REFLEXÕES ACERCA DO PLANEJAMENTO PERCURSOS DE PROFESSORAS DE CRIANÇAS BEM PEQUENAS DO MUNICÍPIO DE IJUÍ/RS.

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202504301120


Patrícia Simara Kerber¹
Orientadora: Queila Almeida Vasconcelos²


Resumo: Este trabalho tem como tema a reflexão e reorganização do modo de planejar como um processo de escuta, de observação, que articula as experiências vividas pelas crianças num percurso que é contínuo e que produz conhecimento. Participaram de um estudo de caso e pesquisa-ação três professoras de crianças bem pequenas de uma Escola Municipal de Educação Infantil do município de Ijuí/RS, elas foram convidadas a repensar e reorganizar o seu planejamento. Partindo do pressuposto de que faziam muitos registros de suas observações cotidianas da prática educativa, porém precisavam ir além disso, aprofundar suas observações pensando nos tempos, nos espaços e nas propostas que eram feitas às crianças. A pesquisa ocorreu entre os meses de agosto à novembro, onde aconteceram encontros mensais na escola, em horário de planejamento das professoras. A partir disso, registrei, analisei e constitui a seguinte pesquisa. Considero que ainda há muito diálogo e reflexão que podem ser aprofundados para dar continuidade a uma prática educativa afetiva, respeitosa e significativa, tanto para as crianças quanto para os adultos.

Palavras-chave: Planejamento; Ação Reflexiva; Docência; Educação Infantil.

Abstract: This work focuses on the reflection and reorganization of the planning process as one of listening and observation, which integrates the lived experiences of children in a continuous journey that produces knowledge. Three teachers of very young children from a Municipal Early Childhood Education School in the city of Ijuí/RS participated in a case study and action research. They were invited to rethink and reorganize their planning. While they were already making many records of their daily observations of educational practice, they were encouraged to go beyond this and deepen their observations by considering the times, spaces, and proposals made to the children. The research took place between August and November, with monthly meetings at the school during the teachers’ planning time. Based on this, I recorded, analyzed, and developed the following research. I believe there is still much dialogue and reflection to be had in order to continue fostering an educational practice that is affectionate, respectful, and meaningful for both the children and the adults.

Keyword: Planning; Reflective Action; Teaching; Early Childhood Education.

INTRODUÇÃO

Ao iniciar o meu percurso profissional como professora de Educação Infantil, na rede municipal de ensino do município de Ijuí/RS, no ano de 2016, encontrei na escola, coordenadoras pedagógicas que me acolheram e me convidaram para aprender em companhia, como diz Oliveira-Formosinho (2009). Desde então, tenho refletido e ressignificado o meu fazer docente, as minhas concepções. E, deste caminho, lembro Hoyuelos e Riera (2019, p.33) quando falam que, “trabalhar no cotidiano da escola infantil supõe, como diz Morin, entrar em um oceano de incertezas com alguns arquipélagos de certezas.” E é exatamente isso, é um indagar-se cotidianamente, é ter dúvidas, desejos, errar e acertar, num processo onde muitas histórias podem ser contadas e onde muitas aprendizagens vão sendo construídas.

Durante esse percurso sou convidada à coordenação pedagógica da Educação Infantil nesta mesma rede, que há um bom tempo vem trilhando um caminho de reflexão acerca de concepções e práticas que são desenvolvidas na escola infantil, que acredita que a “formação continuada auxilia os educadores a reverem, junto com outros educadores, o percurso vivido” (Caderno 24 -RCM – Ijuí, 2020, p.37). E nesse sentido, de dialogar, de questionar, de avançar colaborativamente, busco a Especialização em Educação Infantil (UNISINOS), que me conota inúmeras provocações, mas que quero destacar e me propor a pensar no momento, que é o planejamento do professor. 

O que percebo, é que os professores na sua grande maioria, observam e registram sobre as ações cotidianas das crianças, porém o seu modo de planejar ainda se limita a práticas listadas, organizadas pelo tempo do relógio, que acabam sendo isoladas e consequentemente descontextualizadas. Sem que se compreenda de fato as necessidades e particularidades das crianças, como se todas fossem iguais, num cotidiano encarecido de relações, interações e brincadeiras. Me parece ser apenas um momento burocrático, sem muita reflexão sobre o que se observa, sobre o que se registra, sem “autoria consistente e responsável da nossa docência” (Vasconcelos, 2021, p.52).

