PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO NO BRASIL: UM OLHAR SOBRE OS DESDOBRAMENTOS SOCIOECONÔMICOS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102410141037


Tiago de Almeida Santos Tergilene[1] 
Sérgio Ricardo Ribeiro Lima[2] 


Resumo 

É notório que é fundamental os serviços públicos de saneamento básico para o bem-estar da sociedade. Diante da realidade ainda vivenciada por milhões de brasileiros que se encontram sem os essenciais serviços de água e esgotamento sanitário em pleno século XXI, a Lei nº 14.026/2020, o novo marco do saneamento básico, propõe a universalização do acesso a esses serviços, mas a privatização como modelo gera questionamentos. Este estudo, com abordagem histórico-analíticocrítica, analisa criticamente o novo marco temporal do saneamento sob perspectiva teórica da logica capitalista e com base na realidade brasileira e nos fatos experimentados em países que assim o fizeram. Através da análise teórico-comparativa nas perspectivas neoliberal e marxista, o estudo demonstra como o capital busca, por meio da privatização, transformar o serviço de saneamento em espaço de valorização do capital. O neoliberalismo, como bandeira teórica e político-ideológica desde a década de 1970, ao priorizar as políticas econômicas em detrimento das sociais, nesta conjuntura atual do Brasil, visa submeter o acesso à água e ao esgoto à lógica do mercado. Já a teoria marxista expõe as contradições e crises do capitalismo na busca de novos espaços de valorização do capital; por outro lado, expõe a necessidade de alternativas que valorizem o bem-estar social acima dos interesses do lucro. A privatização do saneamento básico, nesse contexto, levanta preocupações sobre o aumento das tarifas, a redução da qualidade dos serviços e o acesso limitado para populações de baixa renda.

Palavras-chave: Saneamento básico; Privatização; Brasil

1. Introdução 

A compreensão do saneamento básico é de grande relevância para a dinâmica social e econômica de um país. Afinal, um sistema de saneamento de qualidade implica no bem-estar da população. É possível destacar uma relação de causalidade entre o déficit de assistência no setor e a proliferação de diversas doenças e problemas de saúde correlacionados. O saneamento básico se consolida como um direito social essencial à preservação da saúde humana e, ainda, como um elo para o pleno desenvolvimento e efetivação de outras garantias constitucionais, como os direitos ao ambiente equilibrado, ao desenvolvimento e à educação.

Neste contexto, é possível considerar que todo investimento público no setor de saneamento básico se torna estratégico para o desenvolvimento econômico e social do país, principalmente considerando as principais externalidades positivas[3], tais como a agregação de valor ao setor imobiliário e de turismo, geração de emprego e renda, e redução de gastos com saúde. Segundo Madeira (2010), a essencialidade e as externalidades dos serviços de água e esgoto são Serviços de Utilidade Pública (SUPs) e, nesse contexto, as questões da universalidade, qualidade e equidade da prestação dos serviços são fundamentais.

Desde a década de 1950 até o final do século passado, o investimento em saneamento básico no Brasil ocorreu pontualmente em alguns períodos específicos, com destaque para as décadas de 1970 e 1980, em decorrência do PLANASA4, que, priorizando os serviços de água e esgoto, por meio do repasse de recursos do FGTS para as Companhias Estaduais, conseguiu elevar o atendimento de abastecimento de água à população urbana de 50,4% em 1970 para 87% em 1985.

A gestão do saneamento básico no Brasil pode ser resumida em três entidades: municipais, estaduais e privadas. As empresas municipais de saneamento correspondem ao segundo segmento mais utilizado no Brasil. Segundo o Sistema Nacional de Informações do Saneamento (SNIS, 2021), cerca de 25% dos municípios brasileiros são atendidos por prestadores públicos municipais. As empresas estaduais representam um percentual bem maior, atendendo aproximadamente 70% dos municípios (SNIS, 2014). Já as empresas privadas representam apenas 5% desse montante (ABCON, 2016).

No Brasil, segundo dados do SNIS (2021), 84,01% da população é atendida com abastecimento de água tratada, 55% dos brasileiros têm acesso à coleta de esgoto e 46% dos esgotos do país são tratados. Dessa maneira, cerca de 36,3 milhões de brasileiros não são atendidos pelo serviço de distribuição de água e quase 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto, com destaque negativo para a região norte do país, que compreende 58,9% da cobertura com abastecimento de água e 13,1% da cobertura em coleta de esgoto (SNIS, 2021).

Diante da não efetividade da universalização do serviço demonstrada, pontua-se que o governo federal, por meio da Lei nº 14.026/2020, instituiu o Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, aprovado no Congresso Nacional e sancionado pela Presidência da República em 15 de julho de 2020, embasado na revogada Medida Provisória nº 868/20185. Ademais, as atualizações do Novo Marco do Saneamento Básico trazem a perspectiva de mudança nesse cenário, com abertura para empresas privadas e alterações na estrutura basilar do setor. Todavia, a premissa de atingir as metas estabelecidas para o setor até 2033 reverbera a possibilidade de não haver o devido cumprimento.

