REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10125007
Gabriel Muniz Carletto1
RESUMO
A subsidiariedade surgiu com o pensamento aristotélico de conciliar o governo e a liberdade do indivíduo na Grécia Antiga, tendo a autonomia individual como prioridade para o Estado. A filosofia aristotélica sustenta que cabe ao Governo ajudar o indivíduo no que se fizer realmente necessário e auxiliar a pessoa capacitando-a para esta alcançar por conta própria a vida virtuosa. A doutrina católica inseriu o princípio da subsidiariedade em seus textos estabelecendo-o como uma relação harmônica entre o cidadão, o Governo e associações de variados níveis hierárquicos, zelando pela autonomia do indivíduo para lhe resguardar a dignidade, limitando a atuação estatal para as atividades que não possam ser realizadas pela sociedade e conferindo competência para determinados grupos menores executarem suas funções correspondentes, tudo funcionando de forma orgânica. Este texto apresenta uma análise do princípio da subsidiariedade, desde o surgimento da ideia de subsidiariedade e sua base filosófica, passando pelo seu surgimento no Direito Canônico e sua incorporação pelo Tratado da União Europeia, alcançando a sua incidência como princípio implícito na Constituição Federal de 1998. Assim, conclui-se que o princípio da subsidiariedade deve ser aplicado no sistema jurídico brasileiro diante de sua relação umbilical com a dignidade humana e demais princípios fundamentais.
Palavras-chave: Princípio da Subsidiariedade; Dignidade Humana; Direitos Fundamentais.
ABSTRACT
Subsidiarity emerged with the Aristotelian thought of reconciling government and individual freedom in Ancient Greece, with individual autonomy as a priority for the State. The Aristotelian philosophy maintains that it is up to the Government to help the individual in what is really necessary and to help the person by enabling him to achieve a virtuous life on his own. Catholic doctrine has inserted the principle of subsidiarity in its texts, establishing it as a harmonious relationship between the citizen, the Government and associations of various hierarchical levels, ensuring the autonomy of the individual to protect his or her dignity, limiting state action to activities that cannot be carried out by society and conferring competence for certain smaller groups to perform their corresponding functions, all functioning organically. This text presents an analysis of the principle of subsidiarity, from the emergence of the idea of subsidiarity and its philosophical basis, through its emergence in Canon Law and its incorporation into the Treaty on European Union, reaching its incidence as an implicit principle in the Federal Constitution of 1998 Thus, it is concluded that the principle of subsidiarity must be applied in the Brazilian legal system in view of its umbilical relationship with human dignity and other fundamental principles.
Keywords: Subsidiarity Principle; Dignity of Human; Fundamental Rights.
1. INTRODUÇÃO
A despeito de inexistir no sistema jurídico brasileiro referência expressa ao princípio da subsidiariedade, pode-se extrair, implicitamente, o seu conteúdo da Constituição Federal de 1988, notadamente dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil.
De início, antes de adentrar na aplicação dogmática do princípio, faz-se necessário compreender a ideia de subsidiariedade, desde a sua origem e base filosófica até o entendimento contemporâneo.
Em seguida, analisa-se a evolução, o conceito e a área de incidência do princípio da subsidiariedade propriamente dito, partindo da doutrina social da Igreja Católica para o Tratado da União Europeia.
Posteriormente, pondera-se a base filosófica e o conteúdo jurídico da dignidade humana, fazendo alusão às dimensões ontológica e relacional, bem como a sua previsão como fundamento da República Federativa do Brasil, conforme estabelece o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.
Por derradeiro, discorre-se sobre a incidência do princípio da subsidiariedade, ainda que implicitamente, no sistema jurídico brasileiro, pois o seu conteúdo subjaz às diretrizes constitucionais básicas do Estado Democrático de Direito brasileiro, afigurando-se uma via ética para concretizar os direitos fundamentais.
Desse modo, o objetivo do presente estudo é analisar a incidência do princípio da subsidiariedade no direito contemporâneo brasileiro, estando previsto implicitamente na Constituição Federal de 1988, de modo a determinar a atuação de outros atores sociais na efetivação dos direitos fundamentais.
2. A IDEIA DE SUBSIDIARIEDADE
O vocábulo subsidiariedade, etimologicamente, advém do termo em latim subsidium, denotando a ideia de ajuda ou auxílio, conforme leciona Thais Novaes Cavalcanti (2012, p.29).
