THE APPLICABILITY OF BRAZILIAN CRIMINAL LAWS
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10774675
Ana Cláudia Assunção Baltar1
RESUMO
O presente artigo parte de uma pesquisa maior que versará sobre as possíveis revisões que teremos em breve, no que concerne a aplicação da medida de segurança com o advento da lei antimanicomial. Para isto, será traçado uma linha do tempo acerca da evolução da aplicação das nossas leis penais no decorrer do tempo, e, analisar de forma minuciosa o avanço do sistema punitivo e preventivo no que se refere ao tratamento quanto à imputabilidade de pessoas acometidas com transtorno mental e de personalidade, à Dignidade da Pessoa Humana no sistema carcerário, somado com a proteção e garantia à integridade física e moral da sociedade perante os presos, como sendo dever do Estado. Em primeira análise, serão tecidos comentários acerca do período do Brasil Colônia, compreendido entre o período de 1530 a 1822, em que serão ponderadas as primeiras legislações impostas pelos Portugueses, quais sejam, as três Ordenações: Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. Em segunda análise, serão tecidos comentários acerca da evolução no que concerne à evolução do regime de pena aplicado no Brasil, na função do Estado em cumprir com os ditames constitucionais e na proteção da sociedade contra a criminalidade. Quanto ao método empregado, utilizou-se uma revisão exploratória de literatura, tendo-se por fundamento pesquisa em bibliografias que fazem referência ao tema.
PALAVRAS-CHAVE: História do Direito Penal. Lei Antimanicomial. Inimputabilidade.
ABSTRACT
This article is part of a bigger research that will focus on the possible revisions that we will have soon in the Brazilian system, regarding the application of the security measure with the advent of the anti-asylum law. For that, a timeline will be drawn about the evolution of the application of our criminal laws over time, and, in detail, I will analyze the advancement of the punitive and preventive system with regard to treatment regarding the imputability of people affected by the disorder mental and personality, the Dignity of the Human Person in the prison system, combined with the protection and guarantee of the physical and moral integrity of society towards prisoners, as being the duty of the State. In the first analysis, comments will be made about the period of Colonial Brazil, between the period from 1530 to 1822, in which the first legislations imposed by the Portuguese will be considered, namely, the three Ordinances: Afonsinas, Manuelinas and Filipinas. In a second analysis, comments will be made about the evolution of the penalty regime applied in Brazil, the State’s role in complying with constitutional dictates and protecting society against crime. As for the method used, an exploratory literature review was used, based on research in bibliographies that reference the topic.
KEYWORDS: History of Criminal Law. Anti-Asylum Law. Imputability.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo trata-se de uma pesquisa feita que busca demonstrar a evolução no tratamento dado ao longo dos anos aos portadores de transtornos mentais ou dos inimputáveis, na história do Direito Penal Brasileiro, passando por diferentes fases históricas que ajudaram a modificar o entendimento e a aplicação das penas perante essas pessoas.
A princípio, depreende-se que o modo como as pessoas pensavam a respeito dos portadores de transtorno mental refletia, de maneira direta, no tratamento adotado pelo ordenamento jurídico perante essas pessoas, principalmente levando-se em consideração que nem sempre existiu uma subsidiariedade entre o Direito e as outras ciências capazes de estudar a mente humana. Por este motivo, uma vez que o operador do Direito não possuía ferramentas necessárias que o ajudassem a compreender a lucidez ou a falta dela, no que concerne aos atos cometidos por portadores de transtornos mentais, não seria possível elaborar leis que igualmente compreendessem e se manifestassem de acordo com as necessidades não só dos próprios agentes, mas da sociedade. Com a evolução desse pensamento, novas leis foram surgindo de modo que chegamos ao estágio em que nos encontramos nos tempos modernos, qual seja, o da inaplicabilidade de um sistema punitivo para esses indivíduos.
Essa pesquisa visa justamente demonstrar essa evolução no tratamento e compreensão dos inimputáveis, da antiguidade até a contemporaneidade, que apoiará a futura pesquisa dos efeitos jurídicos e sociais após a extinção dos Hospitais de Custódia.
O modo utilizado para servir de base do presente artigo, foi através de revisão exploratória em livros, artigos científicos e legislações que fazem referência ao tema, sempre trazendo a interpretação e a visão do contexto histórico anterior à elaboração dessas leis.
Para isto, o trabalho foi organizado em seis partes, cada qual tendo como base o acontecimento histórico que deu causa para as mudanças ocorridas ao longo de toda a jornada do Direito Penal no Brasil.
A realização desta pesquisa servirá de base para uma pesquisa futura que versará sobre os impactos futuros da política antimanicomial e do movimento antimanicomial, de tal modo que será possível, através deste artigo, compreender a evolução do pensamento humano perante o tratamento dos inimputáveis, ao ponto de nos depararmos com o cenário atual e a precoce extinção dos Hospitais de Custódias.
Talvez ainda não exista um consenso em relação a qual seria o melhor tratamento a ser dado ou em qual seria o melhor sistema a ser aplicado aos inimputáveis, assim, neste caso, nos resta fazer uma análise e um estudo dos caminhos que vêm sendo adotado em outra realidade jurídica, e, no resultado da aplicação desses sistemas, análise esta que farei em um futuro artigo.
2. BREVE COMENTÁRIO SOBRE A EVOLUÇÃO GLOBAL DO CONCEITO DE APLICAÇÃO DE PENAS
Desde os primórdios da existência da sociedade humana, é possível verificar prelúdios do que viria um dia a ser o Direito Penal. A ideia de punição e de castigo está presente desde a antiguidade, quando a punição era altamente confundida com vingança, sendo essa idéia altamente influenciada pela Lei do Talião, válida na Mesopotâmia, mais conhecida pela expressão: ‘’Olho por olho, dente por dente’’, sendo um dos primeiros métodos de punição a ser adotado e comumente usado pela população.
