reiterada e consciente do tratamento, ou necessidade de curatela. A prioridade deve recair sobre as redes de política pública já instituídas, as quais devem ser devidamente fortalecidas e responsabilizadas pelo cuidado contínuo e intersetorial, evitando a judicialização precoce e desnecessária.

Entretanto, diversos desafios se impõem à efetivação dessa proposta. A falta de capacitação técnica específica para o trabalho intersetorial e a ausência de mecanismos locais de integração entre os diferentes setores dificultam a implementação de ações conjuntas e comprometem a eficácia das intervenções. Além disso, a fragmentação das políticas públicas e os frequentes conflitos de competência entre os órgãos envolvidos resultam em omissões institucionais, nas quais cada setor aguarda que o outro tome a iniciativa, retardando ou inviabilizando o cuidado. Como consequência, observa-se um aumento expressivo da judicialização, na qual famílias e usuários, desassistidos pelas redes públicas, recorrem ao Poder Judiciário em busca de respostas emergenciais. Este, por sua vez, acaba assumindo um papel de gestor substitutivo da política pública, promovendo decisões judiciais de caráter individual para demandas que deveriam ser resolvidas de forma coletiva e estruturante pelo Estado.

Tal cenário evidencia a necessidade urgente de fortalecimento da articulação intersetorial, da formação continuada dos profissionais envolvidos e da revalorização dos princípios da reforma psiquiátrica e da atenção psicossocial, como forma de assegurar, de fato, um cuidado digno, integral e emancipador às pessoas em sofrimento psíquico.

10. RESOLUÇÃO CNJ Nº 487/2023 E CONTROVÉRSIAS

Ao tratar do regime jurídico da saúde mental no SUS, é imprescindível discutir a Resolução nº 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que institui a Política Antimanicomial no âmbito do Poder Judiciário. Essa norma representa um divisor de águas ao propor a articulação entre o sistema de justiça penal e a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), em alinhamento com tratados internacionais e com a Lei nº 10.216/2001.

A Resolução determina, entre outras medidas, a interdição progressiva e definitiva dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs), com o redirecionamento das pessoas inimputáveis para acompanhamento na RAPS. A proposta se ancora nos compromissos assumidos pelo Brasil perante a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e nas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que rechaçam a institucionalização prolongada e coercitiva.

Na prática, a norma busca substituir a lógica da custódia penal por uma lógica de cuidado territorial e comunitário, reafirmando o direito à saúde mental como dimensão da cidadania.

No entanto, a medida gerou forte reação de setores como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que alegam ausência de estrutura na RAPS para acolher adequadamente pessoas com sofrimento psíquico associado a alta periculosidade.

A Resolução foi alvo de diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 7389, 7454 e 7566) e de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1076), todas relatadas pelo ministro Edson Fachin. Os autores das ações alegam que o CNJ extrapolou sua competência normativa ao interferir no cumprimento do Código Penal (especialmente no art. 96, I), ao disciplinar sobre medidas de segurança e perícias psiquiátricas, matéria que exigiria lei federal.

Entre as críticas públicas destacam-se declarações alarmistas, como a da presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP), que afirmou: “A população não está sabendo que aquele parente que matou metade da família por falta de tratamento psiquiátrico adequado voltará para casa porque o CNJ determinou.”

A ABP também manifestou preocupação com a responsabilização de profissionais da saúde por eventuais incidentes pós-alta e questionou o uso de laudos psicológicos como único critério para cessação das medidas de segurança.

Do ponto de vista jurídico, no entanto, a Resolução nº 487/2023 não constitui um desvio de finalidade, mas um esforço normativo de efetivação de direitos fundamentais de um grupo historicamente invisibilizado: pessoas com transtornos mentais submetidas a medidas de segurança.

Entretanto, sua implementação exige rede estruturada, monitoramento constante e responsabilidade institucional compartilhada. Sem esses pressupostos, corre-se o risco de substituir o manicômio de muros por um manicômio a céu aberto, caracterizado pela omissão estatal e pelo abandono institucionalizado.

11. INTERNAÇÃO X REDUÇÃO DE DANOS

A dependência química é atualmente reconhecida como uma enfermidade pela Organização Mundial da Saúde (OMS), sendo caracterizada por alterações de ordem física e psíquica resultantes do uso abusivo de substâncias psicoativas. Essas substâncias podem ser lícitas, como o álcool e a nicotina, ou ilícitas, como a maconha, a cocaína e o crack. Importa destacar que tal condição não decorre exclusivamente de uma escolha individual, mas constitui um transtorno complexo e multifatorial, que compromete gravemente a capacidade de discernimento do indivíduo, dificultando sua percepção da realidade e o reconhecimento da própria condição de adoecimento.

