PROPRIEDADE INTELECTUAL: PERSPECTIVAS ECONÔMICAS DE SUA FUNÇÃO SOCIAL NO CONTEXTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COLETIVOS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202407301844


Marco Antônio Castilho Rockenbach1,
Inácio da Costa e Silva Neto2


RESUMO

A propriedade intelectual é um campo jurídico essencial que protege as criações do espírito humano, incentivando a inovação e garantindo benefícios econômicos para os criadores. Este artigo explora a evolução histórica da propriedade intelectual, desde as guildas medievais até os sistemas contemporâneos, destacando a distinção entre propriedade industrial e direitos autorais. O primeiro tópico aborda a contextualização histórica e a distinção entre propriedade industrial e direitos autorais. No segundo tópico, a natureza jurídica da propriedade intelectual é discutida, considerando a combinação de elementos de direitos patrimoniais e pessoais. O terceiro tópico analisa o impacto econômico da propriedade intelectual, destacando sua importância para o desenvolvimento tecnológico e científico, bem como a atração de investimentos. O quarto tópico discute a função social da propriedade intelectual e a tensão entre direitos individuais e coletivos. Conclui-se que, para equilibrar os direitos individuais de propriedade intelectual com os direitos fundamentais coletivos, é necessária uma abordagem que considere tanto os incentivos à inovação quanto o bem-estar social, promovendo políticas públicas bem delineadas e um ambiente jurídico equilibrado que assegure o progresso contínuo e sustentável da sociedade.

Palavras-chave: Propriedade intelectual. Função social. Direitos individuais. Direitos fundamentais coletivos. Desenvolvimento econômico.

ABSTRACT

Intellectual property is an essential legal field that protects creations of the human spirit, encouraging innovation and ensuring economic benefits for creators. This article explores the historical evolution of intellectual property, from medieval guilds to contemporary systems, highlighting the distinction between industrial property and copyright. The first chapter addresses the historical context and the distinction between industrial property and copyright. The second chapter discusses the legal nature of intellectual property, considering the combination of elements of proprietary and personal rights. The third chapter analyzes the economic impact of intellectual property, highlighting its importance for technological and scientific development, as well as attracting investments. The fourth chapter discusses the social function of intellectual property and the tension between individual and collective rights, especially in the context of the COVID-19 pandemic and the need to ensure universal access to medicines and technologies. It concludes that, to balance individual intellectual property rights with fundamental collective rights, an approach is needed that considers both innovation incentives and social well-being, promoting well-designed public policies and a balanced legal environment that ensures continuous and sustainable societal progress.

Keywords: Intellectual property. Social function. Individual rights. Collective fundamental rights. Economic development.

INTRODUÇÃO

A propriedade intelectual constitui um dos pilares fundamentais do direito contemporâneo, desempenhando um papel crucial na proteção das criações do espírito humano e fomentando o desenvolvimento técnico, científico e cultural.

Este campo do direito é essencial para garantir que inventores, autores e criadores possam obter reconhecimento e benefícios econômicos por suas meio de suas criações/invenções, promovendo assim um ambiente propício ao avanço cultural, técnico e científico contínuos da sociedade (MANSO, 1980).

A propriedade intelectual abrange uma vasta gama de direitos, incluindo patentes, marcas, desenhos industriais e direitos autorais, todos destinados a proteger as diversas manifestações da criatividade humana.

Neste contexto, o objetivo deste trabalho é analisar de forma suscinta a tensão entre o direito individual do autor/inventor e a necessidade de efetivação de direitos fundamentais coletivos.

O primeiro tópico aborda a contextualização histórica da propriedade intelectual, desde as guildas medievais até os sofisticados sistemas de proteção desenvolvidos durante e após a Revolução Industrial.

Nesse contexto, destaca-se a distinção entre propriedade industrial e direitos autorais, enfatizando a importância de ambos no incentivo à inovação e na proteção das criações intelectuais.

A história da propriedade intelectual é marcada por um desenvolvimento gradual que reflete as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas ao longo da evolução humana.

Com a Revolução Industrial, a necessidade de proteger invenções e criações artísticas e literárias tornou-se premente, levando ao surgimento dos primeiros sistemas formais de propriedade intelectual.

No segundo tópico, o foco se volta para a natureza jurídica dos direitos de propriedade intelectual, um tema amplamente debatido no âmbito doutrina jurídica brasileira e mundial.

