REBUILDING PATHS: A LIFE STORY AND DIAGNOSIS ON THE AUTISM SPECTRUM
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202504302239
André José dos Santos1
RESUMO
O presente trabalho apresenta uma reflexão autobiográfica sobre a descoberta do autismo na vida adulta e suas implicações nas dimensões educacional, social, profissional e afetiva. Articulando experiências pessoais e referenciais teóricos contemporâneos sobre a neurodiversidade, a narrativa busca evidenciar os desafios, as estratégias de enfrentamento e as possibilidades de ressignificação da identidade a partir do diagnóstico tardio. Em diálogo com autores como Grandin (2014), Milton (2012), Wing (1997) e Bargiela, Steward e Mandy (2016), o estudo defende a valorização das especificidades cognitivas e afetivas das pessoas autistas, propondo a necessidade de uma sociedade mais inclusiva e sensível à diferença. A metodologia adotada combina abordagem autoetnográfica e revisão bibliográfica, permitindo uma análise crítica e sensível das trajetórias de vida de adultos autistas. Os resultados apontam para a importância do diagnóstico na promoção da autoaceitação e da construção de projetos de vida mais alinhados às singularidades de cada indivíduo.
Palavras-chave: Autismo; Neurodiversidade; Diagnóstico tardio; Inclusão social; Experiência autobiográfica.
1. INTRODUÇÃO
A identificação tardia do autismo, especialmente na vida adulta, tem ganhado crescente atenção na literatura científica e nos relatos autobiográficos, refletindo a complexidade dos desafios enfrentados por indivíduos que cresceram sem o suporte adequado para suas necessidades específicas (Bargiela, Steward & Mandy, 2016). Estudos apontam que a ausência de um diagnóstico precoce pode resultar em trajetórias marcadas por sofrimento emocional, exclusão social e dificuldades acadêmicas e profissionais (Milton, 2012; Grandin, 2014). A lacuna no reconhecimento da neurodivergência em estágios iniciais da vida compromete, muitas vezes, o pleno desenvolvimento de potenciais individuais e prejudica a construção da autoestima e da autonomia (Lai & Baron-Cohen, 2015).
Nesse contexto, pesquisas recentes têm enfatizado a importância de compreender o impacto do diagnóstico tardio como um processo de ressignificação pessoal e social. A obtenção do diagnóstico, embora tardia, possibilita reinterpretar vivências anteriores sob uma nova perspectiva, trazendo alívio, sentido e maior compreensão de si mesmo (Bargiela, Steward & Mandy, 2016; Oliver Sacks, 1995). A experiência do diagnóstico tardio, contudo, é permeada por ambiguidades: alívio e dor, descoberta e luto coexistem no percurso de (re)construção identitária (Crane et al., 2019).
Além dos aspectos individuais, a literatura destaca o papel crucial das redes sociais e profissionais na mediação da aceitação e do acolhimento da pessoa autista na vida adulta (Robertson, 2010; Nicolaidis et al., 2015). Em ambientes educacionais e de trabalho, a falta de compreensão sobre a neurodivergência tende a agravar sentimentos de inadequação e exclusão, evidenciando a necessidade de práticas inclusivas e adaptativas (Mendes & Bosa, 2019; Hens et al., 2019). A inclusão efetiva demanda a superação de modelos medicalizantes e deficitários, reconhecendo a legitimidade de diferentes formas de existir e interagir no mundo, conforme defendem Grandin (2014) e Milton (2012).
As relações afetivas e amorosas também se configuram como áreas de desafio e potencial crescimento para adultos autistas. Pesquisas como as de Hendrickx (2015) e Sinclair (1999) indicam que, embora o amor e a conexão sejam profundamente sentidos, diferenças na comunicação emocional e na expressão afetiva podem gerar mal-entendidos e rupturas. A necessidade de práticas comunicativas explícitas e de aceitação mútua das singularidades se mostra fundamental para o desenvolvimento de relações saudáveis e respeitosas (Davies, 2020).