Segundo o fundador da Teoria Finalista do Direito Penal, Franz Von Liszt, ‘’o ponto de partida da história da pena coincide com o ponto de partida da história da humanidade ‘’.² Ou seja, o surgimento da aplicação de penas é inerente ao surgimento da humanidade, que veio a ser aprimorado conforme as transformações sociais, principalmente a partir do século XVIII, com os ideais iluministas e o acontecimento da Revolução Francesa, que passa a fazer uma ligação entre o conceito de punição e o conceito de respeito à humanidade daquele condenado, traduzindo uma evidente mudança na forma de encarar o criminoso e o crime, chamado na época de ‘’economia de castigo’’.³
Faz-se mister trazer ao presente artigo, a presença do brocardo jurídico “Ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus’’: ‘’”Onde há homem, há sociedade; onde há sociedade, há Direito’’, ou, de forma ainda mais adequada ao que discutiremos aqui:‘’Ubi societas; ibi crimen’’: ‘’Onde há sociedade, há crime’’.
Assim, antes de abordar a introdução das leis penais no Brasil, é imperioso analisar o contexto histórico em que se encontrava Portugal, antes do ano 1500. De 1256 a 1265, por meio do então rei de Portugal, Afonso V, originaram-se as chamadas ‘’Siete Partidas’’, que futuramente viria a se tornar um dos principais textos legislativos da Idade Média. Em seguida, com o intuito de organizar as leis, normas e sentenças de uma forma mais geral, surgiu a chamada ‘’Ordenação Afonsina’’, promulgada em 1446-1447. Posteriormente, essas ordenações foram atualizadas e sobrevieram suas sucessoras, as Ordenações Manuelinas e as Ordenações Filipinas. Concomitantemente, na mesma época na Espanha, foi publicada uma coletânea de leis, chamada de ‘’Ordenanzas Reales de Castilla’’.
Com o Tratado de Tordesilhas em 1494, acordo firmado entre Portugal e Espanha, que tinha o propósito de demarcar os limites da exploração de cada país, ficou firmado que Portugal ocuparia a parte nordeste do território brasileiro, iniciando-se, assim, a ocupação da Coroa Portuguesa dentro do território brasileiro.
3. BRASIL COLÔNIA E AS ORDENAÇÕES
Partindo dessa premissa, dentro do contexto brasileiro, assim como no surgimento de todas as outras culturas, o Direito Penal e a aplicação de penas, surge antes mesmo da chegada dos Portugueses e independentemente da forma com a qual o Direito, e, consequentemente o Direito Penal surgem, o faz em detrimento de sua função social, se tornando uma figura imperiosa e com o intuito de dirimir as relações sociais e comerciais, sendo aperfeiçoados com o passar do tempo e com a modificação e evolução do próprio pensamento humano, que vieram a se mostrarem essenciais na criação de princípios que passaram a nortear o Direito Penal Brasileiro.
Não seria diferente no nosso país, em que tudo começou no período compreendido entre 1500 e 1532, mais conhecido como o Brasil Colônia, sendo marcado pela centralização do poder nas mãos da coroa portuguesa, em que a figura do Direito fora, na realidade, disposta de maneira compulsória e obrigatória, pois, como afirmava Bartolo de Sassoferrato, um reino anexado a outro é comparável ao terreno anexado pela aluvião a um fundo, do qual segue o regime jurídico.
Assim sendo, as terras que fossem anexadas como sendo parte do território de um determinado país, deveria, de forma automática e sem nenhuma promulgação como sendo necessária, seguir as leis vigentes deste. Ao contrário do que podemos ver ao analisarmos a história de outros povos, em que o Direito apareceu de forma gradativa e progressiva, de acordo com a necessidade de se fazer presente, para desempenhar o seu papel de agente condutor da funcionalidade social.
Urge pontuar que apesar do Código Penal Brasileiro propriamente dito, só ter surgido em meados de 1829, após a promulgação da Constituição Federal de 1824, o Direito Penal se fez presente desde o princípio, nas relações interpessoais entre o povo indígena, suas crenças e a sua cultura, que por viverem de forma primitiva, aplicavam certas punições para indivíduos cujo comportamento era contrário aos seus costumes.
Segundo Adilson Mehmeri (2000, p. 19), o sistema de punição que regia os costumes do povo indígena se dava de forma privada, uma vez que o criminoso era entregue à vítima e a seus parentes, enquanto que no que concerne a crimes cometidos por outra tribo, poderiam ser equiparados a crimes de Estado.
Assim, quando da chegada dos Portugueses, conforme o entendimento da obra de Mario Losano (Martins Fontes, São Paulo, 2007, p. 262 – 285), três ordenações – que abrangiam as codificações de uma maneira geral – foram as responsáveis por inaugurar a funcionalidade social no Brasil, conforme dito anteriormente: as Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. Todas as três possuindo como particularidade a crueldade das penas, inclusive, com aplicação de tortura e pena de morte.
Um ponto importante a ser mencionado aqui, é que essas três Ordenações eram um código legislativo que reuniam de maneira geral as mais diversas questões, desde natureza cíveis até as de natureza penal.
A primeira delas, as Afonsinas, que ficaram vigentes no período de 1447-1521, ordenada pelo então Rei de Portugal, D. Afonso V, é caracterizada por ser uma compilação do Direito Romano de Justiniano e do Direito Canônico.