Dessa forma, este artigo está organizando em quatro sessões, sendo a primeira delas a fundamentação teórica na qual são conceituadas as ideias de planejamento, de um currículo pautado no cotidiano, na escuta e observação. E segue explicitando a metodologia de estudo de caso e pesquisa-ação que nortearam o trabalho e o modo como foi sendo construído um instrumento de organização de planejamento, logo evidencia-se os resultados e as reflexões acerca desses e as considerações daquilo que percorremos e daquilo que podemos percorrer.

2. Caminhos que refletem sobre o modo de planejar

De acordo com o Referencial Curricular Municipal Educação Infantil Tempo e Espaço de Ser Criança (Caderno 24 – RCM – Ijuí, 2020, p.10) “[…]compreendemos que o currículo emerge da escuta atenta à criança, suas necessidades e desejos e deixa de ser um caminho linear, com objetivos predefinidos.” Por isso, ao considerar os estudos contemporâneos – pedagogias participativas – e o nosso referencial curricular municipal que compreendem a escola como um lugar vivo, que reconhece a potência da criança e a envolve na busca do conhecimento, se faz necessário pensar com urgência sobre o que e para que planejamos?

Compreendo que o ato de planejar implica em primeiramente deixar de lado alguns padrões de currículos escolares tradicionais, despindo-se de velhas e ultrapassadas práticas, afinal, o lugar que a Educação Infantil ocupa não cabe mais apenas numa folha A4 como nos diz Martins (2020). Num currículo que acontece no cotidiano da escola, escutando as crianças, oportunizando condições para que elas aprendam e se desenvolvam, compreendendo que “não podemos pensar em um jeito de planejar […] próprio dos currículos escolares tradicionais, quando ao nosso redor o mundo é um turbilhão de acontecimentos, descobertas, problemas esperando soluções sábias” (Redin, 2017, p.26).

Assim, subscrevo Fochi (et. al, 2020, p.108) quando diz que,

Planejar é fazer um esboço mais amplo sobre a gestão do tempo, sobre a organização dos espaços, sobre a oferta de materiais e sobre os arranjos dos grupos. É criar situações significativas de aprendizagem que contribuam para as crianças atribuírem significado para as suas experiências no mundo. Também é pensar sobre o modo como o adulto se relaciona com as crianças e como constitui sua identidade docente.

Por essa razão, o estudo aqui apresentado consiste em acompanhar as reflexões sobre o fazer docente através de um instrumento de reorganização de planejamento, de modo que se possa construir junto com as professoras o sentido de planejar, como um processo de escuta e observação, que é contínuo, que cria relação entre uma situação e outra, que dialoga com o

vivido, que articula as experiências das crianças com o conhecimento, que acolhe as incertezas, as hipóteses e teorias, que faz boas perguntas e que torna visível a intencionalidade pedagógica, um planejar para e com as crianças.

Assim como, do professor apropriar-se daquilo que faz, da sua criação, do seu pertencimento e percurso através da autoria docente que “[…] se desenvolve na relação com as crianças via ação pedagógica consciente e coerente com os princípios orientadores da proposta da escola” (Vasconcelos, 2021, p.184), e que assim vai compondo sua própria história.

Com isso, a próxima sessão mostra o caminho percorrido para a elaboração de um instrumento de planejamento, traz um recorte da realidade da escola, suas inquietações ao modo de planejar, as angústias e as alegrias das professoras à maneira como foi construído e explicitado esse instrumento.

3. Caminhos da construção de um Instrumento para o Planejamento

Cabe destacar que, o estudo foi realizado em uma escola pública de Educação Infantil da cidade de Ijuí/RS que atende crianças de 1 a 5 anos e 11 meses. Participaram da proposta quatro professoras, duas delas professoras de bebês e duas professoras de crianças bem pequenas. Os diálogos e reflexões aconteceram no período de agosto à novembro de 2022, onde um dia de cada mês eu me deslocava até a escola, no horário de planejamento das professoras para dialogarmos e refletirmos juntas.

