PROCESSOS CRIATIVOS E SUBJETIVOS DA FORMAÇÃO DOCENTE: ABORDAGEM NECESSÁRIA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202510071012


Cláudia Bailão Opa1


RESUMO

O texto discute a centralidade da Arte na formação docente a partir do legado de Ana Mae Barbosa e de sua Abordagem Triangular (AT)—Contextualização, Produção e Fruição—como estrutura dialógica de ensino-aprendizagem que integra fazer artístico, leitura crítica de imagens e contextualização histórico-cultural. Expõe a dupla triangulação da AT (epistemológica e genealógica) e sua recepção nos PCN e na BNCC (2017), reconhecendo avanços na garantia da Arte como campo de conhecimento e alertando para limites como generalidade de descritores, riscos de padronização e instrumentalização. Articula-se a tríade Arte–Psicanálise–Educação, situando o professor-sujeito no entrelaçamento do real, simbólico e imaginário, e defendendo a criatividade como categoria desenvolvível, não como dom inato. As linguagens artísticas (teatro, dança, música e artes visuais) são apresentadas como dispositivos de subjetivação, leitura do mundo e elaboração de afetos, contribuindo para autonomia, criticidade e produção de sentidos. Em diálogo com Harari, problematiza-se a conjuntura sociotécnica-dataísmo, autoridade algorítmica e desumanização—e reafirma-se o ensino de Arte como prática de liberdade e de resistência à homogeneização cultural. Dessa forma, a formação dos professores de Arte está implicada em promover experiências estéticas, criativas e reflexivas capazes de sustentar o sujeito diante das incertezas contemporâneas e de ampliar o acesso ao universo simbólico na escola.

Palavras-chave: Abordagem Triangular; processos criativos; subjetividade; formação docente.

Introdução

Para principiar a reflexão sobre os processos criativos e subjetivos da formação docente, apresento Ana Mae Barbosa, carioca de nascimento, criada em Pernambuco desde menina, graduada em Direito, pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1960. Carreira que abandonou logo após a formatura. 

É a principal referência no Brasil para o ensino da Arte nas escolas, tendo sido a primeira brasileira com doutorado em Arte-educação, defendido em 1977, na Universidade de Boston. Diretora do Museu de Arte Contemporânea, da Universidade de São Paulo (MAC-USP), e primeira pesquisadora a se preocupar com a sistematização do ensino de Arte em museus. Foi aluna de Paulo Freire, o que permitiu integrar a sua teoria às contribuições da contextualização histórica e cultural, do “Velho Mestre”, à abordagem que estava sendo criada.

Em 1987 desenvolveu, a Abordagem Triangular (AT), o primeiro programa educativo em arte, tornando-se a base da maioria dos planejamentos em arte-educação no Brasil, principalmente depois de ter sido referência nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Arte, dos Ensinos Fundamental e Médio. A Proposta ou Abordagem Triangular consiste em três ações para se construir conhecimentos em arte: I) Contextualização; II) Produção; III) Fruição. Oliveira e Corrêa (2018, p. 3) caracteriza as ações em:

Contextualização: Permite entender em que condições a mesma foi produzida, bem como as relações de poder que estão implícitas nessa produção. 
Produção/Fazer: Estão envolvidos neste pilar os aspectos da criação artística. Nele, o sujeito torna-se autor e precisa mobilizar conhecimentos sobre as linguagens para transformar em invenções artísticas. 
Fruição/Apreciação: Organiza-se diante de aspectos que lidam com as interações entre o sujeito e os Artefatos da Arte. Nesse eixo são mobilizadas competências de leitura que requerem do sujeito o domínio dos códigos estruturantes e suas relações formais. 

Assim, a Abordagem Triangular tem reconhecimento histórico, junto aos profissionais de arte-educação, enquanto proposta dialógica que potencializa a construção do conhecimento crítico-reflexivo no processo de ensino da arte. No tocante a esse estudo especialmente, o tripé Contextualização-Produção-Fruição se enlaça ao Nó Borromeu2 (real, do simbólico e imaginário), assim surge a imagem que abre o capítulo, uma composição que sustenta o laço do processo constitutivo do sujeito, bem como, da aprendizagem pela arte.