Apesar dos avanços no reconhecimento da diversidade neurológica, persiste um estigma social que marginaliza e invisibiliza a experiência dos adultos autistas, especialmente daqueles que, como eu, buscaram por anos entender as razões de um sentimento persistente de inadequação (Milton, 2012; Kapp, 2020). Esta realidade reflete uma lacuna ainda existente nas políticas públicas, nos serviços de saúde e nos espaços educativos e laborais.
A presente pesquisa emerge, portanto, da vivência pessoal de um diagnóstico de autismo aos 42 anos de idade e da necessidade de compreender e narrar as implicações dessa descoberta em múltiplas dimensões da vida adulta: educacional, profissional, social e afetiva. Trata-se de uma reflexão que se ancora na metodologia da autoetnografia, articulada a um diálogo crítico com a literatura especializada, buscando não apenas compartilhar uma trajetória singular, mas também contribuir para ampliar a compreensão social sobre o autismo na vida adulta.
O objetivo deste trabalho é analisar, a partir de uma perspectiva autobiográfica e fundamentada teoricamente, os impactos do diagnóstico tardio de autismo em minha trajetória pessoal e profissional, destacando os processos de ressignificação identitária e de construção de práticas mais inclusivas e empáticas. A escolha pelo enfoque autoetnográfico justifica-se pela potência deste método em revelar nuances da experiência autística que, muitas vezes, escapam às abordagens tradicionais de pesquisa (Ellis, Adams & Bochner, 2011).
Justifica-se a relevância desta pesquisa pelo seu potencial de promover uma maior sensibilização para as especificidades do autismo em adultos, colaborando para o desenvolvimento de práticas sociais e institucionais mais respeitosas da diversidade neurológica. Além disso, pretende-se contribuir teoricamente para os estudos sobre neurodiversidade, defendendo a centralidade das narrativas em primeira pessoa como fontes legítimas de conhecimento e transformação social.
Assim, ao entrelaçar minha experiência pessoal com os aportes da literatura acadêmica, este trabalho propõe uma reflexão crítica e humanizada sobre os desafios e as potencialidades da vida adulta sob a perspectiva do autismo, ressaltando que reconhecer, valorizar e incluir a diferença é um passo indispensável para a construção de uma sociedade verdadeiramente plural e acolhedora.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A fundamentação teórica deste estudo ampara-se na concepção contemporânea de autismo como uma manifestação da neurodiversidade humana (Milton, 2012; Kapp, 2020). Adota-se a perspectiva crítica que desloca o foco da patologia para a singularidade, compreendendo o autismo como uma forma válida e rica de ser no mundo (Grandin, 2014; Robertson, 2010). A literatura aponta que o diagnóstico tardio, longe de representar uma falha, pode ser um marco de reconciliação identitária (Bargiela, Steward & Mandy, 2016).
Autoras como Temple Grandin (2014) e a equipe de Mottron (2011) enfatizam as especificidades cognitivas que caracterizam as pessoas no espectro, especialmente no que tange à aprendizagem e aos interesses restritos. Ademais, estudos como os de Lai e Baron-Cohen (2015) e Dunn (2001) demonstram a importância de compreender os aspectos sensoriais e emocionais peculiares ao autismo.
Em termos relacionais e sociais, Wing (1997), Pellicano e Stears (2011) e Sinclair (1999) oferecem bases para pensar os desafios e as potencialidades das interações interpessoais, tanto em contextos profissionais quanto afetivos. Assim, este trabalho se ancora em uma rede teórica que reconhece o autismo em sua complexidade, ressaltando a necessidade de práticas mais inclusivas e respeitosas.
3. METODOLOGIA
A metodologia adotada neste estudo combina elementos da autoetnografia com a revisão bibliográfica qualitativa. A autoetnografia, conforme proposto por Ellis, Adams e Bochner (2011), é um método que conecta a experiência pessoal com significados culturais, permitindo uma análise sensível e crítica da trajetória individual.