Essa discussão inclui as diferentes perspectivas sobre a classificação desses direitos, considerando-os como uma forma de propriedade sui generis que combina de forma concomitante elementos de direitos pessoais e patrimoniais.

A teoria dualista é destacada na doutrina brasileira como um marco significativo para a compreensão da natureza jurídica da propriedade intelectual. Essa teoria reconhece a coexistência de dois direitos de natureza distinta – moral e patrimonial – derivados da criação intelectual, proporcionando uma base sólida para a proteção, tanto dos interesses pessoais do autor, quanto dos interesses econômicos envolvidos na exploração da obra intelectual.

O terceiro tópico analisa o impacto econômico dos direitos de propriedade intelectual, destacando sua relevância para o desenvolvimento tecnológico e científico. A relação entre propriedade intelectual e investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) é examinada, destacando que a proteção legal incentiva a inovação e atrai investimentos estrangeiros

A propriedade intelectual exerce um papel crucial no cenário econômico contemporâneo, influenciando diretamente os investimentos em P&D e promovendo um ambiente de negócios mais estável e previsível.

A exclusividade proporcionada pelos direitos de propriedade intelectual permite que as empresas pratiquem preços que reflitam o valor agregado de suas inovações, incentivando-as a continuar investindo em novas tecnologias e produtos.

O quarto tópico discute a função social da propriedade intelectual e os direitos fundamentais coletivos. Este tópico aborda a tensão entre os direitos individuais conferidos pela propriedade intelectual e os direitos coletivos, como o acesso à saúde, à educação e à cultura.

A pandemia de COVID-19 trouxe à tona essa tensão, com debates sobre a necessidade de flexibilizar direitos de patentes para garantir o acesso universal a vacinas e tratamentos.

Dessa forma, a função social da propriedade intelectual se constitui como um princípio fundamental no contexto jurídico brasileiro, refletindo a necessidade de que os direitos sobre criações intelectuais beneficiem não apenas seus titulares, mas também a sociedade em geral (CRUZ, 2006).

A Constituição Federal de 1988 consagra a função social da propriedade, estabelecendo que esta deve atender ao desenvolvimento técnico, tecnológico, científico e humano da sociedade.

Em conclusão, o estudo evidencia a importância de equilibrar os direitos individuais de propriedade intelectual com os direitos fundamentais coletivos, garantindo que a proteção das criações intelectuais contribua para o desenvolvimento sustentável e o bem-estar social.

Nesta senda, são registradas propostas para fomentar o equilíbrio entre os direitos individuais e os direitos coletivos em prol do bem comum, destacando a necessidade do desenvolvimento e estabelecimento de políticas públicas bem articuladas; da conscientização de todos os atores envolvidos (Estado, políticos, sociedade civil, iniciativa privada) acerca das garantias e limites relacionados à função social da propriedade intelectual.

Neste compasso, quando os direitos de propriedade intelectual forem exercidos de maneira responsável e equilibrada, esse instituto jurídico se constitui como um poderoso instrumento de desenvolvimento técnico, científico e humano, contribuindo para o progresso contínuo e sustentável da sociedade.

1. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA ACERCA DO CONCEITO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL

A propriedade intelectual é um campo do direito que se dedica à proteção das criações do espírito humano, abrangendo invenções, obras literárias e artísticas, símbolos, nomes, imagens e desenhos utilizados no comércio.

Em linhas gerais, Pimentel (1994) leciona que a propriedade intelectual se divide em duas categorias principais: a propriedade industrial e os direitos autorais. A propriedade industrial inclui patentes, marcas, desenhos industriais e indicações geográficas.

As patentes protegem invenções tecnológicas, permitindo ao inventor o direito exclusivo de explorar comercialmente sua criação por um período de 20 anos. As marcas são sinais distintivos que identificam produtos ou serviços e garantem que consumidores possam distinguir entre diferentes fornecedores.

Desenhos industriais protegem a aparência ornamental de um produto, enquanto as indicações geográficas se referem a produtos que possuem qualidades específicas associadas ao local de origem; por outro lado, os direitos autorais protegem obras literárias e artísticas, como livros, músicas e filmes, garantindo ao autor o controle sobre a reprodução e distribuição de sua obra (PRONER, 2007).

Além desses, há também a proteção aos programas de computador e aos circuitos integrados, que possuem características específicas, mas são igualmente abrangidos pela legislação de propriedade intelectual.

Para compreendermos a natureza jurídica da conceituação, das teorias e dos fundamentos dos direitos relacionados à propriedade intelectual, é essencial explorarmos seu contexto histórico e suas diversas manifestações jurídicas.

