REVENGE PORNOGRAPHY: CIVIL AND CRIMINAL LIABILITY FOR DAMAGE TO THE HONOR, IMAGE AND PRIVACY OF VICTIMS
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10048214
Mikaelle Silva Santos2
Tanira Alves Novaes de Oliveira3
RESUMO: A finalidade deste artigo é discutir a responsabilidade civil e penal relacionada à exposição de mulheres como vítimas de crimes virtuais, em particular o crime de pornografia de vingança. Este delito tem visto um aumento significativo com o desenvolvimento da tecnologia e a proliferação das redes online. Além disso, o artigo pretende analisar a importância de reparar os danos causados à honra, imagem e intimidade das vítimas, reconhecendo que embora o crime possa afetar qualquer gênero, as mulheres são frequentemente as principais vítimas. Em termos mais claros, a pornografia de vingança envolve a divulgação pública na internet de fotos ou vídeos íntimos de terceiros, sem o consentimento destes. Além das consequências penais, o direito civil aborda as compensações financeiras devidas às vítimas pelos danos sofridos. Neste contexto, o artigo tem como objetivo analisar o papel da mulher como vítima primordial sob a perspectiva de gênero, com base em uma análise de literatura, incluindo estudos de caso, artigos acadêmicos e publicações. Durante essa análise, foi observado um atraso na aplicação de punições adequadas, uma vez que a inclusão desse tipo de crime no código penal ocorreu apenas em 2018.
PALAVRAS CHAVES: Pornografia de Vingança; Responsabilidade Civil e Penal; Mulher; Intimidade.
ABSTRACT: This article aims to address civil and criminal liability and the exposure of women as victims of virtual crimes, more precisely the crime of revenge pornography, a crime that, with the development of electronic media and the arrival of online networks, has become to increase dramatically. It also seeks to analyze the importance of the duty to repair the damage caused to the honor, image and privacy of the victims. The crime occurs not only against women, however most of the victims are female. More objectively, revenge pornography is defined as the act of publicly displaying intimate photos or videos of third parties on the internet without their consent. In addition to the criminal scope, civil law also addresses the compensation provided for damages suffered by victims. In this way, the objective is to analyze the woman as the main victim from a gender perspective, starting from the analysis of bibliographical research through judgments, scientific articles and publications, to which it was verified the delay in adequate punishment, since the inclusion of the type in the code only happened in 2018.
KEYWORDS: Revenge Pornography; Civil and Criminal Responsibility; Woman; Intimacy.
I. INTRODUÇÃO
O advento dos meios eletrônicos e o surgimento das redes sociais, juntamente com a interatividade que proporcionam, contribuíram para a disseminação de comportamentos que legitimam a discriminação de gênero, como é o caso da pornografia de vingança. Este comportamento envolve a divulgação não consensual de fotos ou vídeos de teor sexual ou de nudez da vítima, geralmente por pessoas com quem tinham relações afetivas, em muitos casos como uma forma de vingança devido ao término do relacionamento.
Embora a pornografia de vingança não seja uma prática recente, uma vez que exposições não consensuais já ocorriam antes da era da internet, ela só foi tipificada como crime pelo ordenamento jurídico brasileiro em 2018, antes disso sendo tratada como um crime contra a honra.
Nesse contexto, podemos citar o julgado do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), que em um caso de injúrias em rede social e ameaça de divulgação de fotos íntimas, reconheceu o dano moral e fixou uma indenização de R$ 5.000,00, mantendo a sentença anterior.
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL – INJÚRIAS EM REDE SOCIAL – AMEAÇA DE DIVULGAÇÃO DE FOTOS ÍNTIMAS – DANO MORAL CONFIGURADO – QUANTUM FIXADO EM R$ 5.000,00 (CINCO MIL REAIS) – RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE – ENUNCIADO 12.13 B DAS TRR/PR – SENTENÇA MANTIDA. Recurso conhecido e desprovido. (TJPR – 1ª Turma Recursal – XXXXX-82.2016.8.16.0083 – Francisco Beltrão – Rel.: Juiz Nestario da Silva Queiroz – J. 21.03.2018) (TJ-PR – RI: XXXXX20168160083 PR XXXXX-82.2016.8.16.0083 (Acórdão), Relator: Juiz Nestario da Silva Queiroz, Data de Julgamento: 21/03/2018, 1ª Turma Recursal, Data de Publicação: 22/03/2018)
É fundamental ressaltar que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso X, sempre garantiu a proteção da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas.
