RACISMO RECREATIVO: UMA ANÁLISE ACERCA DA EFETIVIDADE DA LEGISLAÇÃO 14.532/2023.

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11505366


Filipe Botelho Silva¹;
Andréia Alves de Almeida².


RESUMO:

Este artigo, aborda a temática do racismo recreativo, com ênfase na análise da seguinte problemática: A legislação 14.532 de 2023, tem sido efetiva e adequada para o combate às práticas do crime de racismo recreativo ? O objetivo central, é analisar o racismo, como ele estava fortemente presente em épocas anteriores, bem como verificar a legislação que criminaliza o racismo e como ela foi alterada, até a chegada da atual legislação, que trouxe a causa de aumento de pena dos crimes de racismo em contexto de recreação. O contexto histórico de raça e de racismo é explorado, evidenciando as raízes históricas que ele deixou na sociedade. A metodologia utilizada foi a de pesquisa bibliográfica, embasada em uma abordagem qualitativa e exploratória, trazendo conceitos doutrinários, jurisprudenciais e legislativos acerca do conceito de raça, racismo, a legislação que o criminaliza, o racismo recreativo e a legislação 14.532 de 2023.

Palavras-chave: Raça. Racismo. Racismo recreativo. Raízes históricas.

ABSTRACT:

This article addresses the topic of recreational racism, with an emphasis on the analysis of the following problem: Has legislation 14,532 of 2023 been effective and adequate to combat the practices of the crime of recreational racism?. The central objective is to analyze racism, as it was strongly present in previous times, as well as verify the legislation that criminalizes racism and how it was changed, until the arrival of the current legislation, which led to an increase in the penalty for crimes. of racism in a recreational context. The historical context of race and racism is explored, highlighting the historical roots it left in society. The methodology used was bibliographical research, based on a qualitative and exploratory approach, bringing doctrinal, jurisprudential and legislative concepts about the concept of race, racism, the legislation that criminalizes it, recreational racism and legislation 14,532 of 2023.

Keywords: Race. Racism. Recreational racism. Historical roots.

INTRODUÇÃO

Desde o período do Brasil colonial, a população negra é alvo de discriminação e preconceito por parte da sociedade, razão pela qual ao longo dos séculos, criou-se um esteriótipo, que se enraizou na sociedade e se internalizou, dentro do indivíduo e de estruturas sociais.

Contudo, apesar do avanços legislativos, da conscientização dos direitos humanos e das dignidades da pessoa humana, os negros ainda continuam sendo alvo de racismo e preconceito por parte da coletividade e, além dessa discriminação continuar sendo empregada por parte de um coletivo maior, o racismo passou a se moldar de diversas formas, seja com o racismo estrutural, institucional, cultural, religioso, ambiental, que acabam por atingir o grupo social específico ou a pessoa, caracterizando o racismo individual.

É inegável que o racismo ainda continua enraizado na população brasileira, se tornando um problema tão grande que não pode ser acobertado, em razão disso, em 05 de janeiro de 1989, houve a chegada da lei 7.716, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, marco que foi de grande importância para a sociedade.

Chegando no foco deste artigo, o Brasil foi se desenvolvendo e percebendo que o racismo se manifesta de diversas formas e em abril de 2019, começou se a discutir acerca do RACISMO RECREATIVO, forma de racismo no qual o objetivo da pessoa que o pratica, é mascarar a ofensa, por meio da utilização de preconceitos e estereótipos racistas, sendo a forma mais utilizada para realizar essas ofensas é o humor.

Destaca-se que essas práticas racistas recreativas ganharam tanta força, que passou-se a debater de maneira incisiva todas as formas na qual essas ofensas eram empregadas, e em 11 de janeiro de 2023, foi sancionada a lei 14.532, que foi responsável por editar a legislação 7.716/1989, equiparando o crime de racismo ao de injúria racial e, trazendo como novidade a causa de aumento de pena das práticas de crime de racismo em contexto de recreação.

A partir disso, o presente artigo, traçou como problemática: A legislação 14.532 de 2023, tem sido efetiva e adequada para o combate às práticas do crime de racismo recreativo ?

Com esse breve contexto introduzido, definiu-se o seguinte objetivo geral: analisar o racismo, observando todo o seu contexto histórico, estrutural e social, aliado com os objetivos específicos, de abordar o que é o racismo recreativo e como ele se configura e se insere no atual contexto da sociedade, averiguando se a legislação, tem sido eficiente em casos que existe a prática de racismo juntamente com a utilização de piadas.

Dessa forma, o presente artigo, justifica-se em razão do tema a ser abordado, ser de extrema relevância para que a sociedade perceba e discuta, as formas mais sigilosas e discretas de se praticar o racismo, refletindo não apenas como mais uma forma de racismo que se insere na sociedade, mas também como essa prática colabora para reforçar o estereótipo da população negra como um grupo no qual é perigoso e que precisa ser deslocado e descredibilizado da sociedade.

Em cima disso, esse artigo irá abordar especificamente o tipo penal do racismo, com a majorante da prática racista recreativa, sua aplicação e os desafios a serem enfrentados para a aplicação da legislação.

Em relação à metodologia, trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva e bibliográfica visando abordar especificamente a lei 7.716/1989 e 14.532/2023, como uma forma de combate ao crime de racismo recreativo. Em cima disso, o capítulo um abordara o conceito de raça e escravidão, o capitulo dois abordada a lei 7.716/1989 e 14.532/2023, por fim o capitulo 03 trará as conclusões acerca das pesquisas.

Com base no exposto o foco principal do artigo, será analisar casos específicos em que o judiciário criminal brasileiro usou em sua decisões o termo “Racismo Recreativo”, após a vigência da legislação 14.532 de 2023, além de verificar a majorante que foi acrescida com a referida legislação, observando se ela foi utilizada ou não, tendo em vista que por se tratar de uma legislação extremamente recente, ainda não existem muitas aplicações, no entanto, também será discutido a importância da legislação e suas inovações que devem ser fundamentais e aplicadas para o combate ao crime de racismo no Brasil.

2, CONCEITO DE RAÇA E CONTEXTO HISTÓRICO DA ESCRAVIDÃO.