Em seguida, com o objetivo de aprimorar as Ordenações Afonsinas, houve o surgimento das Ordenações Manuelinas, entrando em vigor em 1521 até o ano de 1603, que igualmente, foi marcada pela crueldade das penas e pela inexistência do princípio da ampla defesa.
Por fim, sobreveio as Ordenações Filipinas, vigorando em nosso território de 1603 a 1830, inaugurando em seu Livro V, o nosso primeiro Código Penal, possuindo caráter bastante teológico, isto é, fundamentada em preceitos religiosos, com a previsão de aplicação de penas extremamente severas, independentemente da infração cometida pelo agente, mas principalmente quando havia um ataque à fé cristã e católica, ou seja, quando um indivíduo possuía um comportamento considerado herege, atentando contra o poder da Igreja Católica ou o absolutismo monárquico.
Uma das penas trazidas pelo Livro V, se tratava da pena de morte por ‘’morte natural de fogo’’, a qual consistia em queimar o infrator vivo; ainda, havia a possibilidade de pena de morte por ‘’morte natural na forca para sempre’’, cujo o nome já é autoexplicativo.
Ainda, em seu Livro V, nas páginas 59, 138, 140, é curioso que tenha como uma de suas punições ou sanções, o degredo para o Brasil, ou seja, o exílio para o Brasil como forma de punição, sendo inclusive, considerada uma das penas mais severas, de pior grau possível, para os ‘’piores criminosos’’ do Reino Português, aqui está um exemplo:
‘’Qualquer carreteiro, almocreve, barqueiro ou outra pessoa que houver de entregar ou vender pão, ou levar de uma parte para outra, e lhe lançar acintemente terra, água ou outra coisa qualquer, para lhe crescer e furtar o dito crescimento, se o dano e perda que se receber do tal pão valer dez mil réis, morra por isso. E se for de dez mil réis para baixo, seja degredado para sempre para o Brasil(Ordenações Filipinas – Livro V, tít. 59, p. 192).’’
Ainda, a título de exemplo, feiticeiros (a), homens que dormiam com mulheres casadas ou que matavam suas mulheres por a achar em adultério, tinham como pena o degredo de forma vitalícia, para o Brasil.
Em outras palavras, podemos dizer que houve uma época, mais especificamente até o ano de 1808, em que o Brasil era a ‘’prisão dos degenerados’’, posto que os criminosos eram enviados para o Brasil, a título de degredo, a fim de que cumprissem uma pena. Isso explica a lamentação do padre Manuel da Nóbrega, em 1556: “Nesta terra não vieram até agora senão desterrados da mais vil e perversa gente do Reino” (PIERONI, 2000a, p. 35).
Neste mear, enquanto vigorava as Ordenações Filipinas, surge o conceito da aplicação de penas proporcionais e justas, que veremos mais a fundo a seguir. (BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, 1764).
Ainda, urge pontuar que na sua condição de Colônia, o Brasil ainda não detinha de um Código Penal, motivo pelo qual utilizava as penas descritas no Livro V das Ordenações Filipinas, como meios de punições e castigos corporais. Apenas no ano de 1769, por intermédio da Carta Régia foi determinada a instalação de ‘Casa de Correção’ no Rio de Janeiro, conhecida hoje como a primeira prisão brasileira.
Este ponto merece destaque, pois a própria semântica que pode-se inferir do termo ‘’Casa de Correção’’, nos remete ao princípio da ressocialização da pena. As Casas de correções estavam intimamente ligadas ao conceito de reeducar o preso, com o intuito de garantir a não reincidência deste preso no crime. Porém, somente no ano de 1833 foi que de fato a primeira Casa de Correção começou a ser construída.
Segundo Albuquerque Neto (2008, p.47), na Cidade do Recife, que estava passando por uma fase de grande crescimento populacional e diversas inovações, no ano de 1855, foi inaugurada a primeira Casa de Detenção, sendo conhecido como o modelo mais moderno da época, posto que fora construída pelo modelo panóptico, de Jeremy Bentham, jurista e filósofo inglês, baseado em um arquétipo com um sistema extremamente moderno para a época, principalmente porque visava não mais a vingança ao criminoso, e sim, o conceito da prisão como meio de punir, vigiar, proteger à sociedade das atitudes do criminoso e reeducá-lo, para que não haja reincidência no crime.
A construção baseada no modelo panóptico pode ser aplicada não apenas para detenções, mas também para hospitais, hospícios e escolas, e, é interessante comentar que foi por meio de seu idealizador, Jeremy Bentham, que surgiu o conceito de ‘’celas’’. Nesse modelo, o local em que a autoridade competente para vigiar o criminoso, deveria ocupar o centro, com isso, o inspetor conseguiria ter uma visão mais ampla, de modo que pudesse vigiar os prisioneiros com menos esforço e com uma maior eficiência, como pode-se observar a partir da Figura 1.
Figura 1
Figura 2
Figura 3
As figuras 2 e 3, são fotografias tiradas da Casa da Cultura, situada em Recife, em que podemos ver com clareza a sua inspiração do modelo panóptico, posto que o local situado no meio era ocupado pela autoridade responsável, de modo que tivesse ampla visão de todos os corredores em que estavam localizadas as celas, tornando-os capacitados a permanecer em constante vigilância de todos os presos.
4. CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO DE 1830
Com a Proclamação da Independência do Brasil em 1822 e o advento da Constituição de 1824, surge o primeiro Código Criminal do Império, promulgado em 1830.
