REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10117078
Andressa Camila Rodrigues de Lima1
RESUMO
O presente artigo visa abordar a problemática que envolve a crescente incumbência do poder judiciário em decisões que atingem toda a população, sob a ótica da crise democrática. A partir de críticas e argumentos favoráveis, advindos de doutrinas que perpetuam ideias sobre o tema, busca-se analisar se o poder absoluto assumido pelo judiciário perante a Constituição é causa da crise democrática, marcada pela deslegitimação de instituições. Por outro lado, discutir se a solução aos problemas que envolvem as deficiências provenientes da concepção sobre a maioria está nas “mãos” do judiciário. A pesquisa constituiu-se qualitativa, partindo de uma abordagem dedutiva. Em suma, os meios utilizados envolvem as ideias de pensadores constitucionalistas sobre o papel do ativismo judicial e os limites e liberdades conferidas ao poder judiciário, definidos ao longo da história constitucional. Aponta-se o pensamento de Pierre Rosavallon, Jeremy Waldron, Luís Roberto Barroso, entre outros. Com tais escopos e instrumentos, o debate situa-se no surgimento do ativismo judicial, o protagonismo assumido pelo poder judiciário neste século, a apresentação da crise democrática e os entraves na busca pela imparcialidade em contraste com a política. Em seguida, o judiciário ora é apontando como uma das causas da crise na democracia, ora é solução para essa problemática. Ao final, aborda-se o papel do poder judiciário perante a democracia, evidenciando a necessidade de imposição de limites, sem excluir a função ativista do judiciário.
Palavras-chaves: Crise Democrática; Poder Judiciário; Legitimação.
ABSTRACT
This article aims to address the issue that involves the growing role of the judiciary in decisions that affect the entire population, from the perspective of the democratic crisis. Based on criticisms and favorable arguments, arising from doctrines that perpetuate ideas on the subject, we seek to analyze whether the absolute power assumed by the judiciary before the Constitution is the cause of the democratic crisis, marked by the delegitimization of institutions. On the other hand, to discuss whether the solution to the problems that involve the deficiencies arising from the conception of the majority is in the “hands” of the judiciary. The research was qualitative, starting from a deductive approach. In short, the means used involve the ideas of constitutionalist thinkers about the role of judicial activism and the limits and freedoms conferred on the judiciary, defined throughout constitutional history. The thought of Pierre Rosavallon, Jeremy Waldron, Luís Roberto Barroso, among others, is pointed out. With such scopes and instruments, the debate is located in the emergence of judicial activism, the protagonism assumed by the judiciary in this century, the presentation of the democratic crisis and the obstacles in the search for impartiality in contrast to politics. Then, the judiciary is sometimes pointing out as one of the causes of the crisis in democracy, sometimes as a solution to this problem. At the end, the role of the judiciary in democracy is discussed, highlighting the need to impose limits, without excluding the activist function of the judiciary.
Keywords: Democratic Crisis; Judicial power; Legitimation.
1 INTRODUÇÃO
A Sociedade é mutável, do mesmo modo, as necessidades da população também se modificam com o passar do tempo. Por isso, é preciso que a política seja constantemente estudada com o fim de alcançar essas alterações.
Nesse sentido, a história da Constituição é tida, em boa parte, como uma luta do povo contra governos despóticos e a busca por voz nas decisões estatais. A participação política conferida pelo regime de governo democrático foi suficiente para concretizar a vontade do povo, mas não por muito tempo. A tentativa de incluir o povo na política é uma discussão mais profunda.
Com isso, a convivência com a democracia se torna mais complexa. Ao passo que a representação não é mais capaz de sequer simbolizar a vontade de um povo. Nesse ponto, a democracia como governo do povo é desconstruída e evidencia-se a crise democrática, que surge a partir da deslegitimação conferida aos representantes eleitos.
Isso porque o parlamento tem se mostrado incapaz de assumir o posto de representante.
Há lacunas e omissões legislativas que ultrapassam décadas. Nesse viés, nasce um “novo poder” dentro do poder judiciário, aquele que preenche os vazios políticos deixados pelo poder legislativo.