Embora qualquer pessoa possa ser vítima de pornografia de vingança, independentemente de gênero, as estatísticas indicam que a maioria das vítimas são do sexo feminino, reflexo de construções morais, históricas e sociais.
Portanto, este artigo tem como objetivo analisar a responsabilidade civil e penal decorrente da exposição não autorizada de fotos e vídeos íntimos, prática conhecida como pornografia de vingança. A pesquisa utiliza métodos bibliográficos e documentais, baseados em livros, doutrinas, artigos científicos, legislação e jurisprudência, com uma abordagem qualitativa.
O estudo está estruturado em três tópicos de desenvolvimento, além da introdução e das considerações finais. O primeiro tópico contextualiza historicamente e aborda as noções sobre pornografia de vingança. O segundo tópico se concentra na pornografia de vingança como uma questão de gênero. O terceiro tópico discute a responsabilidade civil e penal relacionada ao crime de pornografia de vingança.
II. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E AS NOÇÕES ACERCA DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA
A prática conhecida como pornografia de vingança, ou “revenge porn,” envolve a divulgação não autorizada de fotos e/ou vídeos de natureza sexual de uma pessoa na Internet. Geralmente, esses conteúdos são obtidos com o consentimento da vítima em um contexto de relacionamento afetivo ou de intimidade e, após o término do relacionamento, são compartilhados sem a autorização da vítima.
De acordo com Buzzi (2015), as imagens e vídeos inicialmente são obtidos com o consentimento da vítima, frequentemente no contexto de um relacionamento privado ou secreto. Posteriormente, esses materiais são distribuídos sem o consentimento da parte afetada por seu antigo parceiro.
Embora a prática da pornografia de vingança tenha raízes anteriores à era da Internet, foi a disponibilidade da rede que resultou em sua ampla disseminação. Como observa Meinero (2021), a produção e compartilhamento de conteúdo pornográfico não são novos e têm sido cercados por tabus e normas sociais ao longo dos séculos. As percepções sobre nudez e relações sexuais variaram ao longo da história das civilizações.
A tipificação legal desse tipo de crime, tanto no Brasil como em outros lugares, é relativamente recente. Antes disso, casos de divulgação não autorizada de fotos íntimas eram frequentemente tratados como difamação ou injúria, crimes contra a honra, com as penalidades sendo agravadas em função do meio de divulgação e da presença de testemunhas.
No Brasil, antes das Leis nº 13.718/18 e nº 13.772/18 entrarem em vigor, essas práticas eram consideradas difamação ou injúria, crimes contra a honra, dependendo das circunstâncias. A Lei nº 13.772/2018, entretanto, explicitamente incluiu a violação da intimidade da mulher como uma forma de violência psicológica no âmbito da violência doméstica e familiar, modificando o cenário legal.
Bauman (2001), em sua teoria da modernidade líquida, destaca as mudanças constantes nas relações, valores, pensamentos e comportamentos nas relações cotidianas, que podem terminar a qualquer momento. A internet reflete essa fluidez, com a rápida evolução de plataformas, aplicativos e formas de interação social. O compartilhamento de conteúdo online pode ter consequências, sendo algumas passíveis de punição.
Nesse contexto, a exposição diária das pessoas na internet, seja com ou sem seu consentimento, pode levar a comportamentos criminosos, como extorsão, ameaças e difamação, incluindo a pornografia de vingança, também chamada de “divulgação íntima indevida,” “revenge porn” ou “vingança pornô.” Essa divulgação ocorre frequentemente em aplicativos como WhatsApp, redes sociais, e pode até chegar a sites pornográficos, como o Xtube, amplificando sua disseminação. Abaixo seguem alguns dos dados da pesquisa realizada pelo Projeto Vazou (2018):
Figura 1
É fundamental ressaltar que todos os gêneros podem ser vítimas desse crime, porém, devido a construções históricas, morais e sociais, a maioria das vítimas são mulheres, geralmente com idades entre 19 e 24 anos, que tinham relacionamentos com os agressores (Projeto Vazou, 2018).
Conforme o Projeto Vazou (2018), 84% das vítimas relataram conhecer pessoalmente o responsável pelo compartilhamento de conteúdo, sendo predominantemente ex-companheiros do sexo masculino. Além disso, 60% das vítimas afirmaram estar cientes da gravação das imagens e consentiram com ela. A pesquisa também revelou que 72% das vítimas desejavam que os responsáveis pela divulgação fossem punidos, 60% solicitaram a remoção dos conteúdos das redes sociais, 55% buscaram indenizações, e 34% desejaram a identificação dos autores do vazamento.