2.1 Conceito de raça.

Para entender o fenômeno social do racismo no Brasil, é fundamental que o conceito de raça seja abordado, a fim de que seja compreendido como era a visão de mundo, antes e durante o Brasil colonial e, como o rápido processo de capitalização e mercantilização, foram essenciais para criação de um sistema escravista que colocava o negro como inferior e o forçava a prática de trabalhos forçados para os seus superiores.

Em sua obra Racismo Estrutural, Almeida conclui que a raça se opera de duas formas, como “característica biológica”, em que a identidade racial será atribuída por algum traço das características físicas do ser humano, como a cor da pele, ou como “característica étnico cultural”, no qual a identidade será associada a origem geográfica, à religião, à língua e aos costumes que já foram adotados por aquele agrupamento específico (Almeida, 2019). e, é a partir desse ponto, que conseguimos identificar uma certa predisposição da sociedade da época em tratar de forma discriminatória, as culturas que seriam diferentes daquelas que fossem consideradas padrões.

Em continuidade, Silvio de Almeida leciona que aliado a esse fenômeno da discriminação, é perceptivel que a colonização, utilizou-se do conceito de raça, para criar o cenário de submissão e hierarquização das etnias.

[…] Ora, é nesse contexto que a raça emerge como um conceito central para que a aparente contradição entre a universalidade da razão e o ciclo de morte e destruição do colonialismo e da escravidão possam operar simultaneamente como fundamentos irremovíveis da sociedade contemporânea. Assim, a classificação de seres humanos serviria, mais do que para o conhecimento filosófico, como uma das tecnologias do colonialismo europeu para a submissão e destruição de populações das Américas, da África, da Ásia e da Oceania .(Almeida, 2019, p.20).

Agora que abordamos o conceito de raça e identificamos que a colonização está ligada a esse instituto, para compreendermos o racismo no Brasil, tanto no período colonial, como no moderno, é necessário que seja abordado como a escravidão se desenvolveu no pais, pois os principais vestígios que foram deixados por esse período, são os preconceitos, os estereótipos atribuídos a população negra e o principal deles, que também será foco desse artigo e abordado mais adiante, o racismo.

2.2 Escravidão no Brasil e evolução historica da legislação.

É senso comum que a escravidão deixou diversas feridas, não sendo dificil identificar esses vestigios, um exemplo claro disso foi no ano de 2014, onde a obra de Mahommah Gardo Baquaqua, unica obra escrita por um ex-escravo foi traduzida, em que um dos trechos, ele aborda o trafico negreiro e a escravidão, descrevendo, os horrores desse período, e o cenario da época, pedindo para que as pessoas se colocassem no lugar de uma pessoa negra.

[…] aqueles ‘indivíduos humanitários’ que são a favor da escravidão se coloquem no lugar do escravo no porão barulhento de um navio negreiro, apenas por uma viagem da África à América, sem sequer experimentar mais que isso dos horrores da escravidão: se não saírem abolicionistas convictos, então não tenho mais nada a dizer a favor da abolição. […]

O período do Brasil colonial, ocorreu de 1530 e perdurou até 1822 e, desde o seu início, a escravidão fez parte dele, sendo um dos principais motivos pela manutenção desse sistema a lucratividade, Maria da Glória Porto Kok, em sua obra “A escravidão no Brasil Colonial” destaca que durantes os séculos XVI e XIX, mais de 09 (nove) milhões de africanos (homens, mulheres e crianças) desembarcaram no continente americano. ( Kok, 2010).

Corroborando com os apontamentos de Mahommah Gardo sobre o regime cruel e brutal da escravidão, a escritora Glória Porto Kok, também relata em seu livro que até os primeiros anos do século XVIII, cerca de 20% dos negros cativos que faziam a travessia, morriam na na metade do caminho, seja por suicídio, tristeza, ou atacados por doença como disenteria, escorbuto e outras enfermidades, estimando se que mais de um milhão e meio de africanos, tenham sido vitimas desse processo.

Entretanto, em um panorama global, a escravidão foi sendo abolida de forma gradual, ao passo em que no Brasil esses fenômenos não foram diferentes e, a partir desse ponto, já é possível identificar as leis abolicionistas que foram surgindo, até chegarmos nos dias atuais, momento em que será traçado um paralelo importante entre as legislações que colaboram e auxiliam os movimentos antirracistas no Brasil, sendo a prova maior delas, a discussão acerca do letramento racial, como ponto de partida para uma educação que visa derrubar todos os estereótipos que existem em relação as pessoas negras.

A primeira delas é a Lei de 07 de novembro de 1831, mais conhecida como Lei Feijó, ou “Lei para inglês ver” que foi uma das primeiras medidas adotadas em que se identifica a abolição da escravatura de forma gradual. O teor dessa legislação, declarava livre todos os escravos vindos de fora do império, além de impor penas aos importadores dos mesmos escravos, entretanto, essa legislação, já deixava claro que a norma só abrangia, os escravos de fora, tendo em vista que em seu artigo 1º, incisos 1 e 2, é dito que os escravos matriculados em serviços de embarcação e os que fugirem do território, ainda continuam subordinados ao regime da escravidão.

Dezenove anos depois, na data de 04 de setembro de 1850, houve a chegada Lei Eusébio de Queirós, promulgada com o objetivo de enrijecer as medidas para a repressão do tráfico de africanos no império do Brasil, destaca-se que o foco deste artigo não é abordar especificamente essas leis, mas é importante pontuar que alguns artigos dessa legislação, tratavam acerca da apreensão de embarcações que tinham em seu bordo escravos, além de impor algumas medidas progressistas, que determinavam a reexportação por conta própria, para os portos de onde vieram, portanto, é evidente que a situação já seria diferente pelos próximos anos.

Quatro anos depois, no dia 05 de junho de 1854, foi estabelecida a Lei Nabuco de Araújo, que coadunava com a sua norma anterior, visando aumentar ainda mais a repressão ao tráfico de escravos, além disso, a referida norma, acabou distribuindo competência para os auditores da marinha, para que eles processassem e julgassem, o rol de réus que foram elencados na Lei Eusébio de Queiroz e, ainda pontuando que além desses réus, eles também teriam competência para julgar os casos e impor penas para as pessoas que tentassem importar escravos no império.

