QUEMODECTOMA EM CADELA SEM RAÇA DEFINIDA: RELATO DE CASO

CHEMODECTOMA IN A MIXED-BREED FEMALE DOG: CASE REPORT

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202507122354


Thaynan Piontkovsky Pereira¹; Vinicius Lima Brito¹; Genilson Pereira Gonçalves Junior¹; Rafaela Pereira de Souza¹; Markos Panayotis De Oliveira Damatis¹; João Henrique Caetano Rohe²; Fabiano Sobral Colaro²; Emmanuel José Fialho Camilo³; Robson Junior Piontkovsky⁴; Alexandre José Rodrigues Bendas⁵.


RESUMO

Quimiodectomas são neoplasias cardíacas que afetam o corpo aórtico.  Frequentemente se manifestam como uma única massa na região de base cardíaca apresentando potencial infiltrativo para o pericárdio, miocárdio, epicárdio e para as paredes da artéria carótida e aorta. A sua incidência é consideravelmente maior entre os cães braquicefálicos, como bulldog e boxer, por decorrência de características anatômicas. Principais manifestações clínicas encontradas relacionam alteração na frequência cardíaca e pressão arterial sistêmica, tosse, dispneia, ascite, congestão pulmonar, cianose. A tomografia computadorizada, ressonância magnética podem ser empregas para o diagnóstico, porém a remoção cirúrgica do tumor não é recomendada. Esse trabalho visa relatar um caso de quemodectoma em uma cadela sem raça definida.

Palavras-chave: Quimiodectoma. Neoplasia. Cardiologia.

ABSTRACT

Chemodectomas are cardiac neoplasms that primarily affect the aortic body. They most commonly present as a single mass at the base of the heart and may exhibit infiltrative potential involving the pericardium, myocardium, epicardium, and the walls of the carotid artery and aorta. Their incidence is significantly higher among brachycephalic dog breeds, such as Bulldogs and Boxers, due to anatomical predispositions. The main clinical signs include alterations in heart rate and systemic blood pressure, coughing, dyspnea, ascites, pulmonary congestion, and cyanosis. Diagnostic imaging such as computed tomography (CT) and magnetic resonance imaging (MRI) may be employed; however, surgical excision of the tumor is not recommended. This report aims to describe a case of chemodectoma in a mixed-breed female dog.

Keywords: Chemodectoma, Neoplasm, Cardiology.

INTRODUÇÃO

A incidência de tumores cardíacos na rotina clínica em cães é baixa (FERNANDEZ-DEL PALACIO, 2011), podendo ser benignos ou malignos (e primários ou secundários). Dentro desse grupo de neoplasias, o hemangiossarcoma possui a maior prevalência, com 69% dos casos registrados, subsecutivo as neoplasias do corpo aórtico (quimiodectoma 8%, linfoma 4% e carcinoma ectópico de tireoide 1%) (LARSSON, 2020). Os quimiodectomas ou paragangliomas são neoplasias de quimiorreceptores localizadas na base do coração que podem acometer cães (CAPEN, 2002). Mais frequentemente se manifestam como uma única massa e raramente na forma de múltiplos nódulos localizados na base cardíaca apresentando potencial infiltrativo para o saco pericárdico, epicárdio, miocárdio e para as paredes da artéria carótida e aorta (CAVALCANTE et al., 2006). A incidência é maior em cães braquicefálicos, principalmente bulldog e boxer, devido a uma situação fisiológica de hipóxia crônica decorrente das alterações anatômicas que caracterizam as raças (TREGGIARI et al., 2015) Esses receptores são sensíveis a mudanças de pH, pressão de oxigênio e pressão de dióxido de carbono no sangue, participando na regulação da circulação sanguínea e respiração (REZENDE et al., 2017), acarretando no aumento ou na diminuição frequência cardíaca, pressão arterial, tônus vasomotor, atividade do córtex cerebral e liberação de adrenalina (EHRHART et al., 2002). Tosse, dispneia, derrame pleural, ascite, cianose e congestão pulmonar e hepática são sinais clínicos descritos em literatura (FERREIRA et al., 2010). Ecocardiografia, radiografia de tórax, eletrocardiografia, exames citológicos e histopatológicos auxiliam no diagnóstico inicial da doença em conjunto com uma avaliação clínica (SOUZA et al., 2022). Tomografia computadorizada, PET-CT e ressonância magnética também podem ser empregados no diagnóstico dessas neoformações (SZALUS et al., 2021). O tratamento cirúrgico do tumor geralmente é inviável, devido a sua localização e a estruturas anatômicas relacionadas, e/ou, adjacentes à sua massa (SALOMÃO et al., 2012). O presente estudo tem como objetivo relatar o caso de um canino sem raça definida atendido no Hospital Veterinário da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) diagnosticado com quimiodectoma, a fim de enriquecer o meio científico sobre tal neoplasia.