Ressalta-se que, o Código Criminal do Império possuiu forte influência dos ideais iluministas, uma vez que a Revolução Francesa, acontecida em 1789, causou profundas transformações, tanto políticas, como intelectuais, ao redor do mundo inteiro e no Brasil não teria como ser diferente. É neste momento em que ganha mais destaque a figura de Cesare Beccaria, que trazia consigo uma bagagem gigantesca acerca da finalidade da pena suplantar a mera definição de castigo ou justiça.
Não obstante, analisando o contexto histórico no Brasil, que, nesta mesma época, havia acabado de sair das amarras da Coroa Portuguesa para se tornar um País Independente, embora o significado de independência aqui possa ser questionado, posto que apesar de ter se tornado um país independente, continuou interligado à Coroa Portuguesa, sobretudo em relação a quantidade de impostos cobrados para a manutenção dessa ‘’autonomia’’ e ‘’liberdade’’ do povo brasileiro. Mas, uma vez tomando a posição de país independente, deveria então ser governado com base em suas próprias legislações.
A partir deste momento, com a influência dos ideais iluministas e das ideias de Beccaria prevalecendo sobre a concepção do povo brasileiro e do próprio legislador, podemos perceber uma mudança de rumo na história do país, principalmente ao analisarmos o próprio Código Criminal de 1830, que já continha alguns princípios e mudanças de paradigmas. Por exemplo, a pena passou a ser exclusiva do condenado, não podendo ultrapassar ao infrator, nem ser estendida aos seus familiares. Também, apesar de a pena de morte continuar sendo legal, fora modificada ao retirar a parte da tortura e da proibição de penas cruéis, sem enforcamentos ou decapitações.
Neste momento, é possível identificar o início do que futuramente viria a ser chamado de ‘’Princípio da Individualização da Pena’’, que assegura que para a aplicação da pena, deverá ser observado as características do caso em concreto, ainda que o crime cometido seja idêntico a algum outro, o histórico pessoal do infrator deverá ser levado em consideração, fazendo com que para a devida aplicação da pena, seja observada as particularidades de cada caso.
Além disso, a Constituição de 1824, no inciso XXI do Art. 179, previa o seguinte:
‘’Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
(…)
XXI. As Cadêas serão seguras, limpas, o bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réos, conforme suas circumstancias, e natureza dos seus crimes.’’
Verifica-se que, apesar do texto constitucional ter uma certa sensibilidade, não seria nada mais do que uma falácia, posto que, até os dias atuais, é possível inferir que na prática, isso nunca chegou a se tornar uma realidade e nunca chegou a ser efetivado aqui no Brasil. Inclusive, em contraponto, recentemente, no ano de 2017, com fundamento no Art. 37 da Carta Magna, mediante Recurso Ordinário de número 580.252, foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal que presos encarcerados em cadeias superlotadas ou com más condições de saúde e higiene, ou seja, submetidos à condições indignas, podem ser indenizados por danos morais pelo Estado.
Ainda, diante da incapacidade do Estado em gerir, de forma adequada e eficiente, observando as garantias constitucionais interligadas ao princípio da dignidade humana e da individualização da pena, muitos presos que cumpriam o regime semi-aberto, justamente por não haver estrutura nas cadeias prisionais, passaram a ficar na área atribuída aos presos que cumprem regime fechado.
Assim, no ano de 2011, no julgamento do Recurso Extraordinário 641.320, houve o reconhecimento da possibilidade do preso progredir para regime menos gravoso, diante da impossibilidade do Estado fornecer vagas para o cumprimnto no regime estabelecido na condenação penal, por parte do Ministro Gilmar Mendes.
Futuramente, este julgado iria servir para fixar os parâmetros da Súmula Vinculante 56:
‘’Súmula vinculante 56: A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS. (STF. Plenário. Aprovada em 29/06/2016.)’’
Isso significa que, mesmo que a Constituição de 1824 profetizasse condições mínimas e dignas para os presos e que deveria haver uma certa distinção, com a devida separação de cadeias prisionais para cada tipo de Réus de acordo com a natureza de seus crimes, isso nunca chegou a de fato se concretizar no Brasil, uma vez que até os dias hodiernos, existe uma verdadeira batalha travada no Sistema Penal e Carcerário Brasileiro, necessitando inclusive, de fixação por meio de Súmula Vinculante, para que o Estado consiga aplicar a pena visando as garantias constitucionais do preso, estabelecidas desde 1824.
Outro ponto importante a ser mencionado é o tratamento deste código perante as pessoas que possuem transtorno mental e de personalidade. Estava expresso em seu Art. 10, § 2, que os ‘’loucos de todo gênero’’ não eram considerados criminosos. Porém, existia uma condição, qual seja, que caso o crime fosse cometido com intervalos de lucidez, existiria a possibilidade de haver a condenação. Então, neste momento, as pessoas que eram considerada ‘’loucas’’, não poderiam ser julgadas como criminosas, mas por outro lado, como identificar um ‘’louco de todo gênero’’? Segundo Batista Pereira, o responsável por elaborar o Código Penal de 1890, essa seria uma categoria muito ampla, necessitando, assim, ser delineada e definida. Ainda, outra observação a ser feita, é para onde pessoas com esse diagnóstico deveriam ir, posto que o primeiro Hospital Psiquiátrico do Brasil apenas seria inaugurado posteriormente?
O Art. 12 respondia essa resposta, ao dizer que ‘’Os loucos que tiverem cometido crimes, serão recolhidos às casas para eles destinadas, ou entregues às suas famílias, como ao Juiz parecer mais conveniente’’. Porém, conforme explanado acima, não só não havia um conceito exato do que seria ‘’loucura’’ ou de como classificar os ‘’loucos de todos os gêneros’’, mas também, havia uma falta de estrutura, que deveria ser proporcionada pelo Estado, para que fosse oferecido um tratamento multidisciplinar e adequado para essas pessoas.
Portanto, podemos inferir que existia uma grande lacuna neste Código, visto que o tratamento dado para as pessoas com transtornos mentais e com transtornos de personalidade, era trivial.
Assim, o que se pode extrair do Código Criminal de 1830, é que o caminho a ser percorrido demonstrava ser demasiadamente longo, isto porque, apesar das visíveis mudanças na Constituição de 1824, que dava indícios de ser mais uma constituição mais humanística, pois houve a abolição de açoites, tortura e marca de ferro quente, o Código Criminal de 1830, por sua vez e em total contraste com o que fora demonstrado anteriormente, manteve algumas penas de caráter severo, pertencentes às Ordenações Filipinas, como por exemplo, a pena de açoites e pena de morte especificamente para escravos, o que, indubitavelmente, é um ponto retrógrado e, o mais negativo do Código Criminal de 1830, bem como houve uma verdadeira omissão quanto ao tratamento dado aos inimputáveis e semi-imputáveis.
5. ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA EM 1888 E O SURGIMENTO DO CÓDIGO PENAL DE 1890
Antes de partirmos para a análise do surgimento do Código Penal de 1890, se faz necessário tecer comentários acerca da abolição da escravatura em 1888, posto que traria grandes mudanças dentro do cenário em que o Brasil se encontrava na época.
Conforme mencionado alhures, o Código Criminal de 1830 ainda previa a pena de morte, como um meio legal, para punir escravos, fato este que gerou inúmeras revoltas pelo país, como por exemplo, a Revolta das Carrancas, acontecidas em Minas Gerais, no ano de 1833.
Posto isso, em 1888, com a abolição da escravatura, adveio o desuso da pena de morte. Aqui, uso a palavra ‘’desuso’’ porque a pena de morte apenas seria revogada com a Proclamação da República, em 1889.
Vale mencionar que apesar de, por meio da Lei Áurea, ter ocorrido apenas a abolição da escravatura, não houve a devida inclusão, com um verdadeiro apoio, das pessoas negras à sociedade.
Um ano após a Proclamação da República (1890), passou a vigorar o Código Penal, um dos códigos mais criticados da história do Direito Penal do Brasil, muito conhecido pelas suas falhas e retrocessos, comparado à ciência de seu tempo. (BITENCOURT, 2008, p.47)
Diante de toda evolução vivenciada perante o Código Criminal de 1830, da abolição – em parte – de penas mais severas, cruéis e desumanas, e, diante do contexto histórico em que o Brasil se encontrava à época, esperava-se que o Código Penal de 1890 acompanhasse essas evoluções e fosse capaz de suprir a necessidade da sociedade, desempenhando o papel de garantir a ordem jurídica por meio das sanções penais, fiscalizações e monitoramentos, mas em consonância com essas novas transformações e mudanças de concepções.
Grande parte das críticas tecidas, se referem a não composição deste código com a escola clássica do Direito Penal, que possuía uma abordagem mais positivista, inspirada nos ideais iluministas que conduziram inclusive o Código Criminal de 1830.
A despeito disto, faz-se necessário comentar sobre a Hierarquia das Normas e sobre a Pirâmide de Kelsen (Hans Kelsen), em que a Constituição Federal é o maior nível de hierarquia e todas as outras leis (ordinárias, complementares, etc) devem se submeterem à Constituição Federal. Portanto, apesar das diversas críticas tecidas em relação ao Código Penal Brasileiro de 1890, este foi construído com base na Constituição de 1824, uma vez que a Constituição da República apenas entraria em vigor em 1891, um ano após.
Ainda, embora exista uma grande desaprovação deste Código de 1890, precisamos observar alguns detalhes que fizeram alguma diferença positiva no tratamento de pessoas com doença mental ou com transtorno de personalidade. Um exemplo disto, é o que dispõe o seu Art. 27:
‘’Art 27. Não são criminosos:
§3. os que, por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação;
§4. os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime.’’
Ainda, em seu Art. 29, inferia-se que os doentes mentais deveriam ser entregues às famílias ou deveriam ser recolhidos a hospitais de alienados ‘’se o seu estado mental assim o exigir para a segurança do público’’.
Nesta ocasião, podemos ver o início do que no futuro viria a ser uma distinção de tratamento que deve ser dado a indivíduos que possuem algum tipo de doença mental e a pessoa com transtorno de personalidade, pois, nos parágrafos do artigo supracitado, os indivíduos considerados loucos ou que tinham algum tipo de transtorno, eram considerados inimputáveis, não cabendo assim, a aplicação de nenhuma sanção penal. Na época, esses estudos não eram desenvolvidos, a ponto de terem diagnósticos mais específicos e direcionados, de forma que não era possível identificar essas diferenças
Neste sentido, se houvesse o cometimento de um crime por um ébrio, por exemplo, este não poderia ser considerado criminoso e seria absolvido.
Como um perito psiquiatra poderia interpretar a lei nesses casos? Isso abre um leque de incontáveis possibilidades de absolvição. É neste sentido que encontram-se as críticas perpetradas por este código.
Apesar das inúmeras críticas, o Código Penal de 1890 vigorou até 1940, ano este em que seria elaborado o Código Penal que encontra-se em vigor até os dias atuais.
6. DECRETO 24.559, CÓDIGO PENAL DE 1940 E A REFORMA PENAL DE 1984
Conforme mencionado nos tópicos anteriores, no Código Penal de 1890, havia previsão de penas para ‘’mendigagem’’ e ‘’vadiagem’’, este ponto merece destaque, haja vista que às vésperas do surgimento do novo Código Penal, em 1932, o então presidente – Getúlio Vargas-, por meio do decreto de n° 21.946/1932, indultou todos os acusados que haviam sido condenados por infrações de menor potencial ofensivo.
Diante do contexto histórico e político vivenciados àquela época, com uma verdadeira inquietação e polarização ocasionada pela Guerra Fria, houve a necessidade, em 1934, de outorgar uma nova Constituição, e, a partir deste momento, foi elaborado o Código Penal de 1940, com a contribuição de grandes juristas, como Nelson Hungria, Alcântara Machado, Roberto Lyra, etc.
Neste mesmo ano, houve a criação do Decreto n° 24.559, que dispõe sobre a assistência e proteção à pessoa que possui transtorno de personalidade. Este Decreto possui grande relevância no sistema penal brasileiro, pois abre uma brecha para que a medida de segurança seja aplicada, mesmo findado o cumprimento de pena privativa de liberdade, conforme veremos a seguir.
Ainda, segundo o Professor José Henrique Pierangeli, em seu livro Códigos Penais do Brasil (2 a ed. São Paulo: RT, 2004, p. 80), o projeto final do Código Penal de 1940, não era fiel ao projeto original de Alcântara Machado.
Conforme preleciona o mestre Francisco de Assis Toledo, em seu livro ‘’Princípios Básicos de Direito Penal’’, o Código Penal de 1940 foi fruto de um estado ditatorial, levando em consideração o momento político vivenciado no Brasil nesta época, bem como foi influenciado pelo código fascista, posto que o nosso Código, como bem sabemos, foi inspirado no Código Italiano de 1930 (Código Rocco), porém, ainda assim, manteve a tradição liberal iniciada com o Código do Império de 1830.
A questão mencionada acima, acerca da influência que o nosso atual Código Penal teve no Código Rocco, demonstra-se através das concepções introduzidas neste Código (1940), o panorama completamente antagônico, pois ao mesmo tempo que o referido código possui raízes punitivistas, possui, de mesma forma, raízes positivistas.
Com o passar do tempo, principalmente durante o fim do regime militar, houve a constatação de que esse código precisaria de algumas atualizações e reajustes. Outrossim, em detrimento da mudança histórica no país e na mudança de mentalidade da nação, mais ou menos 40 (quarenta) anos após a promulgação do Código Penal de 1940, em 1984, com a introdução da Lei 7.209/84, houve uma reforma desse código penal que alterou os dispositivos contidos nele.
Nesse contexto, essa reforma que foi inspirada na concepção finalista de Hans Wezel, trouxe para o nosso Código a perspectiva de reinserção social. Ocorre que, apenas houve modificação na parte geral do Código, isto significa que, a parte especial não sofreu alteração com a Reforma, sendo a mesma do ano de 1940, inspirada nas bases italianas.
Exemplo disso, é o sistema Duplo Binário, que vigorou até a Reforma Penal do ano de 1984, que consistia em dar ao juíz a possibilidade de aderir a aplicação da pena juntamente com a medida de segurança, ou seja, o acusado que tivesse um alto nível de periculosidade, ao cumprir com sua pena restritiva de liberdade, poderia receber uma medida de segurança, a fim de que esse indivíduo não retornasse à sociedade até que, através de laudos e exames médicos, fosse constatada a cessão de sua periculosidade.
No caso do serial killer brasileiro José Paz Bezerra, amplamente conhecido como ‘’Monstro do Morumbi’’, em 14 de janeiro de 1977, fora condenado pelo assassinato de Vanda Pereira da Silva, recebendo pena privativa de liberdade concomitantemente com medida de segurança, que, após a Reforma Penal de 1984, fora cancelada a medida de segurança, mantendo-se apenas a pena privativa de liberdade.
Hodiernamente, esse sistema não é mais aplicado no Brasil, sendo o sistema vicariante que prevalece nos dias atuais, que, diferentemente do duplo binário, não existe a possibilidade da aplicação da pena conjuntamente com a medida de segurança, ou se aplica um instituto, ou se aplica outro instituto.
Existem críticas em relação à ambos os sistemas:
Se de um lado, tínhamos um sistema (duplo binário) que, em primeiro lugar, segundo os especialistas Reale Jr., Dotti, Andreucci e Pitombo, não era justo com os que possuíam doença mental, uma vez que seriam colocados em cárcere, quando, na verdade, o tratamento adequado seria um tratamento multidisciplinar, com equipes formadas por psicólogos e psiquiatras, e, em segundo lugar, conforme perfaz o entendimento de Cezar Roberto Bitencourt (2016), havia a idéia de violação ao princípio do ne bis in idem, princípio este que proíbe a dupla punição pelo mesmo delito.
Olhando sob um outro ponto de vista, precisamos rever alguns casos em que até os dias atuais, fora aplicada a medida de segurança mesmo após o cumprimento de pena privativa de liberdade, uma vez que fora identificado que aquele indivíduo não estava em condições de ressocializar e possuía um alto índice de periculosidade, um exemplo disto, é o caso de Chico Picadinho, que terminou de cumprir sua pena em 1998, porém, encontra-se até os dias atuais, cumprindo medida de segurança, através de uma Medida Liminar concedida pelo juiz da 2° Vara Cível da Comarca de Taubaté, com base no decreto de 1934, que prevê a interdição de direitos na área civil para pessoas com problemas mentais. Ou seja, na falta do sistema duplo binário, houve a necessidade de buscar apoio de um decreto do ano 1934, para que pessoas com transtornos de personalidade que possuem alto índice de periculosidade, não retornassem à sociedade
Essa Reforma possuía como alicerce o Estado Democrático de Direito que deveria ser conferido e devidamente colocado em prática, para os presos. Um exemplo disto, foi a adoção de penas alternativas à prisão, de modo que flexibilizasse e substituísse as penas restritivas de direito.