A história da propriedade intelectual é marcada por um desenvolvimento gradual que reflete as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas ocorridas ao longo da evolução humana.

No período medieval, as guildas3 controlavam as práticas comerciais e artesanais, garantindo certa proteção aos métodos e produtos através de segredos comerciais.

Com a Revolução Industrial, a necessidade de proteger invenções e criações artísticas e literárias se tornou mais premente, levando ao surgimento dos primeiros sistemas formais de propriedade intelectual.

A seu turno, a propriedade industrial começou a se desenvolver significativamente com o advento da Revolução Industrial. Nesse período, o sistema de patentes permitiu que inventores tivessem direitos exclusivos sobre suas criações por um período limitado, fazendo com que a busca pela inovação criativa fosse incentivada.

Em 1883, a Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial estabeleceu um marco importante, definindo padrões internacionais para a proteção de patentes, marcas e desenhos industriais.

Com base nessas premissas e estabelecendo um paralelo entre a propriedade industrial e a propriedade intelectual, é possível conceber que essa última abrange um campo mais amplo, que inclui, além daquela primeira, os direitos autorais e seus direitos conexos (PIMENTA, 1994). 

Ainda no tocante à propriedade industrial, ela se encontra diretamente relacionada com a aplicação comercial e tecnológica. Dessa forma, é possível afirmar que os fundamentos da propriedade intelectual são variados e refletem diferentes abordagens filosóficas, econômicas e jurídicas.

Viegas (2007), ensina que a propriedade imaterial é um termo comum e abrangente que, além de englobar sob sua égide bens e direitos relacionados à personalidade – a exemplo do direito à liberdade, direito à privacidade e o direito à intimidade – também acaba por abarcar direitos relacionados aos denominados bens intelectuais que, segundo suas lições, são os direitos relacionados à propriedade resultante daquilo que é produzido a partir do trabalho da inteligência humana.

De fato, os direitos de propriedade intelectual usualmente asseguram a seu titular um direito não sobre o bem material onde se expressa a criação do espírito, mas sobre o ato da criação idealmente considerada.

Trata-se, portanto, de uma propriedade sobre bens não corpóreos, imateriais, intangíveis. A ideia de que existem bens sem extensão física remonta ao direito romano, onde se cingiam os bens de natureza corpórea e incorpórea pelo critério da possibilidade ou não de serem tocados.

Neste contexto, Propriedade Intelectual é, portanto, um conceito amplo que atua como um “guarda-chuva” abrangendo várias doutrinas distintas, todas relacionadas às atividades intelectuais ou à aplicação de ideias, dados e conhecimentos em atividades práticas.

Em uma definição de natureza conceitual, é possível afirmar que a propriedade intelectual representa um conjunto complexo e dinâmico de direitos que se destinam à proteção das criações do intelecto humano. 

Este conjunto de direitos exclusivos conferidos por lei a autores e inventores permitelhes controlar o uso de suas criações por um período determinado, proporcionando, assim, um retorno financeiro que estimula o desenvolvimento de novas tecnologias e expressões culturais (SILVA, 1980).

Dessa forma, a proteção conferida a essas criações não apenas incentiva a inovação, mas também assegura que os criadores obtenham reconhecimento e benefícios econômicos por seu trabalho, promovendo um ambiente propício ao avanço científico e artístico.

Além disso, a proteção se estende a programas de computador e circuitos integrados que, embora possuam características específicas, são abrangidos pela legislação de propriedade intelectual.

Pelo exposto, o conceito de propriedade intelectual abrange uma vasta gama de direitos que protegem as criações do espírito humano. Ao passo em que a propriedade intelectual estimula a inovação e a criatividade, ao mesmo tempo deve atender à função social de promover o bem-estar coletivo.

Conforme veremos adiante, a natureza jurídica da propriedade intelectual é um tema complexo e amplamente debatido na doutrina jurídica. Tradicionalmente, esses direitos são vistos como uma forma de propriedade, conferindo ao titular o controle exclusivo sobre a utilização de sua criação, combinando em sua essência elementos de direitos pessoais e patrimoniais.

2 A NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL

Conforme já explanado, tradicionalmente os direitos de propriedade intelectual são concebidos como uma espécie propriedade que garante o controle exclusivo daquilo que é criado ao seu respectivo criador.

