REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202502251621
Andréia Rodrigues Moreira
Orientadora: Profª Drª Jaqueline Mendes Bastos
Resumo
O presente artigo analisa a integração entre as práticas pedagógicas e os saberes culturais ribeirinhos no processo de ensino e aprendizagem das crianças das comunidades amazônicas. A abordagem se fundamenta nas contribuições teóricas de Paulo Freire (1996) e Lev Vygotsky (1991), que enfatizam a relação entre cultura, educação e desenvolvimento cognitivo. Discutem-se os desafios e as potencialidades da adoção de metodologias que valorizam os conhecimentos tradicionais dessas comunidades, tornando o ensino mais significativo e contextualizado. Além disso, são analisados os marcos legais, como a Lei nº 9.394/96- Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, que reforçam a importância de uma educação contextualizada. A pesquisa destaca que a integração entre conhecimento escolar e saberes locais fortalece a identidade cultural dos alunos e favorece sua aprendizagem, contribuindo para a formação de sujeitos críticos e engajados com sua realidade.
Palavras-chave: Práticas pedagógicas, Saberes ribeirinhos, Ensino e aprendizagem, Educação contextualizada, Identidade cultural.
Abstract
This article analyzes the integration between pedagogical practices and riverside knowledge in the teaching and learning process of children from Amazonian communities. The approach is based on the theoretical contributions of Paulo Freire and Lev Vygotsky, who emphasize the relationship between culture, education, and cognitive development. The article discusses the challenges and potential of adopting methodologies that value the traditional knowledge of these communities, making teaching more meaningful and contextualized. In addition, the article analyzes legal frameworks, such as the Law of Guidelines and Bases of National Education (LDB) and the National Curricular Guidelines for Early Childhood Education, which reinforce the importance of contextualized education. The research highlights that the integration between school knowledge and local knowledge strengthens the cultural identity of students and favors their learning, contributing to the formation of critical subjects engaged with their reality.
Keywords: Pedagogical practices, Riverside knowledge, Teaching and learning, Contextualized education, Cultural identity.
Introdução
O processo de ensino e aprendizagem nas comunidades ribeirinhas da Amazônia apresenta desafios e oportunidades que exigem uma abordagem pedagógica sensível à cultura local. A realidade dessas crianças é permeada por experiências que envolvem a relação com o rio, a floresta e as tradições comunitárias, elementos que precisam ser incorporados ao ensino para torná-lo significativo e conectado com suas vivências. A educação escolar, quando alinhada aos saberes locais, potencializa o desenvolvimento integral dos alunos e fortalece sua identidade cultural.
Autores como Paulo Freire (1996) e Lev Vygotsky (1991) enfatizam que a aprendizagem ocorre de forma mais eficaz quando está inserida no contexto social e cultural do educando. Freire (1996), critica o modelo tradicional de ensino “bancário”, no qual o conhecimento é transmitido de maneira mecânica, sem considerar a experiência dos alunos. Em contrapartida, propõe uma educação dialógica, baseada na troca de saberes entre educadores e estudantes. Já Vygotsky defende que o aprendizado é um processo social, no qual a interação com os pares e a mediação de adultos são fundamentais para o desenvolvimento cognitivo.
No contexto das comunidades ribeirinhas, a adoção de metodologias que valorizam os saberes tradicionais, como a pesca, a agricultura e o conhecimento sobre os ciclos naturais, é essencial para promover uma educação contextualizada. Além disso, a legislação brasileira, por meio da Lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e das Diretrizes Curriculares Nacionais, respalda a necessidade de considerar a diversidade cultural e regional no ensino.
Diante desse cenário, este artigo busca discutir como as práticas pedagógicas podem integrar os saberes ribeirinhos ao ensino formal, favorecendo um aprendizado mais significativo e inclusivo. Para isso, serão analisadas as concepções teóricas de Freire (1996) e Vygotsky (1991), os desafios enfrentados pelos professores nesse contexto e as possibilidades de aprimoramento das estratégias pedagógicas, contribuindo para uma educação que valorize as experiências e a identidade dos alunos ribeirinhos.