Nessa escola, o grupo de profissionais tem um olhar afetuoso e comprometido com a infância, um grupo que tem um percurso formativo admirável, onde a prática consiste no respeito às singularidades das crianças, na escuta e na observação do cotidiano, e nas diferentes maneiras de registros que são elaborados. No entanto, o que se percebeu depois de um momento de diálogo com a Equipe Diretiva é que uma das maiores inquietações desse grupo, é como organizar esse planejamento de modo que uma proposta se conecte com a outra, num processo de continuidade e articulação dos saberes das crianças, que abrange os princípios éticos, políticos e estéticos (Brasil, 2010), os direitos de aprendizagem e os campos de experiências (Brasil, 2017), todos pautados nos eixos norteadores do currículo: interações e brincadeira (Brasil, 2010).

A partir disso, pensou-se numa pesquisa pautada por um estudo de caso, que como diz Stake (2007, p.11, apud Fochi, 2019, p.53) “[…] um estudo de caso consegue captar a complexidade de um caso único” e pesquisa-ação, por poder através da investigação, refletir individual e coletivamente sobre a prática educativa com a intenção de aprimorá-la.

Assim, a pesquisa ação é definida por Thiollent (2011, p.20),

[…] como um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.

Dessa forma, dialogando com Fochi (et. al, 2020, p. 99) quando diz que “os instrumentos de planejamento precisam apoiar a leitura da realidade de modo crítico e criativo, sustentar processos reflexivos e dialógicos”, entendo que o planejamento muito mais do que orientar a ação educativa do professor, é um modo de refletir sobre a mesma, de fazer escolhas, de fazer perguntas, ou melhor, boas perguntas, é não saber tudo (e que bom que nunca saberemos tudo), é um despir-se das certezas.

Portanto, retomando novamente as provocações e inquietações trazidas durante os estudos dessa especialização, elaborei um instrumento de organização de planejamento na intenção de colaborar com a escola na reflexão e aperfeiçoamento da prática educativa.

Figura 1 – Instrumento de organização de planejamento

Na ilustração, o instrumento de organização de planejamento é explicitado da seguinte forma:

1 – Espaços da sala referência: o professor estrutura primeiramente um mapa pedagógico da sua sala colocando todos os espaços, de forma que o ajude a ter uma visão ampla dessa organização. Em seguida, descreve o porquê de cada um desses espaços, quais os materiais dispostos e sua intencionalidade. As alterações podem ser feitas de acordo com a necessidade, podendo acrescentar ou retirar materiais, reelaborar os espaços, criar novos espaços.

2 – Tempos: o professor organiza seu modo de registro sobre os tempos da criança na escola, nos momentos de alimentação, higiene, sono, pátio, propostas. É importante que o professor se atente se tem registro de todas as crianças. Não que tenha que escrever de todas na mesma semana, até porque isso não seria possível, mas que no decorrer do mês ele possa fazer algum registro sobre cada uma delas. Essa organização é mensal.

3 – Propostas: a partir das observações que o professor já tem feito e daquilo que ele também considera importante para o desenvolvimento e aprendizado das  crianças,  ele  organiza  suas  propostas.  Descrevendo  sobre  sua intencionalidade pedagógica, o espaço, os materiais utilizados, o tempo, o grupo de crianças, qual ou quais recursos de registro utilizará, para depois relacionar com os campos de experiência. Essas propostas são desenvolvidas semanalmente, porém o seu planejamento organizacional acontece a cada quinze dias.

4 –  Registros: depois de todas as observações e registros que o professor tem de cada parte dessa organização, ele terá subsídios para pensar, planejar e relançar as propostas, para dar continuidade aos processos de aprendizagem das crianças, para ter conexão e não ficar no que se costuma dizer num ‘show de novidades’, onde a cada dia apresenta uma situação diferente às crianças. Esses registros são revisitados e aprofundados a cada quinze dias.

Junto à Equipe da escola organizei um encontro com as professoras, no início do mês de agosto, dialogamos e rememoramos algumas fragilidades no ato de planejar e em seguida apresentei o instrumento de organização do planejamento. Ao detalhar e explicitar cada tópico da proposta, íamos fazendo conexões com a prática pedagógica de cada uma, e nesse sentido, fomos percebendo aquilo que estava de certa forma mais estável e consistente para elas e quais dificuldades iam sendo evidenciadas.

Algumas constatações importantes puderam ser ressaltadas, como o desconforto por achar que seria ‘mais uma tarefa a ser feita’ ou por se pensar que não seria possível, não se ‘daria conta’ de pensar sobre tudo. E também, o contentamento de perceber que seria possível reorganizar o seu planejamento, de modo que contribuiria para a reflexão e que situaria melhor o trabalho pedagógico.