Compreende-se que os serviços de saneamento básico constituem um direito assegurado pela Constituição de 1988 e definido pela Lei nº 11.445/2007 como o conjunto dos serviços, infraestrutura e instalações operacionais de abastecimento de água, esgotamento e outros sob a responsabilidade do

Estado (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2010). Assim, visto que o Novo Marco Regulatório do Sistema de Saneamento Básico possibilita a privatização, tirando do Estado a responsabilidade de universalizar o acesso aos serviços públicos, principalmente para as periferias do país, que concentram os piores índices e onde os desafios são enormes, enfatiza-se a importância de analisar as principais alterações propostas pela Lei de nº 14.026/2020.

Assim, diante do que propõe o Novo Marco Regulatório, questiona-se que implicação poderá ter a privatização do sistema de saneamento básico no Brasil com avanço na universalização dos serviços de água e esgoto para a sociedade?

Diante do reconhecimento de que a promoção da universalização e a realização de melhorias na qualidade da prestação dos serviços de saneamento básico propostas no Novo Marco do Saneamento Básico do Brasil exigirão investimentos elevados e que a atuação da iniciativa privada nos referidos serviços implica, por sua vez, pela própria lógica capitalista, auferir retornos (lucros), o objetivo central do presente estudo é analisar criticamente o novo marco temporal do saneamento sob perspectiva teórica da lógica capitalista e com base na realidade brasileira e nos fatos experimentados em países que assim o fizeram. 

2. Metodologia 

A metodologia aplicada na realização deste trabalho propõe uma perspectiva históricoanalítica. Parte-se de uma investigação histórica da evolução do saneamento básico em território nacional. Essa análise abrange desde o processo que desencadeou a crise do Estado de Bem-Estar até a emergência do ideário neoliberal no mundo e, particularmente, no Brasil.


5 Atualiza o marco legal do saneamento básico e altera a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas competência para editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento; a Lei nº 10.768, de 19 de novembro de 2003, para alterar as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos; a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no País; e a Lei nº 13.529, de 4 de dezembro de 2017, para autorizar a União a participar de fundo com a finalidade exclusiva de financiar serviços técnicos especializados.

A análise em questão trata de um tema já regulamentado pela Lei nº 14.026/2020, embora a Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico (ANA), em julho de 2022, ainda não tenha instituído toda a normatividade de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico no Brasil. No entanto, essa análise foi realizada mediante uma interpretação teórica desse processo em duas perspectivas: neoliberal e marxista. A primeira está embasada em uma perspectiva positivista dos processos econômicos, assentada nas leis naturais do mercado de viés neoclássico. A segunda, marxista, fundamenta-se em uma perspectiva histórica e dialética, baseada nos princípios da contradição e de sua unidade (tese-antítese-síntese).

A investigação do tema em questão tem como suporte os processos de privatização desse sistema em alguns países e seus desdobramentos, servindo como referência para interpretá-los no caso específico da privatização deste setor em estudo. Além disso, a interpretação é dedutiva, pois, sendo um processo em andamento, a teoria permite amparar os possíveis desdobramentos de tal efetivação. Portanto, como é próprio da natureza do método dedutivo, a partir da observação de outros casos, pretende-se fazer considerações gerais sobre o desenrolar de tal evento.

Para a construção do arcabouço e da discussão teórica, foram apresentados três pontos centrais. No referencial teórico, abordaram-se a contextualização histórica do setor de saneamento básico no Brasil e a evolução das políticas públicas relacionadas ao setor, bem como as teorias da economia clássica, utilizando como abordagem a perspectiva positivista-utilitarista que defende a privatização de serviços públicos e, ainda, a perspectiva crítica marxista. Já nos resultados e discussão, as ideias em torno do Novo Marco do Saneamento Básico, no contexto da análise do possível impacto da proposta de universalização do acesso em termos de custo para a sociedade, a partir da privatização do setor de água e esgoto possibilitada pela Lei nº 14.026/2020, foram analisadas e discutidas.

3. Breve história do pensamento econômico: do liberalismo econômico ao Estado de Bem-Estar: mercado e Estado na evolução do desenvolvimento do capitalismo

A Economia Política, como um campo de estudo dinâmico, nos fornece a percepção da relação entre a esfera econômica e o poder estatal, que é próprio de sua natureza. Por meio de sua análise, observamos uma relação histórica, onde diversas correntes de pensamento moldaram as concepções acerca do papel do Estado na economia.