RELATO DE CASO

A paciente canina Mel, SRD, 6 anos, foi encaminhada ao Setor de Cardiologia e Doenças Respiratórias do Hospital Veterinário de Pequenos Animais (HVPA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) por serviço externo, com suspeita de cardiopatia. Na consulta, as responsáveis do animal relataram que três meses antes notaram que a paciente apresentava aumento de volume abdominal, seguido, nos meses subsequentes, de perda de peso rápida e significativa (FIGURA 1), apesar de manutenção do apetite. Três dias antes da consulta no HVPA, a paciente foi internada e submetida à abdominocentese, quando foram drenados 5 litros de efusão abdominal, a qual não foi enviada para análise laboratorial. A paciente teve prescrição de dipirona, amoxicilina com clavulanato de potássio, acetilcisteína e meloxicam. O animal, ao chegar no HVPA, apresentava ascite, dispnéia e posição ortopnéica, sendo admitida como urgência. Foi realizada abdominocentese, na qual foram drenados 3,3 litros de efusão abdominal de aspecto amarelado e com aparente celularidade. Em seguida, a paciente foi submetida a exame T-FAST, que permitiu constatação da presença de uma massa heterogênea hiperecóica de bordos irregulares e altamente vascularizada, que acompanhava o contorno da silhueta cardíaca e se expandia para mediastino cranial, além de presença de efusão abdominal, pleural e pericárdica, com início de tamponamento cardíaco. Foi realizada a toracocentese com drenagem de 400 ml, porém as efusões pleural e abdominal não puderam ser enviadas para análise de líquidos cavitários devido ao horário de funcionamento do Laboratório de Patologia Clínica da UFRRJ. Ademais, no exame radiográfico, observou-se aumento de radiopacidade intratorácica e outros achados compatíveis com efusão (FIGURA 2). Durante o exame físico, no momento da consulta, o animal apresentava mucosas hipocoradas e levemente cianóticas, desidratação 9%, dispnéia expiratória obstrutiva, com movimentos respiratórios paradoxais, padrão respiratório restritivo e teste de piparote positivo. A pressão arterial sistêmica foi de 180 mmHg, frequência cardíaca de 100 bpm e frequência respiratória de 32 mpm. Não foi possível realizar ausculta cardíaca em decorrência da efusão pericárdica e a ausculta pulmonar se apresentava abafada devido à efusão pleural. Considerando a instabilidade sistêmica do animal, foi solicitado que o retorno ocorresse no dia seguinte para reavaliação, foi solicitado também realização de ecocardiograma, feita analgesia com dipirona e metadona, coletado sangue para hemograma e bioquímica e a paciente foi encaminhada para internação até o momento da consulta de revisão. A paciente retornou no dia seguinte e foi realizada nova toracocentese, quando foram drenados 2 litros de efusão torácica com característica de transudato modificado e foi coletado material da massa em topografia de base cardíaca para citologia, por punção por agulha fina guiada por ultrassonografia (FIGURA 3).  O animal, na consulta de revisão, apresentava desidratação de 10%, mucosas hipocoradas, tempo de preenchimento capilar de 3 segundos, frequência respiratória de 30 mpm e frequência cardíaca de 110 bpm. A ausculta cardíaca se apresentava abafada, porém não foi auscultado sopro, e a ausculta pulmonar apresentava crepitação. Os exames laboratoriais coletados na primeira consulta apresentavam anemia normocítica normocrômica regenerativa, leucocitose, neutrofilia sem desvio à esquerda, trombocitose, havia presença de anisocitose, policromasia e plaquetas ativadas, além de hipoproteinemia e hipoalbuminemia. A responsável pelo animal não realizou internação em clínica veterinária externa e foi novamente orientada a fazê-lo para que a paciente recebesse cuidados paliativos. Foi prescrito suporte nutricional com Sarcopen Vet, Macrogard Pet e Pet Protein. A paciente não retornou para nova consulta.

DISCUSSÃO

Neoplasias cardíacas caninas são afecções relativamente raras e descritas na literatura majoritariamente através de relato de caso (JARK et al., 2011; ARAÚJO et al., 2011). Entre as neoplasias mais comuns estão aquelas de corpo aórtico, como o quemodectoma, tumores com baixo poder metastático, crescimento local e cuja ocorrência de sintomas está relacionada a compressão de grandes vasos e de estruturas do próprio coração (TREGGIARI et al., 2017). A paciente descrita é uma cadela sem raça definida, com 6 anos de idade e não castrada, tais informações diferem do encontrado por Ware & Hopper (1999) e Smith et al. (2015), que descreveram maior prevalência de tumores cardíacos em animais entre 7 e 15 anos, de raças braquicefálicas e não castrada, o que permite inferir a importância do diagnóstico citológico para a caracterização do tipo de tumor, principalmente quando a epidemiologia não corresponde à apresentação do caso. Ademais, paciente foi admitida ao serviço veterinário com diversas coleções de líquidos cavitários, sendo efusões pleural, pericárdica e abdominal, achados sintomáticos compatíveis com o descrito na literatura em outros casos semelhantes onde havia compressão de grandes vasos (FEITOSA et al., 2021; ARANTES et al., 2024). Para caracterização completa do caso, foi utilizado a técnica de TFAST (Thoracic focused assessment with sonography for trauma) e AFAST (Abdominal focused assessment with sonography for trauma) (LISCIANDRO, 2011), possibilitando a visualização das efusões rapidamente, melhorando o prognóstico da paciente. Dessa maneira, foi possível visualizar a massa próximo ao coração, bem delimitada, extensa e gerando compressão dos vasos.  A terapia instituída para a paciente visou, principalmente, o bem-estar e a qualidade de vida para ela, com a prescrição de medicações de suporte e drenagem das efusões formadas, uma vez que a realização de cirurgia para ressecção do tumor é considerada arriscada e não resolutiva devido a sua localização e extensão (EHRHART et al., 2002). Dos Santos Filho et al. (2019) já havia relatado uma sobrevida de 90 dias em um paciente com neoplasia cardíaca oferecendo tratamento paliativo similar ao adotado no caso. Outras terapias como a pericardiectomia e a radioterapia são encontradas na literatura, ainda que nenhuma delas com resultado definitivo, os autores relatam sobrevida dos pacientes por meses após a realização (VICARI et al., 2001; RANCILIO et al., 2012).

CONCLUSÃO

O presente relato contribui para o conhecimento clínico e diagnóstico sobre os quimiodectomas em cães, principalmente em pacientes que não apresentam predisposição racial e etária. A utilização de exames complementares de imagem em conjunto com a realização de citologia guiada por ultrassonografia foi essencial para o diagnóstico presuntivo da neoplasia. Diante da raridade desses casos na rotina clínica, esse estudo reforça a necessidade de atenção a sinais clínicos inespecíficos de neoplasias cardíacas e o uso de exames complementares para que ocorra a identificação precoce e conduta adequada visando sempre o bem-estar do animal.

Figura 1: Estado geral da paciente no momento do primeiro atendimento. Nota-se escore corporal muito baixo, com evidenciação óssea e aumento de volume abdominal. Fonte: arquivo pessoal.
Figura 2: Ao exame radiográfico, nas incidências laterolaterais, notou-se aumento de opacidade intratorácica de densidade fluido/tecidos moles, obliterando as margens da silhueta cardíaca e do diafragma, associado a preenchimento das fissuras interlobares por densidade líquida e aumento das dimensões da silhueta cardíaca, mais proeminente em topografia de câmaras cardíacas direitas. Na porção cranial do abdome, incluída no estudo, foi possível visualizar a perda do detalhe peritoneal, sugerindo a presença de líquido livre na cavidade abdominal. Fonte: arquivo pessoal.
Figura 3: A imagem mostra agrupamentos de células com morfologia variando de arredondadas a poligonais, com citoplasma discretamente basofílico e com limites por vezes indistinto. Os núcleos são arredondados tendendo a excêntricos. Notar moderado pleomorfismo com anisocitose, e presença de macronúcleos (seta amarela) e algumas células multinucleadas (seta vermelha). Fonte: arquivo pessoal.

REFERÊNCIAS

ARANTES, Thamires et al. Aortic trunk chemiodectoma in a dog: case report. Peer Review, v. 6, n. 2, p. 169-182, 2024.

ARAUJO, M. M. et al. Quimiodectoma em um cão. Revista de Educação Continuada em Medicina Veterinária e Zootecnia do CRMV-SP, v. 9, n. 2, p. 46-47, 2011.

CAPEN, C.C. Tumors of the Endocrine Glands. In: MEUTEN, D. Tumors in domestic animals, 4 ed. Ames: Iowa State, 2002. p. 601-695. 

CAVALCANTI, G. A. O.; MUZZI, R. A. L.; JÚNIOR, P. S. Bezerra; et al. Fibrilação atrial em cão associada ao quimiodectoma infiltrativo atrial: relato de caso. Universidade Federal de Minas Gerais, 2006. Disponível em: <https://doaj.org/article/d40bbf762e41464c9b2d5b196cb38697>. Acesso em: 23 mar. 2024.

DOS SANTOS FILHO, MÁRIO.; et al. Conservative treatment of ventricular tumors secondary to mammary neoplasia in dog: case report. Brazilian Journal of Veterinary Medicine, v. 41, n. 1, p. e099419-e099419, 2019.

