REDES SOCIAIS, IMPRENSA E NEGACIONISMO: CIRCULAÇÃO E AUDITORIA DE (DES)INFORMAÇÃO SOBRE A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA NA WT.SOCIAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7983006


Raniê Solarevisky de Jesus1


Resumo

Este artigo pretende apresentar o modelo de notícias auditáveis do WT.Social, iniciativa de jornalismo da WikiMedia, como uma alternativa para o enfrentamento do negacionismo sobre a emergência climática em nossos dias, diante das falhas reiteradas das grandes plataformas em oferecer soluções efetivas para a circulação de desinformação. Nosso percurso de apreciação do problema passa pelo reconhecimento do fenômeno da plataformização e a desvalorização das wikis; a criação de uma força-tarefa de enfrentamento ao negacionaismo climático na Wikipédia; e os padrões de operação do WT.Social (WikiTribune) em relação à produção das notícias que circulam em suas redes, em especial sobre a emergência climática. Utilizando uma abordagem descritiva e indutiva, procedemos a uma pesquisa exploratória com o estudo do caso do WT.Social. A análise de 143 posts publicados na rede demonstra que o modelo, embora promissor, não é seguido pela maior parte das publicações na rede, uma vez que a maioria dos posts adota um padrão muito próximo àquele encontrado em redes sociais mais tradicionais, como o Facebook. As publicações adotam o jornalismo como referente para seus dados e afirmações, conferindo credibilidade ao trabalho da imprensa. Esse apoio no jornalismo, no entanto, não é garantia para evitar narrativas negacionistas.

Palavras-chave: Jornalismo; Negacionismo; Wiki; Clima; Emergência Climática.

INTRODUÇÃO

Este artigo pretende apresentar o modelo de notícias auditáveis do WikiTribune, iniciativa de jornalismo da WikiMedia, como uma alternativa para o enfrentamento do negacionismo sobre a emergência climática em nossos dias. Nosso percurso de apreciação do problema passa pelo reconhecimento do fenômeno da plataformização e a desvalorização das wikis; a criação de uma força-tarefa de enfrentamento ao negacionismo climático na Wikipédia; e os padrões de operação do WT.Social (WikiTribune)[1] em relação à produção das notícias que circulam em suas redes, em especial sobre a emergência climática.

Plataformização e os Wikis

A plataformização e a dinâmica dos influencers fizeram uma vítima frequentemente esquecida nos obituários da web de hoje: a popularidade das Wikis. Não queremos com isso advogar pela inexpressão da Wikipedia ou das centenas de milhares de Wikis que se debruçam sobre o mais variados assuntos e universos (ficcionais ou não), mas atestar a preferência pela propagação de conteúdo no século XXI por meio de redes centralizadas, de propriedade de algumas grandes empresas de tecnologia (POEL; VAN DJICK, 2020; GROHMANN, 2020).

A título de comparação, a enciclopédia global coordenada por Jimmy Walles saiu do ar em 2012[2], 2018[3] e duas vezes em 2019[4][5], sem grandes consequências concretas registradas pelos seus usuários ou qualquer comoção de outros atores. Em 2021, plataformas administradas pelo Facebook (a rede homônima, o Instagram e o WhatsApp) ficaram indisponíveis globalmente[6] por algumas horas e provocaram protestos, paralisação de trabalhos remotos e grandes movimentações financeiras nas bolsas de todo o mundo. 

Wikipedia, Plataformas e o Negacionismo Climático

Scofeld (2021), em reportagem para a agência Pública, demonstra o esforço de um grupo criado especificamente para combater o negacionismo climático em artigos relacionados ao tema na Wikipédia. Há uma equipe interna da Wikipedia para garantir uma convivência sustentável na comunidade de editores, submetidos a um único Código Universal de Conduta (WIKIMEDIA, 2021), mas o negacionismo tem novos formatos e potências em nossos dias (SNOWDEN, 2021; VILELA; SELLES, 2020; EVANS; FETTERMAN, 2021). O problema tem nuances tão extraordinárias ao ponto de espalhar-se para a negação de fatos passados fartamente documentados, como o nazismo, o holocausto e seus eventos associados (COHEN, 2021). Pior ainda: o negacionismo na contemporaneidade dirige-se também ao futuro, deixando-nos “em negação sobre nossa habilidade de implementar mudanças” que possam conduzir a alternativas melhores (SNOWDEN, 2021).

            Os grupos responsáveis por narrativas de negacionismo na contemporaneidade estão distribuídos em múltiplas esferas, mas há convergência sobre a prevalência nestes círculos do espectro político conservador, de pessoas que têm suas crenças desafiadas pela ciência e de personalidades que ganham atenção da imprensa (MIGUEL, 2020; EVANS; FETTERMAN, 2021). Dunlap e Jacques demonstravam, ainda em 2013, como os livros com argumentos negacionistas associavam-se a think tanks conservadores, com uma notável ausência de referências para 90% dos dados apresentados nestas obras (DUNLAP; JACQUES, 2013). Vilela e Selles (2020) oferecem um caminho para a superação do problema pela revisão dos currículos, de maneira a permitir a incorporação de saberes e experiências às práticas científicas e admitir os limites das pesquisas e seus resultados e indicações.

Pelo lado das Plataformas, sobretudo daquelas que trabalham com redes sociais digitais, há esforços enunciados para combater narrativas negacionistas. Google e Youtube comprometeram-se, em 2021, a cortar os repasses financeiros aos sites e canais que circularem conteúdo negacionista sobre a emergência climática (GHEDIN, 2021), atacando o financiamento desse tipo de discurso – a tática é similar à do Sleeping Giants, que combate fake news e discurso de ódio com base no apelo à desmonetização de seus propagadores.

Apesar do esquema de moderação de conteúdo do Facebook ou do Twitter apoiarem-se em programas de classificação de imagens e textos, há humanos em todo o processo, desde a concepção dos protocolos dos algoritmos até as operações baseadas em inteligência artificial, executadas com auxílio dos data labelers (GRAY; SURI, 2019; MUNRO, 2020). No caso da WT.Social, a rede orgulha-se de não utilizar scripts de automação na moderação de conteúdo, oferecendo um feed baseado apenas na cronologia das publicações, sem qualquer tipo de filtro organizado com base na perfilização extensiva de seus usuários. Assim, os trabalhos de moderação são realizados manualmente por um grupo de administradores humanos.

A estrutura material das redes desempenha papel central na circulação de conteúdos legítimos e/ou desinformação. Lemos e Oliveira (2021) demonstram, ao observar as cadeias de referência na checagem de fake news no Facebook, que o próprio esquema de operação da rede coproduz e contribui para a circulação de fake news. A conclusão, baseada no exame de mais de 100 checagens realizadas na rede, coloca em questão a possibilidade de resolver a proliferação de desinformação nesses espaços preocupando-se somente com as ferramentas em uso, como sugere o guia de Pinheiro, Cappelli e Maciel (2017), por exemplo.

De outro lado, o componente humano demonstra força para modular as associações em causa nas disputas de narrativas sobre a emergência climática, a despeito do uso de infraestruturas parecidas nos dois lados do conflito. Um estudo de Alperstein (2021) analisou o uso de widgets, ad trackers, beacons e analytcis em sites de organizações que advogam por soluções humanas para a emergência climática e também de outras que empreendem campanhas negacionistas, identificando estratégias similares de monetização e rastreamento de usuários. Se isso poderia induzir ao raciocínio de que as tecnologias em uso são apenas ferramentas desprovidas de agência, manipuláveis para diferentes propósitos humanos, lembramos que essa perspectiva antropocêntrica é justamente o que provoca numerosos erros de análise sobre os fenômenos referentes à desinformação em nossos dias (Cf. LEMOS; OLIVEIRA, 2021; FOX; ALDRED, 2017). Basta apontar que, na disputa pesquisada por Alperstein (2021), apesar de diferença de espectros ideológicos, o objetivo dos dois grupos é o mesmo: o de cooptar apoio para suas causas.