Práticas Pedagógicas e Saberes: Caminhos para o Processo de Ensino e Aprendizagem de Crianças Ribeirinhas
O processo de ensino e aprendizagem exige, cada vez mais, uma reflexão sobre a integração entre o conhecimento escolar e os saberes locais, especialmente em contextos específicos, como o das comunidades ribeirinhas da Amazônia. As práticas pedagógicas que respeitam e incorporam esses saberes têm o potencial de promover uma educação mais significativa e conectada com a realidade dos alunos, como enfatizado por Freire (1996), que defende uma educação dialógica, comprometida com a realidade social e cultural dos educandos, promovendo um ensino que respeita os saberes locais e as vivências dos estudantes.
Para as crianças ribeirinhas, cuja cultura, valores e conhecimentos são intrinsecamente ligados ao rio, à floresta e ao modo de vida de suas comunidades, uma abordagem pedagógica que valorize e contextualize seu saber é essencial para o desenvolvimento integral e para a construção de uma identidade cultural sólida. Freire (1996), ao afirmar que a educação deve estar comprometida com a realidade social e cultural dos educandos, destaca a importância de um ensino que dialogue com os saberes dos alunos, respeitando sua vivência e suas raízes. Esse conceito se alinha com a ideia de Vygotsky (1991), que enfatiza o papel central da cultura no desenvolvimento cognitivo das crianças, sugerindo que a aprendizagem deve se dar no contexto social e cultural dos estudantes, respeitando suas práticas e conhecimentos do cotidiano. Dessa forma, uma educação que valorize o saber ribeirinho não só contribui para o aprendizado acadêmico, mas também fortalece a identidade cultural das crianças, tornando a aprendizagem mais significativa e conectada com o seu mundo.
Vale ainda lembrar que as transformações sociais são resultantes, evidentemente, de ações coletivas. Entretanto, é importante que os processos para tais transformações se façam com vistas a contar efetivamente com o indivíduo, conforme definido por Agnes Heller, quando diz:
[…] o homem torna-se indivíduo na medida em que produz uma síntese em seu EU, em que transforma conscientemente os objetivos e as aspirações sociais em objetivos e aspirações particulares de si mesmo e em que, desse modo, socializa “sua particularidade”. (HELLER, 1982, p. 80).
Também nesse mesmo sentido, Freire (1996) nos diz que, a educação deve estar comprometida com a realidade social e cultural dos educandos, em um processo que ele denomina “educação dialógica”. Para Freire, o diálogo entre os saberes escolares e os saberes dos alunos é fundamental para que o ensino tenha sentido e valor para o estudante. O autor critica uma visão de ensino “bancária”¹, em que o conhecimento é depositado nos alunos sem levar em conta seu contexto e suas experiências, e defende uma educação que seja um ato de conhecimento e transformação da realidade. Em consonância com essa visão, a integração dos saberes ribeirinhos nas práticas pedagógicas pode ser entendida como um processo dialógico, que respeita e legitima o conhecimento das crianças sobre seu ambiente e sua cultura.
Na perspectiva de Freire, (1996) Vygotsky (1991), reforçam a importância da relação entre cultura e aprendizagem. Vygotsky propôs que o aprendizado é um processo social e cultural, e que o desenvolvimento cognitivo das crianças está fortemente vinculado às interações sociais e ao contexto em que elas vivem, criticou as teorias que separam a aprendizagem do desenvolvimento, afirmando:
[…] Não há necessidade de sublinhar que a característica essencial da aprendizagem é que dá lugar à área do desenvolvimento potencial, isto é, faz nascer, estimula e ativa, na criança, processos internos de desenvolvimento no quadro das inter relações com outros que, em seguida, são absorvidas, no curso do desenvolvimento interno, tornando-se aquisições próprias da criança… A Aprendizagem, por isso, é um momento necessário e universal para o desenvolvimento, na criança, daquelas características humanas não naturais, mas formadas historicamente. (VYGOTSKY, 1973, p. 161).
A teoria sociocultural de Vygotsky sugere que as crianças aprendem por meio de trocas com pessoas significativas em sua vida, como familiares e professores, que compartilham saberes que fazem parte de seu cotidiano. Em uma escola que reconhece os saberes ribeirinhos, as práticas pedagógicas poderiam se inspirar em atividades que fazem parte da vida dos alunos, como o manejo da pesca, o cultivo de plantas medicinais e o respeito pelo ciclo das águas, temas que se alinham com a realidade cultural dessas crianças1.