As primeiras manifestações da ciência relacionadas aos problemas econômicos começaram com uma corrente de pensamento que Adam Smith (1723-1790) chamou de sistema mercantilista. De acordo com essa corrente, a ideia de geração de riqueza baseava-se no acúmulo de metais e no forte protecionismo entre os países da época. O Estado deveria propor medidas de modo a aumentar o acúmulo de metais preciosos (BRUE, 2006). nesse contexto que nasce o pensamento de Adam Smith (1723-1790), primeiro como uma crítica ao sistema mercantilista, Ele, propõe que a riqueza de uma nação não está na posse de metais preciosos, mas em bens úteis para suprir as necessidades humanas, cuja fonte é o comércio interno.

Adam Smith escreveu “Uma investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações” (1776), responsável por descrever os primórdios da economia como campo do conhecimento. A idéia central da obra é a origem e a natureza da riqueza nacional e as mudanças na estrutura social, especialmente nas relações de produção, criando um arcabouço que ficaria conhecido como liberalismo econômico. A “mão invisível” do mercado, segundo Smith, guiaria a busca por lucros e a livre iniciativa, impulsionando o progresso da nação.

No entanto, a Grande Depressão de 1929 abalou os fundamentos do laissez-faire, dando espaço ao Keynesianismo. John Maynard Keynes (1883-1946) propôs um papel crucial para o Estado como agente anticíclico, combatendo crises através de investimentos públicos e estímulo ao consumo (KEYNES, 1936). Essa visão influenciou o surgimento do Estado de Bem-Estar Social, onde o Estado assumia a responsabilidade por garantir direitos sociais como saúde, educação e previdência social, financiados por meio de impostos progressivos (PORFÍRIO, 2022).

Após a Segunda Guerra Mundial, o Estado de Bem-Estar Social se consolidou como modelo econômico-social dominante, buscando reduzir as desigualdades sociais e promover o desenvolvimento econômico-social. Porém, nas décadas de 1970 e 1980, o neoliberalismo emergiu como resposta à crise fiscal e do modelo de bem-estar. Inspirado inicialmente por Hayek, em seguida por Milton Friedman, essa corrente defendia a livre iniciativa, a privatização de empresas estatais e a desregulamentação da economia, reduzindo o papel do Estado a um mero facilitador do mercado (LEME, 2010).

Apesar de impulsionar o crescimento econômico momentâneo em alguns países, o neoliberalismo também gerou críticas contundentes. O aumento da desigualdade social, a concentração de renda, a precarização do trabalho e aumento da miséria na América Latina (particularmente no Brasil, no segundo mandato de FHC), África e Ásia se tornaram consequências nefastas desse modelo. A desproteção dos trabalhadores e dos mais vulneráveis, somada à redução dos investimentos em serviços públicos, acentuaram as disparidades sociais e levantaram questionamentos sobre a eficiência e a justiça do sistema.

Em contraste com a visão neoliberal, a perspectiva marxista, defendida por Karl Marx e outros marxistas contemporâneos, oferece uma análise crítica do capitalismo. Karl Marx (1818-1883) desenvolveu seu método de análise no materialismo histórico e dialético para analisar o modo de produção capitalista embasada na crítica sistêmica (o capitalismo enquanto sistema totalitário) e da luta de classes. 

Marx argumentou que o sistema capitalista, por sua natureza, gera exploração e crises cíclicas cada vez mais graves. A luta de classes entre burgueses e proletariados é vista como o motor da história, culminando na inevitável superação do capitalismo por uma sociedade socialista (REZENDE, 2022).

A produção de bens de consumo e serviços é essencial para a manutenção da vida em sociedade. Esse processo é circular e acumulativo no Modo de Produção Capitalista (MPC). A interrupção de algumas das etapas deste processo pode levar o sistema à crise. Portanto, garantir todas as etapas desse processo é crucial para a existência e segurança desse sistema e do conjunto da sociedade. Sem acumulação de capital, o próprio MPC não pode existir. Desta forma, tem-se que o capital busca se valorizar, ou seja, o capitalista busca o lucro e mais do que isso, busca a maximização desse lucro. (NETTO; BRAZ, 2006).

A natureza e perpetuação das crises econômicas é reflexo de um modelo econômico já saturado, visto que, sua acumulação encontrou barreiras internas para manter a continuidade de seu processo de valorização e reprodução. Isto quer dizer, que o próprio MPC necessita buscar meios de se manter e romper com essas barreiras. Diante da crise estrutural, os ideólogos buscam no ideário neoliberal a resposta às crises do sistema, visto a irrefutável contradição entre o capital acumulado no passado e a manutenção da lucratividade no presente (SILVA, 2015).

Outra coisa é o argumento neoliberal para justificar o desaparelhamento do Estado, ou seja, o dogma do estado-mínimo. Nesse contexto, defende-se a ineficiência do Estado em administrar suas empresas e que estas somente atrapalham o bom andamento das leis do mercado, que melhor seria gerido pela “mão invisível” (LEITE, 2021). 

Saad Filho (2015) considera que a ideologia neoliberal é consideravelmente fragmentada para oferecer uma representação coerente da sociedade. Assim, acaba fornecendo um discurso populista que se baseia em noções pouco definidas de liberdade individual, concorrência e democracia, o qual busca justificar um conjunto de políticas estatais fragilmente articuladas, mas que possam favorecer de forma sistêmica o capital em geral e, particularmente, o sistema financeiro, como face e estágio dominante atual do capitalismo.

4. Contextualização histórica do saneamento básico no Brasil

Inicialmente, abordam-se os principais conceitos sobre o saneamento básico, sua implementação e evolução no Brasil, seu panorama geral no século XXI, bem como os enlaces relacionados à garantia do direito fundamental ao saneamento.

Ao longo da história, o conceito de saneamento básico foi construído socialmente, refletindo as condições materiais e sociais de cada período, bem como o desenvolvimento científico e a forma como a sociedade se apropriou desse conhecimento. (MORAES; BORJA, 2014).

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2004), saneamento é o controle de todos os fatores do meio físico do homem que exercem ou podem exercer efeitos nocivos sobre o bem-estar físico, mental e social. De outra forma, pode-se dizer que saneamento caracteriza o conjunto de ações socioeconômicas que tem por objetivo alcançar salubridade ambiental. Neste sentido, a lei 11.445/2007 atualizada pela lei 14,026/2020 considera saneamento básico como o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de: abastecimento de água potável; esgotamento sanitário; limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.

Neste presente estudo, o saneamento básico é analisado/discutido apenas considerando os dados do abastecimento de água potável e esgotamento sanitário, por sua maior relevância neste conjunto. Não se pretende com isso desconsiderar a importâncias dos demais segmentos que compõe esse setor. Ao contrário, pretende-se enfatizar dois pilares (água e esgoto) do saneamento básico, como questão essencial ao desenvolvimento humano, no que cerne, de forma sucinta, algumas das principais prerrogativas relativas à economia do setor e os problemas de regulação técnica, econômica e de qualidade de vida. Assim, para compreender o atual ponto de evolução do Brasil em saneamento básico é imprescindível a discussão do contexto histórico da implementação e desenvolvimento nessa área no país. 

Como observado por Branco (1991 apud SOARES, BERNARDES e CORDEIRO NETTO, 2002), a história brasileira é pontuada por aspectos institucionais e de regulação sobre a qualidade das águas, que se modificaram na medida em que os conceitos de saúde e meio ambiente foram sendo incorporados. Mesmo que as discussões e ações sobre saneamento básico tenham sido intensificadas no Brasil só a partir do século XX, na segunda metade do século XIX já foi marcada pela estruturação das ações de saneamento sob o paradigma do higienismo ; isto é, como uma ação de saúde, sendo um fato que contribuiu para a redução da morbimortalidade por doenças infecciosas, parasitárias e até mesmo não infecciosas (RIBEIRO; ROOKE, 2010). 

O saneamento básico ganhou força a partir do início do século XX com as primeiras instalações em grandes cidades, associadas às preocupações com a saúde pública e a necessidade a criação de políticas públicas voltadas para área (SALKER, 2007). Do início do século XX até a década de 30, a estrutura sanitária foi embasada a partir das pesquisas de Oswaldo Cruz, que reafirmou uma visão higienista, relacionando a problemática do saneamento às preocupações de saúde pública. Além disso, houve o incremento no número de cidades com abastecimento de água e da mudança na orientação do uso da tecnologia em sistemas de esgotos, com a opção pelo sistema separador absoluto  com base nas exigências sanitárias do trabalho de Saturnino de Brito (BERTONI, 2015).

Com a revolução de 1930, mudanças institucionais importantes começaram a surgir. A constituição de 1891 foi revogada e uma constituição mais avançada foi promulgada em 1934, e mais tarde em 1937 uma outra constituição foi promulgada. Neste mesmo ano foi criado a Lei das Águas, primeira legislação do país para controlar os recursos hídricos, priorizando o abastecimento público e no ano de 1937 foi criado o Departamento Nacional de Saúde (DANTAS et al., 2012), que dentre outras funções possuía Comissões Técnicas Sanitárias, responsáveis pela preparação e execução das obras sanitárias.

O Programa Nacional de Financiamento do Abastecimento de Água de 1953, marcou o processo de mudança do modo de gestão, ao descentralizar a ação estatal e estimular os municípios a prestar os serviços. Além disso, a criação, em 1959, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mudou a lógica do financiamento do saneamento no Brasil, pois ambos exigiam empréstimos para contratação de prestação de serviços de saneamento, o que estimulou uma mudança no modelo de gestão vigente na época. A partir daí inúmeros órgãos foram criados com características especificas. 