José Alfredo Baracho reporta que a subsidiariedade comporta variadas definições jurídicas, porém o seu conteúdo mais significativo é a ideia de supletividade, a qual comporta dois significados, quais sejam, suplementariedade e complementaridade, nos seguintes termos (1995, p. 32):
“A complementaridade e a suplementariedade não são sempre dissociáveis. A suplementariedade é o que se acrescenta, entende-se que ela representa a questão subsidiária, destinada suplementariamente a desempatar os concorrentes. Em certas ocasiões, a questão subsidiária não é de todo secundária, desde que permite designar os vencedores, sendo que na questão subsidiária ocorre a ideia de decidir. A subsidiariedade implica, nesse aspecto em conservar, a repartição entre duas categorias de atribuições, meios, órgãos que se distinguem um dos outros, por suas relações entre si.
A ideia de complementaridade explica, de maneira ampla, a utilização feita em direito, da noção de subsidiariedade. As organizações são o fruto dos compromissos de exigências diferentes, desde que a pluralidade de direitos aplicáveis são resultado de reivindicações opostas. De um lado está o poder público, cuja própria existência é um fato incontornável, qualquer que seja a teoria que pretenda explicá-lo. Do outro lado, estão as pessoas privadas, que em uma democracia, que admite que elas possam, debaixo de certas reservas, agir livremente em todos os domínios. O direito público explica a intensidade de suas regras, ao passo que o direito privado aparece como complementar um do outro.”.
Entende-se, assim, que em toda organização administrativa possui complementaridade entre seus órgãos e, existindo vários entes, poderá ocorrer suplementariedade entre eles (BARACHO, 1995, p. 33).
De igual maneira, há subsidiariedade também no direito internacional, conforme descreve José Alfredo Baracho (BARACHO, 1995, p. 33):
“Emprega-se, também, a expressão órgãos subsidiários, quando falamos em estruturas internacionais, como ocorre com os órgãos subsidiários das Nações Unidas. Ao mesmo tempo, menciona-se, em Direito Internacional, a competência subsidiária da Assembleia Geral das Nações Unidas.”.
Em adendo, pontua-se a compreensão da ideia de subsidiariedade advinda do Direito Canônico, no sentido de a sociedade civil ser escalonada em grupos hierarquicamente superiores e inferiores, devendo-se permitir a execução das funções pelos grupos menores que possuam condições de assim o fazer, aplicando-se essa teoria nas relações entre os poderes públicos e os cidadãos (BARACHO, 1995, p. 33).
Nesse contexto, tem-se que a subsidiariedade tem o condão de preservar a autonomia do indivíduo nas relações com a sociedade e o Estado, conferindo-lhe mais liberdade, visto que limita em parte a atividade intervencionista estatal ou de órgãos superiores, consoante as lições de José Alfredo Baracho (BARACHO, 1995, p. 34):
“Destaca-se, em sua compreensão, o entendimento de que todo ordenamento visa a proteção da autonomia da pessoa humana, face às estruturas sociais. Ao mesmo tempo, assinala-se que devemos destacar a situação de determinada coletividade em relação a outras existentes, desde que toda comunidade ou coletividade inferior relaciona-se com outra coletividade superior.
O princípio de subsidiariedade aplica-se em numerosos domínios, seja no administrativo ou no econômico. Apesar de sugerir uma função de suplência, convém ressaltar que compreende, também, a limitação da intervenção de órgão ou coletividade superior. Pode ser interpretado ou utilizado como argumento para conter ou restringir a intervenção do Estado. Postula-se, necessariamente, o respeito das liberdades, dos indivíduos e dos grupos, desde que não implica determinada concepção das funções do Estado na sociedade.”.
Neste ponto, Paolo G. Carozza (2003, p. 42) ressalta a existência de uma tensão e um paradoxo, visto que ao mesmo tempo que o Estado deve intervir para auxiliar os trabalhadores, as famílias e os que de alguma forma necessitam de apoio estatal, essa ajuda é limitada, pois não pode chegar ao ponto de suprimir a autonomia dos indivíduos na parte em que eles podem realizar suas funções por conta própria.