Jornalismo e Negacionismo

No Jornalismo, discursos contra e a favor das pesquisas científicas em geral remontam aos primórdios da profissão. A imprensa foi responsável pela publicação de notícias e transmissões que louvavam progressos técnicos, como o uso clínico da penicilina ou a invenção do telefone; e, ao mesmo tempo, pela veiculação de charges e artigos que desdenhavam da segurança de veículos automotores ou da aparente violação de liberdade das campanhas sanitárias e/ou de vacinação (BRIGGS; BURKE, 2016).

A atividade jornalística consolidou-se como uma profissão de certo prestígio social e como modelo comercial viável apenas por volta do século XIX, quando estabeleceu seus princípios técnicos que guiam a deontologia da categoria até os dias atuais. A objetividade no tratamento de qualquer pauta, a busca pela verdade baseada na pesquisa pelas múltiplas versões de um fato – e das vozes que as enunciam – fincaram-se como metas nas rotinas produtivas das redações (BRIGGS; BURKE, 2016).

No entanto, Monbiot (2021) também demonstra como grupos com tradição no Jornalismo, como a BBC de Londres, colaboraram com narrativas negacionistas sobre a emergência climática. A rede editou um documentário no qual nega o aquecimento global; apresenta argumentos que provariam a ausência de influência humana no clima terrestre; e critica a chamada “indústria verde”, que teria surgido em associação com os movimentos ambientalistas (MONBIOT, 2021). Cook e colabores (2019) documentaram o esforço da indústria de combustíveis fósseis em desacreditar as pesquisas sobre o aquecimento global e de promover soluções paliativas para a emergência climática como definitivas. A estratégia foi executada com a anuência e colaboração de grandes jornais, como o New York Times, que circularam anúncios desse tipo em seus periódicos.

Girardi e colaboradores (2018), assim como Amaral, Girardi e Loose (2020) defendem que o jornalismo ambiental deve relativizar a pretensa posição de neutralidade que serve de padrão para o texto jornalístico. Nas editorias e trabalhos dedicados à emergência climática, por exemplo, a intenção deve ser a de referendar o discurso científico, além de adotá-lo como guia para a definição das pautas, entrevistas e produtos finais (GIRARDI et al, 2018; AMARAL; GIRARDI; LOOSE, 2020).

WT.Social, notícias e auditabilidade

Diante desse quadro, qualquer alternativa ao padrão de operação dos grandes grupos de mídia ou à lógica de funcionamento das plataformas de redes sociais parece digno de exame, no mínimo. Assim, com a proposta de unir os trabalhos de jornalistas profissionais e cidadãos, o grupo WikiMedia criou o WikiTribune em 2017, com um modelo baseado na criação e circulação de notícias auditáveis e editáveis pela própria comunidade.  semelhante ao modelo adotado na Wikipédia (GHEDIN, 2019; STATT, 2018; VOLPICCELI, 2019).

Com problemas para manter a equipe de jornalistas contratados para a empreitada, além de conflitos internos sobre a linha editorial, a proposta foi reformulada em 2019, quando o site passou a se chamar “WT.Social” e o foco mudou para o conteúdo gerado pelos próprios usuários (GHEDIN, 2019; STATT, 2018; VOLPICCELI, 2019). Na página sobre regras quanto à autopromoção[7], a rede define-se como “uma plataforma social baseada em notícias”, pedindo que o usuário não crie “uma conta para a sua empresa que não trabalha com notícias ou conteúdo” dentro do ambiente[8].

É importante registrar, no entanto, que o modelo de redação/leitura/circulação de conteúdo idealizado pela WikiMedia sofre com o padrão de consumo de informação consolidado em tempos de redes sociais digitais. A maior parte dos posts encontrados sobre o termo “Climate Change” são republicações de notícias já disponíveis em sites de grandes grupos de jornalismo tradicional, como The Guardian, Washington Post e People. Há posts originais com intervenções da comunidade em seu conteúdo, mas esse grupo de publicações é muitas vezes menor do que o conjunto de posts que apenas replicam informação, eventualmente acrescentando um comentário sobre a notícia original em seu título.