Não é por menos. Não há nada que possa o poder executivo fazer pelo povo nessa conjuntura. Afinal, se um número maior de representantes não é capaz de dar voz ao povo, tampouco o membro único do presidencialismo. É justamente nesse quadro que o poder judiciário alimenta o poder de tomar decisões políticas por intermédio de decisões judiciais. O motivo, parece claro, há uma fuga do poder legislativo em cumprir seu próprio papel. O poder judiciário, em consequência, é provocado a solucionar questões cruciais que envolvem o povo, atividade que é vista, por vezes, como antidemocrática.
Nesse contexto, é preciso abordar como se situa o poder judiciário nessas circunstâncias. De um lado, tem-se críticas indicando uma verdadeira usurpação de poder, compreendida em análise ao ativismo judicial e, de outro, um poder visto como único apto a decidir questões das quais a política foge ao debate.
Esse tema é constate, é preciso situar o papel do poder judiciário nessa conjuntura. Debates como esse, igualmente, devem ser permanentes. Isso porque todos os dias a sociedade evolui e questões complexas surgem.
Qual poder afinal deve dar a palavra final em tais assuntos? Existe uma usurpação do poder constitucionalmente conferido ao parlamento quando o judiciário decide questões cruciais ao meio social? O protagonismo do poder judiciário é causa ou solução à crise democrática?
O objetivo central do trabalho, então, é discutir se o papel assumido pelo poder judiciário em seu ativismo é uma causa ou uma solução aos problemas enfrentados pela democrática, especificamente a partir da análise do processo de perda da legitimidade dos representantes eleitos; os prejuízos e benefícios decorrentes da atuação do judiciário, assim como se a intervenção política desses órgãos é adequada e justificada em sua imparcialidade.
É preciso pontuar que para todas essas questões surgem outras indagações, busca-se, portanto, pormenorizar a problemática. Para isso, a revisão literária de autores críticos do ativismo judicial, bem como daqueles que apontam o protagonismo judicial como essencial para o alcance da democracia, são instrumentos para o debate.
2 O SURGIMENTO DO ATIVISMO JUDICIAL
O termo “ativismo judicial” é apenas um dos que são utilizados para designar as decisões judiciais em que a função legislativa é empregada pelos magistrados. A designação busca conceituar situações em que o poder judiciário, no caso concreto, define situações sobre as quais a lei é silente.
De acordo com Luís Roberto Barroso (2012):
A locução “ativismo judicial” foi utilizada, pela primeira vez, em artigo de um historiador sobre a Suprema Corte americana no período do New Deal, publicado em revista de circulação ampla. V. Arthur M. Schlesinger, Jr., The Supreme Court: 1947, Fortune, jan. 1947, p. 208, apud Keenan D. Kmiec, The origin and current meanings of ‘judicial activism’, California Law Review 92:1441, 2004, p. 1446. (BARROSO, 2010, p. 9)
O surgimento desse ativismo judicial é apontado nos Estados Unidos. Dois são os casos judiciais nos quais houveram decisões ativistas na suprema corte: o caso Marbury versus Madison e o caso Dred Scott versus Sandford. O primeiro, datado de 1797, é considerado o ponto inicial do controle difuso de constitucionalidade exercido pelo poder judiciário, marcado pela concepção de que o poder judiciário deve julgar conforme a Constituição e rechaçar aquilo que for contrário ao que estabelece seu texto.
O segundo, ocorrido em 1857, representa uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que definiu que escravos não estavam amparados pela Constituição dos EUA, não eram cidadãos e por isso também não poderiam ingressar judicialmente perante a corte.
Definiu, ainda, que o Congresso não teria autoridade para proibir a escravidão nos territórios estadunidenses. A referida decisão causou grande repercussão, principalmente críticas daqueles que eram favoráveis ao fim da escravidão.
Sobretudo, tais decisões demonstraram interpretações ativistas advindas da suprema corte e por sua repercussão e importância, ainda são tratadas pelos constitucionalistas como marcos do nascimento do ativismo judicial. Esse surgimento se situa, portanto, em decisões judiciais marcadas por uma análise positiva sobre o ordenamento jurídico, um abandono à interpretação meramente negativa da legislação.