A proposta triangular deriva de uma dupla triangulação. A primeira é de natureza epistemológica, ao designar os componentes do ensino/aprendizagem por três ações mentalmente e sensorialmente básicas, quais sejam: Criação (fazer artístico), Leitura da obra de Arte e Contextualização. A segunda triangulação está na gênese da própria sistematização, originada em uma tríplice influência, na deglutição de três outras abordagens epistemológicas: as Escuelas al Aire Libre mexicanas, o Critical Studies Inglês e o Movimento de Apreciação Estética aliado ao DBAE (Discipline Based Art Education) americano (Barbosa, 2007, p. 34).

A AT tem como enfoque o exercício da crítica e análise de imagens, incluindo o ato de “ver” como parte essencial de um processo de aprendizagem em Arte, possibilitando diferentes caminhos para Fazer/Produzir, Ler/Fruir e Contextualizar. A noção de triângulo permite ao professor escolher em qual das pontas iniciará seu trabalho. Por isso, é uma abordagem dialógica. Sua potência está na relação entre a tríade que permite reordenação da prática docente. Assim, não deve ser tomada como um passo a passo ou um receituário. Assim Ana Mae Barbosa (2016, p. 685), complementa:

No Brasil, a ideia de antropofagia cultural nos fez analisar vários sistemas e sistematizar novamente o nosso, através da AT, a partir das condições estéticas e culturais da pós-modernidade e das necessidades do país. A pós-modernidade em Arte-Educação caracterizou-se pela entrada da imagem, sua decodificação e interpretação na sala de aula, junto com a já conquistada expressividade, e também pela relação estabelecida entre o erudito e o popular, a arte local e a arte internacional e pela atenção ao contexto, por mais marginal que ele fosse. A AT não é baseada em disciplinas, mas em ações, fazer, ler, contextualizar.

Dessa maneira, a AT é uma abordagem em “processo”, e como tal se enlaça a outros elementos para se constituir, a criatividade é um deles. Vale salientar que a criatividade não é um “dom” inerente a apenas alguns privilegiados, nem consiste em lampejos de ideias que ocorrem sem explicação, é sim, uma categoria do pensamento que pode ser desenvolvida e implementada. Para Tânia Fraga (1997, p. 33), esse fazer artístico é “entendido como o resultado da expressão de conteúdos cognitivo-criadores de matrizes formais icônicas que possibilitarão configurar novas e virtuais realidades, trata-se das experiências artísticas singulares, vivenciadas para ressaltar a importância da arte na vida do sujeito, uma expressão tangível de seus afetos.  

Envolvida neste contexto está, de forma muito particular a escola, pois é neste espaço que o sujeito se organiza nas interações com as múltiplas dimensões do cotidiano. É esse ambiente propício para o aprender e ensinar, que possibilitará aos sujeitos emergir em suas subjetividades e (des)afetos.

Além de reservar um lugar para a Arte no currículo, é também necessário se preocupar como a Arte é concebida e ensinada. A falta de preparação de pessoal para ensinar Artes é um problema crucial, levando-nos a confundir improvisação com criatividade. O conhecimento das Artes tem lugar na interseção: experimentação, decodificação e informação. Nas Artes visuais, estar apto a produzir uma imagem e ser capaz de ler uma imagem são duas habilidades inter-relacionadas (Barbosa, 2007, p. 17).

A criatividade na escola será um aporte relevante nesse processo, tendo em vista que pode ser elemento favorável ao acesso do universo simbólico, permitindo a constituição de potencialidades latentes e manifestas, à medida que o sujeito exercita sua potência criadora, pode ampliar o conhecimento de si, do outro e de seu entorno.

Dessa forma, Ana Mae Barbosa (2006) uma das maiores autoridades brasileiras nos estudos sobre arte-educação, traz algumas pistas que nos permitem compreender o perfil cultural e artístico da população brasileira. Para ela, a identificação da criatividade como espontaneidade não é surpreendente, pois é uma compreensão que parte do senso comum, posto que os professores de arte não têm tido a oportunidade de estudar as teorias da criatividade ou disciplinas similares nas universidades, durante a formação inicial, afinal estas não são disciplinas determinadas pelo currículo mínimo dos cursos de licenciatura, o que significa que é possível, que muito profissionais da área de artes, não conheçam de fato esse conceito, que é fundante para o exercício da profissão.