Em relação ao sentido relacional da subsidiariedade e na preservação da autonomia das pessoas, Thais Novais Cavalcanti destaca que (2012, p. 30):
“A “ideia da subsidiariedade” também pode ser entendida como um fenômeno socioeconômico, como um fato que explicita uma relação necessária de apoio entre duas partes, preservando a ideia de autonomia e de responsabilidade, destacando a ideia de ética nas relações.”.
A subsidiariedade, conforme leciona Paolo G. Carozza, tem uma base personalista, ou seja, parte da premissa de que cada pessoa humana tem um valor inerente, o qual é ontologicamente anterior ao Estado e aos agrupamentos sociais, de modo que estes devem estar, em última análise, à serviço do indivíduo (2003, p. 42).
Em que pese essa visão de respeito ao indivíduo, Paolo G. Carozza ressalta que não se está a defender uma visão classicamente libertária da sociedade. Isto porque, o homem é um ser relacional e as associações humanas devem se encaixar organicamente, de modo que cada agrupamento maior serve ao menor até chegar ao indivíduo (2003, p.42/43).
3. BASE FILOSÓFICA DA SUBSIDIARIEDADE
A ideia de subsidiariedade, de acordo com a melhor doutrina, surgiu na antiguidade clássica e se permeou pela época medieval, tendo a sua base filosófica formada sobretudo nos pensamentos de Aristóteles e São Tomás de Aquino.
Nesse sentido, Fausto de Quadros destaca (1995, p. 12/13):
“Encontramos as primeiras manifestações da ideia da subsidiariedade em Aristóteles, em S. Tomás de Aquino e em Dante. Nos séculos XVIII e XIX, ela seria invocada, embora, na generalidade dos casos, ainda sem uma tentativa de caracterizar a sua substância, por pensadores tão diferentes como Locke, Proudhon, Tocqueville, Stuart Mill, Kant, Ketteler, von Mohl e Jellinek.
Mas seria a Doutrina Social da Igreja Católica que viria a dar construção dogmática à ideia da subsidiariedade, visando, dessa forma, por um lado, contrapor a autonomia do indivíduo ao pluralismo da vida social às ideologias coletivistas dos finais do século passado e do início deste século, e, por outro lado, combater os excessos do liberalismo, que pretendiam a supressão do papel do Estado na vida social e econômica.”.
O pensamento aristotélico que subjaz a subsidiariedade consiste em conciliar o governo e a liberdade do indivíduo na Grécia Antiga, de modo que a autonomia individual deve ser respeitada e protegida pelo Estado.
Ademais, a filosofia aristotélica enfatiza que, além da ajuda ao indivíduo no que se fizer realmente necessário, cabe ao Governo auxiliar a pessoa capacitando-a para poder alcançar por conta própria a vida virtuosa
Segundo as lições de Thais Novais Cavalcanti (2012, p. 32/33):
“Originariamente, a ideia da subsidiariedade remonta ao problema colocado por Aristóteles (384-322 a.C), explicitada especialmente em seus escritos sobre política e ética, de “como governar homens livres”, ou seja, como resolver o aparente confronto entre duas necessidades: governo e liberdade, entre o surgimento do poder e a preservação da liberdade do cidadão grego. Aristóteles desenvolve o conceito de soberania individual, em que o indivíduo é um ser soberano e a cidade-estado um ente com o dever de zelar por essa soberania. Para Aristóteles, esse conceito coincide com o princípio da liberdade de autonomia, que já apresentava algo muito próximo da ideia de subsidiariedade.
[…]
Interessante que, para Aristóteles, o Estado não visa somente suprir as necessidades que os indivíduos não conseguem suprir sozinhos, mas auxiliar o indivíduo a alcançar uma vida virtuosa que traga em última análise a felicidade, a qualidade de vida, o bem-estar.”.
Em seguida, na idade medieval, São Tomás de Aquino, com base nos ensinamentos de Aristóteles, defende a tese de que o Estado tem na pessoa o seu fundamento constitutivo e, desse modo, deve existir para a realização dos interesses dos integrantes da sociedade.
Nessa linha intelectiva, Thais Novais Cavalcanti pontua que (2012, p. 35/36):
“A base filosófica de seu pensamento tem origem nos ensinamentos de Aristóteles e também nos de Agostinho de Hipona (354 a 430 d.C), dos quais é possível identificar sua concepção de pessoa e sua relação com o poder do Estado. Tomás de Aquino não tratou especificamente sobre o princípio da subsidiariedade, mas continuou o pensamento de Aristóteles de que a pessoa é quem fundamenta o Estado, que deve existir para a realização de todas as pessoas daquela comunidade.