Esse aspecto reflete o padrão de produção e leitura de notícias em nosso tempo, caracterizado pela leitura apenas do título/subtítulos da matéria e replicação de contéudo (por diversas vezes, sem menções autoriais devidas) em acordo com o que observam Barsotti e De Aguiar (2018) e, num ângulo mais geral, Davies (2022). Assim, embora o modelo de publicações tenha o potencial de uma alternativa sólida às maneiras do Jornalismo e das Plataformas de combater o negacionismo, os próprios usuários acabam por reproduzir o padrão de produção e consumo de informação utilizados em plataformas mais tradicionais, como o Facebook (POEL; VAN DJICK, 2020; GROHMANN, 2020).

As publicações fazem isso, no entanto, pautando-se quase sempre em órgãos de imprensa tradicionais e/ou veículos especializados na cobertura de notícias sobre a emergência climática ou bioeconomia. Procederemos agora a um exame mais detalhado de uma amostra desses posts na rede.

Análise de Posts do WT.Social

            As publicações no WT.Social organizam-se sob o formato de “subwikis” – grupos de posts que tratam de um mesmo tópico. Operam tecnicamente como as tags de qualquer site da web ou como as hastags na maior parte das redes sociais digitais mais populares. À altura da realização desta pesquisa, havia 257 subwikis. Na pesquisa pelo termo “climate change”, o subwiki mais popular tem justamente esse nome, reunindo 59.516 membros e 814 posts.

            Coletamos manualmente, em 5 de outubro de 2021, todos os posts publicados no subwiki climate change em 2021, reunindo uma amostra de apenas 143 posts. Construímos um conjunto de categorias a partir da leitura e análise reiterada dos posts utilizando o software Atlas.TI, conforme esquema de codificação focada (LEWIN; SILVER, 2007) baseada na Grounded Theory, especificamente na proposição de Charmaz (2009). Embora a amostra seja referente a todas as publicações de um ano inteiro, não a consideramos como um demonstrativo estatisticamente eficiente de todas as publicações do site, uma vez que a subwiki que consistiu em nosso local de coleta parece-nos um filtro muito específico diante da variedade de assuntos que constituem os outros tópicos na rede – muitos deles, com um número bem maior de posts daquele encontrado aqui.

            Nesse conjunto, encontramos usuários mais ativos que eram responsáveis pela maior parte das publicações realizadas durante a mesma semana ou dentro de um intervalo de alguns meses. A maioria desses posts (72%) foram feitos por administradores da rede. Esse dado pode ser lido como uma tentativa da WT.Social de tutorar os discursos que circulam na subwiki, conduzindo os temas e os tons dos debates como desejado pela direção da organização.

            Não identificamos conteúdo negacionista em nenhuma das publicações recolhidas. Na página do WT.Social que lista publicamente as edições realizadas pela administração da rede[9] não constava, até o dia 5 de outubro de 2021, nenhum post excluído do subwiki que é objeto de análise deste artigo. Além de ausente de negacionismo, o ambiente da subwiki também oferece remédios contra a desinformação: 18% de todos os posts apresentam notícias ou links para relatórios que apontam o patrocínio de grandes empresas a campanhas negacionistas (FIGURA 1).

Figura 1 – Captura de tela mostra notícia de combate à desinformação compartilhada no subwiki “climate change” por um usuário do WT.Social.

Fonte: Capturado pelo autor no site da WT.Social

            Em toda a nossa amostra, há apenas um único post sinalizado como editado, no qual usuários comuns editaram um link quebrado de uma notícia, corrigindo-o para um endereço funcional. É importante notar que posts que deveriam ser moderados ou até mesmo removidos, segundo as regras da própria rede, permanecem disponíveis e sem nenhum registro de edição ou sinalização para serem auditados. Na Figura 2, a conta do Green European Journal faz um post referenciando um artigo no próprio site (www.greeneuropeanjournal.eu), conduta vedada pelos termos de uso da rede.

Figura 2 – Post de autopromoção ainda não havia sido removido pela moderação do WT.Social até a data de finalização deste artigo

Fonte: Capturado no site da WT.Social pelo autor. Disponível em <https://wt.social/post/climate-change/prl5quj5371980171458 >. Acessado em 20 de fevereiro de 2022.