3 PROTAGONISMO JUDICIAL NO SÉCULO XXI
Neste século, o ativismo judicial tem sido alarmante. As discussões científicas em torno dessa questão cresceram, à medida que aumenta a preocupação sobre a repercussão social dessa “nova função” assumida pelo poder judiciário. Ocorre que o legislativo segue inerte quanto a alguns temas, os quais constantemente são submetidos ao judiciário, que enxergando a lacuna legal, atribui novas regras ao ordenamento jurídico.
Essa intensa passagem do Civil Law para o Common Law é ilustrada por diversas decisões políticas e sociais tomadas pelos tribunais constitucionais.
No Brasil, o ativismo judicial é marcado, a exemplo, pelo julgamento sobre a possibilidade de uniões homoafetivas (Ação Direita de Inconstitucionalidade no 4277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 132), e a suspensão dos dispositivos da Lei de Imprensa incompatíveis com a Constituição de 1988 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 130). Mais recentemente ainda, é possível citar a chamada “criminalização da homofobia” (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão no 26 e o Mandado de Injunção no 4733).
Segundo Luis Roberto Barroso (2012), no Brasil, a judicialização de diversos temas advém do modelo de Constituição prolixa adotado. A amplitude da Constituição faz com que um número indeterminado de temas seja levado ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal.
Ainda nas ideias de Barroso (2012), o controle de constitucionalidade adotado no Brasil, concentrado e difuso, permite que o poder judiciário tenha a competência de avaliar a adequação de leis. Isso demonstra um verdadeiro controle sobre o poder legislativo.
4 A CRISE DEMOCRÁTICA
A crise democrática é vista em diversos ângulos. Da mesma forma, suas causas são indicadas em diversos aspectos. Aqui, reflete-se sobre uma crise de representação, marcada pelo descontentamento popular com os eleitos e a consequente deslegitimação dos membros do parlamento. Nesse sentido, a democracia que busca “dar voz ao povo”, por meio dos representantes eleitos, torna-se ineficaz nesse quadro. A partir disso, surgem ideias que buscam estruturar a democracia de forma mais complexa, com o viés de alcançar melhor a sua própria essência.
Segundo Tiago Dalla Corte e Thaís Dalla Corte:
Qualquer país que formalmente reconheça-se ou que seja internacionalmente reconhecido como uma democracia, está enfrentando, contemporaneamente, o esvaziamento da democracia, em razão de diversas causas. Isso significa que a democracia é diretamente afetada pelos problemas da realidade contemporânea precisando dar respostas a eles, o que não tem conseguido, colocando em dúvida a possibilidade de sobrevivência de sua constituição. (CORTE; CORTE, 2018, p. 184)
A crise na democracia de fato é crescente. Novas necessidades sociais contribuem para o surgimento de novas expectativas sobre o regime democrático.
O historiador Pierre Rosanvallon debate acentuadamente o tema da crise democrática.
Segundo o autor (2011), há uma dupla ficção na concepção sobre a democracia, pois de um lado a parte representa o todo, de outro, as eleições representam todo o mandato. A ficção citada por Rosanvallon existe porque a maioria jamais será capaz de representar o todo. Sempre haverá uma parcela da população que ficará sem representação e, por isso, “sem voz”.
Nesse aspecto, a crise da democracia é uma reação de rejeição a ideia da maioria. O povo não é mais satisfeito com a ideia de que a maioria é que deve conceber decisão política sobre o povo. Essa ideia é simples e facilmente praticável. A verdade é que a democracia foi uma vitória na fuga aos regimes totalitários. Mas passado um tempo desde que esse regime de governo foi instituído, é hora de torná-lo mais completo e capaz de espelhar uma verdadeira democracia.
Seguindo o pensamento de Pierre Rosanvallon (2011), a regra da maioria é meramente uma técnica de decisão adotada pelas eleições, inapto para atingir ideais puramente democráticos. Como procedimento, é bastante convincente. A ideia de decidir pela maioria é a forma mais simples e próxima de atingir o pensamento da sociedade. Porém, há diversos problemas em torno dessa concepção.
Conforme Rosanvallon (2011), o sistema que envolve a busca pelo interesse geral como é tido hoje não é contestado, mas perdeu a credibilidade. A fala do autor é facilmente vista na prática, principalmente olhando para como o povo reage às omissões do parlamento, bem como contra funções mal desempenhada por esses.