Em consonância com isto, Aníbal Bruno, em seu livro ‘’Pena e Medida de Segurança’’, possuía uma visão similar, de que na verdade, a pena privativa de liberdade deveria ser diminuída para que outros tipos de pena alcançassem o sistema penal, de forma a cumprir com o princípio do Estado Democrático de Direito e da ressocialização do apenado, tanto é, que essas penas alternativas foram ampliadas em 1998, pela Lei n. 9.714. É a ideia de que a adoção de outras medidas, que não seja a punição, poderia diminuir a criminalidade.
A aplicação de forma restritiva da pena privativa de liberdade, como sendo a última conduta a ser tomada, gerou alguns efeitos em nosso sistema, tanto positivos, como negativos. Os positivos são claros, posto que ao reduzir as prisões, há um desafogamento do sistema carcerário, e, consequentemente, é menor oneroso para o Estado. Por outro lado, quanto aos efeitos negativos da aplicação das penas alternativas, precisamos pensar em até que ponto essa flexibilização pode ser benéfica?
Olhando sob a ótica da Teoria Retributiva da Pena, a substituição das penas privativas de liberdade em penas alternativas, não atingiriam a sua finalidade de retribuir o agente pela prática do crime e nem de satisfazer a sociedade, ponto este que merece igual importância, posto que, é comum nos depararmos com a sensação de impunidade das pessoas em relação ao sistema penal e carcerário brasileiro, isto porque, frequentemente ficamos sabendo de alguém que foi preso e permaneceu pouco tempo na prisão.
De acordo com o Sistema Prevencionista (Teoria do Crime), para que se atinja a real finalidade do Estado Democrático do Direito e para a devida satisfação da prevenção da infração penal, deverão ser aplicadas algumas medidas: a prevenção primária, secundária e terciária.
Na prevenção primária, atinge-se a prevenção ao crime ao consubstanciar os direitos fundamentais, como de saúde, educação e segurança.
No instrumento da prevenção secundária, o foco será a aplicação de métodos e de programas de apoio e conscientização da população, que possam servir de forma a combater a reincidência no crime.
Por fim, a prevenção terciária se aplica aos detentos, através de programas que conscientizam e desencorajam o apenado a não reincidir no crime, um exemplo disto, é a obrigação de fazer serviços comunitários.
O grande problema enfrentado atualmente, é como gerir um sistema que possui tríplice finalidade de retribuir, reeducar e prevenir, de forma a aplicar o Estado Democrático do Direito a favor do apenado, de forma a desafogar a população carcerária e de forma a retribuir o agente pela prática do crime, de modo a evitar o ocasionamento do sentimento de impunidade perante o povo brasileiro.
7. DO SURGIMENTO DOS MANICÔMIOS JUDICIÁRIOS NO BRASIL
Sabe-se que no Direito Penal Brasileiro, existem alguns tipos de sanções penais, dentre elas: as penas privativas de liberdade (que podem ser substituídas por medidas de segurança), penas restritivas de direitos e multas. Essas sanções, conforme supramencionado no tópico ‘’6’’, possuem caráter retributivo, educativo e preventivo.
Durante muitas décadas, as pessoas que possuíssem algum tipo de transtorno mental, ao cometerem algum crime, se deparavam com um tratamento incongruente e antiquado, visto que muitas vezes eram levadas para a prisão comum ou eram entregues à sua família, como acontecia por exemplo, no código de 1890. Porém, essa realidade mudou quando outras ciências correlatas ao Direito, no caso a Psiquiatria e a Psicologia, foram inseridas no meio jurídico. A partir disso, se tornou mais plausível e mais palpável a adoção de um tratamento diferenciado para portadores de transtornos mentais.
Conforme Sérgio Carrara (Crime e Loucura, o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. p. 27), podemos dizer que o Manicômio Judiciário foi criado com a intenção de ser uma estrutura em que fosse possível os inimputáveis cumprirem sua pena e ao mesmo tempo receberem o tratamento adequado, levando em consideração que o espaço foi feito para ser um sistema prisional e penitenciário, mas ao mesmo tempo asilar e hospitalar.
Cumpre ressaltar que uma vez que a ciência como um todo está em constante evolução, as classificações das patologias e os tratamentos dados à essas pessoas, passaram a divergirem da classificação, visão e tratamentos que são oferecidos nos dias hodiernos. Posto isso, imagino que se até os dias atuais, é bastante comum vermos certas indagações que perpetuam na sociedade que levam à sensação de impunidade, quando tomam ciência de que o tratamento mais adequado a ser dado para um inimputável que cometeu um crime hediondo, é dentro de um sistema que envolve um tratamento multidisciplinar, dentro de um espaço que fosse possível oferecer esse tipo de cuidado. Isso acontece porque as pessoas que compõem a sociedade possuem a expectativa de que a pena que deverá ser dada para um agente que cometeu determinado crime, deverá ser uma pena tão grave a ponto de alcançar a retribuição moral que aquele agente tem perante a essa sociedade.