Abordagem Triangular em Tríade Formativa 

A abordagem triangular articula o estudo da arte e as experiências vividas pelo sujeito em uma perspectiva política, logo as ações que a compõem (contextualização, produção, fruição), não podem ser vistas dissociadas ou fragmentadas. Do mesmo modo, o professor-sujeito ao fazer laço com a tríade formativa, representada pela arte-educação-psicanálise, se localiza num contexto de concepção dialética, crítica, de transitoriedade contemporânea e de diversidade cultural.

Nesse sentido, Abordagem Triangular no ensino de Arte contribui não apenas para a formação do conhecimento artístico, mas também para a constituição de uma vida criativa, pautada na criticidade, originalidade e no sonho, que possibilita ao sujeito pensar o futuro como um espaço de invenção – onde desejos e projetos se entrelaçam a caminhos possíveis. Do ponto de vista, da legislação vigente a Base Nacional Comum Curricular, documento elaborado pelo Ministério da Educação do Brasil, em 2017, diz:

Dentre as linguagens de Artes Visuais, Dança, Música e Teatro, devem estar articulados os saberes, referentes a produtos e fenômenos artísticos que envolvam as práticas de criar, ler, produzir, construir, exteriorizar e refletir sobre formas artísticas. Articulando as dimensões do conhecimento de Criação, Crítica, Estesia, Expressão, Fruição e Reflexão. Não se trata de eixos temáticos ou categorias, mas de linhas maleáveis que se interpenetram, construindo a especificidade da construção do conhecimento em Arte na escola. Não há nenhuma hierarquia entre essas dimensões, tampouco uma ordem para se trabalhar com cada uma no campo pedagógico (BNCC Artes, 2017, p. 189-190).

A BNCC (2017), enquanto, documento normativa do ensino da arte se coloca num horizonte comum, apresenta pouca inovação se comparado aos PCN’s – Parâmetros Curriculares Nacionais, lançados em 1997, mantendo a maioria dos tópicos como o reconhecimento e a diversidade das linguagens artísticas – artes visuais, dança, música e teatro, somando a essas as artes integradas, o que contribui para a valorização de suas potências expressivas.

Também mantém a ênfase na abordagem triangular, articulando a contextualização, a produção e a fruição, evitando reduzir a arte a mera execução técnica; e garante aos alunos, em âmbito nacional, o acesso à cultura, reforçando a arte como campo de conhecimento e não apenas atividade complementar, destaca-se com isso, a importância do contato com as manifestações artísticas locais, regionais, nacionais e internacionais, promovendo pluralidade e respeito às identidades.

Todavia, o professor de arte precisa ficar atento às limitações que ela pode gerar, no que tange o excesso de generalidade, pois muitas vezes os descritores são amplos e podem dificultar a prática docente, exigindo adaptações significativas. Um ponto de tensão é o modo como o documento orienta sobre a padronização das aprendizagens, visto que a arte pressupõe liberdade, singularidade e processos criativos, que não cabem em objetivos curriculares pré-definidos. Há ainda o risco da instrumentalização da arte, ou seja, deixar em segundo plano a dimensão estética, crítica e poética, para ser aplicada como reforço a outras áreas de conhecimento. 

Talvez o ponto de maior crítica seja mesmo o tocante a formação docente, não especificada com clareza, o que corrobora com o panorama visto em campo, marcado pela ausência ou insuficiência de investimento, tanto público como privado, o que fragiliza o trânsito docente entre os conceitos e linguagens artísticas.

Dito isso, confirmo a arte como parte da tríade que se constitui no fazer, por meio das diversas linguagens artísticas (dança, música, teatro, artes visuais, etc.), possibilitando a comunicação dos afetos, medos, angústias, amores, que podem ser transformados em ideias, subjetivados em palavras, já que estes são o instrumento linguístico do pensamento e, consequentemente, transpostos em imagens.