É importante observar que as consequências que as vítimas enfrentam devido à exposição não consensual são significativas. Isso inclui dificuldades nas relações de trabalho, uma vez que suas informações pessoais ficam expostas publicamente, bem como pensamentos suicidas devido à incapacidade de lidar com a situação. O medo de julgamento leva ao isolamento, tornando difícil a manutenção de relacionamentos afetivos e amigáveis, o que pode resultar em depressão e profunda tristeza (Nunes, 2019).
Em alguns casos, a vítima não consegue se recuperar do ocorrido e acaba recorrendo ao suicídio como uma suposta solução. Tragicamente, isso ocorreu com jovens como Júlia Rebeca dos Santos, Giana Laura Fabi e Karina Saifer de Oliveira, que tinham 17, 16 e 15 anos, respectivamente. Todas elas cometeram suicídio após serem vítimas de pornografia de vingança, envolvendo conteúdo íntimo. Em 2013, em menos de 5 dias, Júlia, no Piauí, e Giana, no Rio Grande do Sul, foram encontradas mortas por enforcamento após a divulgação dessas imagens íntimas (Nunes, 2019).
No esforço para coibir a pornografia não consensual, a empresa Google anunciou uma mudança na política de pornografia relacionada à sua plataforma Blogger, proibindo o compartilhamento público de imagens ou vídeos de sexo explícito e nudez ostensiva. Os blogs classificados como “conteúdo adulto” seriam configurados como privados, disponíveis apenas para o administrador e usuários convidados. No entanto, devido às críticas dos usuários, que consideraram a nova regra vaga e conservadora (pois acabou por censurar indiscriminadamente blogs de ativistas LGBT, classificados como blogs de conteúdo adulto), a empresa voltou atrás em sua decisão e anunciou a manutenção e reforço das políticas já existentes (Buzzi, 2015).
II- A PORNOGRAFIA DA VINGANÇA COMO UMA QUESTÃO DE GÊNERO
A palavra “gênero” traz em seu significado uma diferenciação social entre as pessoas. Gênero pode ser definido como aquilo que identifica e diferencia os homens e as mulheres, ou seja, o gênero masculino e o gênero feminino.
Conforme Buzzi (2015, p. 41 apud Scott, 1995, p. 75) define,
O termo “gênero” […] é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita explicitamente explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum, para diversas formas de subordinação feminina, nos fatos de que as mulheres têm a capacidade para dar à luz e de que os homens têm uma força muscular superior. Em vez disso, o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais” – a criação inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mulheres. “Gênero” é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo assexuado. Com a proliferação dos estudos sobre sexo e sexualidade, “gênero” tornou-se uma palavra particularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens. […] O uso de ‘gênero’ enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a sexualidade.
Segundo Saffioti (2001), “O conceito mais amplo de violência de gênero é aquela exercida contra mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos.” É importante ressaltar que, apesar de a pornografia de vingança poder atingir qualquer sexo, a maioria dos casos são contra o gênero feminino.
Conforme expõe o Projeto Vazou (2018), 84% das vítimas são mulheres, além de relatarem conhecer o indivíduo responsável pelo compartilhamento do conteúdo vídeo/foto, e esse responsável era majoritariamente do sexo masculino.
A violência contra a mulher se relaciona diretamente com as discussões de gênero, relação de poder, cultura, etnias, e classes. Segundo Souza (2020), “A mulher na visão da sociedade deve se preservar, e manter-se recatada é dever, se em algum momento mostra contrária ou sexualmente ativa é julgada e taxada como pessoa desqualificada no meio social.”
O número de vítimas vem a cada dia crescendo mais, e na sua grande maioria o causador acaba sendo do sexo masculino, pois vem de uma época patriarcal e machista em que o homem era tido como a figura de autoridade máxima exercendo, no entanto, domínio sobre as mulheres.
Para Simone de Beauvoir (SOUZA, Manuela Gatto, 2020, p. 188), “é com satisfação que os meninos alcançam a ‘dignidade de machos’. Os meninos sentem em seu próprio corpo o símbolo da virilidade. De outro lado, para as meninas, a vida adulta vem com os limites impostos da feminilidade. Além das diferenças físicas que surgem, há uma diferença de comportamentos dentro das próprias famílias, imposta na maioria das vezes pelos próprios pais de forma inconsciente e automática, de geração em geração.”