Ao compartilhar e refletir junto ao grupo sobre essa nova reorganização de planejamento, propus às professoras que pensassem sobre o seu modo de organização desse instrumento, pois compreende-se que cada pessoa possui suas singularidades e por isso faz seus registros de variadas formas, com “[…] marcas individuais das professoras nos caminhos percorridos” (Vasconcelos, 2021, p. 110), referentes a autoria docente.

O grupo optou por organizar, no coletivo, uma maneira de organizar seus registros, propuseram à coordenação pedagógica que organizasse através de planilhas esse instrumento de planejamento, argumentando que facilitaria o modo de registrarem e que visivelmente ficaria mais organizado. Acredito nesse instrumento de registro escolhido pelo grupo, e por isso, destaco que “os itens elencados nas planilhas permitem orientar a nossa observação, […] permitem ainda reunir material útil para reelaborar sucessivamente o processo ativado, favorecendo tanto a interpretação quanto a definição das fases sucessivas.” (Creche Giani Rodari, et. al, 2020, p.123).

Abaixo segue a ilustração das planilhas organizadas pelo grupo de professoras juntamente com a coordenação pedagógica da escola.

Figura 2 – Organização das planilhas elaboradas pela escola

Após esse primeiro momento com as professoras e a organização do registro que elas fizeram, combinamos que a cada mês eu organizaria um dia para estar na escola, no horário de planejamento delas, para dialogarmos e refletirmos sobre o instrumento de organização do planejamento. Cada vez que eu me deslocava até a escola, conseguia conversar sempre com duas professoras. Foram três visitas realizadas, de setembro à novembro.

A seguir serão apresentados os resultados produzidos a partir desse percurso formativo.

4. Caminhos reflexivos que apontam para a continuidade

Ao retornar à escola num horário de planejamento no mês seguinte, em setembro, para dialogarmos sobre o como estavam se organizando e quais suas primeiras impressões e constatações acerca da estruturação no modo de planejar. A coordenadora destaca que esteve ainda mais presente ao lado das professoras, auxiliando nessa organização, e que esses primeiros registros tem sido um processo ‘doloroso’, pois abandonar alguns modos de registrar para planejar, que muitas vezes ficavam apenas no relato dos acontecimentos e não na reflexão sobre os mesmos, não tem sido um processo fácil, mas que aos poucos isso está acontecendo e há um querer das professoras.

Nesse sentido, Proença (2021, p.51) destaca que,

Em geral, os registros reflexivos dos professores na escola têm a função de produzir transformações, deslocamentos, provocar modificações, posicionamentos e orientar a ação cotidiana do educador. Funcionam como uma espécie de motor do planejamento do professor, uma organização do cotidiano institucional com caráter temporal e processual muito amplo, que abarca passado-presente-futuro.

Esse registro que faz refletir, que faz deslocar-se, transformar e modificar, pressupõem escolhas, que muitas vezes não são feitas pelas professoras, pois têm o hábito de registar tudo. E fazer escolhas é essencial, envolve incertezas, desejos, conquistas, é um interpretar e atribuir sentido ao que se faz, ao que as crianças fazem. E para exemplificar esse processo na escola, trago abaixo alguns desses primeiros registros feitos pelas professoras e suas contribuições.

4.1 Espaços da sala referência:

Os espaços organizados nas salas de referência sempre foram preparados e planejados de acordo com o que cada professora observava sobre o que as crianças estavam fazendo, sobre suas brincadeiras e interações, e também sobre aquilo que a professora considerava importante para aquela turma de acordo com o seu desenvolvimento. A escola, como um todo, compreende que o espaço é um aliado, que é mais um educador no processo de aprendizagem das crianças.

A organização desses na sua grande maioria, se dá com o uso materiais não estruturados, “objetos originados para outra função, mas que podem ser reinventados e ressignificados continuamente pelas próprias crianças, parece- nos favorecer melhores condições para o desenvolvimento do pensamento da criança […]” (Mussini, et. al, 2020.p.73) os quais fazem parte da proposta da escola e da rede municipal de ensino.