[…]
Seguindo essa lógica, Tomás de Aquino afirma que o governo, como exercício do poder dentro do Estado tem por objetivo “assegurar, aumentar ou conservar a perfeição dos seres ao seu cargo” (1953, pp. 72-73). O poder contribui para a perfeição da sociedade, que será alcançada com a perfeição do próprio ser, considerados como estruturas interligadas.”.
4. PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE
A concepção dogmática do princípio da subsidiariedade surgiu com a doutrina social da Igreja Católica, com a finalidade de restaurar a ordem social, através da publicação da Encíclica Quadragesimo anno, de 15 de maio de 1931, pelo Papa Pio XI, conforme excerto abaixo transcrito (PIO XI, Quadragesimo anno, parágrafo 79):
“Verdade é, e a história o demonstra abundantemente, que, devido à mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam até mesmo as pequenas; permanece contudo imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los.
Deixe pois a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete, porque só ela o pode fazer : dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos os que governam: quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias agremiações, segundo este princípio da função « supletiva » dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação.”
No ano de 1963, o Papa João XXIII publicou a Encíclica Pacem in Terris, trazendo no parágrafo 139 a aplicação do princípio da subsidiariedade nas relações entre indivíduos, famílias, grupos sociais e poderes públicos, inclusive de ordem internacional, conforme se observa do trecho a seguir (JOÃO XXIII, Pacem in terris):
“Como as relações entre os indivíduos, famílias, organizações intermédias e os poderes públicos das respectivas comunidades políticas devem estar reguladas e moderadas, no plano nacional, segundo o princípio de subsidiariedade, assim também, à luz do mesmo princípio, devem disciplinar-se as relações dos poderes públicos de cada comunidade política com os poderes públicos da comunidade mundial.”.
Por sua vez, o Papa João Paulo II, em 1991, publicou a Encíclica Centesimus Annus, no sentido de incentivar o livre exercício da atividade econômica e favorecendo as competências das organizações inferiores (JOÃO PAULO II, Centesimus Annus, parágrafos 45 e 100):
“Para a realização destes objectivos, o Estado deve concorrer tanto directa como indirectamente. Indirectamente e segundo o princípio de subsidiariedade, criando as condições favoráveis ao livre exercício da actividade económica, que leve a uma oferta abundante de postos de trabalho e de fontes de riqueza. Directamente e segundo o princípio de solidariedade, pondo, em defesa do mais débil, algumas limitações à autonomia das partes, que decidem as condições de trabalho, e assegurando em todo o caso um mínimo de condições de vida ao desempregado.
As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Também neste âmbito, se deve respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum.”.
De fato, o Direito Canônico não produz efeitos jurídicos no âmbito do direito internacional e na órbita nacional dos países, mas, por outro lado, o conteúdo do princípio da subsidiariedade produzido pela doutrina social da Igreja Católica influenciou a sua adoção pelas nações diante de sua importância.
De acordo com os ensinamentos católicos, constata-se que o princípio da subsidiariedade estabelece uma relação harmônica entre o cidadão, o Governo e associações de variados níveis hierárquicos, zelando pela autonomia do indivíduo para lhe resguardar a dignidade, limitando a atuação estatal para as atividades que não possam ser realizadas pela sociedade e conferindo competência para determinados grupos menores executarem suas funções correspondentes, tudo funcionando de forma orgânica.
Nesse contexto, o indivíduo encontra-se no centro da organização da sociedade e do Estado, tendo sua dignidade respeitada através de ações voltadas para a promoção de seus direitos e suas capacidades, conforme lições de Thais Novaes Cavalcanti (2012, p. 50):
“O princípio da subsidiariedade interfere na organização da sociedade e do Estado e coloca no centro a pessoa em sua dignidade. De fato, esse princípio busca que o Estado oriente suas ações em prol da pessoa, não de forma assistencialista ou paternalista, mas de forma a promover seus direitos e suas capacidades.
Diferente do modelo do Estado do bem-estar (welfare state), que promove os direitos sociais, que atua em favor da pessoa, porém mantém o controle nas mãos do Estado, surge a proposta do Estado subsidiário (welfare society), que apoia a sociedade organizada em todas as suas manifestações, para que a pessoa, por meio da sociedade, possa ser capaz de se desenvolver e promover o bem comum.”.