Desde o início, as mulheres foram tratadas numa posição inferior. A luta pela igualdade continua e, apesar de muitos esforços, a igualdade ainda não foi alcançada. Hoje, a independência das mulheres registrou progressos em comparação com anos anteriores, mas ainda vivemos num mundo onde as mulheres são alvos fracos aos olhos dos perpetradores e da sociedade.
Conforme Davis (2016), em uma perspectiva histórica, desde a era da escravatura, a maioria das mulheres enfrentou diversas formas de dor, violência sexual e assédio devido à forma como seus corpos foram tratados. O tratamento dispensado a uma escrava por seu senhor era determinado pela conveniência. Quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero. No entanto, quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos apropriados apenas às mulheres, eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmea.
É por isso que as crianças continuam a ser tratadas de forma diferente desde tenra idade devido ao seu gênero. Os rapazes são ensinados a suprimir suas emoções, a demonstrar masculinidade, a usar a violência e a tornarem-se sexualmente ativos desde cedo, enquanto as meninas são ensinadas a ser obedientes, vulneráveis e submissas. Dessa forma, os meninos são reservados para grandes planos, como se tornarem bons profissionais, aproveitarem a vida, serem solteiros desejáveis e alcançarem o sucesso. Por outro lado, espera-se que as filhas sejam donas de casa, mães e esposas amorosas (BUZZI, 2015).
Nesse contexto, Buzzi (2015) descreve um estudo da ONG britânica Plan Internacional, no qual foram entrevistadas 1.948 meninas de 6 a 14 anos em cinco regiões do Brasil. Enquanto 76,8% das entrevistadas responderam que lavam louça em casa, apenas 12,5% dos irmãos faziam o mesmo. Notável é a correlação comprovada entre o trabalho doméstico e a perda de oportunidades educacionais. Além disso, quase 40% das meninas brasileiras não concordam que são tão inteligentes quanto os meninos.
Ainda persiste um viés machista no comportamento relacionado a questões sexuais, com resquícios de uma sociedade patriarcal na qual as mulheres suprimem seus desejos enquanto os homens os exibem para demonstrar que são, de fato, “homens”. A defesa apresentada pelo agressor abrange uma gama variada de justificativas, incluindo a alegação de que a vítima é uma prostituta, uma mulher de reputação duvidosa, uma pessoa desvalorizada pelo público e alguém que não se valoriza, entre outras.
Nesse contexto, as mulheres continuam a ser as principais vítimas dos crimes analisados, devido às construções históricas, morais e sociais. A maioria das vítimas são mulheres entre 19 e 24 anos que mantinham relacionamentos com parceiros que justificam suas ações com pensamentos sexistas e regressivos (CAVALCANTI; LÉLIS, 2016).
III. RESPONSABILIADE CIVIL E PENAL PELA PRÁTICA DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA
Além da esfera penal, as vítimas também têm a opção de buscar recursos cíveis para exigir a remoção de conteúdo postado sem sua permissão ou buscar compensação por danos materiais e morais. Para estabelecer a responsabilidade civil, três requisitos devem ser satisfeitos: a) divulgação não autorizada, b) dano à vítima e c) nexo de causalidade.
A responsabilidade civil é a obrigação de reparar o dano causado a alguém. Conforme Maria Helena Diniz (2015, p. 51) explica: “A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela praticado, por pessoa por quem ela responde, por algo que lhe pertence ou por simples imposição legal”.