Ocorre que o povo é complexo, diverso e marcado por mudanças, as decisões tomadas pela maioria durante as eleições, além de não ser a decisão de todos, também não representa o único pensamento político daquela parcela da população. Essa democracia invisibiliza a minoria, assim como omite necessidades da população por períodos relevantes. Surge, então, a procura pela instituição que será capaz de resguardar a minoria e de ampará-la em suas concepções políticas. Afinal, todo o povo tem o direito de decidir, e não só durante as eleições.
Na convicção de Rosanvallon (2011), a única maneira de alcançar a fidelidade na representação política, é o membro do parlamento pensar, falar e agir tal qual os representados. Com isso, o autor pontua um problema relevante na atualidade: os congressistas adotam frequentemente ideias que são próprias, além de constantemente rejeitar as reclamações da população sobre determinadas necessidades políticas e sociais.
5 O PROBLEMA DA BUSCA PELA IMPARCIALIDADE
Enquanto questões políticas, partidárias e pessoais afetam a representação por parte do parlamento, busca-se uma instituição apta a decidir sem a influência desses fatores. Em outras palavras, a imparcialidade é apontada como essencial para o viés de abranger diversas esferas do povo.
O Congresso tem sido marcado por grupos de interesses que sucumbem a vontade da população. Os membros do parlamento possuem intensa parcialidade, uma vez que agem segundo o próprio interesse, o interesse de seu partido, bem como segundo o que for considerado melhor para o seu desenvolvimento político.
Tudo isso repercute em uma evasão do poder legislativo em decidir certas questões. Os eleitos temem que suas escolhas afetem a possibilidade de reeleição, tanto do ponto de vista do voto, como por meio da perda de apoios políticos. Não é no parlamento, portanto, que é encontrada a imparcialidade necessária para debater temas sociais de grande repercussão.
Nesse contexto, não seria diferente quando ao poder executivo, que dependente da vontade popular, bem como de apoiamentos, é subordinado a adotar um lado nas discussões políticas.
Assim, vê-se que o poder judiciário é o único apontado como imparcial. Está nesse poder a possibilidade de deliberar demandas sociais que não possuem respostas por parte dos representantes eleitos. Sabe-se, porém, que é dada certa discricionariedade ao judiciário nesse aspecto. Ademais, membros não eleitos são incumbidos de decidir a vida política e social de um Estado, o que foge a ideia central sobre a democracia.
Pierre Rosanvallon (2011) trata em sua obra sobre uma generalidade negativa, a qual associa ao que chama de “legitimidade da imparcialidade”. O autor questiona a legitimidade atribuída a órgãos não eleitos. Defende que mesmo sem eleição, essa legitimidade é conferida pela função que é desempenhada, já que essencial ao corpo social. Ainda assim, essa legitimação não está associada a ideia da democracia. Conforme o historiador seria esse um polo da democracia: a exercida por meio de instituições independentes.
Desse modo, a imparcialidade buscada constantemente a fim de dar andamentos em determinadas deliberações políticas parece ser encontrada no poder judiciário e também a órgãos independentes, tal como concebe Rosanvallon (2011). São, em suma, opções em que a eleição popular não é necessária. Estaria, então, a própria democracia excetuando sua regra para que seja cumprida em larga escala. A conclusão parece contraditória, mas parte do procedimento e do olhar prático sobre os problemas da representação política.
6 O JUDICIÁRIO COMO CAUSADOR DE UMA CRISE NA DEMOCRACIA
Sempre que o poder judiciário assume decisões que abrangem o povo, sem uma legitimação direta advinda desses, atinge a democracia. É bem claro que nesse regime a maioria decide e por intermédio disso são tomadas as decisões cruciais que envolvem a sociedade.
O procedimento democrático relacionado à ideia da maioria ainda é o que que mais se aproxima dos ideais políticos do povo. É improvável e utópico imaginar que a unanimidade seja possível ou que seja palpável colher o pensamento político de toda a população.