Para Frayze-Pereira, tal qual como o sonho, o objeto plástico reflete aspectos delirantes.

Aproximar-se desse objeto com palavras que permitem a apreensão de seu sentido significa dissipá-lo, assim como a conversão da imagem onírica em discurso conduz a significação para o espaço da racionalidade, rasgando o véu das representações sob o qual essa significação se ocultava (Frayze-Pereira, 2006, p. 61).   

O objeto plástico, enquanto construção visível, situa-se no espaço de realização imaginária do desejo. E é nisto que reside à função da arte, conforme aparece no ensaio “Escritores Criativos e Devaneio” (1908), quando Freud distingue dois componentes do prazer estético: um prazer propriamente libidinal que provém do conteúdo da obra à medida que esta nos permite realizar nosso desejo (o que fazemos por identificação com o personagem ou com algum elemento do assunto tratado na obra) e um prazer imaginário proporcionado pela forma ou posição da obra que se oferece ao olhar não como um objeto real, mas como uma espécie de brinquedo, de objeto intermediário, a propósito do qual são permitidas fantasias e atos com os quais o espectador pode se deleitar frente ao elo imaginário borromeano.

Ainda segundo Frayze-Pereira:

Essa função de desvio com relação à realidade e à censura é uma característica das obras de arte. E, considerando que o interesse de Freud pela arte relaciona-se à leitura dos significados reprimidos e inconscientes, o trabalho artístico é entendido como uma atividade de expressão sublimada de desejos proibidos. E o artista, nessa medida, é concebido como um ser talentoso o bastante para transformar os impulsos primitivos, sexuais e agressivos, em formas simbólicas, isto é, culturais (Frayze-Pereira, 2006, p. 62).   

Sendo assim, os sonhos e os jogos de linguagem, no trabalho artístico, facilitam a expressão, o reconhecimento e a elaboração dos afetos reprimidos, tanto para os artistas quanto para os espectadores que, por sua vez, compartilham com os primeiros a mesma insatisfação reveladas pelo prazer e (des)prazer.

Para esta expressão, a arte, quando utilizada em momentos de formação, pode oferecer ao professor-sujeito inúmeras possibilidades para que se sinta livre na escolha daquele que mais lhe for adequado, atendendo assim ao seu desejo de expressão. Com essa ferramenta em punho ele poderá abrir caminho para o despertar da criatividade e deixar fluir o seu inconsciente. 

A formação do professor de arte tem, portanto, este caráter peculiar de lidar com as complexas questões da produção, da apreciação e da reflexão do próprio sujeito, e das transposições das suas experiências com a Arte para sala de aula com seus alunos (Barbosa, 2012, p. 176).

Chamo atenção, que em meio a tríade formativa, não se pretende que a psicanálise seja vista como uma abordagem pedagógica, na qual escolas a tenham como paradigma a ser seguido, posto que o inconsciente3 é uma instância independente e não é função do professor dominá-lo. No entanto, ela pode contribuir com a escola na medida em que busca espaços que favoreçam a reflexão sobre medos, angústias e desejos, promovendo o diálogo e oferecendo parâmetros importantes para que o professor se perceba enquanto sujeito da falta, da incompletude, o que, em certa medida, a pedagogia parece não querer ver.

Linguagens artísticas na ação constitutiva do professor-sujeito

Ao trabalhar com materiais artísticos, o sujeito tem a possibilidade de criar uma nova forma a partir de uma forma original. As linguagens artísticas realizam tanto à execução visível de uma ideia (fantasia, afeto, pulsão etc.), como também exercitam o imaginário ao dar uma nova configuração a um modo comum de ser. 

No processo de formação docente as linguagens artísticas podem apresentar-se com um leque de possibilidades na ação constitutiva do professor-sujeito, aqui ilustrada, nestas quatro vertentes: Teatro, Dança, Música e Artes Visuais.

O teatro, como arte, foi formalizado pelos gregos, passando dos rituais primitivos das concepções religiosas que eram simbolizadas, para o espaço cênico organizado, como demonstração de cultura e conhecimento. É, por excelência, a arte do homem e da mulher exigindo a sua presença de forma clivada: seu corpo, sua fala, seu gesto, manifestando a necessidade de expressão e comunicação. 