No Brasil, o reconhecimento da importância de uma educação contextualizada e integrada aos saberes locais é respaldado por marcos legais e também por autores como Paulo Freire (1986), que defende uma educação vinculada à realidade dos alunos. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/96, estabelece que o ensino deve considerar a diversidade cultural do país, especialmente no que se refere aos conteúdos e metodologias. O artigo 26 da LDB enfatiza que a educação deve respeitar “os valores culturais e artísticos nacionais e regionais”, recomendando que os sistemas de ensino promovam práticas pedagógicas que considerem a diversidade cultural. Esse dispositivo é especialmente relevante para comunidades ribeirinhas, onde a valorização dos saberes locais enriquece o processo educativo e favorece a formação de cidadãos conscientes e integrados com sua realidade.
Além da LDB, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) (Resolução CNE/CEB nº 5/2009) também destacam a importância da valorização dos saberes das crianças e de uma educação que dialogue com a diversidade cultural. Essas diretrizes orientam que as práticas pedagógicas devem ser pensadas a partir das experiências das crianças, incluindo suas vivências no meio ambiente e na comunidade. Assim, em contextos ribeirinhos, o conhecimento sobre o ciclo dos rios, as tradições culturais e o contato com a natureza são elementos que devem ser incorporados ao currículo, permitindo que o aprendizado seja construído de forma significativa e relevante para os estudantes.
Nesse sentido, uma educação contextualizada requer que o professor não apenas domine os conteúdos acadêmicos, mas também compreenda e valorize o conhecimento dos alunos sobre seu ambiente, como argumenta Brandão (2002), o professor deve ser um “mediador cultural”, que articula os saberes locais com o conhecimento formal, criando uma prática pedagógica inclusiva e transformadora. Para isso, o educador precisa reconhecer que os saberes das crianças ribeirinhas não são inferiores ao conhecimento escolar, mas sim diferentes formas de ver e interpretar o mundo, possuindo um valor pedagógico único que pode enriquecer o processo educativo.
Práticas pedagógicas que se baseiam nos saberes ribeirinhos e que utilizam o cotidiano dos alunos como ponto de partida para o aprendizado são também consonantes com a Pedagogia da Alternância², um modelo educativo muito utilizado em áreas rurais e ribeirinhas. Esse modelo propõe que o aluno passe períodos alternados na escola e na comunidade, de forma que o conhecimento escolar possa ser aplicado e validado no contexto local. Segundo Lima (2011), a Pedagogia da Alternância permite que o processo de ensino e aprendizagem seja dinâmico e participativo, pois estimula o aluno a refletir sobre sua própria realidade e a construir o conhecimento a partir de sua experiência de vida.
Portanto, ao integrar práticas pedagógicas e saberes ribeirinhos, os professores não apenas aproximam o conteúdo escolar da realidade dos alunos, mas também promovem uma educação que valoriza a identidade e a cultura dos estudantes, facilitando a aprendizagem significativa e o engajamento. Essa abordagem educativa, embasada em autores como Freire (1996) e Vygotsky (1934), e respaldada por legislações nacionais, reafirma a necessidade de uma educação inclusiva e contextualizada, que respeite a diversidade cultural e fortaleça o vínculo dos alunos com seu ambiente e suas raízes culturais. Assim, o caminho para um ensino que integre práticas pedagógicas e saberes ribeirinhos está pavimentado por uma visão de educação transformadora, que reconhece o aluno como sujeito ativo e como portador de um saber valioso, essencial para a construção de uma sociedade mais justa e culturalmente rica.