Como já apontando, o judiciário é uma instituição sem nenhum controle direto da população. É válido então que esses órgãos tomem decisões que modificam a estrutura do Estado e a vida em sociedade? Não seria isso um verdadeiro desmonte da democracia?
Conforme Luis Roberto Barroso (2012):
Ativismo judicial é uma expressão cunhada nos Estados Unidos e que foi empregada, sobretudo, como rótulo para qualificar a atuação da Suprema Corte durante os anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 1969. Ao longo desse período, ocorreu uma revolução profunda e silenciosa em relação a inúmeras práticas políticas nos Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais. Todas essas transformações foram efetivadas sem qualquer ato do Congresso ou decreto presidencial. A partir daí, por força de uma intensa reação conservadora, a expressão ativismo judicial assumiu, nos Estados Unidos, uma conotação negativa, depreciativa, equiparada ao exercício impróprio do poder judicial. (BARROSO, 2012, p. 8-9)
Há, então, uma intensa crítica advinda daqueles que perpetuam ideais conversadoras, bem como que enxergam no judiciário uma ameaça à segurança jurídica e à própria democracia. Os principais problemas encontrados pelos doutrinadores críticos do protagonismo do poder judiciário são a usurpação de poderes, em uma violação a teoria da separação dos poderes, o perigo da liberdade de decisão conferida ao judiciário, a deslegitimação do parlamento e a ausência de representação popular nas questões políticas e sociais decididas pelo judiciário.
Conforme Adriano Bernardo de França (2013):
(…) o poder legislativo, como órgão competente para criar leis, está limitado ao que prevê o texto constitucional. Pode-se dizer que a atuação do poder legislativo, do parlamento, sofre um “controle anterior”, de forma direta ou indireta, pois as leis que o legislador edita devem estar em conformidade com texto constitucional já estabelecido, que permite ounnão determinado tipo de legislação e estabelece as regras do processo legislativo, inclusive, no que concerne à alteração ou reforma do próprio texto constitucional. Além dessa limitação e desse “controle” que geralmente impõem as constituições, o poder legislativo ainda está sujeito ao controle do poder judicial, feito mediante o controle de constitucionalidade que este exerce, por exemplo. De forma que, como se sabe, pode, inclusive, o poder legislativo ver as leis que elaborou serem anuladas ou declaradas nulas pelo poder judicial quando não for respeitado o que estabelece a constituição. (FRANÇA, 2013, p. 48)
Aponta-se, portanto, que o poder legislativo sofre controle dos outros poderes, o que inclui esse controle interpretativo de legalidade, cuja competência é do judiciário. O parâmetro nesse caso deve ser a Constituição. Ou seja, está o poder judiciário incumbido de declarar nula uma lei elaborada pelo parlamento, desde que incompatível com a Constituição.
Segundo o Sistema de freios e contrapesos, já previsto na Constituição de 1988, os poderes são independentes, mas devem exercer controle uns sobre os outros, com o fim de evitar o abuso de funções. Nesse ponto, não há nenhum problema. Mas se o poder judiciário controla legalmente os demais poderes, quem controla legalmente o judiciário?
É nesse sentido o pensamento exposto por Adriano Bernardo de França (2013):
Já no que concerne ao Poder judicial, como “controlador” que é da atuação dos outros poderes, levantam-se os seguintes questionamentos de quem controla e como controlar este poder, em especial os tribunais constitucionais, se e quando atuarem de forma que não encontra ressonância na constituição e nas leis e porventura extrapolarem o seu campo de atuação adentrando no espaço dos outros poderes, mesmo que movido por um suposto sentimento de realização da justiça e com o intuito de corrigir as falhas ou omissões dos outros poderes; e, ainda, até que ponto pode ir o poder judicial, em especial os tribunais constitucionais, para transformar em realidade um projeto de Estado previsto constitucionalmente e realizar os direitos previstos nas constituições. (FRANÇA, 2013, p. 48)
Nesse sentido, a violação à separação dos poderes é bem simples: estaria o judiciário legislando em suas decisões. Isto é, a justiça ao invés de passiva, adotou atitude ativa nas questões que são apresentadas. É conveniente que um poder exerça controle sobre outro, mas não a ponto de substituí-lo em suas funções. Isso não mais seria uma fiscalização mútua, mas sim um domínio de um poder sobre o outro. Essa usurpação de poderes, portanto, é perigosa por deixar um poder sem controle e com o domínio sobre os outros.