No entanto essa visão tem sido desafiada devido às características únicas dos direitos intelectuais, que os diferenciam dos direitos de propriedade clássicos. Ao contrário da propriedade tangível, que é limitada a objetos físicos, a propriedade intelectual protege criações imateriais, cuja exploração pode gerar benefícios amplamente distribuídos na sociedade. Essa distinção é fundamental para entender a dualidade entre os aspectos patrimoniais e pessoais desses direitos.

Não obstante, é preciso enfatizar que a propriedade intelectual surge como um dos elementos mais relevantes dentro do Direito Civil e Empresarial, devido ao valor significativo que a criação intelectual e os direitos sobre ela podem ter, muitas vezes ultrapassando o próprio patrimônio físico dos criadores e empresas.

A complexidade da compreensão do tema reside na escassa produção bibliográfica especializada, levando ao tratamento superficial nos manuais de Direito Civil ou Comercial e, por conseguinte, a conclusões equivocadas sobre sua natureza jurídica.

No que concerne ao alcance, o Direito Intelectual abrange tanto os direitos autorais quanto os direitos industriais. No âmbito dos direitos autorais, estão incluídos os direitos morais e patrimoniais do autor sobre sua criação (BRASIL, 2006).

Os direitos morais são inalienáveis e perpétuos, garantindo ao autor o reconhecimento e a proteção da integridade de sua obra, enquanto os direitos patrimoniais são temporários e transferíveis, permitindo a exploração econômica da obra.

No que diz respeito à propriedade industrial, incluem-se as patentes, marcas, desenhos industriais e indicações geográficas, que protegem invenções tecnológicas e sinais distintivos utilizados no comércio.

[…] o direito de autor é um direito natural de propriedade, e que o trabalho constitui a via de acesso a essa propriedade, o título legítimo de sua aquisição e não o seu fundamento. O Estado deve, pois, reconhecer  proteger o direito de autor, como uma exigência do Direito Natural, em como regular a sua aquisição e exercício, de acordo com essa exigência e com as do bem comum. (CERQUEIRA, 1982, p. 147)

A distinção entre os direitos materiais e imateriais é fundamental para compreender a complexidade da propriedade intelectual, sendo necessário um tratamento diferenciado para cada tipo de criação intelectual.

O desenvolvimento da teoria dualista na doutrina brasileira foi um marco significativo para a compreensão da natureza jurídica da propriedade intelectual. Essa teoria reconhece a coexistência de dois direitos de natureza distinta – moral e patrimonial – derivados da criação intelectual (BITTAR, 1988). A legislação brasileira adota essa perspectiva, prevendo a proteção tanto dos direitos morais quanto dos patrimoniais do autor.

Pimenta (1994) leciona que a propriedade intelectual deve ser entendida como um direito sui generis, com características tanto de direito real quanto de direito pessoal. Dessa forma, se os direitos de propriedade intelectual forem classificados como direitos pessoais, eles seguirão o regime jurídico dos direitos pessoais, que é distinto dos direitos de propriedade.

Do mesmo modo, caso os direitos de propriedade intelectual não se encaixem na classificação tradicional, será necessário aplicar o regime jurídico específico aos direitos reais. Essa perspectiva é corroborada por Diniz (2009), que destaca a natureza híbrida da propriedade intelectual, integrando elementos patrimoniais e pessoais.

A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) desempenha um papel crucial na definição e promoção desses direitos, ajudando a harmonizar as leis e práticas entre os países para garantir uma proteção eficaz e uniforme. Esta harmonização é essencial em um mundo globalizado, onde as criações intelectuais frequentemente atravessam fronteiras, necessitando de uma proteção que transcenda os limites nacionais (VARELLA e MARINHO, 2005).

No Brasil, a Lei nº 5.988/73 foi a primeira a incorporar essa dualidade, sendo posteriormente aprimorada pela Lei nº 9.610/1998, que regula os direitos autorais. A dualidade de direitos reflete a necessidade de proteger tanto os interesses pessoais do autor quanto os interesses econômicos envolvidos na exploração da obra intelectual.

A legislação internacional também influencia a natureza jurídica da propriedade intelectual no Brasil. Tratados e acordos internacionais, como a Convenção de Berna e o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS – Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights), estabelecem diretrizes e padrões mínimos para a proteção dos direitos intelectuais, promovendo a harmonização das leis entre os países signatários.

Esses tratados reforçam a importância de uma abordagem dualista, reconhecendo tanto os direitos morais quanto os patrimoniais, e incentivam a cooperação internacional para a proteção efetiva das criações intelectuais.