Em 28 de setembro de 1871, a princesa imperial regente, sancionou a lei nº 2040, mais conhecida como lei do ventre livre, onde ficou declarado (segundo o preceito da lei) que estavam livres, os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data daquela legislação, no entanto, apesar de em um primeiro momento parecer uma norma progressista, a própria legislação determinava que esses filhos menores, ficariam sob o poder de seus senhores, ocasião, em que eles teriam a obrigação de cuidar deles até os 08 (oito) anos de idade e, quando ele chegasse a essa idade, o senhor poderia receber uma indenização do estado, ou utilizar os serviços do menor, até os 21 anos de idade.

Por fim, 17 anos depois, no dia 13 de maio de 1888, foi sancionada a lei nº 3.353, mais conhecida que lei áurea, que possuía como preceito em sua norma, declarar extinta a escravidão no Brasil, onde é importante destacar que a referida legislação é simples e com poucas disposições, fato que demonstra o caráter abolicionista da norma e, não deixava duvidas quanto ao fim da escravidão no Brasil, entretanto, sabemos que somente a abolição desse regime, não foi suficiente para acabar com as desigualdades no pais e também com o racismo.

2.3 Convenções, declarações internacionais e letramento racial.

Em que pese já tenhamos abordado a evolução histórica das normas abolicionistas no Brasil, é fundamental destacar que elas foram um ponto de partida para a existência de declarações e convenções mais recentes, além disso, conforme já dito em parágrafos anteriores, elas foram fundamentais para a existência da legislação que criminaliza o racismo no Brasil e, também serem objetos de estudos para uma melhor compreensão do racismo no país.

Na data de 10 de dezembro de 1948, a assembleia geral das nações unidas, proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que surgiu obviamente após um cenário de guerra, mas ela abarca de forma necessária todos os direitos dos seres humanos de nascerem livres, bem como, de serem dotados de razão e consciência, agindo uns com os outros com espírito e fraternidade, diante disso, é evidente a preocupação a nível mundial dos estados em evitar que situações de regimes discriminatórios, surjam novamente.

De forma mais específica, em 21 de dezembro de 1965, a nível mundial houve a realização de acordo, que pactuou o nascimento da convenção que versa sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, suscitando que os Estados-Partes, condenam a discriminação racial, comprometendo-se a adotar, por todos os meios apropriados e sem morosidade, uma politica de eliminação da discriminação racial em todas as suas formas de promoção.

Em consonância com as disposições anteriores, a constituição federal de 1988, também adotou no caput de seu artigo 5º, os preceitos basilares e fundamentais acerca da igualdade entre os seres humanos, vejamos:

[…] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes […]

O impacto dessas normas foi tão significativo no Brasil, que passou-se a debater acerca da conscientização sobre as formas de racismo existente na sociedade, que em 09 de janeiro de 2003, foi promulgada a legislação nº 10.639, que alterou a lei nº 9.394 de 1996, acrescentando que em todos os estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira, surgindo de fato o letramento racial.

3. RACISMO E RACISMO RECREATIVO.

Conforme já dito no capítulo anterior, toda a construção do modelo de mercantilismo, foi pautada na criação de uma sistema que classificava as etnias, para a montagem de uma estrutura que hierarquicamente tinha os negros como figura inferior da pirâmide e, é a partir desse recorte de sociedade que o racismo se perpetuou ao longo dos anos, tendo em vista que mesmo com a abolição da escravatura, os negros ainda continuavam sendo vistos com maus olhos por parte da sociedade.

Essa linha de raciocínio, corrobora com os ensinamentos de Silvio de Almeida, que nos apresenta o conceito de racismo como uma forma de discriminação em que utiliza a raça como figura central para a realização da discriminação, se manifestando por meio de práticas que partem da vontade do indivíduo, que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a luz da classe social a qual pertençam (Almeida, 2019).

Em consonância com essa linha de raciocínio, Grada Kilomba em sua obra “Memórias da plantação”, nos traz a perspectiva do racismo, a luz de três características, sendo a primeira delas a forma diferente de olhar para a pessoa, pelo simples fato de sua origem racial ser diferente, a segunda sendo a construção de diferenças em razão dos valores hierárquicos e, por fim pontuando que as duas primeiras, andam lado a lado com a terceira característica, sendo ela o poder histórico, político, social e econômico, pautando o racismo como sendo a supremacia branca. (Kilomba, 2020)

Nesse ínterim, podemos chegar a conclusão de que o racismo, é resultado do processo de colonização que foi vivido pela sociedade, além de também possuir características e resquícios que foram deixados pela abolição da escravatura, pois embora os negros tenham se tornado livres, é senso comum que as suas oportunidades nos mercados de trabalho da sociedade daquela época eram mínimas, sendo tratados de forma diferente e vistos como problemáticos, difíceis, perigosos, preguiçosos e também como complicados de lidar, estereotipo que foi se propagando até se enraizar na sociedade.

3.1 O alcance da Lei de Racismo e a penalização da Injúria racial (Lei 7.716/1989).

Diante dessas mazelas, é necessário analisar o racismo não somente como um fenômeno que se manifesta nas diversas camadas da sociedade, mas também como uma conduta que precisa ser criminalizada e punida de maneira adequada, com o intuito de dar uma resposta rigorosa e corretiva para aquelas pessoas que praticam esse tipo de crime, em razão disso, passaremos a analisar a lei 7.716/1989, como uma norma de combate ao racismo, que é fornecida pelo Direito Penal Brasileiro.

No dia 11 de maio de 1988, o deputado Carlos Alberto Caó, do Partido Democrático Trabalhista, apresentou o projeto de lei nº 668/1988, em que a sua proposição principal seria o projeto de lei que considerava a prática de racismo um crime inafiançável, que inicialmente tramitou na câmara dos deputados, tendo sua redação final aprovada no dia 15 de setembro de 2009 e despachada para o senado federal no mesmo dia.