O ato de dramatizar está potencialmente contido em cada um, como uma necessidade de compreender e representar uma realidade. Ao observar uma criança em suas primeiras manifestações dramatizadas, o jogo simbólico, percebe-se a procura na organização de sua relação parental. A dramatização, por sua vez, acompanha o adolescente como uma manifestação espontânea, assumindo feições e funções diversas, sem perder a interação entre ele e a ambiência. Essa atividade evolui para o jogo de regras, do individual para o coletivo. 

O teatro tem como fundamento a experiência de vida: ideias, conhecimentos e afetos. A sua ação é a ordenação desses conteúdos individuais e grupais.

No processo de formação do professor, o teatro pode cumprir não só a função agregadora, mas dá oportunidade para que ele se aproprie crítica e construtivamente dos conceitos sociais e culturais de sua comunidade. No dinamismo da experimentação e da fluência criativa pode transitar livremente estruturando o real, o simbólico e o imaginário. 

A dança faz parte da cultura humana e integra o trabalho, as religiões e o lazer. Os povos sempre privilegiaram a dança, sendo esta um bem cultural e uma atividade inerente à natureza do homem.

A atividade da dança pode desenvolver no professor a compreensão de sua capacidade de movimento, mediante um maior entendimento de como seu corpo funciona. Assim, poderá usá-lo expressivamente com maior inteligência, autonomia, responsabilidade e sensibilidade. 

Um dos objetivos da dança é a compreensão da estrutura e funcionamento corporal e a investigação do movimento do sujeito desejante.

Esses conhecimentos devem ser articulados com a percepção do espaço, peso e tempo. A dança é uma forma de integração e expressão tanto individual quanto coletiva, em que o sujeito exercita a atenção, a percepção e o equilíbrio. A dança é também uma fonte de comunicação e de criação informada nas culturas. 

A música sempre esteve associada às tradições e culturas de cada época. Atualmente, o desenvolvimento tecnológico aplicado às comunicações vem modificando consideravelmente as referências musicais das sociedades pela possibilidade de uma escuta simultânea de toda produção mundial por meio da televisão, internet, jogos eletrônicos, cinema, publicidade, etc.

A música envolve os sujeitos, promovendo interação com os grupos musicais e artísticos. A canção, por exemplo, oferece a possibilidade de contato com toda a riqueza e profusão de ritmos do Brasil e do mundo, que nela se manifesta. 

As artes visuais, além das formas tradicionais (pintura, escultura, desenho, gravura, arquitetura, artesanato), incluem outras modalidades que resultam dos avanços tecnológicos e transformações estéticas a partir da contemporaneidade (fotografia, artes gráficas, cinema, televisão, vídeo, computador, performance, etc.).

Cada uma dessas visualidades é utilizada de modo particular e em várias possibilidades de combinações entre imagens, por intermédio do qual o sujeito pode expressar e comunicar-se consigo mesmo e com o outro. 

Criar e perceber formas visuais implica trabalhar frequentemente com as relações entre os elementos que as compõem, tais como ponto, linha, plano, cor, luz, movimento e ritmo. As articulações desses elementos nas imagens dão origem à configuração de códigos que se transformam ao longo dos tempos. O sujeito cria sua poética onde gera códigos singulares. É preciso considerar as técnicas, procedimentos, informações históricas, produções, relações culturais e sociais envolvidas na experiência que darão suporte às suas criações. Dessa forma, tais representações auxiliarão na constituição do sujeito.

Desafios da formação docente: a mudança é a única constante

Formar-se professor de arte é aprender a navegar em mares de incerteza: cada aula, um horizonte novo; cada aluno, um mundo a descobrir. Equilibrar saberes e emoções, tecer paciência e coragem, bordar sonhos na trama da realidade, e transformar desafios em caminhos de criação e liberdade. Ser professor é caminhar entre o que se sabe e o que estar por descobrir. É aprender a escutar e a questionar, enfrentar dúvidas, integrar diferenças e encontrar sentido naquilo que transcende os livros e as regras.