No entanto, a organização desses espaços nunca havia sido registrada para posteriores reflexões, ressignificações e relançamentos. E nesse sentido, percebi o quanto esses registros, como no exemplo da ilustração abaixo, tem auxiliado nas reflexões e nas interpretações das professoras, cada uma com suas singularidades, mas todas com olhar um pouco mais apurado em suas observações. Em nossos encontros, elas relatavam o quanto estavam mais atentas a pensar nos materiais e suas materialidades, nas quantidades, pois em muitas vezes organizaram espaços cheios de coisas das quais as crianças nem tocavam, ou que, apenas bagunçavam tudo e não brincavam com nada, devido a quantidade de informações. Passaram também a observar a organização dos espaços de modo circunscrito, compreendendo que a criança precisa desses espaços, que ela se organiza no mesmo o que contribui para o seu brincar.

Considero que, ao registrarem a organização dos espaços, as professoras estavam aos poucos reinterpretando-os, pensando melhor sobre os materiais, sobre o como as crianças estão explorando e experienciando, assim como, refletiam sobre o quanto os mesmos favorecem as relações das crianças, as suas diferentes linguagens, o seu emocional. Assim, compreendo e concordo com (Mussini, et. al, 2020, p.72) num espaço que o “[…] diálogo diferentes linguagens e formas expressivas por meio das quais cada criança, sujeito ativo de todo processo comunicativo e relacional, é capaz de expressar seu modo de ser, de conhecer e de aprender”.

Figura 3 -Ilustração exemplo de organização dos espaços da sala referência

4.2 Tempos:

Quando pensado sobre o tempo das crianças na escola, a coordenadora destaca que as professoras não se davam conta de que não pensavam sobre isso. Que esses momentos passavam despercebidos, ou que eram relatados superficialmente em detrimento ao dar-se ‘maior’ importância às propostas que eram pensadas pelas professoras. Em consequência disso, tinham inúmeros registros das crianças nos momentos de experiências, mas não tinham sobre esse cotidiano dos tempos na escola, que por vezes, geralmente não era planejado ou refletido. As professoras começam a valorizar, observar e registrar essas microtransições, “elas começam a perceber que nesses momentos acontecem muitas coisas e que elas não são desimportantes.” (Coordenadora Pedagógica).

Neste sentido, destaco Fochi (2019, p.286),

[…] pensar a gestão do tempo dentro das escolas não é uma questão apenas de estruturação objetiva, mas de “[…] um dispositivo de socialização e de aprendizagem […]” (NIGITO, 2004, p. 45). Isso porque a especificidade das crianças que frequentam a Educação Infantil envolve, ao mesmo tempo, construir sua própria noção interna de tempo e compreender e internalizar a noção social do tempo.

Ao refinar o olhar para a gestão do tempo na escola, organizando-o e registrando esses momentos, as professoras vão dando visibilidade e importância ao modo como as crianças interagem e constroem aprendizagens nesses momentos. E como relata a professora L…, “Percebi que os tempos na jornada educativa das crianças podem mudar, que a medida que vou registrando vou percebendo novas possibilidades. Tem coisas que no cotidiano vamos fazendo, e se não fizermos esta organização, podemos acabar limitando a nós mesmos e também as crianças em suas múltiplas capacidades.”

Compreendo que, nesse processo de perceber e valorizar esses momentos das crianças no cotidiano da escola, as professoras (e digo as professoras no plural, por que todas discutiram sobre isso) começam a visualizar melhor algumas coisas nas suas observações, parece-me que aquilo que elas tanto estudam e refletem, começa a fazer sentido, há uma relação entre a teoria e a prática. Como ressalta a professora O…, “observo com mais atenção, identificando necessidades, dificuldades, aprendizagens, porém requer uma organização e um compromisso do professor”.

Figura 4 – Ilustração exemplo de organização dos tempos

Constato, o quanto elas vão se dando conta de que aquilo que consideravam, por vezes, ‘desimportante’, é de extrema importância, que isso faz parte do currículo da educação infantil, que este é o cotidiano, é um modo de compreender um pouco mais sobre as singularidades de cada criança, sobre como elas se relacionam, sobre aquilo que elas sabem, sobre sua cultura e de como aprendem essa noção social do tempo, e nesse sentido “tecem a trama das relações e de encontros que representam o tecido social, no qual se desenrola os percursos de busca e os aprendizados das crianças e dos adultos” (Mussini, et. al, 2020, p. 74).