O relato pessoal foi entrelaçado com referências teóricas reconhecidas no campo dos estudos sobre autismo, de forma a estabelecer diálogos entre experiência vivida e conhecimento acadêmico. A seleção dos autores considerou a relevância científica e o alinhamento com perspectivas de valorização da neurodiversidade.
Esse método visa não apenas a descrição, mas a compreensão profunda dos fenômenos relatados, buscando uma escrita que, ainda acadêmica, mantenha o compromisso ético com a autenticidade narrativa e a humanização da experiência autística.
4. O IMPACTO DO DIAGNÓSTICO NA VIDA ADULTA
A história da minha aprendizagem começou de forma precoce e intuitiva, muito antes que qualquer sinal de anormalidade fosse percebido. Aos três anos de idade, com o apoio paciente de minha avó e de minha mãe, aprendi a ler de maneira autodidata, reunindo vogais e consoantes para formar palavras. Segundo Temple Grandin (2014), a aquisição precoce da linguagem escrita é um traço que pode indicar padrões cognitivos atípicos, característicos de indivíduos no espectro autista.
Esse contato inicial com a leitura tornou-se uma espécie de refúgio pessoal. Mesmo com poucos recursos literários disponíveis em casa, os gibis resgatados por meu pai durante seu trabalho noturno proporcionaram um universo onde eu podia transitar livremente, no meu próprio ritmo e lógica, de forma análoga à descrição de Mottron (2011), que ressalta a intensa autonomia intelectual de pessoas autistas em ambientes de interesse específico.
Entretanto, a infância e a adolescência foram marcadas por desafios silenciosos. A rigidez interna, a repetição de falas e a dificuldade de adaptação a estímulos sociais frequentemente resultavam em explosões emocionais, às vezes interpretadas como birra ou desobediência. Lai e Baron-Cohen (2015) discutem que indivíduos no espectro têm dificuldades de modular suas respostas emocionais a estímulos do ambiente, o que contribui para reações comportamentais muitas vezes incompreendidas.
A seletividade alimentar, outro traço significativo, evidenciava uma hipersensibilidade sensorial que, segundo Dunn (2001), é central no processamento sensorial de autistas. Ainda assim, na época, essas reações eram vistas como teimosia ou falta de educação, levando a práticas disciplinares inadequadas.
O ambiente escolar, por sua vez, configurou-se como um espaço de sofrimento e inadequação. De acordo com Mendes e Bosa (2019), a sobrecarga sensorial e a falta de compreensão das necessidades autísticas resultam frequentemente em evasão escolar precoce, como se verificou no meu caso.
Apesar das interrupções, a busca incessante pelo saber manteve-se viva. A retomada dos estudos na vida adulta culminou em uma trajetória acadêmica sólida, com múltiplas licenciaturas, especializações e a obtenção do título de mestre em Educação. Contudo, mesmo diante das conquistas, persistia uma sensação de deslocamento permanente, uma percepção de inadequação descrita por Milton (2012) como “diferença perceptiva”.
O diagnóstico de autismo na fase adulta precisamente aos 42 anos de idade trouxe à tona a explicação para essa trajetória de lutas silenciosas. Conforme Bargiela, Steward e Mandy (2016) apontam, o diagnóstico tardio permite reinterpretar a vida sob uma nova perspectiva, promovendo a autoaceitação e o alívio do sofrimento psicológico.
Finalmente, ao compreender minha condição, pude ressignificar minhas experiências e acolher minha verdadeira identidade. O processo de ressignificação pessoal iniciado com o diagnóstico não ocorreu de forma linear. Momentos de aceitação eram intercalados por períodos de luto pela vida que poderia ter sido, caso o entendimento sobre minha condição tivesse ocorrido mais cedo. Como aponta Oliver Sacks (1995), a descoberta tardia de uma condição neurológica muitas vezes obriga o indivíduo a revisitar seu passado sob uma nova ótica, reconstruindo memórias e reorganizando identidades. Foi necessário, portanto, percorrer um caminho de reconciliação interna para integrar essas novas compreensões à minha história de vida.
No âmbito educacional, a autoconsciência adquirida me permitiu também adotar novas abordagens pedagógicas, especialmente no que diz respeito à inclusão e ao acolhimento de diferenças cognitivas entre meus próprios alunos. A compreensão da minha trajetória autística ampliou minha sensibilidade para as diversas formas de aprender e ser no mundo, corroborando o que propõe Vygotsky (1997) ao afirmar que as diferenças cognitivas devem ser entendidas como variações legítimas do desenvolvimento humano, e não como déficits.
Assim, o diagnóstico de autismo não apenas esclareceu minhas dificuldades e potencialidades, mas também operou como um catalisador para uma atuação mais empática, crítica e engajada na educação inclusiva. Tal percurso reforça a ideia defendida por Grandin (2014) de que reconhecer e valorizar a diversidade neurológica é fundamental não apenas para o bem-estar dos indivíduos, mas também para o enriquecimento de toda a sociedade.
5. RELAÇÕES SOCIAIS E PROFISSIONAIS SOB UMA NOVA PERSPECTIVA
O diagnóstico de autismo na vida adulta transformou radicalmente minha percepção sobre as relações sociais e profissionais. Wing (1997) enfatiza que as dificuldades em interpretar sinais sociais e adaptar-se a ambientes formais de trabalho frequentemente conduzem a sentimentos de exclusão e esgotamento entre indivíduos no espectro.
O reconhecimento das minhas limitações permitiu adotar estratégias de autocuidado e defesa emocional. O entendimento de que meus limites são legítimos, como defende Kapp (2020), foi fundamental para a preservação da saúde mental e para a construção de relações mais equilibradas, tanto no âmbito profissional quanto pessoal.
As exigências do cotidiano, entretanto, continuam desafiadoras. Mudanças inesperadas de rotina, reuniões improvisadas e alterações no ambiente de trabalho desencadeiam reações de intensa ansiedade, em consonância com as observações de Hens et al. (2019) sobre as dificuldades de adaptação de adultos autistas às flutuações ambientais.
Eventos sociais, como festas familiares, ainda são fonte de sobrecarga sensorial intensa, exigindo períodos prolongados de isolamento para recuperação, fenômeno amplamente discutido por Pellicano e Stears (2011) em seus estudos sobre qualidade de vida de adultos autistas.
Além das dificuldades internas, há o enfrentamento da incompreensão social. Comentários irônicos e a desvalorização da condição de autista revelam o persistente estigma que, conforme nota Milton (2012), dificulta o pleno acolhimento da neurodiversidade.
Apesar dos obstáculos, o diagnóstico proporcionou o desenvolvimento de uma nova relação comigo mesmo, baseada na aceitação e na compaixão. Entender que minhas reações são manifestações legítimas de um cérebro neurodivergente foi essencial para minha emancipação emocional.
A construção de um projeto de vida mais respeitoso às minhas particularidades inclui, também, o acompanhamento terapêutico contínuo, a adoção de estratégias específicas para lidar com a ansiedade e a manutenção de redes de apoio compreensivas, conforme preconizado por Crane et al. (2019).
Em última instância, a aceitação interna superou a necessidade de aceitação externa, consolidando um caminho de autonomia e autoconhecimento que hoje sigo com determinação.
A consciência sobre a necessidade de limites claros no ambiente de trabalho, bem como a busca por adaptações razoáveis, passou a fazer parte da minha trajetória profissional. Inspirando-me nas propostas de Nicolaidis et al. (2015), compreendi que a criação de ambientes mais acessíveis e flexíveis não beneficia apenas indivíduos autistas, mas promove um espaço laboral mais saudável para todos. A assertividade ao comunicar minhas necessidades transformou-se, portanto, em um importante exercício de autonomia e autoadvocacia.
Ainda que os desafios persistam, a criação de redes de apoio, formadas por colegas sensíveis e gestores abertos ao diálogo, mostrou-se essencial para a manutenção da minha saúde mental no contexto profissional. Segundo Robertson (2010), ambientes que acolhem a neurodiversidade possibilitam o florescimento das competências únicas de indivíduos autistas, em vez de cerceá-las por normas inflexíveis de produtividade e interação.
Ao trilhar esse caminho, fortaleceu-se a compreensão de que a inclusão verdadeira não se restringe a adaptações pontuais, mas requer a transformação das relações de poder e de pertencimento no espaço social. Assim, a jornada de aceitação e afirmação da minha neurodivergência segue entrelaçada à luta mais ampla pela promoção de ambientes inclusivos e respeitosos, como defendido por Kapp (2020).
6. CAMINHOS DO AFETO: RELAÇÕES AMOROSAS E AUTISMO
As relações afetivas constituíram uma dimensão particularmente desafiadora da minha trajetória. Hendrickx (2015) destaca que adultos autistas podem experimentar sentimentos amorosos profundos, mas têm dificuldades em expressá-los de maneira que corresponda às expectativas sociais neurotípicas.
Vivi relacionamentos marcados por mal-entendidos emocionais: o amor existia, mas sua manifestação não obedecia aos códigos tradicionais de demonstração afetiva. A ausência de expressões convencionais de ciúme, saudade ou carinho frequentemente foi interpretada como desinteresse ou frieza.
Essa diferença, como bem descreve Wing (1997), reside não na falta de sentimento, mas nas especificidades da comunicação emocional autística. Hendrickx (2015) complementa que muitos autistas sentem amor de forma intensa e genuína, porém expressam seus afetos de modo menos evidente para os padrões sociais estabelecidos.
O término dos relacionamentos, embora doloroso, não era acompanhado por sentimentos intensos de culpa ou arrependimento. Attwood (2008) observa que adultos autistas tendem a processar rupturas afetivas de maneira menos dramática, em função da diferença na gestão emocional.
O diagnóstico proporcionou um novo olhar para essas experiências, permitindo a aceitação da minha própria forma de sentir e se relacionar. Reconhecer que minha maneira de amar é legítima, embora distinta, foi libertador.
Atualmente, busco construir relações baseadas na autenticidade, explicando, sempre que possível, minhas necessidades afetivas e aceitando que nem todos os vínculos resistirão à diferença de ritmos e expectativas. Conforme sugere Sinclair (1999), o caminho para relações verdadeiramente inclusivas passa pela valorização da diferença e pela comunicação aberta.
A jornada afetiva, como todas as outras, permanece em construção. No entanto, trilhar esse caminho respeitando quem sou representa, sem dúvida, o mais autêntico gesto de amor-próprio.
Ao longo desse processo, percebi que a construção de vínculos afetivos mais duradouros exige não apenas a aceitação mútua, mas também a disposição ativa para a aprendizagem contínua sobre as diferenças. Conforme aponta Davies (2020), relações bem-sucedidas que envolvem parceiros neurodivergentes dependem, fundamentalmente, da capacidade de escuta empática e da valorização da comunicação explícita como forma de construir intimidade e confiança.
Nesse sentido, compreender e explicar minhas necessidades emocionais — como o tempo para processamento de sentimentos, a preferência por interações previsíveis e o desconforto com ambiguidades emocionais — tornou-se um ato de cuidado tanto comigo quanto com o outro. Essa prática reflete o que Milton (2012) denomina como “duplo empoderamento”: um movimento que exige que ambas as partes se esforcem para reduzir a assimetria de compreensão típica das relações entre pessoas neurotípicas e neurodivergentes.
Assim, sigo na construção de relações afetivas que respeitem meu tempo e meu modo de ser, sem abrir mão da autenticidade. Como ressalta Sinclair (1999), o amor verdadeiro não se baseia na expectativa de mudança do outro para se adequar a padrões externos, mas no acolhimento genuíno das singularidades que compõem a identidade de cada indivíduo.
7. RESULTADOS E DISCUSSÕES
A análise das experiências pessoais após o diagnóstico revelou três principais eixos de transformação: a ressignificação da trajetória educacional, a reinterpretação das relações sociais e profissionais e a reformulação da vivência afetiva.
