PSICOLOGIA POSITIVA: RESILIÊNCIA COMO VARIÁVEL NA VIOLÊNCIA CONTRA MULHER.

POSITIVE PSYCHOLOGY: RESILIENCE AS A VARIABLE IN VIOLENCE AGAINST WOMEN.

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202409061611


Ana Claudia Teixeira de Oliveira1


Resumo

O artigo explora o conceito de resiliência, tradicionalmente entendido como a capacidade de um material ou indivíduo retornar ao seu estado original após enfrentar adversidades. Essa ideia, aplicada como princípio de vida, nem sempre se mostra ideal em todas as situações. Embora a resiliência seja vista como uma adaptação positiva que permite às pessoas enfrentar desafios e se transformarem, o artigo adota uma perspectiva crítica, especialmente em contextos de violência doméstica. Nesses casos, a resiliência pode contribuir para a perpetuação de ciclos de abuso, particularmente em regiões onde a submissão feminina é incentivada socialmente. A resiliência, caracterizada por qualidades como perseverança e empatia, pode se tornar uma barreira à mudança necessária para romper padrões de violência. O texto sugere que, em situações adversas, a resiliência pode dificultar a flexibilidade e adaptação necessárias para superação. Em vez de simplesmente retornar ao “estado original,” o artigo propõe reconfigurar a resiliência à luz da Psicologia Positiva, que defende o desenvolvimento das forças de caráter para promover ações assertivas e emancipadoras. Assim, questiona se a visão tradicional de resiliência é sempre benéfica, ou se pode, em alguns casos, limitar o crescimento e a transformação pessoal.

Palavras-chave: Resiliência. Psicologia Positiva. Violência doméstica. Contexto social. Interseccionalidade

Abstract

The article explores the concept of resilience, traditionally understood as the ability of a material or individual to return to its original state after facing adversity. This idea, applied as a principle of life, is not always ideal in all situations. Although resilience is seen as a positive adaptation that allows people to face challenges and transform themselves, the article adopts a critical perspective, especially in contexts of domestic violence. In these cases, resilience can contribute to the perpetuation of cycles of abuse, particularly in regions where female submission is socially encouraged. Resilience, characterized by qualities such as perseverance and empathy, can become a barrier to the change necessary to break patterns of violence. The text suggests that, in adverse situations, resilience can hinder the flexibility and adaptation necessary to overcome them. Instead of simply returning to the “original state,” the article proposes to reconfigure resilience in the light of Positive Psychology, which advocates the development of character strengths to promote assertive and emancipatory actions. Therefore, it questions whether the traditional view of resilience is always beneficial, or whether it can, in some cases, limit personal growth and transformation.

Keywords: Positive Psychology. Domestic violence. Social Context. Intersectionality

1 INTRODUÇÃO

Mulher, Mulher, Mulher. (Canção de Neguinho da Beija-Flor,2009). Segundo Villela (2011) ser vítima de violência simplesmente por ser mulher, marcada socialmente pela percepção de subalternidade, é fenômeno social que requer reconhecimento como violação de direitos e exige transformação. Ignorar ou mostrar insensibilidade diante da dor da mulher é compactuar e participar desse processo de violência.

Para Netto (2014) mulheres que enfrentam condições de relacionamentos violentos acarretam uma série de consequências para sua saúde física e emocional incluindo distúrbio do sono, exaustão física, fadiga, problemas gastrointestinais, flutuações de peso entre emagrecimento e obesidade, dores generalizadas, síndrome do pânico e um aumento no consumo de medicamentos, particularmente antibióticos e anti-inflamatórios. Um leque de desafios emocionais como tristeza, desanimo, solidão, estresse, ódio, sentimentos de inutilidade, irritabilidade e dificuldades nos relacionamentos interpessoais também se acumulam nessa trajetória.

A mulher que se encontra em situação de violência doméstica deve ser vista em sua complexidade e historicidade. Somente no ano de 2022, segundo estudo do Instituto de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, foram contabilizados 91.301 registros de ocorrências. Esse total foi superior aos números contabilizados em 2019 (90.232) – ano que antecedeu a pandemia da Covid-19.  Dentre esses registros em 2022, 20.830 relataram violência simultânea, em destaque ficou a combinação das violências psicológicas e moral. Esses dados mostram que, além de cíclicas, muitas vezes as agressões estão associadas. 

A Psicologia Positiva vem oferecer uma perspectiva onde podemos examinar não apenas os desafios enfrentados por mulheres vítimas de violência doméstica, mas as forças internas existentes que forneçam estratégias de enfretamento de suas realidades desafiadoras. Tendo como foco a resiliência, a Psicologia Positiva pode apresentar através da sua abordagem um cenário mais profundo dessa caraterística como ferramenta de enfretamento e superação das experiências traumáticas vividas.

Diante do exposto, trata-se de uma pesquisa bibliográfica apresentando abordagem da Psicologia Positiva, o conceito de resiliência e essa força como um fator interveniente na condição de mulheres vítimas de violência doméstica.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA OU REVISÃO DA LITERATURA

2.1 O SURGIMENTO DA ABORDAGEM DA PSICOLOGIA POSITIVA

Questionar ou focar em pontos negativos é acostumar o indivíduo a direcionar o seu olhar sempre para o que é desfavorável em sua vida. Porém trazer luz para os pontos mais positivos traz outra perspectiva sobre a mesma situação.

A Psicologia Positiva se apresenta como uma abordagem que estuda as qualidades dos indivíduos e como elas aplicam em suas vidas, promovendo bem-estar e qualidade de vida. Não é uma abordagem Poliana, e sim uma abordagem que foca em prevenção e blindagem. Essa abordagem vem chamando ocupando os bancos acadêmicos como uma disciplina cientifica que vem como mais uma ferramenta para compor com as abordagens existentes da Psicologia.

Para Seligman (2011) a Psicologia Positiva é um movimento científico que estuda os fundamentos psicológicos do bem-estar e da felicidade, focando nos pontos fortes e virtudes humanas. Os pilares dessa abordagem são: 1) o nível básico ou subjetivo, que diz respeito ao estudo dos elementos da felicidade, bem-estar e outros construtos relacionados; 2) o nível individual, que diz respeito a traços e características individuais positivas; e 3) o nível grupal, que se refere a virtudes cívicas e instituições com características e traços de funcionamento positivos, que induzem os indivíduos à felicidade. (Giacomoni, 2002; Rodrigues,2010; Seligman, 2004; Seligman & Csikszentmihalyi, 2000).

A Psicologia tem uma evolução entre 1939 e 1945, com o advento da Segunda Guerra Mundial, a marcas psicológicas deixadas exigiam um entendimento das sequelas por ela deixada e de como isso iria impactar o mercado de trabalho. Tendo um cenário propicio para o desenvolvimento da Psicologia Positiva. (Seligman, 2004; Seligman & Csikszentmihalyi, 2000).

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Organização Mundial da Saúde anuncia um novo modelo biopsicossocial, com uma reformulação de conceito de saúde, ao contrário ao modelo biomédico vigente da época. O novo modelo tinha uma visão holística e dessa forma englobava também aspectos relacionados a qualidade de vida (WHO,1947). Mas, somente no final da década de 90 que tivemos no movimento de mudança da saúde uma ênfase que começou a mexer com a disciplina da psicologia tendo como representante Martin Seligman, que nesta época presidia a American Psychological Association (APA). (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000; Paludo, & Koller, 2007).

Seligman (2002) entendia que a Psicologia Positiva partia do pressuposto que o indivíduo tinha características internas para evitar disfunções psicológicas e dessa forma focou em desenvolver estudos nesta vertente tendo como base algumas temáticas entre elas a resiliência, otimismo, emoções positivas, experiências em que a pessoa fica imersa em sua atividade, deixando o restante de lado, ou seja, flow. Mas, priorizando o tema priori da Psicologia Positiva que é o bem-estar. (Seligman, 2011).

Giacomoni (1997), afirma que o termo bem-estar passar a ser centro das atenções no momento na comunidade acadêmica volta seus estudos para as questões sociais e tentam sistematizar a felicidade e entendem o termo como um construto subjetivo. Atualmente correntes de teóricos têm colocado em debate a correlação do bem-estar e hedonismo, que seria mais comumente associado ao filósofo utilitarista Jeremy Bentham, sugere que as pessoas tendem a buscar o prazer e evitar a dor em suas vidas diárias, independentemente das considerações morais. Isso significa que, de acordo com essa visão, as pessoas naturalmente buscam maximizar o prazer e minimizar o sofrimento em suas experiências. (Seligman, 2004, 2011).

Seligman (2011) utilizando a abordagem da Psicologia Positiva revisita o conceito de bem-estar e passa relacionar ele a partir de cinco elementos: emoções positivas, engajamento, sentido, realização e relacionamentos positivos. No contexto brasileiro, na década de 90, um estudo que investigava a resiliência em crianças em situação de risco, buscava fatores de proteção e caraterísticas preservados nesta amostra, foi quando a Psicologia Positiva começa despontar em cenário brasileiro. (Hutz, Koller, & Bandeira, 1996). O cenário brasileiro contribuiu com as suas vulnerabilidades e situações de riscos estimulava os pesquisadores a desenvolverem estudos sobretudo com temáticas voltadas para resiliência que tem como por definição a capacidade de se moldar as adversidades. (Sapienza & Pedromônico, 2005; Souza & Cerveny, 2006). Tivemos um avanço importante em 2010, com a criação da Associação de Psicologia Positiva da América Latina (APPAL).

2.2 O CONCEITO DE RESILIÊNCIA

Uma pessoa em situação de vulnerabilidade nos remete a alguém que está em perigo ou possivelmente inserido em contextos de fragilidade emocional e/ou social em diversas áreas da vida. É comum associarmos o atributo da resiliência àqueles que enfrentam tais situações e conseguem manter um semblante positivo.

A Psicologia Positiva, por meio de suas investigações, direcionou a atenção para uma abordagem mais abrangente, que não se limita apenas às questões disfuncionais do comportamento humano. Em vez disso, prioriza o fortalecimento dos pontos positivos existentes, que muitas vezes são subutilizados ou pouco desenvolvidos (Selligman,2022). A pesquisa focada nos aspectos positivos impulsionou o interesse e os estudos sobre a resiliência, explorando como essa capacidade pode servir como uma ferramenta de proteção.

Segundo Rutter (1987), os fatores de proteção exercem seu efeito apenas na presença de um fator de risco. Em outras palavras, as populações que não estão expostas a potenciais fatores de risco só vão mobilizar os fatores protetores quando pelo menos um fator de risco estiver presente. Ao longo de nossa formação na Educação Básica, o termo resiliência é frequentemente introduzido em disciplinas como física, onde descreve, em linhas gerais, a capacidade de um material de retornar à sua forma original após ter sido exposto a grandes pressões ou submetido a condições adversas. (Assis e cols., 2006).

Com a resiliência sendo originalmente uma característica associada a disciplinas das áreas exatas, a Psicologia passou a enquadrar esse termo a partir de 1970, influenciada por demandas históricas e socioculturais. Nesse período, com a quebra de paradigmas e o surgimento de novas abordagens, aquilo que antes era predominantemente abordado como enfoque de risco começou a ser reconhecido como enfoque de resiliência. 

Munist e cols. (1998), afirma que o enfoque de risco se preocupa com a doença, sintoma e nível de dano biológico ou social. No enfoque da resiliência indica que as influências negativas, manifestadas por meio de danos ou riscos, não são necessariamente determinantes de danos permanentes em uma criança passiva. A presença de fatores de proteção pode contribuir para explicar por que alguns indivíduos conseguem lidar de forma mais eficaz com eventos adversos da vida do que outras.

Para alcançar uma compreensão amplamente aceita do conceito de resiliência, conforme definido pela Psicologia, neste estudo optamos por adotar o seguinte conceito: González & Valdez, (2011); Hjemdal, Friburgo, Stiles, Rosenvinge & Martinussen, (2006), em sua essência, a resiliência pode ser interpretada como um processo dinâmico no qual o indivíduo confronta uma situação adversa. Nesse processo, os recursos internos e externos interagem para possibilitar que o indivíduo se adapte com sucesso à adversidade.  

De acordo com Gomes et al. (2005), um contexto complexo e interativo, composto por pessoas, objetos, valores, significados, história e tempo, bem como a interação desses elementos com o indivíduo, favorece a formação de padrões de comportamento que respondem às situações vivenciadas. Esses padrões podem influenciar a construção da resiliência e acompanhar todo o processo de desenvolvimento.

2.3 CONDIÇÃO DA MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Nos meus hábitos matinais, estabelecidos desde o início da pandemia de Covid-19, costumava evitar a leitura de notícias logo cedo. No entanto, decidi me informar sobre os acontecimentos recentes no meu estado (Rio de Janeiro). Foi então que, em uma reportagem, um nome familiar chamou minha atenção: no último dia 22 de abril de 2024, mais um caso de feminicídio ocorreu, envolvendo alguém que eu conhecia. Esse acontecimento gerou uma série de questionamentos, sendo um deles especialmente persistente: como essa pessoa se envolveu nessa situação? 

A reportagem destacou que um familiar mencionou o histórico de depressão da vítima desde o falecimento de seus pais, ocorrido há dois anos. Apesar de estar financeiramente estável, ter sucesso na carreira e contar com uma rede de amigos, a vítima enfrentava desafios emocionais significativos. Mesmo tendo afastado o suspeito do crime por meio de uma medida protetiva anteriormente, a vítima decidiu reatar o relacionamento com ele.

Historicamente, as mulheres têm sido alvo de várias formas de violência, abrangendo desde o âmbito social até o físico e emocional. Contudo, ao abordamos o tema da violência doméstica contra mulheres, é comum identificarmos os agressores como membros da família ou pessoas com vínculos afetivos, em contextos em que existe um cenário abusivo e uma desigualdade. É importante destacar que esse tipo de violência não se limita a agressores do sexo masculino; mulheres também cometem atos de violência contra outras mulheres.

Caravantes (2000, p.229), sinaliza que a violência intrafamiliar pode ser definida como qualquer ação ou omissão que cause danos físico, sexual, emocional, social ou patrimonial a um indivíduo, ocorrendo dentro do contexto de um vínculo familiar ou íntimo entre a vítima e seu agressor. Para o Ministério da Saúde e pesquisadores que se dedicam a esse tema, a violência doméstica pode ser categorizada em diferentes tipos:

  • A violência física ocorre quando uma pessoa causa ou tenta causar danos por meio de força física ou utilizando algum tipo de arma ou instrumento que pode resultar em lesões internas (como hemorragias e fraturas) ou externas (como cortes, hematomas e feridas).
  • Violência sexual é caracterizada por qualquer ação na qual uma pessoa, em posição de poder, coage outra a participar de práticas sexuais contra sua vontade. Isso pode ocorrer por meio de força física, influência psicológica (como intimidação, aliciamento ou sedução) ou pelo uso de armas ou drogas.
  • Negligência é caracterizada pela falha de um ou mais membros da família em cumprir suas responsabilidades em relação a outros membros, especialmente aqueles que necessitam de assistência devido à idade avançada ou a alguma condição específica, seja ela permanente ou temporária.
  • A violência psicológica abrange toda ação ou omissão destinada a causar danos à autoestima, identidade ou desenvolvimento de uma pessoa. Essa forma de violência inclui ameaças, humilhações, chantagens, pressões comportamentais, discriminação, exploração, críticas relacionadas ao desempenho sexual, restrições à liberdade de movimento, provocando o isolamento de amigos e familiares, ou impedindo o uso do próprio dinheiro. Apesar de ser uma das formas mais comuns de violência, é também a mais difícil de identificar. Os efeitos dessa violência podem resultar em sentimentos de desvalorização, ansiedade e suscetibilidade a doenças, prolongando-se por longos períodos e, em casos graves, podendo levar à contemplação do suicídio. (Brasil, 2001)

Este estudo propõe um recorte da violência doméstica, com foco na violência psicológica, a fim de investigar se a resiliência desempenha um papel como variável protetora para mulheres vítimas desse tipo de violência. De acordo com Morgado (2011), ao longo dos anos, é notório que a autoestima é uma das áreas mais frequentemente afetadas na vida dessas mulheres.

A violência psicológica ou mental pode incluir uma série de comportamentos, tais como ofensas verbais repetidas e reclusão ou privação de recursos materiais, financeiros e pessoais. Para muitas mulheres, as agressões verbais constantes e a tirania representam uma forma de violência emocional tão prejudicial quanto a violência física, pois minam a autoestima, a segurança e a confiança em si mesmas. Um único episódio de violência física pode intensificar o impacto e o significado da violência psicológica. O aspecto mais debilitante da violência psicológica não é a própria violência, mas sim a tortura mental e a convivência com o medo e o terror. (OMS, 1998).

O ciclo da violência começa de maneira gradual e insidiosa, avançando em intensidade e consequências ao longo do tempo. O agressor frequentemente não recorre inicialmente à violência física, mas sim limita a liberdade individual da vítima e a submete a humilhações e constrangimentos. Assim, antes de agredi-la fisicamente, busca minar sua autoestima, a fim de que ela passe a tolerar as agressões físicas. Portanto, é comum que a violência psicológica preceda a violência física. As mulheres vítimas de agressão tendem a aceitar e justificar as atitudes do agressor, adiando a expressão de suas angústias até que a situação se torne insustentável. O comportamento adotado pela mulher vítima de violência doméstica, em muitos casos, é rotulado como resiliência. Será que é esse atributo que a faz permanecer submissa a essa condição? O contexto sociocognitivo pode ter contribuído para a falta de desenvolvimento ou mesmo para o aumento da resiliência, levando a vítima a permanecer nessa situação?

Conforme expresso por Assis, Pesce e Avanci (2006), a resiliência pode ser vista como a habilidade de transformar as adversidades da vida. Considerar como as mulheres vítimas de violência doméstica poderiam utilizar a resiliência de forma eficaz para superar desafios, assimilar novos aprendizados e encontrar novos significados pode ser uma variável crucial na construção de mulheres capazes de se reerguer e romper o ciclo de violência.

2.4 – INTERSECCIONALIDADE – MULHER NO BRASIL 

O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam) de 2024 reflete o firme compromisso do Brasil com as metas estabelecidas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Um dos principais enfoques deste relatório é a questão da violência doméstica, em consonância com a meta 16.1 dos ODS, que visa reduzir significativamente todas as formas de violência e as taxas de mortalidade relacionadas, em todos os lugares.

No contexto brasileiro, a meta 16.1 desdobra-se no objetivo específico de reduzir em 1/3 as taxas de feminicídio e homicídios de crianças, adolescentes, jovens, negros, indígenas, mulheres e membros da comunidade LGBT. Essa abordagem abrangente visa combater a violência em todas as suas manifestações e proteger os grupos mais vulneráveis da sociedade.

No Brasil, em 2022, ocorreram agressões físicas ou verbais contra 35 mulheres por minuto. Um total de 28,9% (equivalente a 18,6 milhões de mulheres) relataram ter sido vítimas de algum tipo de violência ou agressão, representando o maior percentual da série histórica do levantamento. A cada minuto, 14 mulheres foram agredidas com tapas, socos ou chutes, enquanto quase 6 milhões sofreram ofensas sexuais ou tentativas forçadas de manter relações sexuais. O equivalente a quase 51 mil mulheres enfrentou violência diariamente em 2022, o que é comparável a um estádio de futebol lotado. Em média, as mulheres sofreram quatro agressões no período, sendo que entre as divorciadas, a média aumenta para nove agressões. Surpreendentemente, 45% das mulheres vítimas de violência não tomaram nenhuma medida após o episódio mais grave. Quanto ao perfil das mulheres vítimas, 65,6% são negras, 30,3% têm entre 16 e 34 anos, e mais de 50% residem em cidades do interior.

A violência doméstica é um fenômeno histórico e estrutural que afeta mulheres de diversas realidades, manifestando-se sistematicamente na sociedade. Embora independa de raça, classe social, orientação sexual e identidade de gênero, ela se apresenta de forma única de acordo com o contexto de cada mulher. Um exemplo disso é o Atlas da Violência de 2020, que revelou um aumento de 12,4% nos homicídios contra mulheres negras entre 2008 e 2020. Esse aumento é alarmante, considerando que as mulheres negras representam 68% dos casos, evidenciando um histórico de violência persistente contra esse segmento significativo da população.

O Raseam (2024), por meio de sua pesquisa, destaca uma disparidade no que diz respeito ao recorte racial. Em 2022, o número de assassinatos de mulheres pretas e pardas foi significativamente superior ao de mulheres brancas, representando 66,7% do total de assassinatos de mulheres.

Os estudos sobre interseccionalidade ganharam destaque com as formulações feministas de Crenshaw nas décadas de 1970 e 1980. Foi no final da década de 1980 que Kimberlé Crenshaw introduziu o termo “interseccionalidade” no contexto jurídico e intelectual dos Estados Unidos. No entanto, apenas nos últimos anos é que o termo se consolidou e passou a ser amplamente difundido no Brasi (Casemiro, D. M. F.; Silva, N. L. e, 2021). 

A interseccionalidade é conceituada como a capacidade de capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação, indo além das questões que tradicionalmente focavam apenas no gênero. A abordagem da interseccionalidade propõe que a mulher seja compreendida levando sempre em consideração todas as outras características que a atravessam. Dessa forma, reconhecemos que as experiências e lutas das mulheres negras, pessoas com deficiência, indígenas, LGBTQIAP+, mulheres acima dos 50 anos, e de diversas outras identidades, são distintas entre si.

As mulheres brasileiras enfrentam uma variedade de cenários, muitas vezes encontrando-se em situações de subalternidade que as tornam mais vulneráveis do que deveriam ser. Melkevik (2017), afirma que a sociedade frequentemente constrói armadilhas, obstáculos e barreiras que dificultam a inclusão social dessas mulheres. Nesse contexto, a vulnerabilidade assume um papel crucial, gerando uma espécie de invisibilidade social, na qual a pessoa deixa de ser protagonista e passa a ser alvo de conceitos preconceituosos sobre sua posição no mundo.

Uma das principais barreiras enfrentadas pelas mulheres que são vítimas de violência é a dificuldade em falar sobre sua situação e em reconhecer os comportamentos que constituem violência doméstica. Essa falta de consciência pode levar a buscar ajuda tardiamente, o que dificulta a interrupção dos ciclos de violência contínua. Infelizmente, muitas vezes, a mudança só é impulsionada quando as agressões se intensificam, tornando-se um fator crítico para a busca de auxílio. Segundo Porto, Bispo e Lima (2014), a condição social e econômica são fatores que contribuem para a dependência emocional, afetiva e financeira das mulheres brasileiras em relação a seus parceiros. 

As vítimas nem sempre reconhecem os comportamentos abusivos, o que leva a uma tolerância e justificativa das agressões, interpretadas erroneamente como tentativas de educar, estabelecer limites, demonstrar afeto ou atribuídas ao estado alcoólico ou estresse do agressor.

Essa percepção distorcida e a habilidade de lidar com várias formas de violência, bem como a capacidade de antecipar eventos violentos, são resultado de um conjunto de aprendizados e comportamentos adquiridos para lidar com pressões externas. Nesse contexto, a sociedade muitas vezes espera que as vítimas demonstrem uma grande dose de resiliência.

A maneira encontrada por essas vítimas conforme observado por Madureira et al. (2014), estão intimamente ligadas às suas características psicológicas, crenças e valores culturais e existenciais. Como recursos emocionais e espirituais, quanto dos recursos sociais e materiais disponíveis, como redes de apoio.

3 METODOLOGIA 

A pesquisa bibliográfica é uma metodologia que se baseia na análise de obras já publicadas, como livros, artigos científicos, teses, dissertações e relatórios técnicos. Essa abordagem permite uma ampla coleta de informações e análises críticas sobre o tema de estudo, contribuindo para a fundamentação teórica da pesquisa.

Para garantir a qualidade e relevância dos dados obtidos, foi realizada uma cuidadosa seleção de fontes bibliográficas. Foram consultadas bases de dados acadêmicas reconhecidas, como PubMed, PePsic, Scielo, Scopus e Web of Science, além de bibliotecas virtuais de universidades e instituições de pesquisa. Além disso, foram utilizados livros e periódicos de editoras e revistas científicas renomadas na área de estudo. Para selecionar as fontes bibliográficas, definimos critérios de inclusão e exclusão. Optamos por obras que abordassem de maneira relevante e atualizada os temas de violência doméstica, Psicologia Positiva, Resiliência e interseccionalidade. A escolha foi pautada na qualidade e pertinência do conteúdo para a pesquisa em questão.

O processo de análise e síntese dos dados consistiu na leitura crítica e na interpretação dos conteúdos encontrados nas fontes bibliográficas selecionadas. Foram identificados conceitos-chave, teorias e evidências relevantes para o desenvolvimento do estudo. Os dados foram organizados e categorizados de acordo com os objetivos da pesquisa, possibilitando uma compreensão inicial do tema.

4 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito desta pesquisa é explorar a resiliência como uma variável relevante no contexto das mulheres que enfrentam violência doméstica. Durante a revisão da literatura, observamos que há divergências de opinião quanto à associação exclusiva da resiliência a fatores psicológicos. Identificamos uma conexão significativa entre a resiliência e o ambiente em que a vítima está inserida, bem como sua posição na sociedade.

Partindo da premissa de que a resiliência é uma habilidade desenvolvida por meio de processos sociais que envolvem situações desafiadoras, é importante considerar que esses desafios podem ser motivados por uma variedade de fatores (genético, psíquico, cultural, emocional, cognitivo, financeiro e social).

Na cultura japonesa, o bambu é admirado pela sua capacidade de se curvar suavemente diante do mais leve sopro de vento, apesar de suas raízes fortes. Uma vez crescida, torna-se incrivelmente difícil arrancá-lo do solo. Durante os invernos rigorosos, os bambus podem se curvar sob o peso da neve por um longo período. No entanto, assim que a neve se acumula ou derrete, o bambu retorna à sua posição original como se nada tivesse ocorrido. Essa planta, ao se dobrar diante do vento, é vista como um símbolo de aprendizado sobre tolerância, flexibilidade e autocompaixão. Considerando isso, podemos questionar se as mulheres que demonstram resiliência disfuncional são semelhantes ao bambu. Após passarem por múltiplos ciclos de violência, permanecem nesse cenário acreditando que é uma jornada de superação?

Esta pesquisa suscita questionamentos sobre a violência contra as mulheres em um contexto psicológico, destacando a importância de desenvolver uma resiliência funcional. Além disso, evidencia a relação entre a resiliência e as desigualdades que devem ser consideradas para uma compreensão mais abrangente da resiliência como uma variável no enfrentamento das mulheres vítimas de violência doméstica.

REFERÊNCIAS

Assis, S. G., Pesce, R. P., & Avanci, J. Q. (2006). Resiliência: Enfatizando a proteção dos adolescentes. Porto Alegre: Artes Médicas.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para a prática em serviço. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. (Caderno de Atenção Básica, 8)

Brasil. Ministério das Mulheres. Relatório Anual Socioeconômico da Mulher. 1ª Impressão. Brasília: Ministério das Mulheres Abril, 2024, P. 468.

Cara vantes, L. Violência intrafamiliar en la reforma del sector salud. In: COSTA, A.M.; MERCHÁN-HAMANN, E.; TAJER, D. (Orgs.). Saúde, eqüidade e gênero: um desafio para as políticas públicas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p.18.

Casemiro, D. M. F.; SILVA, N. L. e . Teorias interseccionais brasileiras: precoces e inominadas. Revista de Ciências do Estado, Belo Horizonte, v. 6, n. 2, p. 1–28, 2021. DOI: 10.35699/2525-8036.2021.33357. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revice/article/view/e33357. Acesso em: 26 abr. 2024.

Dossiê Mulher 2022 [livro eletrônico] / elaboração Elisângela Oliveira…[et al.]. — 17. ed. — Rio de Janeiro, RJ: Instituto de Segurança Pública, 2022. — (Série estudos; 2)

Giacomoni & Hutz, C. S (1997). A mensuração do bem-estar subjetivo: escala de afeto positivo e negativo e escala de satisfação de vida [Resumos]. Em sociedade Interamericana de Psicologia (org.), Anais XXVI Congresso Interamericano de Psicologia (p. 313). São Paulo, SP: SIP Disponível em: https://scirp.org/reference/ReferencesPapers?ReferenceID=1160105 Acesso: 31 MAR. 2024. 

Gomes, M. C, C., Bastos, A. C. de S., & Rabinovich, E. P. (2005). A resiliência em mulheres de um bairro popular de Salvador, Bahia: recursos pessoais e contextuais. Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano, 16(3), 49-56.

González, N. & Valdez, J. (2011). Resiliência e personalidade em adultos. Revista Eletrônica de Psicologia Iztacala , 14, 295-316. Disponível em: https://www.revistas.unam.mx/index.php/repi/article/view/28907 Acesso: 24 ABR. 2024.

Hjemdal, O., Friburgo, O., Stiles, T., Rosenvinge, J., & Martinussen, M. (2006). Resiliência prevendo sintomas psiquiátricos: um estudo prospectivo de fatores de proteção e seu papel no ajuste a eventos estressantes da vida . Psicologia Clínica e Psicoterapia , 13 , 194–201. Disponível em:   https://doi.org/10.1002/cpp.488. Acesso: 24 ABR. 2024.

Hooks b. Vivendo de Amor. Portal Geledés. 2010. Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/. Acesso: 30 MAR. 2024

Hutz, C. S., Koller, S., & Bandeira, D. R. (1996). Resiliência e vulnerabilidade em crianças em situação de risco. Coletâneas da ANPEPP, 1(12), 79-86. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psilat/n32/a05n32.pdf. Acesso: 31 MAR. 2024

Madureira, A. B., Raimondo, M. L., Ferraz, M. I. R., Marcovicz, G. V., Labronici, L. M. & Mantovani, M. F. (2014). Perfil de homens autores de violência contra mulheres detidos em flagrante: Contribuições para o enfrentamento. Escola Anna Nery, 18(4), 600-606. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ean/a/jYG3vKc6tRx8dtGstt3spmB/?lang=en.  Acesso: 29 ABR. 2024.

Melkevik, Bjarne. Vulnerabilidade, direito e autonomia. Um ensaio sobre o sujeito de direito. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 71, p. 641/673, julho/dezembro, 2017. Disponível em: https://www.direito.ufmg.br/revista. Acesso: 26 ABR. 2024

Morgado, R. (2011). Mulheres em situação de violência doméstica: limites e possibilidades de enfrentamento. In H. S. Gonçalves & E. P. Brandão (Orgs.), Psicologia Jurídica no Brasil (3a ed., pp. 253-282). Rio de Janeiro: Editora Nau.

Munist, M., Santos, H., Kotliarenco, M. A., Ojeda, E. N. S., Infante, F., & Grotberg, E. (1998). Manual de identificación e promoción de la resiliencia [Versão eletrônica]. Washington, DC: Organización 

Odalia, N. (2012). O que é violência (6a ed.). São Paulo: Brasiliense.

OMS. Organização Mundial de Saúde. Organização Pan-Americana de Saúde.La unidad de salud de la mujer de la OMS (WHD). Violência contra la mujer: un tema de salud prioritario. Ginebra, 1998. (Sexta Sesión Plenaria, 25 de mayo de 1996. Junio 1998 – A 49vr-6).Panamericana de la salud. Disponível: file:///C:/Users/klaud/Downloads/Manual_de_identificacion_y_promocion_de.pdf. Recuperado em 24 abril 2024

Porto, R. T. S., Bispo J. J. P. & Lima, E. C. (2014). Violência doméstica e sexual no âmbito da estratégia de saúde da família: Atuação profissional e barreiras para o enfrentamento. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/YkkKyrNL9J4Q7pYrhtDyv5j/?lang=pt. Acesso: 29 ABR. 2024

NETTO, A et al. Violência contra a mulher e suas consequências. Online Acta paul. enferm.; 27(5):458-464, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-0194201400075. Acesso: 30 MAR. 2024.

Paludo, S. S. & Koller, S. H. (2007) Psicologia Positiva: uma nova abordagem para antigas questões. Paidéia, 17(36), 9-20. Disponível em: DOI: http:// dx.doi.org/10.1590/S0103863X2007000100002. Acesso: 31 MAR. 2024.

Rutter, M. (1987). Psychosocial resilience and protective mechanisms. American Journal of Orthopsychiatric, 57, 316-331.

Seligman, M. E. P. (2004) Felicidade Autêntica. Rio de Janeiro: Objetiva. 

Seligman, M. E. P. (2011) O que é bem-estar? In Seligman, M. E. P. Florescer. Rio de Janeiro: Objetiva.

Seligman, MEP e Csikszentmihalyi, M. (2000). Psicologia positiva: uma introdução. Psicólogo Americano, 55 (1), 5–14. Acesso: 31 MAR. 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1037/0003-066X.55.1.5

Sapienza, G., & Pedromônico, M. R. M. (2005). Risco, proteção e resiliência no desenvolvimento da criança e do adolescente. Psicologia em Estudo, 10(2), 209-216. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pee/a/zTQBFjRkYJPyDbhYqyp5xWP/?format=pdf&lang=ptSouza. Acesso: 31 MAR. 2024.

M. T. S. de, & Cerveny, C. M. de O. (2006). Resiliência Psicológica: Revisão da Literatura e Análise da Produção Científica. Revista Interamericana de Psicologia, 40(1) 119-126. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pee/a/zTQBFjRkYJPyDbhYqyp5xWP/?format=pdf&lang=pt. Acesso: 31 MAR. 2024.

Villela, W et al. Ambiguidades e contradições no atendimento de mulheres que sofrem violência. Saúde soc., São Paulo, v. 20, n. 1, p. 113-123, Mar. 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902011000100014. Acesso: 30 MAR. 2024.

Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil – 4ª edição – 2023 Samira Bueno, Juliana Martins, Juliana Brandão, Isabela Sobral, Amanda Lagreca Ilustrações: Lais Oliveira – Diagramação: Oficina22.


1Psicóloga – CRP 05/77947 – e-mail: anaoliveira.psico05@gmail.com