Práticas Pedagógicas nos Anos Iniciais: Conceitos e Abordagens
As práticas pedagógicas referem-se ao conjunto de estratégias (Piaget 1975), métodos e ações que o professor utiliza para conduzir o processo de ensino e aprendizagem em sala de aula. Essas práticas são o meio pelo qual o docente traduz o currículo, os objetivos educacionais e os conhecimentos acadêmicos em atividades significativas para os estudantes. No contexto da educação infantil e dos anos iniciais, as práticas pedagógicas ganham uma dimensão ainda mais importante, pois é nessa etapa que as bases do desenvolvimento cognitivo, social e emocional das crianças são consolidadas. Para comunidades específicas, como as ribeirinhas, a adaptação dessas práticas ao contexto local é essencial, pois permite que o aprendizado seja relevante e conectado à realidade vivida pelos alunos. De acordo com (GIROUX 1997):
[…] qualquer currículo destinado a introduzir mudanças positivas nas salas de aula irá fracassar, a menos que tal proposta esteja enraizada em uma compreensão das forças sócio-políticas que influenciam decisivamente a própria textura das práticas pedagógicas cotidianas em sala de aula. (GIROUX 1997, p. 61).
No contexto da educação infantil e dos anos iniciais, a criança deve ser vista como um ser ativo, que constrói conhecimento a partir de suas interações com o mundo. Vygotsky (1991), em sua teoria sociocultural, destaca que a aprendizagem ocorre de maneira interativa e que o desenvolvimento cognitivo é impulsionado pelas trocas sociais, o que coloca o professor como mediador entre o conhecimento formal e as experiências dos alunos. Com essa perspectiva, as práticas pedagógicas devem ser concebidas como um espaço de diálogo, em que o educador leva em consideração o contexto sociocultural dos alunos e os saberes que trazem de suas vivências cotidianas. No caso das crianças ribeirinhas, é fundamental que o professor compreenda o ambiente natural e cultural no qual os alunos estão inseridos para que o processo de ensino tenha sentido e valor para elas.
As abordagens pedagógicas para a educação infantil e os anos iniciais incluem metodologias que incentivam o aprendizado ativo e a participação do aluno, de modo que ele se sinta protagonista de seu processo de aprendizagem. O conceito de metodologias ativas, como o aprendizado por projetos, a resolução de problemas e o ensino baseado em jogos, vem se consolidando como um caminho eficaz para engajar os alunos e conectar o conhecimento escolar com o mundo que os rodeia.
De acordo com Moran (2015), metodologias ativas ajudam os alunos a desenvolverem competências e habilidades ao permitirem que eles se envolvam diretamente com o conteúdo. No contexto ribeirinho, essas metodologias poderiam incluir projetos que envolvam o estudo da biodiversidade local, o ciclo das águas e atividades relacionadas à pesca e agricultura, temas familiares para as crianças e que agregam valor ao processo educativo.
Entre as práticas pedagógicas que têm se mostrado eficazes na educação infantil e nos anos iniciais, destaca-se a aprendizagem baseada em projetos (ABP). Segundo Hernández e Ventura (1998), a ABP possibilita uma aprendizagem significativa e contextualizada, pois o conhecimento é construído a partir de atividades interdisciplinares e investigativas. Essa metodologia encoraja os alunos a serem questionadores, a desenvolverem autonomia e a buscarem soluções criativas para problemas reais, com o professor atuando como facilitador. Em comunidades ribeirinhas, a ABP pode ser uma prática poderosa para integrar o saber local ao conteúdo escolar, por meio de projetos que envolvam temas do cotidiano das crianças, como a preservação dos rios, a alimentação saudável baseada em ingredientes locais e as práticas tradicionais de manejo ambiental.
Outro conceito importante para as práticas pedagógicas nos anos iniciais é a aprendizagem significativa, proposto por Ausubel (1980), que enfatiza que o aprendizado é significativo quando os novos conhecimentos são associados ao que o aluno já sabe, ou seja, ao seu conhecimento prévio. Esse conceito reforça a importância de uma educação que reconheça o contexto cultural e as vivências dos alunos, permitindo que os novos conteúdos sejam construídos de forma articulada com os saberes locais. Para as crianças ribeirinhas, a aprendizagem significativa ocorre quando os conteúdos escolares, como ciências e geografia, estão conectados às suas vivências, como a observação da fauna e flora da região ou o conhecimento sobre as mudanças do nível dos rios.
Outro ponto central nas práticas pedagógicas dos anos iniciais é a educação baseada na experiência, defendida por autores como Dewey (1959), que propõe que o aprendizado ocorre por meio da ação e da experiência direta. Dewey argumenta que a escola deve ser um espaço de experimentação, onde o aluno possa vivenciar e experimentar o conteúdo escolar de maneira prática e contextualizada. Essa abordagem é especialmente relevante em contextos como o das crianças ribeirinhas, onde o conhecimento sobre o meio ambiente e as tradições locais pode ser incorporado por meio de atividades práticas, como saídas de campo, visitas à comunidade e a realização de atividades que envolvam habilidades artesanais ou técnicas, que são comuns na cultura ribeirinha.
Além dessas abordagens, práticas pedagógicas como a pedagogia de projetos e o ensino colaborativo reforçam o trabalho em equipe e a construção coletiva do conhecimento, elementos importantes para o desenvolvimento social e o senso de comunidade. Em contextos ribeirinhos, essas práticas pedagógicas podem incluir o compartilhamento de histórias e saberes tradicionais, o trabalho em conjunto em atividades que simulem a pesca ou o cultivo, e o diálogo com os mais velhos da comunidade, reforçando o valor do conhecimento intergeracional e a importância de aprender com aqueles que possuem uma vivência direta com o ambiente e os costumes locais.
A prática pedagógica deve contribuir para que os alunos construam o conhecimento teórico que ilumine seu fazer prático cotidiano e lhes possibilite refletir sobre esse fazer. Sendo assim, Freire diz que:[…]. Podemos concorrer com nossa incompetência, má preparação, irresponsabilidade, para o seu fracasso. Mas podemos, também, com nossa responsabilidade, preparo científico e gosto do ensino, com nossa seriedade e testemunho de luta contra as injustiças, contribuir para que os educandos vão se tornando presenças marcantes no mundo. (FREIRE, 1997, p. 32). Ainda nessa perspectiva, Kenski (2001, p.103) enfatiza que, “o papel do professor em todas as épocas é ser o arauto permanente das inovações existentes.” Segundo o autor, o professor deve aproximar o aprendiz das novidades, das descobertas, das informações e notícias, e orientá-los para a efetivação da aprendizagem.
Para Fontana (1996) as crianças ouvem o que a professora diz e as imagens que elas fazem desse dizer, reafirmando como saber legítimo: […] mais do que observar as crianças e garantir o espaço para seus dizeres, é preciso assumir também seu papel e seu espaço (o de um adulto com um objetivo explícito), nessa relação intencional que é a relação de ensino, tendo em conta a condição de ambos – adultos e crianças – como parceiros intelectuais, desiguais em termos de desenvolvimento psicológico e dos lugares sociais ocupados nessa relação, mas por isso mesmo parceiros na relação contraditória de conhecimento. (FONTANA, 1996, p. 72)
As práticas pedagógicas nos anos iniciais, portanto, devem ir além de uma simples transmissão de conteúdo, buscando uma educação integrada e significativa. Como ressalta Brandão (2002), o papel do educador é não apenas ensinar, mas também “traduzir o mundo” para os alunos, oferecendo-lhes ferramentas para interpretar e transformar sua realidade. Em comunidades ribeirinhas, onde o saber tradicional está intimamente ligado ao modo de vida e à sobrevivência no ambiente amazônico, é fundamental que as práticas pedagógicas se articulem com esses conhecimentos. Ao reconhecer o valor do contexto local, o professor contribui para o desenvolvimento de uma educação que respeita e enriquece a cultura dos estudantes, preparando-os para serem agentes ativos em sua comunidade e no mundo.
A Relação entre o Professor e os Saberes dos Alunos
A relação entre o professor e os saberes dos alunos é um aspecto central para uma educação significativa e contextualizada, especialmente em contextos culturais e geográficos específicos, como as comunidades ribeirinhas. O papel do professor transcende a mera transmissão de conhecimento escolar, pois ele deve atuar como mediador entre o conteúdo formal e o universo de saberes que os alunos trazem de suas vivências cotidianas.
O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e invenções. Estas não são, pois, o produto de uma ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade (LARAIA, 1999, p. 46).
A educação ribeirinha é um tema de extrema relevância quando se trata da valorização e preservação das culturas e tradições dos povos tradicionais que habitam as regiões ribeirinhas do Brasil. Este grupo populacional, historicamente marginalizado e muitas vezes esquecido, possui uma riqueza cultural e um conhecimento ancestral que merecem ser reconhecidos e respeitados. Dessa forma, a efetivação da educação junto aos povos ribeirinhos se apresenta como um caminho essencial para promover o desenvolvimento sustentável e a inclusão social dessas comunidades.
Para tanto, para que o aprendizado seja significativo, é essencial que o docente reconheça, valorize e integre o conhecimento prévio dos alunos ao processo de ensino, criando um ambiente de aprendizado onde os estudantes se sintam representados e engajados.
Paulo Freire, um dos teóricos mais influentes da educação crítica, defende que a prática educativa deve estar conectada à realidade e às experiências dos educandos. Em sua obra Pedagogia do Oprimido (1974), Freire critica a chamada “educação bancária”, onde o professor deposita informações nos alunos sem considerar seu contexto ou conhecimento prévio. Em vez disso, ele propõe uma “educação dialógica”, na qual o professor e o aluno são co-construtores do conhecimento, trabalhando juntos para explorar e entender a realidade. Freire argumenta que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (1996, p. 47). Esse conceito é especialmente relevante nas comunidades ribeirinhas, onde os saberes das crianças, oriundos de seu contato com a natureza e com as tradições da comunidade, podem enriquecer o currículo escolar.
A valorização do saber prévio das crianças também é discutida por Lev Vygotsky, cuja teoria sociocultural enfatiza o papel das interações sociais e do contexto cultural no desenvolvimento cognitivo. Para Vygotsky (1991), a aprendizagem ocorre primeiramente no nível social, nas interações entre as pessoas, antes de ser internalizada pelo indivíduo. Esse processo é descrito por ele como a “Zona de Desenvolvimento Proximal” (ZDP), que representa a distância entre o que a criança consegue fazer sozinha e o que ela pode alcançar com o auxílio de um adulto ou de colegas mais experientes. Nesse sentido, o professor é um facilitador que media a aprendizagem a partir do que o aluno já sabe e ao desafiar suas habilidades de modo construtivo. Em contextos ribeirinhos, a ZDP pode incluir o conhecimento sobre o ecossistema local, como a identificação de plantas, animais e mudanças sazonais, saberes que os alunos possuem e que podem ser integrados ao currículo escolar para tornar o aprendizado mais próximo da realidade.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento normativo que orienta a educação básica no Brasil, também reconhece a importância da valorização dos saberes dos alunos. A BNCC estabelece que o professor deve criar situações de aprendizagem que considerem as experiências culturais e sociais dos estudantes, promovendo o desenvolvimento de competências que vão além do conteúdo acadêmico e que dialoguem com a realidade de cada aluno. Para as crianças ribeirinhas, essa diretriz é essencial, pois permite que o aprendizado seja significativo ao conectar o conteúdo escolar com o conhecimento e as práticas da comunidade.
Além de Freire e Vygotsky, outros autores reforçam a importância de se valorizar os saberes dos alunos como base para o processo de ensino. David Ausubel, por exemplo, desenvolveu a teoria da aprendizagem significativa, que defende que a aquisição de novos conhecimentos depende da associação com conhecimentos pré-existentes. Ausubel (1980) afirma que “a coisa mais importante que se pode aprender é aquilo que a pessoa já sabe”, destacando que o professor deve começar a partir do conhecimento prévio dos alunos para introduzir novos conceitos. Em comunidades ribeirinhas, essa teoria poderia ser aplicada ao relacionar conteúdos de ciências, geografia e meio ambiente com o conhecimento prático das crianças sobre o uso sustentável dos recursos naturais e sobre a vida cotidiana na região amazônica.
Outro aspecto relevante na relação entre o professor e os saberes dos alunos é a capacidade de promover uma educação inclusiva, que respeite a diversidade e que reconheça o valor das diferentes formas de saber. Segundo Brandão (2002), o professor deve ser um “mediador cultural” que entende e respeita as particularidades dos alunos, permitindo que eles se sintam representados e valorizados no ambiente escolar. Esse conceito de mediação cultural é especialmente importante para comunidades ribeirinhas, onde o professor tem a oportunidade de integrar o conhecimento científico ao saber local, criando uma prática pedagógica que fortalece a identidade cultural dos alunos e que os incentiva a valorizar suas raízes.