Lado outro, quando o judiciário age ativamente, uma certa discricionariedade é posta em sua atuação. Mais uma vez, o controle sob o judiciário vira uma lacuna. Como qualquer outro poder, o judiciário deve ser controlado pela lei. No entanto, há uma margem de escolha disposta ao referido poder e nenhum terceiro competente para avaliar se a decisão realmente observar as limitações impostas pelo ordenamento jurídico.
Segundo Pierre Rosanvallon (2011), quem controla os tribunais é a Constituição. Seria essa aplicada pelos tribunais constitucionais e, ao mesmo tempo, limitadoras desses. Porém o autor deixa de responder quem exerceria uma barreira sobre o judiciário, com o fim de evitar o abuso de poder.
Luis Roberto Barroso (2012) cita que “(…)a jurisdição constitucional não deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o movimento social e os canais de expressão da sociedade. Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, não dos juízes.” Ou seja, para o autor é o povo ainda o único sujeito capaz de estabelecer um controle sobre a discricionariedade que é incumbida ao judiciário em sua função. Mas pergunta-se: qual o meio eficaz existente na democracia atual para que o povo controle o poder judiciário? Pode ir a população às ruas e nada modificar, afinal, não são as decisões do judiciais vinculadas a esse tipo de reação.
Outro ponto grave que envolve o ativismo judicial é a perda da credibilidade do poder legislativo. Uma vez que sua função passa a ser exercida pelo judiciário, onde fica sua posição perante a sociedade?
Conforme Jeremy Waldron (2006), ainda que o parlamento funcione com falhas, é necessário que haja a preservação de sua função legislativa que foi legitimamente conferida pelo povo. Para o autor, a presença de instituições democráticas em funcionamento regular; um judiciário legitimado por meio não representativo, também em bom funcionamento; o compromisso da maioria com a minoria, no sentido de evitar que direitos fundamentais desses sejam postos em prejuízo; e a presença de divergências da sociedade sobre os direitos e garantias individuais, no sentido de reforçar o debate políticos sobre as questões sociais.
Nesse viés, é preciso verificar que o legislativo possui como característica fundamental a representação da sociedade. É a principal forma que a população tem de decidir, bem como de controlar as decisões políticas. Não pode o poder legislativo ser dominado por essa necessidade e adaptação crescente ao protagonismo do poder judiciário. Em outras palavras, a perda da legitimidade, indicada pelo descredito da sociedade sobre a função legislativa é extremamente perigosa no Estado Democrático de Direito.
É nesse aspecto que entra outra problemática: o poder judiciário assume decisões políticas cruciais sem ter uma escolha de membros baseada no critério democrático. Um instrumento de concretização da democracia pode ser por contrário aos ditames da própria democracia? Se o judiciário falhar perante as escolhas do povo, como desconstituir suas decisões?
Nesse ponto, surge a necessidade de equilíbrio, o poder judiciário precisa de limites em suas decisões, esses limites não podem ser baseados no povo, mas também não podem ser inexistentes ou inconsistentes. A democracia necessita de instituições imparciais, que possa representar o povo por meio da Constituição. É o poder constituinte originário o legitimador democrático dessas instituições. Não fosse isso, seria utópico pensar na imparcialidade dos julgadores.
7 O PODER JUDICIÁRIO COMO SOLUÇÃO
No outro lado da questão, situa-se a presença do judiciário como solução ao problema que envolve a crise na democracia. Analisa-se essa sob o ponto de vista do entrave envolve a minoria e sua falta de representação na sociedade concebida sob os ditames da técnica de decisão majoritária.
Por influências em diversas escalas, partidarismo, interesses pessoais, bem como movidos pela maioria, o parlamento deixa de concretizar direitos fundamentais em sua função de legislar. Vale ressaltar que não há poder com mais domínio sobre esses direitos do que o legislativo, uma vez que a existência da lei é o único meio de tornar direitos disponíveis em um Estado de Direito.