Entre os anos de 1962 e 1967 o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) era o principal órgão responsável pela política de saneamento. No período do Governo Militar vários planos econômicos com metas de abastecimento e saneamento foram criados, incluindo: o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), de 1964; o Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social, de 1966; e o Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED), de 1967 (REZENDE; HELLER, 2008).

Com a criação do PLANASA, em 1971, o país vivenciou sérias mudanças na estrutura do saneamento básico, principalmente porque existia um arcabouço remanescente da municipalização dos serviços de água e esgoto e isso ainda acarretava um cenário de acessos pouco congruentes entre as regiões (BRAGA et al., 1995). Ou seja, o viés público do serviço foi se metamorfoseando em viés mercantil, haja vista que a presença dos serviços estava relacionada com a rentabilidade local. No entanto, ressalta-se que a criação do PLANASA se deu a partir de um diagnóstico do setor de saneamento básico brasileiro pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) no final da década de 1960 e fazia parte de um pacote de políticas que buscavam consolidar um modelo desenvolvimentista sob a premissa da centralização política (VASQUES, 2016 apud OLIVEIRA & SANCHEZ, 1997). Nesse sentido, o processo de implementação do PLANASA consistiu em uma série de pressões federais sobre os municípios que, maiormente, aderiram ao plano. 

Assim, na atual política de saneamento do Brasil, há fortes vestígios da instituição do PLANASA. Nesse plano, o arranjo criado permitiu às companhias estaduais o protagonismo institucional na prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil. No entanto, o fim da ditadura militar e o desmonte do aparato institucional autoritário que se seguiu levaram à extinção formal do PLANASA, em 1991 (SOUZA; COSTA, 2016). 

A década de 1990 ficou caracterizado pelo vazio institucional do setor de saneamento deixado com a extinção do PLANASA, de modo que não houve políticas federais efetivas que norteasse o setor; isso se deve em parte, ao início das políticas neoliberais protagonizadas no Brasil nos governos de Itamar Franco e FHC.

 A Constituição Federal de 1988 prevê o termo “Saneamento Básico” em três passagens. A primeira delas está no Art. 21, capítulo XX, que atribui à União a competência para “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”. A segunda passagem está no Art. 23, capítulo IX, que aborda a competência comum da União, Estados,

Distrito Federal e Municípios na promoção de “programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”. Por fim, o Art. 200, capítulo IV, dispõe que compete ao Sistema Único de Saúde (SUS), nos termos da lei, “participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico” (FREIRE, 2017).

Os serviços públicos de saneamento básico também estão previstos na Lei 11.445/2007, alterada pela Lei 14.026/2020, que identifica o saneamento básico com quatro atividades, todas consideradas serviços públicos. O Art. 3º, para os efeitos desta Lei, considera: I – saneamento básico: conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de: a) abastecimento de água potável; b) esgotamento sanitário; c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; d) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.

5. Século XXI: regulações e mudanças para o saneamento básico no Brasil

A partir de 2003, no primeiro governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), o Brasil pôde experimentar uma nova fase de avanços nas políticas voltadas ao saneamento básico. Inicialmente, houve a criação do Ministério das Cidades e da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. Em seguida, com a revisão das diretrizes da política nacional de saneamento pelo Conselho Nacional das Cidades, iniciou-se um período de elevação dos investimentos no setor por meio do Programa Saneamento para Todos, onde volumosos recursos, principalmente do FGTS e do PAT PROSANEAR, foram utilizados (PULHEZ; MARQUES, 2020).

Em 2007, o governo conseguiu aprovar a Lei Nacional de Saneamento Básico (Lei 11.445/2007), que dispõe sobre o planejamento, regulamentação, fiscalização, prestação de serviços, participação e controle social da política federal de saneamento. Essa lei, conhecida como Lei do Saneamento, consistiu no primeiro marco regulatório do setor desde o PLANASA, proporcionando a regulamentação institucional. A lei também previa a criação do Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), que só foi aprovado pelo Decreto n° 8.141 de 20 de novembro de 2013, já no governo de Dilma Rousseff (PT).

Além de políticas específicas voltadas para o setor, o governo federal, ainda em 2007, lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que inicialmente previu investimentos de R$ 40 bilhões no setor de saneamento no período de 2007 a 2010, promovendo um maior acesso da população brasileira aos serviços de água e esgoto (PULHEZ; MARQUES, 2020).

Observa-se, portanto, avanços da política estatal relacionados ao aumento gradativo do acesso da população aos referidos serviços, embora ainda insuficientes para alcançar milhões de brasileiros com serviços de saneamento básico deficitário.

A partir de 2016, já no governo de Michel Temer, o país voltou a vivenciar uma nova onda política de privatização, inclusive no setor de saneamento, com a aprovação da Lei n° 13.334/2016, que permitiu a criação do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e o programa de concessões para a área de saneamento, previsto para ser iniciado nos estados do Rio de Janeiro, Alagoas, Acre e Amapá. 