Na seara jurídica, o princípio da subsidiariedade foi incorporado pelo Tratado de Maastricht, da União Europeia, assinado em 07 de fevereiro de 1992, estabelecendo que:
“Art. 3B. A comunidade atuará nos limites das atribuições que lhe são conferidas e dos objetivos que lhe são cometidos pelo presente tratado. Nos domínios que não sejam de suas atribuições exclusivas, a Comunidade intervém apenas, de acordo com o princípio da subsidiariedade, se e na medida em que os objetivos da ação encarada não possam ser suficientemente realizados pelos Estados membros, e possam, pois, devido à dimensão ou aos efeitos da ação prevista, ser melhor alcançados ao nível comunitário. A ação da Comunidade não pode exceder o necessário para executar os objetivos do presente Tratado.”.
Com o advento do Tratado da União Europeia, o princípio da subsidiariedade foi inserido no campo do direito comunitário, para distribuir e delimitar as competências da Comunidade e dos países que a integram, estabelecendo que a entidade superior só deverá intervir apenas na medida em que os objetivos não puderem ser realizados por seus membros.
Fausto de Quadros assim define o princípio da subsidiariedade (1995, pp. 17/18):
“Parece não ser possível negar-se, atendendo às próprias raízes do seu conceito na História, que o princípio da subsidiariedade vem a levar a cabo uma repartição de atribuições entre a comunidade maior e a comunidade menor, em termos tais que o principal elemento componente do seu conceito consiste na descentralização, na comunidade menor, ou nas comunidades menores, das funções da comunidade maior. E a comunidade que ocupa o mais alto grau nessa pirâmide é, nos termos clássicos, o Estado.
[…]
o princípio da subsidiariedade é, desde logo, um princípio fundamental da Ordem Jurídica do moderno Estado Social de Direito, na medida em que conduz à aceitação da prossecução do interesse público pelo indivíduo e por corpos sociais intermédios, situados entre ele e o Estado: a família, as autarquias locais, as empresariais, os partidos políticos, as Universidades, etc”.
Por sua vez, José Alfredo Baracho assim discorre (1995, p. 47):
“Trata-se de princípio de justiça, de liberdade, de pluralismo e de distribuição de competências, através do qual o Estado não deve assumir por si as atividades que a iniciativa privada e grupos podem desenvolver por eles próprios, devendo auxiliá-los, estimulá-los e promovê-los”.
Para Thais Novaes Cavalcanti (2012, p. 29):
“O princípio da subsidiariedade pode ser compreendido como um princípio transversal relacionado a vários temas: formas de Estado e sua organização, atuação dos Poderes, formulação das políticas públicas, eficácia da atividade da Administração Pública, autonomia política dos indivíduos e da sociedade civil, liberdade de atuação perante o Estado. É um princípio ético da vida social e política, que orienta os entes estatais a atuarem pela valorização da pessoa e sua dignidade.”.
5. DIGNIDADE HUMANA: CONTEÚDO E DIMENSÕES
A despeito de inexistir um consenso a respeito do conceito de dignidade humana, tem-se que, de acordo com o posicionamento doutrinário majoritário, o seu conteúdo consiste no valor intrínseco e igualitário de cada indivíduo, que não pode servir como mero instrumento. (SARLET, 2015, p. 250)
Trata-se, consoante as lições de Ingo Wolfgang Sarlet, da dimensão ontológica da dignidade humana (2007, p. 366):
“Inicialmente, cumpre salientar — retomando a ideia nuclear que já se fazia presente até mesmo no pensamento clássico — que a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar a possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, compreendida como qualidade integrante e, em princípio, irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que existe — ou é reconhecida como tal — em cada ser humano como algo que lhe é inerente.”.
Nesse mesmo sentido, leciona Luís Roberto Barroso (2012, p. 32):
“O valor intrínseco é, no plano filosófico, o elemento ontológico da dignidade humana, ligado à natureza do ser. A singularidade da natureza humana é uma combinação de características e traços inerentes – que incluem inteligência, sensibilidade e a capacidade de se comunicar – que dão aos seres humanos um status especial no mundo, distinto do de outras espécies. Valor intrínseco é o oposto de valor atribuído ou instrumental, por ser um valor bom em si mesmo e que não tem preço.”