Mas se não o faz, fica a população subordinada ao momento em que os representantes eleitos decidiram deliberar sobre certos temas. Nesse ponto, os direitos fundamentais, sejam os expressos ou mesmo os decorrentes de princípios constitucionais, mas que em comum possuem o fato de serem essenciais a sociedade, são esquecidos, ainda mais quando relacionados a uma minoria.
A partir desse entrave, o poder judiciário ganha um espaço crucial, é esse incumbido de fazer com direitos fundamentais, especialmente relacionados a minorias, sejam implementados.
O problema da maioria é então resolvido sob a imparcialidade atribuída ao poder judiciário.
Segundo Eugénio Raúl Zaffaroni (1995):
“(…) nem tudo que provém do voto popular é necessariamente democrático; em contrapartida, uma instituição é democrática quando seja funcional para o sistema democrático, quer dizer, quando seja necessário para sua continuidade, como ocorre com o judiciário” (1995, p. 43)
O jurista enfatiza a importância do poder judiciário na sociedade democrática, pois dissocia o voto popular do que se considera democrático. Segundo o autor, a necessidade do Estado como garantidor de direitos é responsável pelo protagonismo do poder judiciário, para que preencham a lacuna deixada pelos encarregados dessa providência.
É, então, o judiciário uma solução sob o ponto de vista da garantia de direitos fundamentais que são deixados desamparados pelo Estado. Além disso, é o órgão não representativo capaz de implementar direitos que são excluídos pelas decisões majoritárias
Outro ponto de solução decorrente da atuação do poder judiciário, é a possibilidade de controlar atos dos representantes eleitos. Nesse aspecto, a Constituição é o parâmetro para que o judiciário deve utilizar para barrar o parlamento quando necessário.
Esse controle vai além de validação ou invalidação de atos legislativos. Aqui, o judiciário reage positivamente ao silêncio do poder legislativo. Não ordenando que esse deva atuar, mas sendo o próprio autor dessa práxis. Do mesmo modo, é possível ao judiciário que considere leis instituídas no Congresso como incompatíveis com a Constituição. Isso é importante na medida em que o ordenamento jurídico não pode ser constantemente rechaçado, sob pena de violação à segurança e credibilidade disposta sobre o ordenamento jurídico.
Conforme Sahid Maluf (1998):
Sem que esteja consolidado este ambiente democrático, ainda que o governo tenha origem popular, ele será apenas formalmente democrático, mas nunca o será quanto ao seu exercício. E, dentre os dois aspectos da democracia, merece maior atenção o substancial, que deve permear toda a ação social, política e econômica do Estado.
Ainda que o legislativo represente o povo, na prática, por vezes, isso é inverídico. Não adianta, portanto, falar em violação à democracia, quando a própria democracia é violada por aqueles que participam dela de forma legítima.
8 PREENCHIMENTOS E LACUNAS NA FUNÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO
Como já exposto, quando o poder judiciário assume o poder de legislar há um choque na separação dos poderes na forma como foi concebida. Por isso, é preciso estabelecer limites ao poder judiciário, com o fim de manter a segurança necessária para que nenhum poder se torne absoluto. Mas, ao mesmo tempo, é necessário reconhecer seu papel no preenchimento de lacunas gravíssimas decorrentes da inércia do parlamento.
Segundo Luis Roberto Barroso (2012), de um lado temos a energia política da oberania popular e a vontade da maioria como marcas da democracia, quando advinda da política, e de outro os direitos fundamentais e as leis, dentro da perspectiva dos direitos. Esses lados, apesar de distintos, devem estar juntos.
No mesmo sentido, expõe Soraya Lunardi e Dimitri Dimoulis (2011)
Na substância, a proposta de autolimitação do Judiciário apresenta um argumento quantitativo (…). Segundo a visão da autolimitação quantitativa, o Judiciário não pode permanecer sem reação perante claras violações da Constituição pelos legisladores.
Essa seria uma postura passivista que faria o juiz abdicar de seu papel. Por outro lado, o juiz tampouco deve ser ativista, intervindo demasiadamente em problemas políticos julgados pelo legislador. O juiz que afasta ou até reformula as leis com base em seus entendimentos pessoais em casos controvertidos, ultrapassa o limite de suas competências e fere a separação de poderes. Evitando tanto o passivismo como o ativismo o juiz deve encontrar uma espécie de equilíbrio indicado pela tese da autolimitação. (DIMOULIS; GASPARETTO, 2011, p. 468)
Os autores denotam que o ativismo judicial é necessário e, por isso, um ponto de equilíbrio deve ser encontrado nas decisões judiciais. É parte da função judiciária reconhecer violações materiais à Constituição e rechaçá-las.
Nesse aspecto, o ativismo judicial trata-se não de uma tomada voluntária de poderes, mas de uma reação institucional a falhas e omissões legislativas. Existe, portanto, um problema, mas a resposta constantemente adotada não é uma solução ao problema, apenas uma forma de resolvê-lo. Em outras palavras, vê-se que a omissão legislativa deve ser combatida e não só o poder judiciário ser responsável por “tampar” todos os vácuos que são deixados pelo parlamento.
De mais a mais, é preciso enxergar que o ativismo judicial é arriscado. Com o uso desse tipo de decisão judicial, surge um poder absoluto, manifestado pelo uso da “palavra final” sobre questões políticas e sociais. Afinal, poderes absolutos não podem fazer parte de uma democracia.
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não pode o poder judiciário continuar sendo o autor de todas as lacunas legislativas e, por isso, faz-se forçoso que o poder legislativo seja retirado de sua “zona de conforto”. A única maneira disponível para isso aconteça é que o povo controle o parlamento por meio do voto, mas isso não tem sido a resposta, já que o problema se perpetua.
É inequívoco que necessidades populares em um ambiente democrático devem ser obrigatoriamente recebidas e deliberadas. Não é mais aceitável que o poder legislativo continue se retirando de determinados debates por questões meramente políticas.
Visualiza-se uma necessidade de que haja uma instituição capaz de intermediar os desentendimentos entre as necessidades da sociedade e a falta de diligência do poder legislativo. O povo carece de um novo meio de ser ouvido, uma vez que seus representantes podem decidir calar-se diante de suas demandas. Em qualquer democracia, é conveniente que o as escolhas do povo sejam vinculantes perante os seus representantes.
Nessa conjuntura, o poder judiciário tem um papel que não pode ser excluído, mas que também não pode seguir com a mesma liberdade com a qual vem sendo utilizado. Isso porque há um constante risco de que isso possa influir negativamente na concretização da vontade do povo. Um ponto de equilíbrio, então, deve ser alcançado. E, por isso, todos os aspectos discutidos nessa pesquisa, bem como as diversas manifestações de estudiosos devem ser provocadores dessa indispensável mudança.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo. RFD- Revista da Faculdade de Direito- UERJ, v. 2, n. 21,jan./jun. 2012.
CORTE, Tiago Dalla; CORTE, Thaís Dalla. A democracia no século XXI: crise, conceito equalidade. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica: Rio de Janeiro, vol. 10,no2, maio-agosto, 2018, p. 178-201.
FRANÇA, Adriano Bernardo de. SEPARAÇÃO DOS PODERES, PARLAMENTO E ATIVISMOJUDICIAL: análise jurídico-constitucional sobre a relação entre o fenômeno do ativismo judicial e a atuação do parlamento na realidade brasileira. Universidade de Coimbra Faculdade de Direito Mestrado Científico: Coimbra – Portugal, 2013.
LUNARDI, S.; DIMOULIS, D. Ativismo e Autocontenção judicial no controle de constitucionalidade. In: As novas faces do ativismo judicial Salvador: Juspodium, 2011.
MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1998.
ROSANVALLON, Pierre. Democratic Legitimacy: impartiality, reflexivity, proximity. Princeton: Princeton University Press, 2011.
WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review. The Yale Law Journal. NewHaven, 115: 1346-1406, 2006.
ZAFFARONI, Eugénio Raúl. Poder judiciário: crises, acertos e desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
1Aluna Especial do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Piauí. Pós Graduanda em Direito Público pela Escola do Legislativo do Piauí. Graduada em Direito pelo Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Professor Camillo Filho – Pitágoras ICF. Assessora Jurídica no Ministério Público do Estado do Piauí. Email:
andressacami96@gmail.com.