O historiador Yuval Noah Harari, professor titular no Departamento de História da Universidade Hebraica de Jerusalém, tem uma visão bastante crítica e provocadora sobre o sistema educacional atual. No capítulo 19, intitulado “Educação”, de seu livro 21 lições para o século 21 (2018), destaca que os sistemas educacionais foram criados para atender às necessidades da era industrial — com foco em disciplina, repetição, memorização e formação de trabalhadores padronizados. Logo, a escola está profundamente desatualizada diante dos desafios do nosso tempo. 

Para o autor, a humanidade está lidando com o colapso de grandes narrativas ideológicas que orientaram o mundo no século XX — especialmente o liberalismo, o comunismo e o fascismo, este derrotado desde a Segunda Guerra Mundial; o comunismo com o fim da Guerra Fria; e o liberalismo, única das narrativas que venceu, hoje está em crise, pois não consegue cumprir com a promessa de garantir a liberdade individual, a democracia e o capitalismo como caminhos para a paz e prosperidade.

A narrativa liberal celebra o valor e o poder da liberdade. Diz que durante milhares de anos a humanidade viveu sob regimes opressores que concediam ao povo poucos direitos políticos, poucas oportunidades econômicas ou liberdades individuais, e restringiam rigorosamente os movimentos de indivíduos, de ideias e de bens. Mas as pessoas lutaram por sua liberdade, e passo a passo a liberdade se firmou. Regimes democráticos tomaram o lugar de ditaduras brutais. A livre-iniciativa superou as restrições econômicas. As pessoas aprenderam a pensar por si mesmas e a seguir o próprio coração, em vez de obedecer cegamente a sacerdotes fanáticos e tradições inflexíveis. Estradas de acesso livre, pontes sólidas e aeroportos movimentados substituíram muros, fossos e cercas de arame farpado (Harari, 2018, p. 21)

Fica expressa a dicotomia entre o que a narrativa celebra e a realidade vivida, sobretudo, nas nações marginalizadas, como nomeia o autor, pois desigualdade e a opressão, praticada por tiranos, mesmo em países liberais, escancaram a pobreza e violência sofridas por quem está a margens do sistema global. As estruturas de poder claudicam na proteção dos direitos humanos, na garantia do direito ao voto democrático, no estabelecimento de mercados livres e na mobilidade de ideias e pesquisas.

Nesse trilho reflexivo, Harari (2018) traz para o debate a rapidez da evolução tecnológica, ainda sem políticas de governo claras que orientem o seu desenvolvimento, o que pode, segundo ele, em pouco tempo interferir novamente no que chama de ‘fontes de autoridade’. Em grande parte da história da humanidade, o fundamento da autoridade provinha do poder divino, ou pelo menos acreditava-se que orientado por Ele, foi apenas nos últimos séculos que passou para humanos, já pode estar em declínio.

Em breve a autoridade pode mudar novamente — dos humanos para os algoritmos. Assim como a autoridade divina foi legitimada por mitologias religiosas, e a autoridade humana foi justificada pela narrativa liberal, a futura revolução tecnológica poderia estabelecer a autoridade dos algoritmos de Big Data, ao mesmo tempo que solapa a simples ideia da liberdade individual (Harari, 2018, p. 72).

O alerta sobre os algoritmos e seu poder de decidirem sobre o que compramos, quem amamos, em quem votamos e até sobre diagnósticos de saúde, baseados em dados coletados em plataformas digitais, geram risco de perda de autonomia, pois as pessoas podem renunciar a suas próprias decisões acreditando que os algoritmos sabem mais. Nas palavras de Harari (2018, p. 73): “Quando a autoridade muda dos humanos para os algoritmos, perdemos não só o livre-arbítrio, mas também nossa alma”, visto que a autoridade algorítmica está ligada ao capitalismo de dados (Google, Facebook, Amazon, etc.), que transformam informações pessoais em poder econômico e político, novas formas de tirania: não mais de reis ou deuses, mas de sistemas digitais invisíveis que moldam comportamentos sem que percebamos, caminhamos para o “dataísmo”, onde a autoridade dos algoritmos ameaça redefinir a liberdade e subjetividade.