Esse conjunto de direitos exclusivos conferidos por lei a autores e inventores permitelhes controlar o uso de suas criações por um período determinado. Ao garantir esses direitos, a propriedade intelectual proporciona um incentivo financeiro significativo para a inovação e a criatividade, criando um ambiente propício ao desenvolvimento de novas tecnologias e expressões culturais.

Dessa forma, a proteção conferida a essas criações não apenas incentiva a inovação, mas também assegura que os criadores obtenham reconhecimento e benefícios econômicos por seu trabalho.

É possível que dessa forma o direito de propriedade intelectual alcança o ápice de sua função social, pois além de proteger os interesses dos criadores, também promove a inovação e a criatividade, contribuindo para o desenvolvimento econômico, tecnológico e cultural da sociedade.

A natureza híbrida desses direitos, combinando aspectos patrimoniais e pessoais, destaca a necessidade de um equilíbrio entre os interesses dos titulares e os benefícios sociais. Dessa forma, a propriedade intelectual se apresenta como um instrumento essencial para o desenvolvimento técnico, tecnológico, científico e humano, contribuindo para o progresso contínuo e sustentável da sociedade.

Neste contexto, no próximo tópico abordaremos as questões de natureza econômica relacionadas aos direitos de propriedade intelectual e os desdobramentos dessas questões em relação à sua função social.

3 VIÉS ECONÔMICO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL

A propriedade intelectual exerce um papel crucial no cenário econômico contemporâneo influenciando diretamente os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) (WACHOWICZ, 2004).

Ao garantir exclusividade temporária ao titular sobre a exploração de suas criações, os direitos de propriedade intelectual proporcionam um incentivo econômico significativo para a inovação. Este incentivo é fundamental em setores onde o custo e o risco de inovação são elevados, como na indústria farmacêutica e tecnológica.

As empresas são encorajadas a investir em P&D sabendo que poderão recuperar seus investimentos e obter lucros durante o período de proteção concedido pelas patentes, marcas e direitos autorais.

O impacto econômico dos direitos de propriedade intelectual é multifacetado. Primeiramente, a proteção legal das criações intelectuais assegura que os inventores e criadores possam obter um retorno financeiro justo por suas inovações, promovendo um ambiente de negócios mais estável e previsível.

Este retorno financeiro é essencial para cobrir os custos de pesquisa e desenvolvimento, que podem ser extremamente altos. Além disso, a exclusividade proporcionada pelos direitos de propriedade intelectual permite que as empresas pratiquem preços que reflitam o valor agregado de suas inovações, incentivando-as a continuar investindo em novas tecnologias e produtos (WACHOWICZ, 2004).

Neste contexto, a proteção das criações intelectuais exige um equilíbrio entre os direitos dos criadores e os interesses da sociedade, assegurando que as inovações e obras culturais contribuam para o bem-estar coletivo (SHERWOOD, 1992).

Sendo assim, é possível conceber que a teoria dualista, ao reconhecer a coexistência de direitos morais e patrimoniais, proporciona uma base sólida para essa proteção, permitindo que os autores tenham seus direitos pessoais e econômicos garantidos, enquanto promovem o desenvolvimento social e cultural.

A aplicação prática dessa referida teoria pode ser observada em diversos casos e legislações. Por exemplo, no Brasil, a Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) garante ao autor direitos morais, como o de reivindicar a autoria da obra e o de integridade da obra, impedindo modificações que possam prejudicar sua honra ou reputação.

Simultaneamente, a lei assegura direitos patrimoniais, permitindo ao autor autorizar ou proibir a reprodução, distribuição e adaptação de sua obra, além de receber compensações financeiras pela utilização da obra por terceiros.

Outro exemplo prático é a Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96), que protege as invenções através de patentes, garantindo ao inventor o direito exclusivo de explorar comercialmente sua invenção por um período determinado.

Após o término desse período, a invenção cai em domínio público, permitindo seu uso livre por qualquer pessoa. Essa abordagem busca equilibrar os interesses dos inventores, que recebem proteção e incentivo para continuar inovando, com os interesses da sociedade, que eventualmente se beneficia do acesso irrestrito às inovações.

A interseção entre direitos morais e patrimoniais também pode ser observada em casos de litígios envolvendo propriedade intelectual. Por exemplo, quando um autor processa por plágio ele está defendendo tanto seus direitos morais de reconhecimento e integridade da obra, quanto seus direitos patrimoniais de exploração econômica. As decisões judiciais nesses casos frequentemente consideram ambos os aspectos, refletindo a natureza híbrida dos direitos intelectuais.