Em adendo, Ingo Wolfgang Sarlet acrescenta a dimensão comunicativa ou relacional da dignidade humana (2007, p. 369/370):
“Mesmo sendo possível — na linha dos desenvolvimentos precedentes — sustentar que a dignidade da pessoa encontra-se, de algum modo, ligada (também) à condição humana de cada indivíduo, não há como desconsiderar a necessária dimensão comunitária (ou social) desta mesma dignidade de cada pessoa e de todas as pessoas, justamente por serem todos reconhecidos como iguais em dignidade e direitos (na iluminada fórmula da Declaração Universal de 1948) e pela circunstância de nesta condição conviverem em determinada comunidade. Aliás, consoante já anunciado, a própria dimensão ontológica (embora não necessariamente biológica) da dignidade assume seu pleno significado em função do contexto da intersubjetividade que marca todas relações humanas e, portanto, também o reconhecimento dos valores (assim como princípios e direitos fundamentais) socialmente consagrados pela e para a comunidade de pessoas humanas.”.
Luís Roberto Barroso, por sua vez, ressalta a autonomia como o elemento ético da dignidade humana (2012, p. 36):
“A autonomia é o elemento ético da dignidade humana. É o fundamento do livre arbítrio dos indivíduos, que lhes permite buscar, da sua própria maneira, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. A noção central aqui é a de autodeterminação: uma pessoa autônoma define as regras que vão reger a sua vida. Em seção anterior, foi apresentada a concepção kantiana de autonomia, entendida como a vontade orientada pela lei moral (autonomia moral). Nesse tópico, o foco volta-se para a autonomia pessoal, que é valorativamente neutra e significa o livre exercício da vontade por cada pessoa, segundo seus próprios valores, interesses e desejos.”
Diante dos elementos apresentados, Ingo Wolfgang Sarlet assim conceitua a dignidade humana (SARLET, 2007, p. 383):
“tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”.
6. PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE COMO UM PRINCÍPIO IMPLÍCITO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A dignidade humana, conforme previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, razão pela qual baliza a atuação do Estado Democrático de Direito brasileiro.
Ao comentar o aludido dispositivo constitucional, José Afonso da Silva destaca que a dignidade humana é um valor supremo que fundamenta todos os direitos fundamentais e serve como base da existência humana, possuindo uma densificação valorativa que incide, inclusive, na atividade econômica (2005, p. 105):
“Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invoca-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.”.
Ingo Wolfgang Sarlet interpreta o enunciado normativo constitucional no sentido de que o Estado existe para servir a pessoa humana (2011, p.38):
“Consagrando expressamente, no título dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado democrático (e social) de Direito (art. 1º, inc. III, da CF), o nosso Constituinte de 1988 – a exemplo do que ocorreu, entre outros países, na Alemanha -, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal. Em outras palavras, de acordo com a lição de Jorge Reis Novais, no momento em que a dignidade é guinada à condição de princípio constitucional estruturante e fundamento do Estado Democrático de Direito, é o Estado que passa a servir como instrumento para a garantia e promoção da dignidade das pessoas individual e coletivamente consideradas.”.
Da análise do conteúdo da dignidade humana e de sua previsão como fundamento constitucional, percebe-se claramente a presença da ideia de subsidiariedade e sua base filosófica, justificando a sua incidência como um princípio implícito no sistema jurídico brasileiro.
Com efeito, o princípio da dignidade humana, que funciona como o núcleo dos direitos fundamentais, impõe a atuação estatal no sentido de promover a autonomia da vontade e de auxiliar a capacitação das pessoas para que tenham liberdade de escolha, para, assim, desempenharem suas funções por conta própria e alcançarem a felicidade.
Nesse contexto, ganha relevo a aplicação do princípio da subsidiariedade de modo a efetivar os direitos fundamentais e resguardar a dignidade humana, demonstrando a necessidade de o Governo, preferencialmente, ajudar as pessoas a desenvolverem suas habilidades e incentivar a atuação das organizações inferiores em variados níveis hierárquicos, limitando a sua esfera de atuação para o que se fizer realmente necessário.