Em 2020, a Lei n° 14.026/2020 entrou em vigor como o novo marco legal do saneamento, alterando funcionalidades que não estavam embasadas no marco anterior. O marco instaurado pela Lei n° 11.445/2007, por exemplo, evidenciava uma contribuição de natureza regulatória para o setor, proporcionando a homogeneidade e regulamentação de concessões não registradas. Na criação do marco de 2020 destacam-se a concorrência e a participação do setor privado, além de alterações elementares no sentido regulamentador. Para melhor ilustrar, o Quadro 1 caracteriza as modificações da estrutura do saneamento básico desde o final do século XIX.

    Quadro 1: Principais marcos regulatórios.

PeríodoMarcos Regulatórios
República Velha (1889-1930)– Administração privada e local
  Era Vargas (1930-45)Centralização da Política  Criação do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). Código das águas
Redemocratização (1946-64)– Municipalização dos serviços de água e esgoto
  Começo da década de 1970– Criação do Plano Nacional de Saneamento (Planasa). 
      Década de 1990Política e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97)  PRONURB PROSANEAR
  Década de 2000    -Instituição de Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico (Lei 11.445/07) (Marco Regulatório) 
Década de 2010  – Plano Nacional de Saneamento (PLANSAB) Lei 8.141/ 2013
Década de 2020  – Novo Marco Regulatório Lei nº 14.026/2020

     Fonte: Elaborado pelo autor com base em Turolla (2002).

A partir dos marcos históricos sobre o setor de saneamento básico no país é possível notar que o saneamento é uma ação de saúde pública que permanece em adaptação. Mesmo havendo entendimento quanto aos benefícios resultantes da implementação dos sistemas de água e esgotos, houve tentativas de transferir esses serviços para a iniciativa privada, principalmente nos governos de FHC e Michel Temer (políticas econômicas de cunho neoliberal). De todo modo, tanto na prevenção de doenças, quanto na preservação do meio ambiente, o setor de saneamento básico se mostra imprescindível nas políticas públicas para melhoria da qualidade de vida da população.

É oportuno fazer menção à dificuldade em se alcançar as metas previstas nos planos governamentais relacionados ao saneamento básico. Como exemplo, demonstra-se, no Quadro 2, a comparação entre as metas do PLANSAB e os investimentos em saneamento, apontando que, em quatro anos apenas 20,77% das metas foram alcançadas.

Ao analisar os investimentos no setor de saneamento, observa-se na Figura 1 a evolução destes no Brasil no período 1970 (auge do saneamento com as políticas públicas do PLANASA) a 2015 ao envolver, portanto, o período correspondente a retomada dos investimentos nos dois governos do PT. Observa-se que os investimentos em saneamento básico, que na década de 1970 chegavam a quase 0,5% do PIB, durante o auge do PLANASA, diminuindo drasticamente para 0,17% do PIB após a década de 1980 com o fim das políticas públicas do PLANASA, reduzindo ainda mais com as políticas neoliberais de privatização do setor no governo de FHC na década de 1990 chegando a 0,15% do PIB. Observa-se também, que a retomada dos investimentos ocorreu a partir de 2003 com o governo Lula (0,2% do PIB), que estabeleceu políticas públicas especificas para o setor, inclusive com a criação do primeiro Marco Regulatório (Lei 11.445/2007) após a extinção do PLANASA.

Figura 01: Investimentos em saneamento básico no Brasil em % do PIB (1971-2015)

Fonte: Adaptado de Lins (2019); SNIS (2015).

Destaca-se que, em 2006, foram investidos R$ 4,5 bilhões em saneamento básico no Brasil e, em 2015, o investimento foi em torno de R$ 12,2 bilhões. É relevante mencionar, todavia, que o crescimento dos investimentos, em geral, somente acompanhou o crescimento do PIB. Em 2006, o

investimento realizado correspondia a 0,19% do PIB e, em 2015, manteve-se em patamar similar, em torno de 0,20% (ARAÚJO; BERTUSSI, 2018).

Diante do considerável aumento de investimento no setor de saneamento básico em território nacional após a Lei nº 14.026/2020, uma vez que, segundo o Ministro Rogério Marinho, o Brasil saiu de um patamar de R$ 4,5 bilhões anuais do governo federal, estadual e municipal de recursos próprios e recursos provindos de financiamento privado para mais de R$ 50 bilhões (AGÊNCIA BRASIL, 2022). É pertinente pontuar que em 2022 ocorreu o aumento das tarifas de água e esgoto em vários estados, variando entre 8,6% e 29,31% (DAERP, 2022).