Não obstante, a criação do primeiro manicômio judiciário em 1921, através do decreto n° 14.831, na cidade do Rio de Janeiro, representa, portanto, uma evolução no modo de tratamento dessas pessoas. O grande problema enfrentado pelos detentos que algum dia encontraram-se na posição de internos dentro de um manicômio judiciário, é em relação ao procedimento adotado como recurso terapêutico, que diante de vários relatos, não podem e não devem ser menosprezados, sendo este, o fio condutor para a ascensão do movimento antimanicomial e de talvez, o desaparecimento desses hospitais psiquiátricos. Um desses relatos, por exemplo, está transcrito no livro ‘’Loucos ou Cruéis’’ (p. 143), da autora Ilana Casoy, em sua entrevista com Francisco da Costa Rocha, mais conhecido como ‘’Chico Picadinho’’, que relatou que durante todos os anos em que está internado no manicômio judiciário, não chegou a receber nenhum tratamento.
Acredita-se que o assassino Febrônio Índio do Brasil, foi o primeiro detento a receber o diagnóstico médico-legal de inimputável, por ter sido considerado, à época, portador de esquizofrenia, motivo pelo qual, futuramente, chegou a ser levado para o Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, onde permaneceu até a sua morte, no ano de 1984. (CASOY, Ilana. Loucos ou Cruéis, p. 18)
Dentre esses recursos que foram usados como tratamento, estão a prática da lobotomia e a utilização da técnica de eletroconvulsoterapia (Tratamento de Choque Elétrico), que foram amplamente empregues nos pacientes, e, segundo o médico psiquiatra José Gallucci Neto, em entrevista cedida para a Escola de Educação Permanente (EPP) no ano de 2022, a eletroconvulsoterapia é utilizada até os dias atuais, porém, com algumas condições, tal como o paciente deve estar sob anestesia geral de curta duração e com uso de relaxantes musculares.
Assim, nos deparamos com uma contradição, pois se de um lado houve uma evolução no pensamento de que o tratamento dado a pessoas com diagnóstico de transtorno mental deveriam ser atrelados a uma equipe multidisciplinar que pudessem oferecer melhoras significativas a esse paciente; de outro lado, os tratamentos empregados, principalmente nos anos passados, foram extremamente cruéis.
No ano de 2023, surgiu a Resolução do CNJ de n° 487, que possui como objetivo instituir a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelecer procedimentos e diretrizes para implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de forma que o tratamento ambulatorial será priorizado em detrimento de medida de internação (Art. 12), bem como que a imposição de medida de segurança de internação ou de internação provisória ocorrerá apenas em hipóteses absolutamente excepcionais (Art. 13). Outrossim, a previsão é de que até maio de 2024, todos os hospitais de custódia deverão ser fechados, levando-os à sua extinção por definitivo.
Conforme informado alhures, o presente Artigo faz parte de uma pesquisa maior que abordará a problemática de quais serão os efeitos imediatos da aplicação da Política Antimanicomial e da consequente extinção dos Hospitais de Custódia. Se olharmos sob o ponto de vista de que a criação dos Manicômios Judiciários foi um avanço na forma de enxergar os agentes que possuem transtorno mental, a sua extinção poderá não ser considerada uma solução, mas sim, um verdadeiro equívoco.
A ideia da extinção de um sistema em que não só seja aplicável, mas que seja possível o emprego de tratamentos – não cruéis – que irão de alguma forma ajudar, tratar, vigiar e punir, ao mesmo tempo, poderá se mostrar um grande retrocesso, com efeitos irremediáveis e imensuráveis.
8. CONCLUSÃO
Conforme apontado no decorrer desse artigo, o Brasil saiu de penas de morte, de degredo e de açoites, à Lei Antimanicomial, visando um tratamento mais adequado, justo e benéfico, que garanta em relação à saúde mental (pág. 17 – Lei Antimanicomial), para pessoas que possuem algum tipo de transtorno mental, envolvendo não apenas na garantia da correta aplicação das leis, mas a busca por meios alternativos de aplicar essas sanções, de forma que seja contributiva e ao mesmo tempo inclusiva.
Chegamos ao Século XXI com uma mentalidade impreterivelmente mais refinada e apurada, que inquestionavelmente acarretou em mudanças em todo o sistema processual penal e carcerário, bem como na prática para a composição de leis, tratados e resoluções, que tenham como objetivo a garantia de direitos para todos, sendo exatamente este o caso da Resolução do CNJ n° 487 de 2023.
Todos os relatos e acontecimentos notórios ao nosso conhecimento e com o advento da lei antimanicomial, culminaram em uma revisão que acarretará na abolição dos Hospitais de Custódia, fato este que poderá se mostrar um equívoco, que vem gerando uma grande inquietação não só nos operadores do Direito e da Saúde, como na sociedade em si, posto que a abolição desse sistema não significa a cessação da periculosidade dos indivíduos que estão inseridos neste sistema.
Portanto, não restam dúvidas de que esses indivíduos necessitam de cuidados especiais e de tratamento multidisciplinar, bem como de que é papel do Estado garantir a aplicação efetiva dessas medidas de forma mais humanizada possível, porém, não poderá ser desprezada e negligenciada a questão da periculosidade do agente, sobretudo quando passamos a analisar a probabilidade de reincidência no crime, que não deverá nem na mais remota hipótese, ser ignorada como uma possibilidade de ocorrência.
Por fim, igualmente não deverá ser desprezado ou esquecido os excessos que foram cometidos dentro dos manicômios judiciários, porém, a extinção desse sistema poderá se mostrar não ser a solução mais equilibrada. Parafraseando René Descartes, não existem soluções simples para problemas complexos, sendo assim, completamente compreensível a preocupação dos Operadores do Direito, da Saúde e do povo. À vista disso, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB) já emitiram notas contrárias à decisão do CNJ.
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1Acadêmica de Direito do Centro Universitário Unifafire, pesquisadora da área do movimento antimanicomial, pesquisadora colabora da pesquisa sobre Racismo Algorítmico, E-mail: claudiabaltar18@gmail.com