O desafio da formação docente frente a todas essas transformações é enorme, posto que a função social do professor e da escola é o de preparar as futuras gerações.

Um bebê nascido hoje terá trinta anos por volta de 2050. Se tudo correr bem, esse bebê ainda estará por aí em 2100, e até poderá ser um cidadão ativo no século XXII. O que deveríamos ensinar a esse bebê que o ajude, ou a ajude, a sobreviver e progredir no mundo de 2050 ou no século XXII? De que tipo de habilidades ele ou ela vai precisar para conseguir um emprego, compreender o que está acontecendo a sua volta e percorrer o labirinto da vida? (Harari, 2018, p. 319)

Tais perguntas dão pistas sobre quão longos são os caminhos que os estudos em educação precisam percorrer na trilha da formação docente. Porém, não podemos desprezar nosso percurso constitutivo, que tem no registro artístico seu ponto inicial, desde a arte rupestre, por isso, possibilitar aos sujeitos as experiências de criatividade, criticidade, comunicação e colaboração, podem em alguma maneira permitir que estes, não se afastem de suas características humanas, que são marcadas pelas culturas – e, das quais a arte se revela como manifestação concreta através das linguagens artísticas, atravessada pela subjetividade.

Para não concluir

Ao longo deste percurso reflexivo, evidenciou-se que a Arte, enquanto linguagem e campo epistemológico, ultrapassa a mera dimensão estética, constituindo-se como via de conhecimento, de expressão e de subjetivação. A trajetória e o legado de Ana Mae Barbosa reafirmam o papel central da Arte na formação humana e docente, especialmente por meio da Abordagem Triangular, que integra Contextualização, Produção e Fruição em um movimento contínuo e dialógico de aprendizagem. Essa proposta, ao articular o fazer artístico, a leitura crítica da imagem e a contextualização histórica e cultural, consolida-se como fundamento pedagógico essencial para o desenvolvimento da sensibilidade, da criticidade e da criatividade.

A tríade Arte-Educação-Psicanálise, amplia o olhar sobre o processo formativo, ao reconhecer o professor como sujeito desejante, incompleto e criador. A arte, nesse contexto, emerge como mediadora entre o real, o simbólico e o imaginário — um espaço de elaboração dos afetos e ressignificação das experiências. Assim, o ensino de arte não se reduz a uma técnica, mas configura-se como prática de liberdade, construção de sentido e exercício de humanidade.

Frente aos desafios contemporâneos apontados por Harari (2018), marcados pela ascensão da tecnologia e pela ameaça da desumanização algorítmica, a formação docente em arte assume papel vital. Cabe ao professor de arte cultivar o pensamento crítico, a imaginação e a sensibilidade, promovendo espaços de resistência à homogeneização cultural e à mecanização do saber. Educar pela arte, portanto, é reafirmar o valor da experiência estética como um modo de existir no mundo — um modo que acolhe o sensível, o diverso e o poético.

REFERÊNCIAS :

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.

___________________. Arte-educação contemporânea: consonâncias internacionais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

___________________. Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2012.

___________________. Ensino da arte: memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2016.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (Bncc). Educação é a Base: Artes. Brasília: Ministério da Educação, 2017.

FRAGA, Tânia. Arte e tecnologia: reflexões sobre o fazer artístico contemporâneo. Brasília: Editora UnB, 1997.

FRAYZE-PEREIRA, João A. O que é psicologia da arte. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.

HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução: Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

LACAN, J. O Seminário 22. RSI. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

OLIVEIRA, M. L.; CORRÊA, M. M. A abordagem triangular e a formação do olhar estético. Revista Educação e Linguagens, v. 7, n. 12, p. 1–8, 2018.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.


1Profª e doutoranda em Educação e Contemporaneidade, PPGEduC/Uneb. Mestre em Educação, Formação e Intervenção Social, pela Université Sorbonne Paris Nord (França). Membro do Grupo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Representações Sociais – Geppe-rs. E-mail: claudiaopa@yahoo.com.br