Por se tratar de um projeto de lei que teve tramitação bicameral, no dia 12 de setembro de 1988, o projeto de lei chegou a casa revisora (Senado Federal), que após diligências internas, no dia 09 de dezembro de 1988 foi aprovado e remetido ao primeiro secretário da câmara, sendo ele alertado acerca das emendas que haviam sido feitas, ocasião em que no dia 05 de janeiro de 1989 o presidente da república sancionou a referida legislação, que trouxe inovações significativas e importantes para o combate ao racismo no Brasil, sendo elas o próprio artigo 01 e 20 da lei, vejamos:

[…] O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. […]

É fundamental destacar aqui, que a lei nº 7.716/1989 sem suas posteriores alterações, ao criminalizar o racismo, tinha como objetivo, proteger determinado grupo social, pois conforme já vimos anteriormente, o racismo é um problema que atinge uma grande quantidade de pessoas, portanto, a legislação é direta e nos deixa implícito que a aplicação da sanção punitiva, só ocorrerá em situações em que a ofensa atinge a coletividade de indivíduos, sendo esse inclusive os ensinamentos do Conselho Nacional de Justiça sobre a matéria no ano de 2015, vejamos:

[…] Embora impliquem a possibilidade de incidência da responsabilidade penal, os conceitos jurídicos de injúria racial e racismo são diferentes. O primeiro está contido no Código Penal Brasileiro e o segundo, previsto na lei nº 7.716/1989. Enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém se valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Ao contrário da injúria racial, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível.

Mais adiante nesse artigo, será abordado a legislação 14.532/2023 que equiparou o crime de racismo ao de injúria racial, entretanto, das disposições apresentadas naquela época, é fundamental observar os ensinamentos acerca do alcance da norma, pois o Conselho Nacional de Justiça, era claro ao dizer que o caráter penalizador da lei 7.716/1989 era aplicável aos casos de racismo em que a vítima era a coletividade indeterminada de indivíduos, ficando implícito que os casos de racismo individual e que ofendam a honra da pessoa, seriam tratados como injúria racial.

Nesse sentido, segue entendimento da 3º Vara Criminal da Comarca de João Pessoa (TJ-PB) na apelação criminal nº 0820671-93.2021.8.15.2002, sobre o tema e, que estava alinhado com o entendimento do Conselho Nacional de Justiça, vejamos:

[…] Por fim, em relação ao delito do art. 20 da Lei 7.716/89, apesar de constar a tipificação na inicial, o Ministério Público não narrou a conduta descrita no referido artigo, impedindo uma análise e sentença de mérito em relação a esse fato. Ademais, é bom esclarecer que o tipo penal do art. 20 da Lei 7.716/89, cuida do delito de preconceito generalizado, que visa promover segregação racial de determinado grupo e não ofensas dirigidas a uma pessoa determinada, com a intenção de ferir a honra subjetiva desta. Nesse sentido o STJ: “PENAL. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. CRIME DE DISCRIMINAÇÃO . INJÚRIA SIMPLES OU QUALIFICADA. QUEIXA OU REPRESENTAÇÃO. DECADÊNCIA. DENÚNCIA REJEITADA. 1. A diferenciação entre o delito de discriminação religiosa e a injúria qualificada reside no elemento volitivo do agente. Se a intenção for ofender número indeterminado de pessoas ou, ainda, traçar perfil depreciativo ou segregador de todos os frequentadores de determinada igreja, o crime será de discriminação religiosa, conforme preceitua o art. 20 da Lei 7.716/89. Contudo, se o objetivo for apenas atacar a honra de alguém, valendo-se para tanto de sua crença religiosa – meio intensificador da ofensa -, caracteriza-se nesse caso o delito ou de injúria disciplinado no art. 140, § 3º, do Código Penal. (…) Não cabe potencializar os fatos, nem imprimir interpretação extensiva de forma a incutir característica negativa em expressão que não a contém. 4. Não caracterizado o crime tipificado no art. 20 da Lei Segunda-feira, 12i 7.716/89, com a redação dada pela Lei 9.459/97, a desclassificação para o crime de injúria, simples ou qualificada, esbarra na decadência do direito de queixa ou representação. 5. Denúncia rejeitada. (APn n. 612/DF, relator Ministro Castro Meira, Corte Especial, julgado em 17/10/2012, DJe de 29/10/2012.)” […]

Dessa forma, fica nítido para nós nesse primeiro momento, que até antes da vigência da lei nº 14.532/2023, o crime de racismo e o de injúria racial eram penalizados de forma diferente, enquanto o primeiro atingia a coletividade e sua punição era na forma do artigo 20 da lei nº 7.716/1989, o segundo era penalizado nos termos do artigo 140 § 3º, do Código Penal, e aplicado somente quando se verificasse que houvesse ofensa à honra subjetiva da vítima.

Destaca-se que o objetivo do presente artigo não é analisar especificamente a injúria racial, entretanto, considerando as alterações legislativas que houveram recentemente, discutir a criminalização do racismo sem abordar a ofensa à honra da vítima não é possível, desse modo é fundamental entendermos que até o final de 2022, racismo era diferente de injúria racial, e a sua penalização só ocorreria quando a ofensa atingisse a coletividade de indivíduos.

Contudo, é necessário pontuar que essa diferença de penalização, também foi sendo objeto de discussão nos tribunais superiores, de modo que a medida que as decisões judiciais iam sendo proferidas, foi se observando que a equiparação do crime de racismo ao de injúria racial era apenas questão de tempo, sendo a prova maior disso o julgamento do Habeas Corpus (HC) 154248, em que o relator ministro Edson Fachin negou o Habeas Corpus suscitando que por conta da ação penal do crime disposto no artigo 140 § 3º, do Código Penal ser pública condicionada à representação da vítima, o crime passou a ser equivalente ao de racismo, portanto imprescritível, conforme previsão legal da Constituição Federal, artigo 5º inciso LXII.

Por fim, embora a legislação 7.716/1989, tenha sido um grande avanço no combate aos crimes de racismo, em razão de ser uma lei que é da década de 80, algumas alterações no corpo de seu texto seriam necessárias, tendo em vista que o teor da legislação não conseguiu acompanhar os recentes avanços dos estudos científicos acerca das diversas formas de racismo que foram se tomando conhecimento e conscientização na sociedade, além disso, a lei ainda falhou em alguns aspectos, fato que demonstra que uma alteração legislativa tanto para a equiparação da injúria racial ao crime de racismo, bem como para a instrumentalização de penas mais rigorosas, seriam necessárias.