EHRHART N, EHRHART EJ, WILLIS J, SISSON D, CONSTABLE P, GREENFIELD C, MANFRA-MARETTA S, HINTERMEISTER J. Analysis of factors affecting survival in dogs with aortic body tumors. Veterinary Surgery, v.31, n.1, p.44-48, 2002. Disponível em: <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1053/jvet.2002.29989/pdf>. Acesso em: 23 mar. 2024.

FEITOSA, R.O.; et al. Quimiodectoma em cão. Acta Scientiae Veterinariae, v. 49, n. 1, p. 642, 2021.

FERNANDEZ-DEL PALACIO, M. J.; SANCHEZ, J.; TALAVERA, J.; MARTINEZ, C. Obstrução da via de entrada do ventrículo esquerdo secundária a um mixoma em um cão. Journal of the American Animal Hospital Association, v. 47, p. 217–223, 2011.

FERREIRA, S. F.; SILVEIRA, L. L.; VALE, F. D.; et al. Síndrome da veia cava cranial (SVCC) secundária a quimiodectoma aórtico em cão – relato de caso. Revista Portuguesa de Ciências Veterinárias, v.105, n. 573 – 576, p. 63 – 70, 2010.

JARK, P. C.; et al. Quimiodectoma de corpo aórtico em cão. Clínica Veterinária, p. 54-60, 2011.

LARSSON, M. H. M. A. Cardiologia em pequenos animais. 2. ed. Rio de Janeiro: Roca, 2020.

LISCIANDRO, G. R. Abdominal and thoracic focused assessment with sonography for trauma, triage, and monitoring in small animals. Journal of Veterinary Emergency and Critical Care, v. 21, n. 2, p. 104-122, 2011.

RANCILIO, N. J.; et al. Use of three-dimensional conformal radiation therapy for treatment of a heart base chemodectoma in a dog. Journal of the American Veterinary Medical Association, v. 241, n. 4, p. 472-476, 2012

REZENDE, S. R. de; EURIDES, D.; COELHO, E. H.; et al. Prevalência, aspectos clínicos e anatomopatológicos de paranglioma de corpo aórtico e carotídeo em cães. Arquivos de Ciências Veterinárias e Zoologia da UNIPAR, v. 20, n. 3, 2017. Disponível em: https://revistas.unipar.br/index.php/veterinaria/article/download/6278/3541. Acesso em: 23 mar. 2024.

SALOMÃO, M. C.; MATTOS, A. S.; LUCENA, A. R.; LEITE, J. d. S.; MELLO, M. F. V.; FERREIRA, A. M. R. Tumor de arco aórtico em cão (Canis familiaris) – relato de caso. Veterinária e Zootecnia, v. 19, p. 107-109, 2012.

SMITH, Francis WK et al. Manual of canine and feline cardiology. Elsevier Health Sciences, 2015.

SOUZA, T. J.; CHIMENES, D. N.; CARAMALAC, M. S.; et al. Chemodectoma in a Bitch. Acta Scientiae Veterinariae, v. 50, n. 1, p. 785, 2022.

SZALUŚ – JORDANOW, O.; STABIŃSKA – SMOLARZ, M.; CZOPOWICZ, M.; et al. Chemodectoma located in the left atrium in 11 month survival dog with the use of palliative therapy. Medycyna Weterynaryjna, v. 77, n. 08, p. 6558 – 2, 2021.

TREGGIARE, E.; PEDRO, J. B.; DUKES-MCEWAN, A. R.; GELZER, A. R.; BLACKWOOD, L. A descriptive review of cardiac tumours in dogs and cats. Veterinary and Comparative Oncology, 2015

TREGGIARI, E. et al. A descriptive review of cardiac tumours in dogs and cats. Veterinary and comparative oncology, v. 15, n. 2, p. 273-288, 2017.

VICARI, Erin D. et al. Survival times of and prognostic indicators for dogs with heart base masses: 25 cases (1986–1999). Journal of the American Veterinary Medical Association, v. 219, n. 4, p. 485-487, 2001.

WARE, Wendy A.; HOPPER, David L. Cardiac tumors in dogs: 1982–1995. Journal of Veterinary Internal Medicine, v. 13, n. 2, p. 95-103, 1999.


¹Bolsista no programa de residência em Medicina Veterinária, IV-HVPA-UFFRJ;
²Discente de graduação do curso de medicina veterinária, IV-UFRRJ;
³Discente no programa de pós-graduação em medicina veterinária, UFRRJ;
⁴Discente no programa de pós-graduação em medicina veterinárias, UFPR;
⁵Docente em clínica médica de animais de companhia, DMCV-IV-UFRRJ.