Nesse contexto, a interrupção ou redução abrupta do consumo dessas substâncias pode desencadear o que se denomina síndrome de abstinência, um conjunto de sintomas físicos e psicológicos como ansiedade, irritabilidade, tremores, sudorese, náuseas e, em situações mais graves, convulsões. Esses sintomas, por sua vez, tendem a perpetuar o ciclo da dependência, uma vez que o desconforto intenso e o medo das consequências da abstinência acabam por motivar o retorno ao consumo.

Diante dos limites das políticas estritamente baseadas na abstinência, surgiu a estratégia de Redução de Danos (RD), pautada por uma abordagem pragmática e centrada nos direitos humanos. Esta perspectiva não exige a cessação imediata do uso, mas propõe a minimização dos riscos associados ao consumo de substâncias, reconhecendo as realidades sociais e individuais dos usuários. Historicamente, a RD consolidou-se em experiências pioneiras como a de Liverpool, na Inglaterra, na década de 1970, onde médicos passaram a prescrever heroína para usuários crônicos com o objetivo de reduzir overdoses; na Holanda, com a institucionalização dos “coffee shops” como política de substituição de drogas pesadas; e no Brasil, em 1989, com a distribuição de seringas pela prefeitura de Santos visando conter a disseminação do HIV entre usuários de drogas injetáveis. Esta última medida chegou a ser judicializada, com tentativa do Ministério Público de enquadrar os responsáveis como traficantes, o que demonstra os desafios políticos e jurídicos que a abordagem enfrentou em sua origem.

No Brasil, o Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD), vinculado à Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), foi um dos pioneiros na implementação da RD em ambiente acadêmico e clínico. Estudos realizados por essa instituição, como o que acompanhou usuários graves de crack, indicaram que 68% deles abandonaram o consumo da substância após cinco semanas substituindo-a por maconha, relatando redução da fissura, melhora do sono e diminuição da agressividade. Tais dados, contudo, contrastam com o direcionamento adotado pela Política Nacional sobre Drogas (PNAD) a partir de sua reformulação em 2019, a qual passou a privilegiar metas de abstinência, relegando a RD a um papel secundário nas diretrizes oficiais.

Internacionalmente, a Redução de Danos compreende um amplo espectro de intervenções, entre as quais se incluem a diminuição da frequência de uso, a substituição da via de administração (por exemplo, do uso injetável para o inalável), a substituição de substâncias, intervenções educativas e o encaminhamento voluntário para tratamento. No plano nacional, tais estratégias concretizam-se por meio da oferta de kits de uso seguro, campanhas informativas sobre o não compartilhamento de seringas e cachimbos, substituição de bebidas por aquelas de menor teor alcoólico, e pela regulação de horários de funcionamento de estabelecimentos em áreas de risco.

Cumpre ainda destacar que a Redução de Danos ultrapassa o fornecimento de insumos, incorporando ações de cuidado ampliado nos serviços de saúde e de assistência social. Acompanhamento clínico e psicossocial, apoio a famílias e a disponibilização de tratamento quando desejado pelo usuário são componentes fundamentais dessa abordagem. Ao considerar o sujeito em sua integralidade, e não apenas como portador de um comportamento desviante, a RD favorece o vínculo, a escuta e a adesão gradual às alternativas terapêuticas.

Apesar das evidências empíricas que corroboram a eficácia da Redução de Danos, estudos indicam que aproximadamente 40% dos usuários abandonam os modelos tradicionais de tratamento centrados exclusivamente na abstinência, o que reforça a necessidade de abordagens mais flexíveis, inclusivas e condizentes com a realidade vivida pelos usuários.

Importante destacar que a Redução de Danos não se confunde com apologia ao uso de drogas. Trata-se de uma política pública de saúde que parte do reconhecimento da existência da dependência e da necessidade de mitigar os danos causados tanto pelo consumo em si quanto pelo contexto social de exclusão em que muitas dessas pessoas se encontram. Além disso, essa abordagem constitui uma via de inclusão social, ao permitir o acesso de populações marginalizadas aos serviços de saúde, muitas vezes por meio do trabalho de agentes redutores de danos, os quais ofertam insumos seguros, realizam testagens rápidas para HIV e hepatites, e promovem encaminhamentos humanizados aos serviços especializados, caso haja interesse por parte do usuário.

Por fim, destaca-se que a Redução de Danos desempenha um papel essencial na contenção de agravos à saúde pública. A disponibilização de insumos descartáveis e a promoção do uso seguro são estratégias que contribuem decisivamente para a redução da transmissão de infecções como o HIV e as hepatites virais, além de aliviar a sobrecarga dos sistemas públicos de saúde e prevenir complicações clínicas e hospitalares. Tal perspectiva demanda o reconhecimento da complexidade que envolve o fenômeno da dependência química, e a superação de visões moralistas ou punitivistas que historicamente fragilizaram as políticas públicas no campo das drogas.

12. CONCLUSÃO

O regime jurídico das políticas de saúde mental no Brasil reflete um campo em permanente disputa entre modelos de cuidado, concepções de cidadania e paradigmas científicos. Desde a consolidação do SUS e da promulgação da Lei nº 10.216/2001, observa-se um esforço institucional para consolidar um modelo psicossocial, comunitário e territorializado, ancorado nos princípios da dignidade, da liberdade e da integralidade do cuidado. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), como principal estratégia de operacionalização dessa política, representa um avanço significativo em relação ao antigo modelo hospitalocêntrico, oferecendo uma abordagem centrada na singularidade dos sujeitos e na articulação intersetorial.

Entretanto, a efetivação dessa rede tem sido sistematicamente comprometida por entraves estruturais e políticos, entre os quais se destacam o subfinanciamento crônico, a fragmentação federativa, a judicialização excessiva, e a precarização de algumas parcerias público-privadas, em especial no que tange às comunidades terapêuticas. A persistência dessas dificuldades evidencia o descompasso entre o arcabouço normativo e a realidade dos territórios, exigindo a adoção de estratégias integradas de governança, financiamento e controle social.

Adicionalmente, a implementação de práticas como a Redução de Danos e a interdição progressiva dos Hospitais de Custódia — conforme previsto na Resolução CNJ nº 487/2023 — reforçam a necessidade de uma revisão crítica das atuais políticas de drogas e de saúde mental. Isso requer, por parte do Estado, o fortalecimento de serviços comunitários, a qualificação técnica dos profissionais da saúde e do sistema de justiça, e o respeito aos direitos fundamentais das pessoas em sofrimento psíquico ou em uso problemático de substâncias.

Dessa forma, o aprimoramento da RAPS passa pela reafirmação dos princípios da reforma psiquiátrica, pelo fortalecimento da participação social e por um compromisso institucional com a desinstitucionalização e com o cuidado em liberdade. Apenas com uma abordagem democrática, intersetorial e centrada na pessoa será possível garantir a efetividade dos direitos humanos no campo da saúde mental no Brasil.


2Foucault (1978) analisa como o confinamento dos ‘loucos’ constituiu uma prática de exclusão social e moral, mais do que uma estratégia terapêutica.
3Segundo relatório do CNDH (2020), muitas comunidades terapêuticas ainda operam em desacordo com os princípios dos direitos humanos e da reforma psiquiátrica.
4“Segundo dados da Fiocruz (2022), o subfinanciamento crônico da saúde mental compromete a efetividade das ações da RAPS em todo o território nacional. O documentário “Saúde tem cura”, produzido pela Fiocruz em 2023, reforça essa análise ao apresentar depoimentos de especialistas, gestores e usuários do SUS que evidenciam os impactos concretos do subfinanciamento nas políticas públicas de saúde, inclusive na saúde mental. A obra destaca como a ausência de investimento adequado impede a plena concretização dos princípios constitucionais do SUS, como a universalidade, a integralidade e a equidade, comprometendo a expansão e a manutenção de uma rede psicossocial efetiva (FIOCRUZ, 2023).

REFERÊNCIAS

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1Advogado, Mestrando em Direito Médico pela Universidade Santo Amaro – UNISA, Master of Business Administration (MBA) em Gestão da Saúde e Administração Hospitalar pela Universidade Anhembi Morumbi, Pós-graduado em Compliance e Governança Corporativa pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU, Pós-graduado em Direito Administrativo e Constitucional Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas, Especialista contratações públicas e Terceiro Setor. Membro efetivo da Comissão Especial de Direito Médico e de Saúde da OAB/SP. e-mail: anderson_amorim.adv@hotmail.com.