            Martins, Menezes e Orrico (2021) atestam os limites para esse tipo de trabalho em plataformas como o Reddit, destacando sua natureza exaustiva ao lidar com conteúdo de ódio e negacionismo, mas também a motivação para continuar a fazê-lo, pautada nas convicções em uma internet mais humana construída pelos seus próprios usuários. Ainda sobre a postura dos administradores, para uma rede social que se apresenta como uma novidade e uma alternativa às plataformas que dominaram esse mercado, chama a atenção o uso do Trello para monitorar bugs[10] e do Discord para salas de chat[11], no lugar de ferramentas ou páginas proprietárias para estas finalidades.

            De fato, as “discussões” nos posts do subwiki são parcas, com raros registros de mais de 2 comentários nas publicações. A rede possui o recurso de upvote para as publicações, mas seu uso também é muito incipiente, com raros registros de mais de 1 upvote em uma publicação.

Figura 3 – Número de comentários (0 a 14) registrados em cada publicação coletada do WT.Social

Fonte: Elaboração do autor

            A flutuação na média de comentários ilustrada no gráfico da Figura 3, entre os posts 97 e 117, pode ser atribuída à proximidade da COP 26, quando o subwiki registra alta de posts sobre a conferência. Esse grupo de publicações também é o que mais recebeu curtidas, indicando uma mobilização da comunidade do subwiki em torno do evento. Entre os temas mais discutidos nos posts, destacam-se as emissões de CO2; a COP-26; estudos e pesquisas sobre o Antropoceno; impactos da emergência climática sobre a biodiversidade terrestre; a responsabilização de corporações e países que poluem mais; legislação e políticas públicas para tratamento e prevenção da crise; populações em fragilidade econômica/social afetadas pela emergência climática; e desigualdade na oferta de soluções sustentáveis.

            Em cada um destes grupos de publicações, a absoluta maioria trata o jornalismo como a principal fonte de referência para provar pontos. Dos 143 posts que constituem nossa amostra, 137 têm como conteúdo apenas um link para uma notícia publicada por sites da imprensa tradicional (32,17% dos posts) ou por portais especializados (67,83%). Outros 4 são perguntas para discutir um assunto (apenas uma delas recebeu respostas) e apenas um post é uma publicação autoral, que também convoca uma discussão (sem respostas). Mas diferente do Facebook, onde o link de uma notícia eventualmente é utilizado para rebater ou sustentar argumentos em um post gerado pela opinião de um usuário, aqui o post é gerado pela notícia. Quase sempre se parte de uma notícia para produzir um post, como no exemplo da Figura 4.

Figura 4 – Exemplo de post que utiliza publicação jornalística como referência

Fonte: Captura de tela realizada pelo autor. Disponível em < https://wt.social/post/climate-change/2y3qzt05370541664415>. Acessado em 20 de fevereiro de 2022.

            Em termos materiais, certamente não é o modelo de moderação do WT.Social que garante esse estado de coisas: a maior parte dos posts nos quais não consta nenhuma sinalização de edição já se configuram como dependentes da prática jornalística. As publicações são fabricadas nessas condições pelos próprios usuários – mesmo aquelas que não foram produzidas pelos administradores da rede. Assim, não é a moderação ou a auditabilidade das notícias/publicações na rede que impedem a produção de discurso negacionista – embora a postura dos administradores possa influenciar positivamente a propagação de discursos baseados em ciência e jornalismo.

            É difícil reconhecer qualquer agência direta do aspecto auditável do WT.Social na ausência de conteúdos negacionistas. Uma possibilidade real, no entanto, é a de que usuários que se identificam com discursos negacionistas decidam silenciar na rede ou nem mesmo participar dela, uma vez que estejam cientes desse aspecto auditável. Se essa hipótese pudesse ser comprovada com entrevistas ou questionários junto a esses usuários, poderíamos dizer que seu aspecto auditável tem grande poder de agenciamento sobre a rede que mobiliza, nos termos cunhados por Fox e Aldred (2017). Todavia, esta pesquisa não entrevistou usuários da WT.Social e, portanto, não pode fazer essas afirmações.