5.2 Modelos de gestão do Saneamento Básico no Brasil

No debate sobre saneamento básico, existem dois pontos de vista principais: um que vê a água e o esgoto como mercadorias que obedecem às leis do mercado, e outro que defende o saneamento básico como um direito fundamental e uma ação de saúde pública que deve ser promovida por políticas públicas. Essas duas concepções influenciam a forma como os serviços são prestados e regulamentados. A prestação dos serviços de água e esgoto no Brasil é realizada por uma variedade de arranjos institucionais, classificados em quatro grupos: Público regional, Público local, Privado regional e Privado local. Em 2010, cerca de 69% dos municípios eram atendidos por prestadores públicos regionais, abrangendo 73% da população. Prestadores públicos locais atendiam 27% dos municípios e 22% da população, enquanto prestadores privados regionais e locais cobriam uma pequena parcela.

A Tabela 1 mostra a distribuição dos prestadores de água, destacando que a maioria dos municípios é atendida por prestadores públicos. A Tabela 2 revela dados semelhantes para a coleta de esgoto, com a provisão pública atendendo a maior parte dos municípios e da população.A análise regional indica que, na região Norte, menos de 50% dos municípios são atendidos por prestadores públicos regionais, enquanto a maioria da população em outras regiões é atendida por esses prestadores. A região Nordeste não apresenta privatização significativa, enquanto as regiões Sudeste e Centro-Oeste têm uma maior presença de empresas privadas.

 Nota-se a marcante participação dos prestadores públicos em áreas onde as carências e insuficiências são maiores, assim como o tamanho da população em situação de privação. No entanto, vale destacar uma maior concentração das empresas de natureza privada (local e regional) na Região Norte e Centro-Oeste do país. Esta lógica permeia o planejamento da privatização sob orientação do capital privado, com menos investimentos e maiores lucros.

No novo marco regulatório, as principais alterações na legislação do saneamento básico foram: (1) ampliação da concorrência e fim dos contratos de programa; (2) prestação regionalizada; (3) supervisão regulatória da Agência Nacional de Águas; (4) metas de desempenho; e (5) titularidade do serviço (BRUMATI, 2020).  A abertura para a iniciativa privada foi uma das alterações de maior impacto proposta para o setor. Destaca-se que a expectativa é a ampliação dos investimentos para o setor e a possibilidade de cumprir a principal meta estabelecida, de garantir até 2033, que 99% da população tenha acesso à água tratada e 90% dos habitantes brasileiros tenham acesso à coleta e tratamento de esgoto.

A Lei nº 14.026/2020 busca atrair investimentos privados para o setor e aumentar gradualmente a desestatização do saneamento básico, transferindo a responsabilidade do Estado para o setor privado. Essa abordagem baseia-se em argumentos neoliberais de que os serviços públicos são ineficientes e onerosos. No entanto, este estudo argumenta que a discussão não deve focar na redução do papel do Estado, mas sim no fortalecimento das instituições estatais para ampliar o investimento e reduzir as dificuldades no setor.

5.3 Experiências Internacionais de reestatização dos serviços de saneamento

Cabe ressaltar que as reestatizações no mundo têm ocorrido, especialmente, por conta do insucesso no alcance de metas promotoras da universalização e acessibilidade aos serviços públicos por parte das empresas privadas; da qualidade insatisfatória na prestação de um serviço considerado essencial, como água, energia elétrica e coleta de lixo ao comprometer o bem-estar da população; dos aumentos expressivos nas taxas e tarifas ao tornar os serviços inacessíveis para as famílias mais pobres, diante da priorização de lucros por parte da inciativa privada, a qual, na prática, comumente, conflita-se com a execução de serviços indispensáveis à sociedade; do aumento dos custos para os governos locais, diante da necessidade em complementar os gastos frente à atuação insatisfatória da companhia privada (COUTINHO et al., 2019).

A figura 2, apresenta os países que reestatizaram serviços de água, energia, transporte público e coleta de lixo. Observa-se a Alemanha como a principal responsável pela ação com 348 serviços reestatizados, desses 284 envolviam serviços de eletricidade, gás e aquecimento (CEE-FIOCRUZ, 2019).

Figura 2: Países que mais reestatizaram serviços de utilidade pública, entre 2000 e 2017.

Fonte: Dados do TNI (2019). Figura: UOL (2019)

Um aspecto central do debate é a tensão entre os objetivos das empresas privadas, focadas no lucro, e a necessidade de garantir serviços acessíveis e de qualidade para toda a população. Essa tensão é evidenciada pelo aumento substancial das tarifas, que torna os serviços inacessíveis para as famílias de baixa renda e pela redução dos investimentos em infraestrutura.

 No caso de Berlim, por exemplo, a privatização parcial dos serviços de saneamento resultou em um aumento de tarifas superior a 35% em menos de cinco anos, após a venda de uma participação de 49,9% da Berlinwasser Holding AG para um consórcio privado. Além disso, a falta de transparência financeira e a ineficiência dos serviços prestados pelas empresas privadas foram questões recorrentes, como demonstrado no caso de Paris. Lá, os serviços de saneamento foram privatizados em 1987 e entregues a duas empresas, Veolia e Suez. No entanto, críticas surgiram em relação à transparência e aos preços elevados, que eram entre 25% e 30% superiores aos custos registrados quando os serviços eram públicos. Com a reestatização em 2010, após o término dos contratos de concessão, houve uma redução imediata de 8% nas tarifas, o que ressalta a diferença na gestão pública e privada. O Gráfico 1 destaca que a reestatização dos serviços de saneamento básico tende a ser associada a melhorias na cobertura e na qualidade dos serviços prestados.

Esses exemplos internacionais mostram que a privatização, longe de ser uma solução universal, pode exacerbar as desigualdades sociais e comprometer a qualidade dos serviços de saneamento básico. O processo de reestatização, em muitos casos, foi uma resposta à insatisfação generalizada com os serviços privados, onde a não renovação dos contratos de concessão refletiu uma clara falta de confiança dos governos locais e da população na capacidade das empresas privadas de gerir esses serviços de forma adequada.

Gráfico 1– Serviços de saneamento básico em países que optaram por privatizar e posteriormente reestatizar esses serviços entre 2013 e 2023.

Fonte: Dados retirados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

À medida que os países reestatizam esses serviços, observa-se um aumento no percentual da população atendida de maneira eficaz, enquanto a privatização, ao longo do tempo, pode ter levado a uma redução na qualidade e acessibilidade. Esses dados reforçam a importância de considerar a reestatização como uma estratégia viável e, muitas vezes, necessária para garantir que o acesso ao saneamento básico seja tratado como um direito fundamental e não apenas como uma mercadoria.

Considerações Finais 

Este estudo investiga as possíveis implicações da privatização do sistema de saneamento no Brasil, destacando a evolução das políticas públicas voltadas para o setor e a importância desses serviços para o desenvolvimento econômico e social do país. A análise histórica revela que o crescimento nos indicadores de cobertura de água e esgotamento sanitário ocorreu apenas com políticas claras de controle e financiamento, destacando a criação do PLANASA em 1971. Este programa foi responsável pelo maior investimento já realizado no setor, cerca de 0,5% do PIB brasileiro, resultando no aumento da cobertura de água potável de 50,4% para 87% da população entre as décadas de 1970 e 1980.

No entanto, as políticas neoliberais implementadas no final da década de 1980 e na década de 1990 representaram um entrave significativo, com a redução dos investimentos públicos, o encerramento do PLANASA e o fomento à privatização das empresas públicas. Essa transição gerou uma contradição entre o capital acumulado no passado e o que permanece lucrativo atualmente, levando o capitalismo a adaptar-se à sua crise estrutural e/ou almejar maior fonte de lucros a partir de serviços de utilidade pública, rompendo as fronteiras dos estados-nação e formando cadeias produtivas globais.

Apesar de algumas análises sugerirem que a participação do setor privado pode trazer eficiência técnica e financeira, como argumentado por Araújo e Bertussi (2018), é crucial que essa participação seja cuidadosamente regulada e orientada para o interesse público. A experiência de países como a Alemanha e a França, onde as reestatizações ocorreram em larga escala, evidencia que a privatização pode, na prática, priorizar o lucro em detrimento do bem-estar social, resultando em serviços mais caros e menos acessíveis. A realidade destes países demonstrou a incompatibilidade entre a meta do lucro e a meta do bem-estar social, particularmente no caso de bens e serviços públicos.

Portanto, a reestatização surge não apenas como uma correção de rumo, mas como um reconhecimento da importância de manter o controle público sobre serviços essenciais, que são fundamentais para a garantia de direitos básicos e para amenizar um dos gargalos fundamentais parar a promoção da equidade social. A trajetória das privatizações no setor de saneamento, especialmente em países desenvolvidos, serve como um alerta para países como o Brasil, onde a privatização é vista por alguns como uma solução para os desafios do setor. No entanto, como mostram os dados e experiências internacionais, o controle público, aliado a uma gestão eficiente e a um ambiente regulatório robusto, é fundamental para assegurar que o acesso ao saneamento básico seja universal, equitativo e de qualidade.

Portanto, questiona-se seriamente a possibilidade do novo marco regulatório, ao entregar o setor para a iniciativa privada, em cumprir o que se promete.  Visto que, o setor de saneamento básico se mostra imprescindível nas políticas públicas para melhoria da qualidade de vida da população.

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[1] Economista pela Universidade Estadual de Santa Cruz. E-mail: Tastergilene.ppgee@uesc.br.

[2] Dr. Professor do curso de economia na Universidade Estadual de Santa Cruz. E-mail:sricardo@uesc.br

[3] Assim como o seu descaso gera externalidades negativas profundas sobre a qualidade de vida da população. 4 Plano Nacional de Saneamento