4.3 Propostas:

Ao transcreverem seus registros das observações daquilo que as crianças estavam fazendo em uma proposta e outra, ou do seu brincar nos espaços organizados da sala de referência ou fora dela, tanto as professoras como a coordenadora pedagógica, relataram que esse processo é uma provocação para sair do ‘automático’, que ao transcreverem iam se dando conta de situações, de organizações, de materiais, que só era possível perceber nesse momento na hora do planejamento, como relata a professora L…, “[…] observei que me ajuda a repensar sobre minhas práticas, tendo uma visão macro para todas as variáveis do cotidiano pedagógico. De fato, esse instrumento me convidou a fazer do planejamento uma ação intencional de criar um percurso aberto para ser refletido. Novas ideias surgem e percebo que muitas coisas não haviam sido observadas anteriormente.”

Figura 5 – Ilustração exemplo de propostas com crianças bem pequenas

Trago um exemplo de organização das propostas de uma professora, e pactuo com Fochi (2019, p.222) quando diz que “a desconexão das propostas oferecidas às crianças são reveladoras do como não compreendemos sua competência para atribuir significado a sua própria aprendizagem.” É perceptível que este é o maior desafio das professoras, pensar sobre aquilo que se registra e tentar fazer um outro tipo de interpretação, não é uma tarefa fácil, é preciso conhecer e entender sobre as crianças. Mas, é justamente esse desconforto, esse querer sair do modo ‘automático’ que impulsiona as professoras a ressignificarem o seu modo de planejar.

Através dos seus registros planejam e organizam suas propostas pensando o espaço, o tempo e os materiais, destacando sua intencionalidade pedagógica, assim como, suas indagações sobre como as crianças aprendem, como se relacionam com a proposta e com as outras crianças.

Ao escutar as professoras e refletir junto com elas sobre o que acontece até chegarem ao momento de planejar e organizar uma proposta, posso dizer que no discurso delas, percebo que há uma ‘virada de chave’. Pois, para além de pensar na proposta de um modo geral e de organizá-la de uma maneira esteticamente convidativa para explorar, experienciar e brincar (como estavam acostumadas a fazer), elas iniciam seus primeiros ensaios de deter-se e refletir sobre os materiais e suas materialidades, sobre o que de fato pode ser importante trazer ou não numa proposta e outra, começam a compreender as relações que as crianças poderão estar fazendo, que tipo de exploração e que significado isso pode ter. Dessa maneira também, começam a dar seus primeiros passos para estabelecerem relação entre uma proposta e outra, num percurso que deve ter continuidade.

É fato que isso ainda é um início, que muitas vezes as professoras retomam o discurso das queixas, da falta de tempo, numa nuance de ‘altos e baixos’, compreendo que este percurso tem um longo caminho, porém me alegra perceber que isso já está sendo evidente para elas. Onde, através das suas observações e dos seus modos de registrarem começam a compreender que precisam pesquisar sobre diferentes assuntos, que precisam ampliar os seus repertórios culturais e artísticos, para não ficar apenas no ‘mais do mesmo’, para poder aprofundar e potencializar as experiências das crianças, criando possibilidades para novos percursos. E, “construir jornadas de aprendizagem que permitem aos meninos e meninas irem elaborando, aprofundando e ganhando intimidade com os saberes e os objetos de investigação” (Fochi, 2019, p.222).

4.4 Registros:

Ao analisar seus registros sob uma outra perspectiva, uma das professoras relata que, “eu sempre tive tanto registro, produzi muita mini-história, mas nunca me detive para alguns detalhes, que agora eu enxergo, porque reorganizei minha maneira de registrar, acho que tudo que é do meu fazer está aqui. Mas ainda preciso fazer mais escolhas” (professora D…).

As professoras sempre fizeram seus registros através de fotografias, vídeos, gravações, registros gráficos das crianças, mini-histórias, narrativas, porém essa prática, assim como as propostas, estava seguindo no modo ‘automático’, pois ela se repetia, não conseguindo pensar numa continuidade. Quando elas receberam a proposta do instrumento de planejamento e elas mesmas sugeriram fazer seus registros em planilhas, para depois refletir, planejar/replanejar, elas foram percebendo suas fragilidades, começaram a se questionar, perceberam o que sabiam e o que não sabiam, compreenderam que essa outra maneira de conduzir os seus registros, as levariam para outros pontos de vista, outras observações e outras interpretações. Assim, destaco Hoyuelos e Riera, (2019, p. 98).

Se a descrição trata daquilo que é ou daquilo que aconteceu, a interpretação vai mais além e enfoca o porquê, o como e o de que maneira; sem perder de vista que as possibilidades de compreensão são múltiplas, como o são também as possibilidades interpretativas.

E é exatamente isso o que percebi que acontece, as professoras tinham inúmeros registros, muitas anotações, mas não sabiam o que fazer com tudo aquilo, como interpretar, como fazer escolhas e como dar continuidade ao processo. Com a utilização desses registros que elas já estavam habituadas a fazer, e agora com as planilhas organizadas por elas, percebi durante as conversas, que em seus planejamentos elas traziam mais detalhes sobre o que as crianças diziam, dos seus comportamentos e expressões, e são esses detalhamentos que favorecem a interpretação, o planejamento das próximas ações e as escolhas que as professoras terão que fazer.

Destaco ainda a fala da coordenadora pedagógica M… “quando as professoras, por meio das planilhas que elaboraram, trazem mais detalhes e me contam daquilo que foi observado, eu como coordenadora consigo ajudá-las com mais facilidade, pois percebo que há uma clareza maior, que as coisas não ficam mais tão genéricas […]”. A partir dessa colocação e das conversas que tive com a coordenadora que sempre estava acompanhando as professoras em seus planejamentos, percebi que esses registros contribuíram para reformularem as suas interpretações sobre as coisas que as crianças faziam, e que ao registrarem com riqueza de detalhes, as professoras pensavam, dialogavam, construíram conhecimento e iam dando sentido e significado para suas ações, revelando também a sua autoria.

Sendo assim, concordo com Ostetto (2017, p.30), quando diz que, “documentar é contar histórias, testemunhar narrativamente a cultura, as ideias, as diversas formas de pensar das crianças […] dar sentido à existência […]”, e além de tudo isso, compreendo que é comunicar às crianças e às famílias o que é vivido no cotidiano da escola das infâncias.

5. CAMINHOS PERCORRIDOS E A PERCORRER

Considero que, essa reflexão sobre o modo de planejar na escola de Educação Infantil, organizando e utilizando um instrumento que auxiliasse o grupo de professoras e coordenadora pedagógica nesse processo, foi extremamente valioso, pois acredito que os primeiros passos foram percorridos, no desejo de se questionar sobre a jornada educativa, de avaliar os ‘porquês’ e os ‘como’ de cada ação observada e de cada intencionalidade pedagógica, foi um “estranhar o familiar para estabelecer novos modos de estar com as crianças e de promover jornadas de aprendizagens” (Fochi, et. al, 2020, p. 127).

Acredito ainda, que tais processos reflexivos nos momentos do planejamento qualificaram o trabalho em equipe, tanto de professoras e professoras, como de professoras e coordenadora pedagógica, pois percebi que o engajamento delas para de fato avançar nos seus modos de planejar foi despertado, que os seus registros já começaram a ser reconfigurados, detalhados, na tentativa de aprofundá-los e de compreender que, “essas dimensões do planejamento tem nos ajudado a reposicionar as crianças e os adultos na relação educativa” (Fochi, 2019, p. 242).

Pensar num planejamento que compreende os tempos, os espaços, as propostas e os registros puderam sim, contribuir e qualificar os processos vividos pelas crianças, através da reflexão de um professor que tem autonomia, que deixa suas marcas de autoria ao longo de seu percurso educativo. Contudo, esse estudo de pesquisa, potencializou o meu percurso profissional como coordenadora pedagógica, poder dialogar e aprender na companhia de um grupo de professoras e coordenadora pedagógica que se dispôs a refletir, construir e desconstruir ideias, que se permitiu errar e acertar, que construíram coletivamente um modo próprio de organizar o seu planejamento estando “abertos o suficiente para acolher a subjetividade de quem o faz e para quem ele é direcionado” (Fochi, et. al, 2020, p.128). Espero que para além desse momento, possamos dar continuidade a essa pesquisa na intenção de potencializá-la.

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¹Patricia SImara Kerber – kerberpatricia24@gmail.com 
²Professora Orientadora Dra. Queila Almeida Vasconcelos – queilaalmeida@hotmail.com