            O que os dados que apresentamos comprovam é a dependência dos posts da subwiki de materiais publicados pela imprensa. Essa dependência gera risco na medida em que veículos da imprensa já apoiaram discursos ou estratégias negacionistas sobre o clima no passado (Cf. MONBIOT, 2021; COOK et al, 2019). Bruggemann e Engesser (2014), em estudo com jornalistas que já cobriram o tema de cinco países diferentes, detectaram que uma pequena parte dos profissionais – sobretudo aqueles que não têm formação em jornalismo e que cobrem o tema ocasionalmente – defendem o ceticismo ou negação quanto à afirmação de que as ações humanas contribuem para os efeitos da emergência climática. A mesma pesquisa demonstra que a maior parte dos profissionais, com experiência de cobertura contínua do tema – e portanto, que lidam mais com os cientistas e dados que lhes servem de fontes – formam uma comunidade interpretativa que defende a pluralidade de vozes adversas, mas não tolera a negação das evidências científicas do Antropoceno. Assim, o artigo comprova a presença de negacionismo dentro das redações, bem como a proteção a discursos negacionistas que circulam nas páginas dos jornais (BRUGGEMANN; ENGESSER, 2014).

            Jaspal e Nerlich (2014), em estudo sobre a cobertura dos jornais ingleses sobre o aquecimento global e a camada de ozônio durante o ano de 1988, demonstram que a imprensa oscila desde aquela época na procura de um “culpado” pelo fenômeno: ora atribuindo-o aos gases do efeito estufa e outras fontes naturais, ora admitindo com reservas sua associação com as ações humanas. No Brasil, Miguel (2020) documenta múltiplos episódios de concessão de status científico a negacionistas entrevistados em programas televisivos, enquanto o mesmo autor, junto de Dunlap e Jacques (2013) e Vilela e Selles (2020), lembra que muitos dos negacionistas convidados pelos jornais para falar sobre o tema ocupam assentos na academia.

            Dessa forma, embora o conteúdo sobre emergência climática na WT.Social seja associado ao jornalismo, essa associação não garante acurácia científica nas discussões sobre o fenômeno. Os trabalhos que elencamos até aqui atribuem esse descompasso, em grande parte, aos compromissos monetários dos jornais com seus anunciantes (COOK et al, 2019; MONBIOT, 2021; MIGUEL, 2020; JASPAL; NERLICH, 2014). Em nossa amostra, não encontramos nenhum post que defenda conteúdo negacionista com base em material jornalístico, mas chama a atenção que quase 70% utilizem pequenos portais e blogs especializados como referência, no lugar de grandes organizações de jornalismo. A motivação da preferência dos usuários por iniciativas de imprensa com linha editorial mais firme e menos propensa ao comprometimento com patrocínios e anúncios é outra variável que só pode ser adequadamente aferida com base no contato direto com esses usuários.

CONCLUSÕES

            A análise apresentada permite-nos afirmar que a ausência de Negacionismo Climático na WT.Social é produzida pelos seus próprios usuários, que escolhem replicar conteúdo de instituições de pesquisa, portais especializados e organizações tradicionais de jornalismo.

            O modelo de gestão leniente da rede social fica patente quando se percebe que a moderação dos conteúdos não é feita adequadamente, permitindo estratégias de autopromoção que são expressamente proibidas em seus termos de uso, por exemplo. Por outro lado, a mesma moderação empenha-se, aparentemente, em dar a exemplo da conduta que espera dos usuários da subwiki, assumindo a autoria da maioria dos posts. Independente da relação causal, que a limitação metodológica desta pesquisa nos impede de avaliar, o padrão dos posts produzidos pelos administradores é repetido pelos usuários comuns e sem privilégios de edição avançada.

            Ainda assim, apesar da opção pelo compartilhamento de conteúdo de qualidade, os usuários seguem um padrão de interação muito próximo ao de outras redes sociais: um ciclo fechado nas ações de replicar conteúdos de outrem, eventualmente agregar algum metadado (curtida, comentário) e seguir rolando o feed. Nossas observações deixam patente que, no estado atual, a rede parece muito longe do quadro idealizado por Jimmy Walles, pintado com as cores de uma produção contínua de notícias autorais ou independência de outras Plataformas.