Em consonância com esse ponto de vista, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, em nota lançada nas redes de comunicação, deixou claro a importância desse avanço legislativo, pontuando que a referida legislação sem dúvidas foi um grande avanço em matéria de produção legislativa, no entanto, não tem produzido seus efeitos, talvez por uma questão de deficiência técnica ou porque as penalidades para algumas condutas praticadas não se coadunam com a cultura brasileira.

3.2 Racismo recreativo e a chegada da lei 14.532/2023.

Como dito no capítulo anterior, a lei nº 7.716/1989, não foi capaz de acompanhar os avanços dos estudos científicos sobre as mais variadas espécies de racismo, sendo a prova maior delas o racismo recreativo, que é o objeto de estudo deste artigo e também o ponto de partida para a problemática do artigo, por essa razão é necessário entendermos o que é racismo recreativo e como a discussão sobre essa modalidade de racismo ganhou força ao longo dos anos, capaz de alterar a lei nº 7.716/1989, para a criação de uma majorante de pena para os crime de racismo.

Adilson Moreira em sua obra Racismo Recreativo, leciona que essa forma de racismo, deve ser vista como um projeto de dominação que tem como objetivo promover a reprodução de relações assimétricas de poder entre grupos raciais por meio de uma política cultural baseada na utilização do humor como expressão e encobrimento de hostilidade racial (Moreira, 2019).

Do conceito inicial apresentado por Adilson Moreira, é claro para nós que essa forma de racismo se alinha diretamente com o conceito de racismo apresentado por Grada Kilomba, ou seja, temos um Modus Operandi em que o objetivo dos praticantes dessa conduta é manter e reforçar uma hierarquização de etnias, de modo que a supremacia branca seja mantida,

Além disso, essa modalidade de racismo, segundo Adilson Moreira, também possui um caráter estratégico, em que as pessoas brancas mantem uma representação positiva de si mesmas ao encobrir a hostilidade racial com a utilização de piadas, possibilitando a propagação de uma falsa representação de irrelevância do racismo, classificando piadas sobre negros como algo que não expressa desprezo ou qualquer tipo de discurso de ódio as classes sociais menos favorecidas da sociedade. (Moreira, 2019).

Em entrevista fornecida ao G1, publicada no dia 15 de junho de 2023, Adilson Moreira, suscitou que o objetivo dessa prática de racismo não é apenas mascarar o racismo em forma de piada e, sim reforçar a ideia de uma suposta inferioridade moral e cultural de minorias raciais, explanando que os praticantes das condutas racistas recreativas, teriam 04 (quatro) objetivos principais, sendo eles a produção de uma gratificação psicológica para as pessoas brancas; a reprodução de uma ideia que minorias raciais não são atores sociais competentes; a permissão de que pessoas brancas expressem hostilidade contra minorias raciais e a manutenção de uma imagem social positiva.

Outro ponto que precisa ser destacado é a conclusão de Adilson Moreira acerca da dimensão institucional do racismo recreativo, onde ele nos leciona que as instituições brasileiras como o judiciário, é majoritariamente controlado por pessoas brancas, razão pela qual os magistrados ignoram a dimensão aversiva do racismo recreativo e o fato que manifestações racistas reforçam valores culturais que motivam as práticas discriminatórias, além de entenderem que prática de condutas racistas recreativas possuem natureza de piada, ocasião em que a ofensa à coletividade não estaria caracterizada (Moreira, 2019).

Corroborando com essa linha de raciocínio exposta por Adilson Moreira, o Conselho Nacional de Justiça, no dia 05 de setembro de 2023, publicou uma notícia, pontuando que em seu mais recente Diagnóstico Étnico-Racial, ficou constatado que 83,8% dos magistrados da justiça brasileira, são brancos, sendo que 12,8% se identificaram como pardos e apenas 1,7% dos magistrados e magistradas, se declararam pessoas pretas, portanto já é plenamente identificável que a falta de punição nos casos de racismo recreativo, se deve pela falta de pessoas pretas no judiciário brasileiro.

Em continuidade, a discussão acerca do racismo recreativo ganhou tanta força em meados de 2019, que passou se a debater acerca de uma penalização para essa conduta, motivo pelo qual em 11 de janeiro de 2023, foi sancionada a legislação 14.532 que foi responsável pela alteração da lei nº 7.716/1989 e também pela equiparação do crime de injúria racial ao crime de racismo e a criminalização do racismo recreativo, como uma causa de aumento de pena, acrescida ao artigo 20 da lei alterada, vejamos:

[…] O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte

Lei:

Art. 1º A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), passa a

vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.”

“Art. 20-A. Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação.” […]

Essas alterações foram extremamente significativas para o avanço ao combate ao crime de racismo recreativo no Brasil, segundo a agenda brasileira de racismo, publicada em 10 de outubro de 2023, a intenção do legislador ao criminalizar essa espécie de racismo, foi a de dar uma resposta a violência psicológica que essa prática causa a saúde mental das pessoas negras, preocupando se com a baixa autoestima de crianças e jovens.

Percebemos portanto, que apesar da recente criminalização do racismo recreativo, este não é um termo novo no judiciário brasileiro, sendo a prova maior disso, a ação penal nº 1500147-56.2019.8.26.0431, que tramitou na 1 º Vara do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde em sentença publicada no dia 10 de agosto de 2021, data anterior a sanção da lei 14.532/2023, o juízo de direito abordou expressamente na sentença, acerca do racismo recreativo, vejamos:

[…] Além disso, não há dúvida de que o crime foi cometido por meio de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, uma vez que a publicação promovida pela ré se deu em grupo da rede social Facebook, que possuía, à época da postagem, mais de 45 mil membros (vide fl. 15), demonstrando-se o condenável alcance da ofensa. E a afirmação de que se tratava de grupo destinado a desafios e brincadeiras apenas revela uma triste faceta da sociedade brasileira. Como bem estudado e explorado pelo eminente Professor Adilson Moreira, em fenômeno por ele conceituado como racismo recreativo, que significa um projeto de dominação que procura promover a reprodução de relações assimétricas de poder entre grupos raciais por meio de uma política cultural baseada na utilização do humor como expressão e encobrimento de hostilidade racial. O racismo recreativo decorre da competição entre grupos raciais por estigma social, sendo que ele revela uma estratégia empregada por membros do grupo racial dominante para garantir que o bem público da respeitabilidade permaneça um privilégio exclusivo de pessoas brancas. A posse exclusiva desse bem público garante a elas acesso privilegiado a oportunidades materiais porque o humor racista tem como consequência a perpetuação da ideia de que elas são as únicas pessoas capazes de atuar como agentes sociais competentes. O racismo recreativo contribui para a reprodução da hegemonia branca ao permitir que a dinâmica da assimetria de status cultural e de status material seja encoberta pela ideia de que o humor racista possui uma natureza benigna. (Racismo Recreativo. São Paulo: Jandaíra, 2020, pp. 148-149) […]

Destarte, a alterações que nova legislação fez, logo após a sua vigência, mostraram alguns sinais de que passaria a ser aplicada de forma incisiva em situações que se verificasse a hipótese de racismo recreativo, sendo a prova disso, a notícia publicada pelo Ministério Público do Paraná no dia 05 de maio de 2023, onde foi divulgado que em Nova Londrina um homem teria se manifestado com preconceito de raça e cor em conversas por um aplicativo de mensagens.

Na ocasião, a promotoria de justiça ofereceu denúncia, sendo a mesma recebida, com a ação penal passando a tramitar com o número 0000680-86.2023.8.16.0121, relatando que como o crime ocorreu em contexto de descontração e diversão, em razão dos comentários terem sido feitos em um grupo de amigos, a pena em caso de condenação, poderia ser aumentada em até metade, com base na alteração legislativa da lei 14.532/2023.

Outro caso que pode ser muito importante para analisarmos a prática do crime de racismo recreativo, foi o caso envolvendo o Youtuber Julio Cocielo, que no ano de 2018, durante um jogo da copa do mundo, fez posts em sua rede social, pontuando que o jogador da seleção francesa Kylian Mbappe, “conseguiria fazer uns arrastão top na praia”, fazendo uma referência segundo ele, a velocidade do jogador.

Entretanto, por conta dos posts feitos pelo YouTuber, se iniciou a ação penal 5004030-42.2022.4.03.6130, onde no começo do ano de 2024, o sigilo dos autos foi removido, razão pela qual o processo se tornou público.

Em função disso, foi possível ter o acesso às alegações finais oferecidas pelo procurador federal, onde ele traz em sua linha de argumentos, uma análise do que é o racismo recreativo e quais os impactos da legislação 14.532/2023, vejamos:

[…] Registre-se que a Lei 14.532/2023 não inovou ao criminalizar a figura do racismo recreativo, o qual já estava abrangido pela forma simples do delito. O que ocorreu foi a criação de forma majorada do crime no que se refere ao racismo recreativo, que, embora não incida no caso em análise (em razão da irretroatividade da lei mais grave), explicita que a conduta sempre foi típica.

Além disso, ainda que o réu seja humorista, não é possível vislumbrar tom cômico, crítica social ou ironia nas mensagens por ele publicadas. Pelo contrário, as mensagens são claras e diretas quanto ao desprezo do réu pela população negra, o que não pode ser afastado pelo “fino verniz” de uma suposta imunidade que a legislação desconhece.

O réu, sem qualquer sutileza, reforça estereótipos da população negra miseráveis, bandidos e macacos – não havendo abertura, em seu discurso, que permita entrever alguma forma de sátira. As publicações do réu não expõem ao ridículo as estruturas de um sistema discriminatório, mas ridicularizam os próprios sujeitos historicamente subjugados.

Não é humor; é escárnio. […]

Nota se, que o procurador federal, por conta da recenticidade da norma, deixou claro que a aplicação da legislação 14.532 de 2023, não seria possível, em razão da irretroatividade da lei mais grave, sendo esse um panorama muito comum nas decisões judiciais que serão analisadas mais adiante, tendo em vista que por se tratar de uma legislação nova, a sua aplicação nos tribunais aparece mais em sede de segunda instância, ocasião em que os desembargadores analisam os recursos e apontam as inovações legislativas, como uma forma de lecionar sobre o tema.

Por esses motivos, conseguimos perceber que a chegada da lei nº 14.532/2023 foi uma vitória para o judiciário brasileiro e, também um progresso que demorou demais para ocorrer, em razão de que mesmo com os debates que já existiam acerca do racismo recreativo, a sua existência legislativa só ocorreu anos depois e, é a partir desse ponto que entramos de fato na problemática deste artigo, onde nos devemos nos questionar se a chegada da lei 14.532/2023 tem sido efetiva para o combate às práticas de racismo recreativo nos tribunais brasileiros, tendo em vista que após um ano e quatro meses de vigência da referida lei, já seria possível perceber os seus impactos em decisões judiciais.

4. RESULTADOS.

Para verificar o panorama das decisões judiciais que efetivamente utilizaram a legislação 14.532 de 2023 e também o termo Racismo recreativo, a metodologia de pesquisa utilizada, foi a busca pelo último termo, nas jurisprudências dos tribunais de justiça de cada estado do país, na ocasião, as pesquisas jurisprudenciais, tinha como objetivo captar apenas as decisões judiciais em sede de primeiro e segundo grau, que vieram após a legislação 14.532, oportunidade em que foram divididas por regiões, sendo obtido um quantitativo de resultados por cada região, destacando que as pesquisas foram realizadas até o dia 20 de maio, sendo os resultados apresentados a seguir.

Na região nordeste do país, em consulta ao site de jurisprudências das cidades de Alagoas, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe e Maranhão, os resultados restaram infrutíferos, não sendo encontrado qualquer tipo de decisão judicial após a lei 14.532 que abordasse expressamente o racismo recreativo, vale destacar aqui que o site de jurisprudências do Tribunal de justiça da Paraíba, Pernambuco e Piauí, no momento da consulta, estavam fora do ar, fato que não permitiu um resultado conclusivo sobre a pesquisa nesses tribunais.