A pedagogia de projetos é uma prática pedagógica que pode facilitar a valorização dos saberes dos alunos e a relação dialógica proposta por Freire. Na pedagogia de projetos, o aprendizado ocorre por meio da investigação de temas que interessam aos alunos, e o professor atua como um orientador, ajudando-os a construir o conhecimento de maneira colaborativa. Essa abordagem permite que as crianças tragam temas de sua vida e de sua comunidade para o ambiente escolar, promovendo uma educação contextualizada. Em uma comunidade ribeirinha, por exemplo, um projeto sobre a preservação dos rios pode incorporar o conhecimento das crianças sobre a fauna e a flora local, incentivando-as a investigar e compartilhar o que já sabem com os colegas.
A formação contínua e o desenvolvimento profissional dos professores são também aspectos fundamentais para que eles possam desempenhar seu papel de mediadores e valorizadores dos saberes dos alunos. Segundo Tardif (2002), o conhecimento do professor é composto por saberes diversos, que incluem saberes experienciais, culturais e acadêmicos. Ao longo de sua prática, o professor deve aprender a integrar esses saberes de forma a responder às necessidades e especificidades de seus alunos. Em contextos ribeirinhos, o professor precisa estar preparado para lidar com a diversidade cultural e para adaptar suas práticas pedagógicas às vivências e saberes das crianças, tarefa que exige um compromisso com a formação contínua e a reflexão sobre sua própria prática pedagógica.
Em síntese, a relação entre o professor e os saberes dos alunos deve ser pautada pela valorização do conhecimento prévio e das experiências culturais das crianças, especialmente em contextos como o das comunidades ribeirinhas. Ao adotar uma postura de mediador e ao integrar os saberes locais ao conteúdo escolar, o professor contribui para a formação de um ambiente de aprendizagem significativo e inclusivo. Autores como Freire, Vygotsky, Ausubel e Brandão reforçam que o aprendizado deve partir do contexto e da realidade dos alunos, criando um vínculo entre o conhecimento escolar e o saber popular que enriquece o processo educativo e fortalece a identidade cultural das crianças.
Considerações Finais
A valorização dos saberes ribeirinhos no contexto escolar representa um passo fundamental para a construção de uma educação mais inclusiva e significativa. O diálogo entre os conhecimentos acadêmicos e os saberes locais permite que o ensino se torne mais relevante para os estudantes, possibilitando a construção de uma identidade cultural fortalecida e um aprendizado mais contextualizado.
Ao longo deste estudo, ficou evidente que a perspectiva pedagógica baseada na valorização da cultura local se alinha aos princípios defendidos por Freire (1996) e Vygotsky (1991), que destacam a importância do ambiente social e cultural no processo de aprendizagem. Além disso, a legislação educacional brasileira, por meio da LDB 9.394/96 e das Diretrizes Curriculares Nacionais, reforça a necessidade de práticas pedagógicas que respeitem e integrem a diversidade cultural dos alunos.
Dessa forma, os professores desempenham um papel essencial na mediação desse conhecimento, atuando como facilitadores do processo de ensino e aprendizagem. Cabe às políticas públicas e às instituições educacionais oferecerem suporte para que tais práticas possam ser efetivamente implementadas, garantindo uma formação cidadã que respeite e valorize as diferentes realidades socioculturais do país.
Portanto, a educação em comunidades ribeirinhas deve ser compreendida como um espaço de encontro entre saberes distintos, onde o conhecimento formal e o conhecimento tradicional possam dialogar e se fortalecer mutuamente. Somente assim será possível proporcionar uma educação que contribua para o desenvolvimento integral dos estudantes e para a valorização da riqueza cultural presente nas comunidades ribeirinhas.
1 A “educação bancária” é um conceito desenvolvido por Paulo Freire para descrever um modelo de ensino no qual os alunos são vistos como receptáculos passivos de conhecimento, sendo “depositado” neles de maneira unilateral pelo professor. Nesse modelo, o processo de aprendizagem não considera a experiência e a realidade dos alunos, o que resulta em um ensino descontextualizado e pouco significativo. Freire critica essa abordagem, defendendo uma educação participativa e crítica, em que o conhecimento seja construído de forma ativa e dialógica entre educador e educando.
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