            Nesse sentido, essa pesquisa não parece ter encontrado indicação de que o modelo de rede social adotado pela WT.Social possa inibir a propagação de conteúdo negacionista. Nossos resultados apontam para uma ordenação dos discursos pró-ciência no subwiki que se origina ou da própria vontade de seus usuários, ou do estímulo não tão discreto dos moderadores, que são responsáveis pela maior parte das publicações. As duas possibilidades não se excluem e podem ocorrer simultaneamente. Ambas apontam para uma conformação dos discursos que é realizada de maneira “artesanal”, sem uma agência direta ou pronunciada das estruturas de operação e interação da plataforma em si.

            Mesmo assim, esta pesquisa encontra limitações não só em suas escolhas metodológicas, mas também pela restrição de suas análises aos posts coletados. Uma resposta mais completa à investigação colocada aqui pediria por um estudo junto aos usuários, suscitado não só pela prevalência de posts de administradores, mas também pela possibilidade de que a moderação de conteúdo possa funcionar como um dispositivo com função panóptica, que inibe a ocorrência de comportamentos indevidos sem necessariamente puni-los diretamente. Essa última intuição só poderia ser verificada pelo emprego de algum método que ouvisse os usuários, abrindo caminho para novos achados e variáveis que esse viés de pesquisa poderia oferecer.

            Por último, cabe destacar a busca de referência no jornalismo para conduzir interações baseadas na ciência sobre a emergência climática. Esse dado, ao mesmo tempo que demonstra a imagem do ofício da notícia associada ao trabalho dos laboratórios das universidades, também revela riscos. A proteção e a projeção de discursos negacionistas pelas empresas de imprensa têm origem, em último nível, no aspecto organizacional do jornalismo, que ainda depende em grande medida de patrocínios e anunciantes para monetizar suas atividades (COOK et al, 2019; MONBIOT, 2021; MIGUEL, 2020; EVANS; FETTERMAN, 2021; BRUGGERMANN; ENGESSER, 2014). Por essa via, possíveis remédios ao negacionismo no jornalismo apresentam-se na forma de esquemas alternativos de monetização ou modelos de negócio; formação de profissionais com referências sólidas sobre ciência; e desempenho ético em nível pessoal em entrevistas, enquadramento e edição realizados pelos jornalistas que cobrem aspectos da emergência climática em curso.

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[1] Conferir mais detalhes em https://wt.social/

[2] Conferir mais detalhes em http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/01/wikipedia-em-ingles-fica-fora-do-ar-contra-lei-antipirataria-nos-eua.html

[3] Conferir mais detalhes em https://oglobo.globo.com/brasil/wikipedia-sai-do-ar-na-italia-em-protesto-contra-lei-europeia-de-direitos-autorais-22847563

[4] Conferir mais detalhes em https://adnews.com.br/wikipedia-faz-protesto-e-sai-do-ar-na-europa/

[5] Conferir mais detalhes em https://canaltech.com.br/internet/wikipedia-sofre-ataques-e-sai-do-ar-em-alguns-paises-149205/

[6] Conferir mais detalhes em https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/10/04/caiu-ai-whatsapp-facebook-e-instagram-passam-por-instabilidade.htm

[7] Conferir em https://wt.social/post/from-wt-social/pmb1hsc5265101820229 . Acesso em 23 de agosto de 2021.

[8] Tradução livre de “a news-based social media platform – Do not make an account for your non-news/content related company”.

[9] É possível consultar a lista geral de edições e realizar consultas específicas pela ferramenta de busca em https://wt.social/recentchanges. Acessado em 20 de fevereiro de 2022.

[10] Conferir em https://trello.com/b/4xcMYlzV/wtsocial-backlog . Acesso em 06 de outubro de 2021.

[11] Conferir em https://discord.gg/zxhDhxe . Acesso em 06 de outubro de 2021.


1Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA, Professor de Jornalismo na UNIFASAM. E-mail: rsjjornal@gmail.com