A aplicação do princípio da subsidiariedade se relaciona com o conceito de direitos fundamentais formulado por Robert Alexy, na medida em que a efetivação destes não pode ficar adstrita a uma atuação eficiente dos representantes eleitos (2008, p. 446):
“É possível recorrer a inúmeros e variados argumentos contra e a favor da atribuição de direitos a prestações a dispositivos de direitos fundamentais. É recomendável, por isso, apreciá-los a partir de uma ideia-guia. Uma possível perspectiva ou ideia-guia seria um conceito geral e formal de direitos fundamentais, que pode ser expresso da seguinte forma: direitos fundamentais são posições que são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar simples. Essa definição está sujeita a uma série de refinamentos.”.
De se destacar, por oportuno, que a aplicação do princípio da subsidiariedade, que possui estreita relação com a dignidade humana, acarreta em uma desoneração do Estado em relação às atividades que possam ser desempenhadas, com a mesma qualidade, pela sociedade civil, possibilitando, assim, a Administração Pública concentrar seus esforços em funções realmente essenciais.
Em consequência de uma atuação mais direcionada, tem-se um Estado mais eficiente, em atendimento ao princípio da eficiência previsto no artigo 37 da Constituição Federal, de modo a permitir uma maior concretização dos direitos fundamentais, além de prestigiar a dignidade da pessoa humana.
Ademais, a forma federativa de Estado e a delimitação de competências entre os entes federativos constitui um dos aspectos do princípio da subsidiariedade no sistema jurídico brasileiro.
Omar Serva Maciel, fazendo referência a Raul Machado Horta, defende que o princípio da subsidiariedade vem sendo recepcionado por diversas constituições brasileiras (2004, p. 46):
“No caso específico do federalismo brasileiro, a preexistência da competência supletiva ou complementar, prevista nas Constituições Federais de 1934, 1946 e 1967, e da competência da legislação concorrente ou mista, adotada na Constituição de 1988, com explicitação enumerada de suas matérias, localizadas, as formas pretéritas da competência supletiva ou complementar, e a forma contemporânea da legislação concorrente ou mista, na área da repartição de competências da Federação, por equivalência da legislação supletiva ou complementar, anteriormente, e da legislação concorrente, atualmente, com os objetivos e finalidades do princípio da subsidiariedade, concluo pela desnecessidade, em tese, da atividade do poder constituinte de revisão, para introduzir no texto constitucional brasileiro o princípio constitucional da subsidiariedade, considerando a equivalência entre o princípio e a legislação concorrente, dotada de natureza subsidiária, complementar e supletiva. O princípio da subsidiariedade projetou-se na autonomia da subsidiariedade constitucional, dispensando Tratado ou a Revisão.”
7. CONCLUSÃO
Constata-se, portanto, que ideia de subsidiariedade possui extrema relevância para o sistema jurídico brasileiro, relacionando-se umbilicalmente com o conteúdo da dignidade humana, no sentido de promover a autonomia individual e capacitar as pessoas para desenvolverem suas habilidades, culminando com uma vida mais virtuosa e feliz.
Nesse sentido, destaca-se que a subsidiariedade e a dignidade colocam à pessoa humana no centro e a existência do Estado com o dever de ajudar e auxiliar o indivíduo na consecução de seus fins que devem ser escolhidos com liberdade.
Verifica-se, nesse cenário, uma alternativa ética para a efetivação dos direitos fundamentais, enaltecendo a dignidade humana, possibilitando que cada indivíduo atinja seus objetivos por conta própria e, ao mesmo tempo, contribua com toda a sociedade.
Ademais, tem-se a importante diretriz de atribuir a sociedade civil, subdividindo-a em diversos grupos escalonados por níveis hierárquicos, a função de executar atividades voltadas à concretização de direitos fundamentais que possam ser realizadas com mais eficiência pelos particulares, privilegiando as organizações inferiores no que tiverem condições de fazer.
Conclui-se, assim, que o princípio da subsidiariedade é um princípio implícito na Constituição Federal de 1988, extraindo-se seu conteúdo através dos princípios fundamentais, sobretudo da dignidade humana e do federalismo.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
BARROSO, Luís Roberto. “Aqui, lá e em todo lugar”: a dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais: RT, v. 101, n. 919, p. 127-196, maio 2012.
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1Servidor Público, Bacharel em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa, Pós-graduado em Processo Civil pela Juspodivm e Pós-graduado em Ciências Criminais pela Faculdade CERS, Mestrando em Direito pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL.