REFLEXÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA: PSICOLOGIA ESCOLAR E OS IMPACTOS DO FECHAMENTO DAS ESCOLAS NA PANDEMIA DE COVID-19

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7766664


Laís Missae Ono Avelino
Rachel de Faria Brino


Resumo: A partir de experiências no ensino público, no interior de São Paulo, o presente artigo se propõe a refletir sobre os desafios da área da Educação antes e durante a pandemia da COVID-19. A Psicologia Escolar e Educacional está presente como arcabouço teórico para auxiliar na compreensão dos desafios crônicos da Educação e os impactos do fechamento das escolas durante a pandemia. Antes da pandemia, o que estava sendo ensinado nas salas de aulas já não refletia as demandas da sociedade atual, pois são advindas de um modelo de escola nascido em outro momento histórico. Durante o fechamento das escolas, causado pelos perigos do contágio de COVID-19 no ambiente escolar, os impactos sofridos pela comunidade escolar foram diversos. A falta de estrutura, física e emocional, encontrada pelos alunos nesse contexto reflete nas relações que voltam a se formar quando as escolas reabrem. 

Palavras-chave: Pandemia COVID-19; Escola; Psicologia Escolar e Educacional; 

Abstract: Based on experiences in a public school located in the countryside of São Paulo, this article aims to reflect on the challenges faced in the field of education both before and during the COVID-19 pandemic. School and Educational Psychology is present as a theoretical framework to aid in understanding the chronic challenges faced in Education, as well as the effects of school closures during the pandemic. Before the pandemic, the curriculum taught in classrooms did not align with the contemporary demands of society, as it was based on an outdated school model from a different era. Amid the school closures enforced due to the threat of COVID-19 transmission in educational institutions, the school community faced numerous challenges. The absence of physical and emotional support structures for students during this period significantly impacts the dynamics of relationships when schools reopen. 

Key-words: COVID-19 Pandemic; School; School and Educational Psychology

O porquê

Fazer uma monografia é um dos últimos desafios da graduação. Quando comecei a minha, foi inevitável pensar em toda a minha trajetória até aqui. 

Minha vida foi sempre ligada à escola. Além de aluna, sou filha de um professor de português e sobrinha de um professor de sociologia. Depois de mais velha, relembrando as vivências nesse ambiente, percebi que minha visão da educação era muito diferente da de outros colegas. Muitos deles afirmavam que não conseguiam imaginar uma professora ou um professor fora do ambiente escolar. Por meio da convivência com meus parentes professores, era como ter acesso aos bastidores de uma peça. Eu sabia como era trabalhoso corrigir provas de salas inteiras, a pilha que se formava na mesa da minha cozinha me ensinou isso

Fui criada em um bairro periférico, na cidade de Campinas, chamado Vila Rica. É a primeira CDHU do Brasil, com mais de 50 anos de história. Sua população, majoritariamente preta, sofre com a desigualdade social que assola as periferias do Brasil até hoje. Em uma música composta pelo grupo “Sistema Negro” chamada “Bem Vindos ao Inferno”, um integrante nascido na Vila Rica canta sobre essa realidade: 

“Encaro a vida de frente, pois sei aonde moro cara, não sou pensador, sou da rua onde é a lei da bala lugar marcado pelo jornal e pela polícia cartão postal da violência, da cocaína vila predominante pela raça preta mais sempre fica na mira de uma escopeta vivendo na precariedade, gente pobre que sobrevive a cada dia, cara, como pode” (DOCTOR X, EAZY DOWN, KID NICE, 1994) 

A escola que frequentei no ensino fundamental era cenário de diversas histórias. Lá, muitos alunos encontravam uma refeição diária que não teriam em casa, motivo pelo qual ao soar o sinal do recreio, uma fila rapidamente se formava na frente da cantina. Os apelidos maliciosos, geralmente criados a partir de partes do corpo das pessoas, o bullying também era cotidiano. Mas, também, as amizades eram formadas e os risos enchiam os corredores lotados. 

A dualidade presente nesse ambiente sempre atiçou minha curiosidade. Ao mesmo tempo que a escola pode ser um fator de proteção, ela também pode ser palco de diversos conflitos. É essa complexidade, presente na minha própria experiência, que pretendo problematizar ao longo desse texto. Nele, me vejo como aluna da E.M.E.F Violeta Dória Lins, aluna da Ufscar, pesquisadora e curiosa. Me conecto com as minhas origens, o bairro em que vivi, e procuro dar voz para outras realidades que me proponho a conhecer. 

Os desafios crônicos da Educação 

Previamente ao início da pandemia e do contexto de necessidade de isolamento social, no que concerne ao contexto escolar, inúmeros eram os desafios que estavam sendo estudados. 

A formação da escola como instituição pode ser entendida a partir das necessidades produzidas pela sociedade e como local em que as demandas de formação de seus membros seriam trabalhadas. Ao longo de sua história, ela adquiriu inúmeras formas, para suprir as diversas necessidades da sociedade, mas sempre com o acesso restrito a uma parcela privilegiada da população, que deveria desempenhar funções específicas de acordo com os interesses das classes dominantes. Em contradição a esse caráter excludente, atualmente, a escola é um dos principais espaços em que as pessoas que compõem a sociedade possuem acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade. (ANTUNES, 2008) A potência das escolas, em especial das que são públicas, se dá pela sua abrangência física e simbólica, pois são espaços presentes em grande parte das cidades e que abrigam diversos membros da sociedade, permitindo que relações entre eles se estabeleçam. 

No modelo de sociedade em que vivemos, grande parte do conhecimento disponível nas escolas pode ser considerado, em muitos aspectos, irrelevante. Neste, as habilidades repetitivas são valorizadas em detrimento dos valores, atitudes e emoções. Esse modelo escolar teve sua origem no final do século XIX, na era industrial, e permanece em voga até hoje, na era digital. A valorização da rotina, repetição e racionalidade faz com que as práticas pedagógicas sejam uniformizantes, em que todos devem possuir o mesmo ritmo de aprendizado e passar pelas mesmas avaliações e metodologias. (XAVIER, 2015) O modelo iluminista, racionalista e dualista, do qual advém as práticas escolares, já não reflete a diversidade de pensamentos atualmente, em que lidamos, frequentemente, com as ambivalências e ambiguidades nas mais diversas áreas da vida. Porém, a escola não parece acompanhar essas mudanças e permanece sendo guiada por preceitos de dois séculos atrás, mesmo que os alunos sejam do século XXI e vejam e sintam o mundo de maneira distinta. (Ó, 2007) 

Na primeira metade do século XX, as escolas brasileiras eram dedicadas às elites e à educação clássica. Nela, os filhos das famílias mais ricas do país aprendiam sobre grandes

temas da humanidade, através de áreas do conhecimento eruditas, como francês, história da arte e filosofia. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, com o país envolto na corrida desenvolvimentista, a escola tornou- se palco de promessas e uma ferramenta para ascensão social (MOSÉ, 2013). A partir daí, surge a ideia de estudar para “ser alguém na vida”, sendo esse “alguém” o fruto da ascensão social advinda da conclusão dos estudos. Esse discurso ainda permeia o pensamento de pessoas das classes economicamente menos favorecidas, como uma promessa para amenizar o sofrimento presente que atinge, predominantemente, tais pessoas. 

De acordo com Mosé (2013), o ensino básico pensado para as massas surgiu na Europa no século XIX, para atender a necessidade de mão de obra para as indústrias, e só foi trazido para o Brasil no século seguinte. Por sua razão de existência surgir da lógica industrial, os saberes foram fragmentados, tal como as linhas de produção das fábricas. Cada área do saber, nas escolas voltadas para as massas, é apresentada separadas umas das outras, sem contexto. Essa fragmentação é defendida por um suposto aumento da produtividade e pode ser observada até mesmo no ambiente físico das escolas, dividido em salas e corredores com pouco espaço de circulação. Até mesmo o sinal sonoro que indica o começo das aulas, faz lembrar o apito das fábricas. 

O processo de aprendizagem é marcadamente distinto entre as pessoas, mas não por uma diferença na capacidade de aprender, e sim pelos diferentes contextos, realidades e oportunidades sociais. Nas escolas de periferia, frequentadas na maior parte das vezes por estudantes economicamente desfavorecidos, faltam recursos humanos e materiais, os quais as escolas frequentadas pela elite economicamente favorecida possuem, afetando de forma decisiva o aprendizado dos conteúdos. 

A escola, instituição representante de parte do poder estatal, não pode se omitir diante desses desafios e deveria repensar e rever seus métodos de trabalho, de forma a possibilitar que estudantes de todos os contextos econômicos possam aprender e se desenvolver, evitando a responsabilização de estudantes pelo fracasso escolar, ideia tão propagada e já comprovadamente demonstrada como equivocada. (BRITO, ARRUDA & CONTRERAS, 2015) 

A formação humanista, marcada pelo apreço à reflexão, presente nas escolas das elites, é substituída pela formação instrumental, voltada para a inserção no mercado de trabalho, nas escolas públicas. Esse contexto é agravado no regime militar instaurado no Brasil a partir de 1964, que foi marcado pela perseguição política e censura de professores e estudantes. Durante a ditadura, os saberes reflexivos, já pouco presentes nas escolas, foram completamente excluídos da grade curricular. Nos vinte anos em que o povo brasileiro esteve sob regime militar, a vivência nas escolas foi marcada pelo medo, submissão e repressão do pensamento crítico e da criatividade (MOSÉ, 2013). 

Na atualidade, o Movimento Escola Sem Partido (MESP) é uma forma de controlar o discurso dentro das escolas. Segundo Katz e Mutz (2017), com a vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) nas urnas, elegendo seu primeiro presidente, Luís Inácio Lula da Silva, correntes ligadas ao MESP afirmaram que o petista era responsável por difundir a ideologia de correntes de esquerda nas escolas. O movimento surgiu com a proposta de combater a suposta difusão ideológica de esquerda, chamada por seus seguidores de “doutrinação”, e se fortaleceu a partir do avanço de forças conservadoras, do pensamento liberal e da politização de grupos religiosos. No site do movimento, seus criadores afirmam que ao combater a suposta doutrinação dentro das escolas, eles buscam a “liberdade” dentro do ambiente escolar, pois ao serem confrontados por essa doutrinação, as pessoas envolvidas no processo educativo são constrangidas e privadas de sua liberdade de expressão. De acordo com o site do movimento, as pessoas são “vítimas do assédio de grupos e correntes políticas e ideológicas com pretensões claramente hegemônicas”, (ESCOLA SEM PARTIDO, 2016) 

Os argumentos do Escola Sem Partido se aproveitam da crise escolar, que tem origem nas contradições presentes no modelo escolar e da sua desconexão das necessidades atuais da sociedade, já discutidas neste capítulo. Após anunciar seus temores da doutrinação ideológica, os criadores do Escola sem Partido descrevem como a escola deveria ser, de maneira idealista e autoritária. Idealista, pois não leva em consideração a realidade das escolas e defende uma posição de neutralidade dos professores que não é alcançável e tampouco desejável. Autoritária, já que pretende justificar intervenções no que se diz nas escolas a partir de aspectos não reais do ambiente escolar. (KATZ e MUTZ, 2017) 

Compreender a história é uma forma de entender o presente. Por isso, antes de seguirmos para a descrição dos acontecimentos dos últimos anos, é importante entender que os desafios da escola não são novos. As contradições e problemas acerca do ambiente escolar são descritos desde o nascimento das escolas, interferindo no contexto que será descrito. 

A pandemia de Covid-19 e o impacto do fechamento das escolas 

Durante os anos de 2020 até 2022, a pandemia da Covid-19 atingiu de forma inesperada e muito impactante nosso cotidiano. A escola foi um dos locais que sofreu de forma expressiva esse impacto, tornando-se muito distante da comunidade. Fechadas por decretos municipais, para evitar possíveis contágios pela Covid-19, aumentados pela aglomeração de pessoas, inerente ao dia-a-dia da maioria das escolas. Lembrando das minhas vivências no ambiente escolar, não pude deixar de pensar em como estava sendo ter as escolas fechadas por tanto tempo. Ao mesmo tempo em que esses questionamentos aconteceram, comecei minha monografia. Por isso, escolhi trabalhar com esse tema. 

Em uma revisão bibliográfica de De Oliveira et al. (2021) sobre os impactos da pandemia na Educação, na amostra de 15 artigos, apenas 1 foi publicado em português. Com isso, é possível inferir que os impactos dos fechamentos das escolas não foram significantemente estudados no Brasil. E possivelmente os efeitos, tanto na aprendizagem, como em outros aspectos sócio-emocionais de estudantes irão perdurar por anos e agravar a já precária situação da educação pública no país. Por isso, textos como este são necessários para refletirmos sobre os impactos da pandemia da COVID-19 no contexto escolar. 

O distanciamento e isolamento social, medida tomada para conter o avanço da contaminação pelo vírus, fez com que o poder público fechasse as escolas. Essa medida foi necessária para garantir a segurança de estudantes, funcionários, e as famílias de ambos. Com o fechamento das escolas, os estudantes, foco principal da análise e problematização deste trabalho, foram privados das possibilidades de aprendizagem formal e de socialização. Na escola, as crianças possuem a oportunidade de viver experiências sociais importantes para o desenvolvimento humano. Por meio da socialização, as crianças são colocadas em situações em que precisam cooperar, conviver com diferenças, enfrentar desafios, resolver conflitos, entre outras habilidades (LINHARES e ENUMO, 2015). 

Com o isolamento social, as crianças e adolescentes ficam mais envolvidas no ambiente familiar do que no ambiente escolar, uma inversão do que era vivido por grande parte delas antes da pandemia. Em alguns ambientes familiares, a perspectiva do caos ressalta a falta de estrutura, demonstrada pela pouca regularidade, não estabelecimento de rotinas e rituais e excesso de estimulação (LINHARES e ENUMO, 2015). Além disso, a maior parte das violências sofridas pelas crianças acontecem dentro de casa e costumam acontecer com mais frequência nos períodos de encerramento escolar. Durante o fechamento das escolas, a falta de convivência das crianças com os agentes presentes na escola, que detectam e denunciam abusos, pode ter causado a subnotificação dos casos de abuso infantil. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020) 

Em minha experiência na educação pública, em uma escola de ensino municipal da cidade de Campinas, muitos dos meus colegas tinham no período das aulas o acesso às principais refeições do dia. Essa percepção, compreendida por meio de relatos dos alunos, é descrita no trabalho de Sobrinho Júnior e Moraes (2020) que afirma que a alimentação na escola é um tema relevante quando se discute os reflexos sociais do fechamento das escolas durante a pandemia da Covid-19. Segundo o texto, existem duas perspectivas que devem ser abordadas: a possibilidade de acesso dos alunos à alimentação e a qualidade nutritiva e calórica das refeições. 

Sobre a possibilidade de acesso à alimentação, Garcia (2019) descreve por meio de relatos a angústia de pais e alunos durante a época das férias escolares, período em que as crianças não se alimentam nas escolas. Uma mãe, chamada Alessandra, afirma: “Me corta o coração eles querem um pão e eu não ter. Já coloquei os meninos na escola pra isso mesmo, por causa da merenda. Um pouquinho de arroz sempre alguém me dá, mas nas férias complica”. O relato de Alessandra expõe a relação vital entre a ida à escola e o acesso à alimentação de seus filhos, o que nos permite questionar os impactos no acesso à alimentação dos alunos durante o fechamento das escolas. 

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) do Brasil é referência mundial em alimentação escolar. Ele atende todos os alunos de escola pública do país, alimentando diariamente mais de 40 milhões de estudantes (BICALHO LIMA, 2020). Em caráter excepcional, visto o contexto de calamidade pública causado pela pandemia, a Lei n 13.987 possibilitou a distribuição de kits de alimentos aos alunos matriculados nas escolas públicas brasileiras (JUNIOR E MORAES, 2020). 

Porém, mesmo com a Lei nº 13.987 sancionada, algumas limitações foram encontradas. Os kits com alimentos foram organizados com base na alimentação individual dos alunos beneficiados, sem contar as pessoas de sua família que vivem na mesma casa que eles. Esse contexto não leva em consideração o possível compartilhamento desses alimentos pelos familiares do aluno, o que torna a iniciativa insuficiente para garantir o acesso mínimo às necessidades nutricionais dos alunos fora da escola. (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E ABASTECIMENTO e MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2020). Além disso, algumas instituições escolheram repassar as verbas dos kits diretamente para as famílias. Com isso, não é possível garantir a qualidade nutricional dos alimentos que foram consumidos e o direcionamento dessas verbas para compra dos alimentos na agricultura familiar, duas prerrogativas do PNAE. (BICALHO LIMA, 2020) 

A adesão dos alunos às atividades remotas foi o tema de pesquisa de Silva, Pereira, Oliveira et. al (2020). Um questionário foi enviado para 823 alunos de escolas estaduais do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. O preenchimento do questionário contou como atividade da semana, que validou a adesão dos alunos nas atividades da escola. Desses 823 alunos, apenas 235, que representam 29%, responderam o questionário, demonstrando a baixa adesão às atividades propostas no ensino remoto. Nas respostas do questionário, 149 alunos responderam não terem dificuldade em acessar as atividades remotas. Os outros respondentes relataram algum tipo de dificuldade, que vão desde a falta de acesso a internet até a dificuldade em enviar as respostas das atividades. 

O estudo de Silva, Pereira, Oliveira et. al (2020) fez o recorte dos resultados a partir das diferentes realidades de cada estado. No Ceará e na Paraíba, os alunos utilizavam a plataforma do Google Classroom, acessada por meio de contas institucionais criadas pela própria escola. Já no Rio Grande do Norte, o envio das atividades se deu pelo WhatsApp. A adesão dos alunos à atividade proposta pelos pesquisadores, o preenchimento de um questionário, foi de 22% no Ceará, 24% na Paraíba e 41% no Rio Grande do Norte. Segundo o texto, o uso do WhatsApp no Rio Grande do Norte pode ter sido um dos fatores que facilitou o acesso dos alunos à atividade. Esse dado expõe a necessidade da escola em se adaptar aos meios de comunicação mais acessíveis aos alunos, para que eles tenham maior probabilidade de acessar as atividades propostas. 

De acordo com a notícia “Nas últimas duas décadas, Governo Bolsonaro é o que mais cortou em recursos de educação e ciência” (AZEVEDO, 2022), nos dois primeiros anos do governo de Jair Messias Bolsonaro, o Ministério da Educação (MEC) recebeu por dois anos os menores orçamentos da década. Nos quatro anos de mandato, o MEC teve 20% de sua verba cortada, tornando o governo Bolsonaro o que mais cortou o orçamento da pasta em duas décadas. 

Além dos cortes orçamentários, nos anos de pandemia, o MEC esteve envolvido em escândalos de corrupção. Segundo a notícia “Ministro da Educação diz priorizar amigos de pastor a pedido de Bolsonaro” (SALDAÑA, 2022), o então Ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmou em áudio que o direcionamento de recursos do MEC eram decididos por dois pastores, que não possuíam cargos no ministério, em negociação com prefeituras. Os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura estão sendo investigados por negociar a liberação de verbas para construção de escolas, creches, construção de quadras e compra de equipamentos escolares, em troca de pagamento de propinas por prefeituras. 

Essa instabilidade no Ministério da Educação agravou os problemas já existentes na área da educação no Brasil, em um momento crítico como a Pandemia do Covid-19. 

Reflexões a partir da Psicologia Escolar e Educacional

No capítulo anterior, abordamos aspectos importantes sobre os contextos socioeconômicos que perpassam a vida escolar durante a pandemia. Neste capítulo, a Psicologia Escolar e Educacional é apresentada como arcabouço teórico para aprofundar nossa reflexão sobre essas questões. 

Segundo Antunes (2008), quando se aborda a história, os compromissos e perspectivas da Psicologia Escolar e Educacional, é possível articular a teoria a partir da dimensão que traz essa área do conhecimento como “modalidade de atuação profissional que tem no processo de escolarização seu campo de ação, com foco na escola e nas relações que ali se estabelecem”. No presente artigo, essa escolha metodológica enfatiza a afirmação de Antunes (2008) em detrimento da dimensão que considera a psicologia educacional como uma das bases dos fundamentos científicos da educação e da prática pedagógica, mesmo que ela possa ser abordada em outras oportunidades. 

Ao abordar a Psicologia Escolar e Educacional, com foco na pandemia da Covid-19, Souza (2022) afirma que a posicionamos dentro do contexto social, político e econômico da atualidade. Isso é importante para conectar a teoria com a realidade em que a comunidade escolar está inserida, com todas as suas implicações no contexto escolar. 

A volta das aulas presenciais trouxe a oportunidade de observar inúmeros problemas comportamentais e emocionais, nas relações entre estudantes e professores, de aprendizado e psicológicos. A partir desse contexto, é necessário um reposicionamento dos profissionais que atuam na área da educação, para que consigam observar as pessoas, suas necessidades e interesses, e, para assim, enfrentar essas novas demandas advindas do impacto do fechamento das escolas e o enfrentamento da pandemia. (SOUZA, 2022). 

Em uma pesquisa de clima escolar de uma escola estadual de Ensino Médio, no município de Cajuri-MG, 34 alunos de 44, ou seja, 77,27% dos alunos relataram que sentiram falta da escola. Uma parte deles, 26,47%, sentiram falta das relações com os colegas e 56,94% aprenderam mais dentro da escola junto com os colegas e professores, o que não aconteceu durante a pandemia. Essas informações trazidas pelos alunos enfatizam a potência que o ambiente escolar possui de fornecer um espaço de convivência entre as pessoas, permitindo a construção de relações sociais que auxiliam os alunos no processo educacional. Ao mesmo tempo, existiram alunos que responderam que não sentiram falta da convivência na escola, com justificativas como “Não gosta das pessoas que estão na escola” e “Os professores não gostam de todos os alunos”. (CELESTINO, SOUZA, 2021) As respostas desses alunos demonstram, mais uma vez, as ambiguidades do ambiente escolar e nos permite olhar para essas outras partes da escola que compõem os maiores desafios para aqueles que pretendem explorar esse ambiente. 

Essas ponderações e análises no que tange a cristalização de problemas prévios da educação pública no Brasil, considerando o contexto da pandemia e isolamento social, obriga-nos a trazer à tona novamente a questão do fazer psicológico nas escolas e o saber que o fundamenta. A necessidade de transcender a prática focada no estudante, na queixa das dificuldades de aprendizagem inerentes a pessoa e a atuação individualizante e medicalizante, que busca somente se encaixar nos padrões dominantes. 

Esse momento de transição, para o pós-pandemia pode ser aproveitado para propiciar espaços escolares com novas práticas, privilegiando o coletivo e as ações voltadas ao contexto educacional, as metodologias e aos atores envolvidos no cenário escolar, identificando variáveis favorecedoras dos processos que ocorrem nas escolas e que impactam estudantes, de forma a incrementar o desenvolvimento social, emocional e psicológico destes. 

Para ter acesso aos alunos, do ponto de vista educacional e de fortalecimento dos vínculos, a escola como instituição precisa se preocupar em como os alunos acessam as informações. Durante a pandemia, essa necessidade se tornou mais latente pela falta da presença física dos alunos nas salas de aula. Antes da pandemia, a escola também já se configurava como um espaço de controle de corpos, e muitas vezes só se atinha a isso. O aluno estar presente fisicamente na escola, na maioria das vezes, não garante que ele tenha um vínculo real com as pessoas ao seu redor e com o espaço escolar. No pós-pandemia, com as vivências relatadas por alunos e funcionários da escola, devemos pensar em como nos conectarmos realmente com os alunos, para além do controle. Entender as realidades de cada um, as dificuldades enfrentadas dentro e fora da sala, as diferentes formas de apresentar os conteúdos e as preferências dessa nova geração. 

A pandemia nos trouxe diversos questionamentos sobre o modelo de escola vigente, ao escancarar problemas já bem conhecidos e trazer novos à tona. É papel do psicólogo escolar (e também da Psicologia Educacional, como área de saber) estar atento a todas as dimensões que foram impactadas com o fechamento das escolas durante a pandemia, pois cada uma influencia a vida escolar e as pessoas que dela participam. A escola é um espaço em que as várias relações se constituem e o psicólogo escolar deve ter o compromisso de conhecer suas particularidades. Para se ter um papel comprometido com a ética, devem ser mais do que agentes passivos, colocados nesse contexto para resolver problemas, e estarem dispostos a dialogar com a realidade material. É essencial estar atento ao contexto sócio-econômico das regiões em que atuam, pois, como descrevemos ao longo dos capítulos, eles influenciam na constituição da escola. Além disso, as relações políticas também possuem papel central na construção das instituições escolares públicas, como as observamos nos dias atuais e como projetamos seu futuro. 

Ao escrever este trabalho, escolhi trazer relatos pessoais e experiências vividas dentro do ambiente escolar. Não acredito que conseguiria construir essas reflexões com impessoalidade e escolhi conscientemente trazer minhas percepções. Esse movimento foi importante para entender esses processos dentro do mundo acadêmico, com o apoio da minha orientadora e das referências que buscamos. Ainda assim, é importante posicionar esses relatos em um tempo histórico, local e contexto, para que não fiquem descolados da realidade em que se encontram. Por isso, me posiciono como ser histórico-cultural, passível de vieses e percepções que devem ser colocadas em discussão. Espero que os próximos textos escritos em formato semelhante nos mostram outras realidades às quais não temos acesso, para formarmos uma rede de trocas de experiências e conhecimento. 

BIBLIOGRAFIA 

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