Em relação às regiões Sul e Norte do país, os resultados também foram os mesmos, não sendo possível encontrar jurisprudências que abordassem expressamente o termo racismo recreativo aliado ao fato de ter sido publicada após a vigência da legislação 14.532 de 2023, importante destacar aqui que todos os sites de ambas as regiões estavam disponíveis e a forma de consulta por palavras chave foi de fácil acesso, diferentemente da região Nordeste.

Entretanto, as pesquisas feitas nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, restaram conclusivas e frutíferas, sendo as pesquisas realizadas nos tribunais de justiça de Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, ocasião em que foram encontrados 10 casos de decisões judiciais que abordaram expressamente o termo racismo recreativo e vieram após a legislação 14.532 de 2023, sendo cinco casos em São Paulo e cinco casos no Distrito Federal, momento em que abordaremos duas delas e verificaremos o ponto de vista do magistrado responsável pelo caso.

No dia 02 de outubro de 2023, a 01º Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, na apelação criminal dos autos nº 1500736-26.2021.8.26.0157, em acórdão, deram parcial provimento ao recurso interposto pelo réu, para reduzir a sua pena para um ano e quatro meses de reclusão, na ocasião o desembargador relator foi o Dr Mário Devienne Ferraz, na relatoria da análise da apelação criminal foi claro e preciso ao trazer para o caso as disposições acerca do racismo recreativo e também a alteração legislativa imposta pela lei 14.532 de 2023, vejamos:

[…] Ademais, ainda que se admita, por amor ao debate, ter sido proferida a ofensa à vítima a pretexto de brincadeira, como alegado pelo réu, ainda assim estaria tipificado o delito previsto no artigo 140, § 3o, do Código Penal, na medida em que a utilização do humor como veículo de propagação de ofensas a pessoas negras (situação corriqueira em nosso país “racismo recreativo”) configura conduta igualmente discriminatória e que atrai, portanto, a incidência do tipo penal em questão, sendo de todo oportuno mencionar, em reforço à argumentação, que a citada Lei no 14.532/23 passou inclusive a considerar, como causa de aumento, a prática de injúria racial “em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação.
[…]

Importante destacar aqui, que por se tratar de apelação criminal, o réu, em sede de primeira instância, foi condenado pelo delito tipificado no artigo 140 § 3, do Código Penal, tendo em vista a observância do aspecto da irretroatividade da norma e também o fato dos autos, terem se iniciado antes da vigência da lei 14.532 de 2023, contudo os ensinamentos do douto desembargador são relevantes e importantes para o avanço e posteriormente utilização da norma que trouxe a causa de aumento de pena do racismo recreativo.

Dos resultados apresentados pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, é essencial que seja abordada aqui a apelação criminal que tramitou sobre o nº 0705384-07.2023.8.07.0007, de relatoria do desembargador Silvanio Barbosa dos Santos, onde também foi bem apresentada e abordada as disposições acerca do racismo recreativo e as alterações que foram feitas na lei de racismo com o advento da lei 14.532 de 2023, vejamos:

[…] O fato de o acusado alegar que as palavras foram proferidas em tom de brincadeira, e que assim o faz desde criança, não afasta o dolo do tipo penal. Conforme já rebatido na sentença, tais atitudes tornam ainda mais reprovável a conduta, dada a tentativa de camuflar o intuito de ofender.

Aliás, com base nesta perspectiva, o legislador tratou de incluir, por meio da Lei nº 14.532/2023, uma causa de aumento específica para quando as palavras racistas ou injuriosas forem proferidas justamente em contexto ou no intuito recreativo. É o caso do artigo 20-A da Lei 7.716/89, o qual assim dispõe: “Art. 20-A. Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”. […]

Assim como no caso apresentado que tramitou na comarca de São Paulo, o réu, foi condenado como incurso nas penas do artigo 140 § 3, do Código Penal, razão pela qual podemos perceber que das decisões judiciais que abordam expressamente o racismo recreativo e a legislação 14.532 de 2023, o aspecto da irretroatividade da norma, tem sido muito utilizado, em razão das ações penais terem se iniciado antes da vigência da legislação 14.532, situação em que a majorante que foi acrescida com a nova legislação ainda não foi utilizada efetivamente, mesmo um ano após a publicação da lei.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo dessa extensa análise sobre a efetividade das decisões judiciais perante o combate ao racismo, racismo recreativo e as aplicações das legislações 7.716/1989 e 14.532/2023, é nítido que possuímos grandes desafios pela frente para que haja uma maior compreensão dessa forma de racismo e quais seriam os caminhos adequados para um combate incisivo e maior aplicabilidade das legislações que criminalizam essa conduta.

No primeiro capítulo do presente artigo, abordamos o conceito de raça e como ele foi a figura central para a criação de um sistema mercantilista e colonialista que estabelecia uma hierarquização de etnias, colocando os negros como a raça de menor classe na sociedade, fator fundamental para que verificassemos como o racismo começou a se propagar na sociedade e como as legislações, convenções e tratados internacionais foram avançando ao longo do tempo para combater essa mazela da sociedade.

No segundo capítulo, nos foi apresentado os conceitos de racismo, racismo recreativo e as legislações 7.716/1989 e 14.532/2023, além de também termos abordado brevemente as diferenças entre racismo e injúria racial até o ano de 2022 e também as intenções do legislador ao criar a nova legislação, bem como a apresentação do racismo recreativo não como um conceito novo, mas como algo que já estava presente na sociedade antes mesmo da alteração da legislação de racismo.

Por fim, no último capítulo, foi analisado nas jurisprudências de todos os Tribunais de Justiça do país, quais efetivamente tinham utilizado em suas decisões judiciais, expressamente o termo racismo recreativo e também considerado a chegada da nova legislação, bem como a análise se houve de fato a aplicação da majorante de crimes em contexto de recreação ou não, onde se chegou à conclusão de que a efetividade dessa aplicação não foi constatada, mas se observou que gradualmente ela será utilizada, tendo em vista que alguns julgadores já estão reconhecendo essas práticas com frequência e também já apontam que ela se enquadram na causa de aumento de pena.

Pois bem, ao analisar toda a estrutura da legislação de racismo, é possível verificar que a lei oferece importantes mecanismos para o combate a prática dessas condutas, entretanto, à medida que a conscientização da população sobre essas práticas vai ganhando mais força, a legislação categoricamente terá que sofrer alteração, sendo a prova maior disso a própria lei 14.532 de 2023, que trouxe a causa de aumento de pena do crimes de racismo em contexto de recreação, como uma forma mais rigorosa de punição.

Por essa razão, podemos chegar a conclusão de que o racismo não será combatido simplesmente com a edição de lei e alteração de normas, fato que enseja uma participação maior da coletividade em ser antirracista e estudar cada vez mais esse fenômeno complexo, sendo o letramento racial um caminho eficaz e bastante satisfatório para essa conscientização, além é claro de adoção de políticas e campanhas publicas que auxiliem no combate ao racismo.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio de. Racismo Estrutural. Coleção Feminismos Plurais. Jandaíra. 2019.

ALVES, Raoni. SANTO, Espirito Thais. Entenda oque é racismo recreativo, crime previsto na legislação desde janeiro. G1, Rio de Janeiro, 15 de junho de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/06/15/entenda-o-que-e-racismo-recreativo-crime-previsto-na-legislacao-desde-janeiro.ghtml. Acesso em 21 de maio de 2024.

BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei nº 668/1988. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-668-1988. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 20 de maio de 2024.

BRASIL. Decreto nº 65.810, de 08 de dezembro de 1969. Promulga a convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação Racial. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/d65810.html. Acesso em: 14 de maio de 2024.

BRASIL. Decreto nº 731, de 05 de junho de 1854. Declara desde quando deve ter lugar a competência dos Auditores de marinha para processar e julgar os réus mencionados no Art. 3.º da lei N. 581 de 4 de Setembro de 1850. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-731-5-junho-1854-558301-publicacaooriginal-79449-pl.html. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Lei Feijó, de 07 de novembro de 1831. Declara Livres todos os escravos vindos de fora do império, e impõe penas aos importadores dos mesmos escravos.Disponívelem:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-7-11-1831. htm. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponívelem:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm.Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Lei nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023. Alterou a lei nº 7.716 de 1989. Disponívelem:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14532.htm. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Lei nº 2040, de 28 de setembro de 1871. Declarava de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888. Declarava extinta a escravidão no Brasil.Disponívelem:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim3353.htm.Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Lei nº 581, de 04 de setembro de 1850. Estabelece medidas para a repressão do tráfico de africanos no império. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim581.htm. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.Disponível em:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm. Acesso em: 15 de maio de 2024.

BRASIL. Ministério Público Federal. São Paulo. Após pedir a condenação, MPF aguarda julgamento de influenciador digital por mensagens racistas. 03 de janeiro de 2024. Disponívelem:https://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/noticias-sp/ apos-pedir-condenacao-mpf-aguarda-julgamento-de-influenciador-digital-por-mensag ens-racistas. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Portal da Câmara dos Deputados. Agenda Brasileira de Racismo. Ano 4, 2023. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/41465. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Portal da Câmara dos Deputados. PL 668/1988. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=180567. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Injúria Racial é crime imprescritível, decide STF.Disponívelem:https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo= 475646&tip=UN.Acesso em: 21 de maio de 2024.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. 2 Turma Criminal. Apelação Criminal. Processo nº0705384-07.2023.8.07.0007. Relator: Silvânio Barbosa dos Santos. Brasília, 09 de maio de 2024. Disponível em: https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba. 3 Vara Criminal da Comarca de João Pessoa. Sentença. Processo nº 0820671-93.2021.8.15.2002. Juiz: Wolfram da Cunha Ramos. João Pessoa, 13 de setembro de 2022. Disponível em:https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-pb/1639686044/inteiro-teor-1639686046. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 1 Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal. Processo nº 1500736-26.2021.8.26.0157. Relator: Mário Devienne Ferraz. São Paulo, 02 de outubrode2023.Disponívelem:https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do;jsessionid=E045053A04646DD4DDACA746BBA4626C.cjsg3. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 1 Vara do Tribunal de Justiça de São Paulo. Sentença. Processo nº 1500147-56.2019.8.26.0431. Juiz: Felipe Cavasso. Pederneiras, 10 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/2055732152/inteiro-teor-206200137. Acesso em: 04 de maio de 2024.

BRASIL.VIEIRA.Leonardo.Historiadores-traduzem-obra-escrita-por-ex-escravo.Di sponível-em:https://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br, novembro de 2014. Acesso em: 04 de maio de 2024.

Conselho Nacional de Justiça. Com apenas 1,7% de juizes e juizas pretos, equidade racial segue distante na justiça brasileira. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/com-apenas-17-de-juizes-e-juizas-pretos-equidade-racial-segu e-distante-na-justica-brasileira/. Acesso em: 21 de maio de 2024.

Conselho Nacional de Justiça. Conheça a diferença entre racismo e injúria racial. Disponívelem:https://www.cnj.jus.br/conheca-a-diferenca-entre-racismo-e-injuria-racia l/. Acesso em: 15 de maio de 2024.

Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 14 de maio de 2024.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2020.

KOK, Maria Glória Porto. A escravidão no Brasil Colonial. Revista que história é esta ?. 6º edição. 2010

Ministério Público da União. Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Estudos sobre a lei 7.716/1989 – Lei de combate ao racismo. Disponível em: https://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/nucleos/ned/EstudoComentariosLei771689.pdf. Acesso em: 04 de maio de 2024.

Ministério Público do Paraná. Homem que teria praticado “racismo recreativo” em grupo de troca de mensagens é denunciado pelo Ministério Público do Paraná em Nova Londrina. 05 de maio de 2023. Disponível em: https://mppr.mp.br/Noticia/Homem-que-teria-praticado-racismo-recreativo-em-grupo-de-troca-de-mensagens-e-denunciado. Acesso em: 19 de agosto de 2023.

MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. Coleção Feminismos Plurais. Jandaíra. 2019.


¹Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Católica de Rondônia. E-mail: Filipe.silva@sou.fcr.edu.br
²Professora Orientadora. Doutora em Ciência Jurídica DINTER entre FCR e UNIVALI. Mestre em Direito Ambiental pela UNIVEM/SP. Especialista em Direito Penal UNITOLEDO/SP. Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela UNIR/RO. Especialista em Direito Militar pela Verbo Jurídico/RJ. E-mail: almeidatemis.adv@gmail.com.