A natureza jurídica híbrida dos direitos intelectuais também tem implicações na forma como esses direitos são transferidos e licenciados. Contratos de licenciamento de direitos autorais ou de propriedade industrial devem especificar claramente os termos e condições de uso, incluindo tanto os direitos patrimoniais quanto as restrições impostas pelos direitos morais do autor.

Essa dualidade exige que os acordos sejam cuidadosamente redigidos para evitar conflitos e garantir que os interesses do autor e do licenciado sejam devidamente protegidos.

Outro aspecto econômico importante é o papel da propriedade intelectual na atração de investimentos estrangeiros. Mercados com sistemas robustos de proteção à propriedade intelectual são mais atraentes para investidores, uma vez que oferecem segurança jurídica para suas criações.

Isso é particularmente relevante em um mundo globalizado, onde as criações intelectuais frequentemente atravessam fronteiras e necessitam de proteção que transcenda os limites nacionais. A presença de um sistema eficaz de propriedade intelectual pode, portanto, aumentar a competitividade de uma nação no cenário global, atraindo capital e promovendo o desenvolvimento econômico sustentável.

No setor farmacêutico, a proteção por patentes é especialmente vital. Os custos de desenvolvimento de novos medicamentos são extremamente altos, incluindo longos períodos de pesquisa, testes clínicos e regulamentação. As patentes garantem que as empresas farmacêuticas possam recuperar esses investimentos significativos e obter lucros que sustentem futuras pesquisas.

Além disso, as patentes incentivam a descoberta de novos tratamentos e medicamentos, beneficiando a saúde pública e prolongando a vida dos pacientes. Sem a proteção das patentes, a inovação neste setor crucial poderia ser significativamente reduzida.

No entanto, a propriedade intelectual também apresenta desafios e controvérsias, especialmente em relação ao equilíbrio entre os direitos dos titulares e os interesses da sociedade. Um exemplo disso é a licença compulsória, uma medida que permite ao governo autorizar terceiros a utilizar uma patente sem o consentimento do titular, geralmente em casos de emergência nacional ou interesse público.

Embora a licença compulsória possa ser vista como um desincentivo para os inventores, ela é considerada uma ferramenta necessária para garantir o acesso a medicamentos essenciais e outras tecnologias críticas em situações de crise.

Durante a pandemia de COVID-19, a discussão sobre licenças compulsórias ganhou destaque. Países como o Brasil e o Canadá implementaram medidas para facilitar a emissão de licenças compulsórias para medicamentos e vacinas contra o coronavírus(BLANCHET, BOMFIM e CASTRO, 2023).

Esse movimento visa garantir que tratamentos e vacinas sejam acessíveis a toda a população, especialmente em países com recursos limitados. A aplicação de licenças compulsórias em tais contextos ilustra a tensão entre os direitos de propriedade intelectual e a necessidade de atender às demandas de saúde pública e bem-estar social.

Além do setor farmacêutico, outros setores econômicos também se beneficiam significativamente da proteção da propriedade intelectual. Na indústria de tecnologia, por exemplo, patentes e direitos autorais são fundamentais para proteger software, hardware e inovações digitais. Empresas de tecnologia investem bilhões de dólares em P&D para desenvolver novos produtos e serviços, e a proteção da propriedade intelectual garante que possam colher os frutos desses investimentos. Isso incentiva uma contínua inovação e a criação de tecnologias que transformam a sociedade e impulsionam o crescimento econômico.

Em conclusão, os direitos de propriedade intelectual têm um impacto econômico profundo e abrangente, incentivando a inovação, atraindo investimentos, facilitando a transferência de tecnologia e promovendo o desenvolvimento em diversos setores.

No entanto, é essencial equilibrar esses direitos com os interesses da sociedade, garantindo que a propriedade intelectual também atenda à sua função social. A licença compulsória é um exemplo de como este equilíbrio pode ser alcançado, especialmente em tempos de crise.

Com base nessa contextualização, no próximo tópico será realizada uma contextualização acerca da função social da propriedade intelectual e suas relações com os direitos fundamentais coletivos.

4 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS COLETIVOS

A tensão entre os direitos individuais de propriedade intelectual e os direitos fundamentais coletivos é um tema recorrente nas discussões jurídicas e econômicas. Os direitos de propriedade intelectual conferem exclusividade aos seus titulares, permitindo-lhes controlar a utilização de suas criações.

No entanto, essa exclusividade pode entrar em conflito com direitos coletivos, como o direito à saúde, à educação e ao acesso à cultura. A pandemia de COVID-19 trouxe à tona essa tensão, com debates intensos sobre a necessidade de flexibilizar direitos de patentes para garantir o acesso universal a vacinas e tratamentos. A balança entre incentivar a inovação e garantir o acesso a bens essenciais é delicada e exige políticas públicas bem articuladas.

A função social da propriedade intelectual é um princípio fundamental no contexto jurídico brasileiro, refletindo a necessidade de que os direitos sobre criações intelectuais beneficiem não apenas os seus titulares, mas também a sociedade em geral.

A Constituição Federal de 1988 consagra a função social da propriedade, incluindo a propriedade intelectual, estabelecendo que esta deve atender ao desenvolvimento técnico, tecnológico, científico e humano da sociedade.

Este princípio é particularmente relevante quando se considera a tensão entre os direitos individuais de propriedade intelectual e os direitos fundamentais coletivos. Isso é particularmente evidente no contexto das patentes, onde a exclusividade concedida ao inventor é temporária, permitindo que, após o término do período de proteção, a invenção caia em domínio público e possa ser utilizada livremente por todos (CRUZ, 2006).

A função social da propriedade intelectual é refletida na legislação e nos tratados internacionais, como o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS). Essas normas buscam equilibrar os interesses dos criadores e do público, garantindo que a inovação e o progresso sejam amplamente disseminados e acessíveis.

É possível conceber a existência de uma certa dicotomia jurídica em relação a esse contexto da função social da propriedade intelectual. Primeiro porque as proteções de natureza individual e patrimonial de seus possuidores tem um impacto econômico significativo, uma vez que influenciam diretamente os investimentos em pesquisa e desenvolvimento, garantindo que os inventores e criadores possam obter retorno financeiro sobre suas inovações.

Isso é particularmente importante em setores como o farmacêutico e o tecnológico, onde os custos de desenvolvimento são elevados. A segurança jurídica proporcionada pela proteção de patentes, marcas e direitos autorais estimula o investimento e a criação de novas tecnologias, beneficiando tanto os consumidores quanto os criadores.

Ademais, a propriedade intelectual contribui para a competitividade das empresas e das economias nacionais. Empresas que detêm patentes e marcas fortes podem assegurar uma posição de liderança no mercado, protegendo suas inovações contra a concorrência desleal.

Noutro ponto, não é absurdo em certo ponto afirmar que esses direitos carecem de mitigação de seus efeitos de proteção individual em face da necessidade de garantia e efetivação de direitos fundamentais coletivos, principalmente daqueles relacionados à vida e à saúde.

Neste contexto, a função social da propriedade intelectual também exige que seus benefícios se traduzam em avanços acessíveis ao público, melhorando a qualidade de vida e promovendo o progresso científico. Sem essa dimensão social, a proteção da propriedade intelectual pode se tornar um obstáculo ao livre acesso ao conhecimento e à inovação.

A concretização de direitos fundamentais sociais através da propriedade intelectual é um desafio complexo, que envolve a harmonização de interesses individuais e coletivos.

Os direitos de propriedade intelectual, embora essenciais para incentivar a inovação, não podem ser exercidos de maneira a prejudicar o acesso a bens essenciais, como medicamentos e tecnologias.

A licença compulsória de patentes, prevista na legislação brasileira, é um mecanismo que busca equilibrar esses interesses, permitindo ao governo autorizar o uso de patentes sem o consentimento do titular em casos de emergência nacional ou interesse público.

Este dispositivo exemplifica como a função social da propriedade intelectual pode ser efetivada para atender às necessidades coletivas sem eliminar os incentivos para a inovação. 

A função social da propriedade intelectual também se manifesta na promoção do desenvolvimento cultural. Os direitos autorais protegem obras literárias e artísticas, garantindo aos autores a possibilidade de explorar economicamente suas criações. No entanto, a legislação prevê exceções e limitações que permitem o uso de obras protegidas para fins educacionais, de crítica e de pesquisa, garantindo que o acesso ao conhecimento e à cultura não seja restringido excessivamente. Este equilíbrio é fundamental para assegurar que a proteção dos direitos autorais não impeça a disseminação de conhecimento e a diversidade cultural.

Para equilibrar os direitos individuais de propriedade intelectual com os direitos fundamentais coletivos, é necessário adotar uma abordagem que considere tanto os incentivos à inovação quanto o bem-estar social.

A proteção internacional da propriedade intelectual, através de tratados como o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), também deve ser considerada no contexto da função social.

Esses tratados estabelecem padrões mínimos de proteção que os países devem seguir, mas também reconhecem a necessidade de flexibilidade para atender às necessidades de saúde pública e desenvolvimento. A implementação eficaz dessas disposições pode ajudar a garantir que a proteção da propriedade intelectual não se torne um obstáculo ao desenvolvimento e ao bem-estar social.

Em conclusão, a função social da propriedade intelectual é essencial para garantir que os direitos sobre criações intelectuais contribuam para o desenvolvimento técnico, tecnológico, científico e humano da sociedade.

5 CONCLUSÃO

O estudo da propriedade intelectual nos revela a complexidade e a importância desse campo do direito, que protege criações do espírito humano e contribui para o desenvolvimento técnico, tecnológico, científico e humano da sociedade.

A propriedade intelectual evoluiu ao longo dos séculos, adaptando-se às mudanças sociais, econômicas e tecnológicas. Desde as guildas medievais até os sofisticados sistemas legais contemporâneos, a proteção das criações intelectuais tem sido essencial para incentivar a inovação e garantir que os criadores possam obter retorno financeiro justo por suas invenções e obras.

A Revolução Industrial marcou um ponto de inflexão significativo na história da propriedade intelectual, quando a necessidade de proteger invenções e criações artísticas e literárias se tornou premente. A criação de sistemas formais de patentes e direitos autorais durante este período proporcionou um incentivo essencial para a inovação. 

Contudo, como visto ao longo do estudo, a natureza jurídica da propriedade intelectual é complexa e multifacetada. Os direitos dela decorrentes são geralmente vistos como uma forma de propriedade, conferindo ao titular o controle exclusivo sobre a utilização de sua criação.

Do mesmo modo, a propriedade intelectual desempenha uma função social significativa, promovendo a inovação e a criatividade, contribuindo para o desenvolvimento econômico, tecnológico e cultural da sociedade.

A seu turno, a Carta Magna de 1988 estabeleceu os parâmetros legais para que propriedade intelectual alcance a sua função social, seja no âmbito de seus direitos e garantias individuais, relacionados ao detentor de sua posse, ou no âmbito dos direitos fundamentais coletivos, garantindo à sociedade o benefício decorrente de sua criação. 

Em conclusão, a propriedade intelectual, ao proteger as criações do espírito humano, desempenha um papel essencial no incentivo à inovação e ao desenvolvimento econômico.

Porém, para equilibrar os direitos individuais de propriedade intelectual com os direitos fundamentais coletivos, é necessário adotar uma abordagem que considere tanto os incentivos à inovação quanto o bem-estar social.

Políticas públicas que promovam a pesquisa e o desenvolvimento em instituições públicas, aliadas a mecanismos de licenciamento compulsório, podem garantir que inovações essenciais estejam disponíveis a todos.

Além disso, a educação e a conscientização sobre a importância da função social da propriedade intelectual são fundamentais para promover uma cultura de equilíbrio entre interesses privados e coletivos.

Do mesmo modo, o desenvolvimento e efetivação de políticas públicas bem delineadas e da promoção de um ambiente jurídico equilibrado, é possível assegurar que a propriedade intelectual contribua para o progresso contínuo e sustentável da sociedade.

6 REFERÊNCIAS

BITTAR, Carlos Alberto. A lei de direitos autorais na jurisprudência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988.

BLANCHET, Luiz Alberto; BOMFIM, Gilberto; CASTRO, Bruno Fediuk de. A licença compulsória de patentes à luz da análise econômica do direito no cenário de pandemia do COVID-19. Scientia Iuris, Londrina, v. 27, n. 1, p. 149-163, mar. 2023. Disponível em: <https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/iuris/article/view/42264/48841>. Acesso em: 20 jun.2024.

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3 Na Baixa Idade Média (séculos XII ao XV), surgiram associações ou corporações de ofício conhecidas como guildas. Em sua maioria, as guildas eram compostas por artesãos profissionais e independentes, que se uniam emigualdade de condições com o objetivo de proteger seus interesses comuns e preservar os privilégios adquiridos em relação ao exercício e prática de suas atividades comerciais/profissionais.


1Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Autônoma de Direito – FADISP; Secretário Geral da Presidência do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso. E-mail: mcastilho@tce.mt.gov.br.

2Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Autônoma de Direito (FADISP); Secretário Executivo da Corregedoria-Geral do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso. E-mail: inacio@tce.mt.gov.br.