No campo educacional, o diagnóstico propiciou a compreensão dos padrões de aprendizagem atípicos e das dificuldades escolares anteriores, como discutido por Mottron (2011) e Mendes e Bosa (2019). No âmbito social e profissional, o reconhecimento das limitações e potencialidades próprias levou à adoção de estratégias mais adequadas de autocuidado e comunicação (Wing, 1997; Kapp, 2020).
No domínio afetivo, a aceitação das especificidades emocionais e comunicativas permitiu a construção de relações mais autênticas e compassivas, em consonância com as propostas de Hendrickx (2015) e Sinclair (1999).
Os resultados corroboram as análises de Milton (2012) sobre a “diferença perceptiva” como uma das chaves para compreender as vivências autísticas. Ao contrário de concepções patologizantes, a experiência relatada aponta para a necessidade de reconhecer as múltiplas formas legítimas de aprendizagem, de interação social e de construção afetiva.
O diagnóstico tardio, ainda que carregado de desafios emocionais, emerge como um fator emancipatório, permitindo a construção de narrativas identitárias mais afirmativas e menos estigmatizadas (Bargiela, Steward & Mandy, 2016). A importância das redes de apoio compreensivas e das práticas de autocuidado evidencia-se como estratégia central para a promoção da qualidade de vida de adultos autistas (Crane et al., 2019).
Essa trajetória reafirma a urgência de políticas públicas, práticas pedagógicas e ambientes de trabalho que respeitem as diversidades cognitivas e sensoriais, rompendo com padrões excludentes e promovendo a verdadeira inclusão.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho não busca encerrar o tema, mas sim abrir novas possibilidades de reflexão e investigação. O relato pessoal, embasado na literatura científica, aponta para a necessidade urgente de maior compreensão sobre o diagnóstico tardio e suas implicações na vida adulta. É fundamental que a sociedade avance para além do modelo patologizante, reconhecendo a neurodiversidade como parte da riqueza humana.
A jornada pela autoaceitação é contínua. Reconhecer a singularidade de cada percurso é essencial para que possamos construir relações mais humanas e respeitosas. Finalizo com a certeza de que caminhar consciente de quem sou é, em si, um ato revolucionário.
O processo de descoberta e aceitação do autismo na vida adulta representa, simultaneamente, um ponto de chegada e de partida. Chegada no sentido da compreensão das diferenças que atravessaram minha história e moldaram minha identidade; partida enquanto impulso para a construção consciente de novas formas de existir, amar, trabalhar e aprender no mundo.
A análise crítica das minhas experiências, à luz dos estudos de Milton (2012), Kapp (2020) e Wing (1997), evidencia que o autismo não constitui apenas um conjunto de déficits, mas uma expressão legítima da diversidade humana, cujas especificidades precisam ser reconhecidas e respeitadas em todos os contextos sociais.
Reconhecer a legitimidade das vivências neurodivergentes, como propõem Grandin (2014) e Robertson (2010), exige não apenas adaptações individuais, mas transformações estruturais nas relações sociais, educativas e profissionais. É preciso romper com a lógica da “normalização” e avançar para a criação de espaços verdadeiramente inclusivos, onde a diferença não seja tolerada, mas celebrada como parte constitutiva da experiência humana.
Sugere-se que novos estudos abordem estratégias de inclusão, adaptação de ambientes profissionais e afetivos, e a saúde mental de adultos no espectro autista
Ao compartilhar este percurso, espero também oferecer um convite à reflexão: que possamos, enquanto sociedade, expandir nossa compreensão sobre as múltiplas formas de ser e pertencer, reconhecendo no respeito à neurodiversidade um caminho possível para a construção de um futuro mais justo, acolhedor e humano..
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1Mestre em Educação, com Ênfase em Gestão da Educação Superior pela Universidad Nacional del Este – UNE – Paraguay. Professor do Atendimento Educacional Especializado pela Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco. E-mail:andrewsantts@gmail.com Lattes: https://lattes.cnpq.br/4690298802396604