É importante enfatizar que não é necessário reconhecer o rosto da vítima ou expô-lo completamente para configurar o crime. A divulgação não autorizada por si só já constitui um crime. Nesse contexto, é relevante observar a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em um recurso especial
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO D OBRIGAÇÃO DE FAZER E DE INDENIZAÇÃO DE DANOS MORAIS. RETIRADA DE CONTEÚDO ILEGAL. EXPOSIÇÃO PORNOGRÁFICA NÃO CONSENTIDA. PORNOGRAFIA DE VINGANÇA. DIREITOS DE PERSONALIDADE. INTIMIDADE. PRIVACIDADE. GRAVE LESÃO. 1. Ação ajuizada em 17/07/2014, recurso especial interposto em 19/04/2017 e atribuído a este gabinete em 07/03/2018.2. O propósito recursal consiste em determinar os limites da responsabilidade de provedores de aplicação de busca na Internet, com relação à divulgação não consentida em material íntimo, divulgado antes da entrada em vigor do Marco Civil da Internet. 3. A regra a ser utilizada para a resolução de controvérsias deve levar em consideração o momento de ocorrência do ato lesivo ou, em outras palavras, quando foram publicados os conteúdos infringentes: (i) para fatos ocorridos antes da entrada em vigor do Marco Civil da Internet, deve ser obedecida a jurisprudência desta; (ii) após a entrada em vigor da Lei 12.965/2014, devem ser observadas suas disposições nos arts. 19 e 21. Precedentes. 4. A “exposição pornográfica não consentida”, da qual a “pornografia de vingança”, é uma espécie, constituiu uma grave lesão aos direitos da personalidade da pessoa exposta indevidamente, além de configurar uma grave forma de violência de gênero que deve sr combatida de forma contundente pelos meios jurídicos disponíveis. 5. Não há como descaracterizar um material pornográfico apenas pela ausência de nudez total. Na hipótese, a recorrente encontrava-se sumariamente vestida, em posições com forte apelo sexual. 6. O fato de o roso da vítima não estar evidenciado nas fotos de maneira flagrante é irrelevante para a configuração dos danos morais na hipótese, uma vez que a mulher vítima da pornografia de vingança sabe que sua intimidade foi indevidamente desrespeitada e, igualmente, sua exposição não autorizada lhe é humilhante e viola flagrantemente seus direitos de personalidade. 7. O art. 21 do Marco Civil da Internet não abarca somente a nudez total e completa da vítima, tampouco os “atos sexuais” devem ser interpretados como somente aqueles que envolvam conjunção carnal. Isso porque o combate à exposição pornográfica não consentida que é a finalidade deste dispositivo legal pode envolver situações distintas e não tão óbvias, mas que geral igualmente dano à personalidade da vítima. 8. Recurso conhecido e provido. (STJ – REsp: 1735712 SP 2018/0042899-4, Relatos: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento 19/05/2020, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/05/2020) (grifo nosso).
Os tribunais enfrentaram desafios não apenas na formulação de reivindicações de responsabilidade, mas também na quantificação dos danos. Em uma decisão notável, um processo julgado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ/MG) em 2016 concedeu inicialmente R$ 100.000 em danos morais à vítima. No entanto, o tribunal considerou que a vítima havia enviado voluntariamente as imagens ao ex-companheiro, o que contribuiu para os danos e riscos enfrentados. Como resultado, o tribunal, por maioria de votos, acolheu o recurso do réu e reduziu a indenização para R$ 5.000. Posteriormente, houve embargos infringentes que, durante a vigência do Código de Processo Civil de 1973, foram acolhidos por unanimidade, elevando o valor para R$ 75.000 (STJ – RESP REsp 2040284-31.2014.8.26.0000 SP, relatora: ministra Nancy Andrighi, data de julgamento: 13/3/19, T3 – 3ª turma, data de publicação: DJe 19/3/19).
Antes da promulgação da Lei 13.718, de 25 de setembro de 2018, o ordenamento jurídico brasileiro tratava a pornografia de vingança, no âmbito penal, como um crime contra a honra, definido nos artigos 139 e 140 do Código Penal. Isso resultava em penas de detenção de três meses a um ano, e multa em casos de difamação, e de um a seis meses, ou multa nos casos de injúria.
Com a chegada da Lei 13.718, em 25 de setembro de 2018, o Artigo 218-C foi incluído no Código Penal, criando um novo tipo de crime. Esse crime ocorre quando são expostas cenas de estupro ou estupro de pessoa vulnerável, cenas de atividade sexual, nudez ou pornografia.
Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia: (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018).
Pena – Reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018). (BRASIL, 2018)
Além disso, é importante observar que os casos de pornografia de vingança podem ser abrangidos pela Lei Maria da Penha, especialmente quando o perpetrador mantém uma relação íntima com a vítima. Conforme argumentado por Melo (2019), a pornografia de vingança frequentemente ocorre no contexto da violência doméstica. Nesse cenário, o parceiro, por meio da ameaça de divulgar material íntimo gravado durante o relacionamento, exerce controle sobre a companheira, inibindo-a de abandoná-lo.
A violência doméstica e familiar praticada contra as mulheres é devidamente definida na Lei Maria da Penha, em seu artigo 5º. Esse artigo estabelece uma série de formas de violência que podem ser praticadas no ambiente doméstico e familiar, garantindo assim a proteção das vítimas.
Art. 5º Para os efeitos desta Lei configuram violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015)
I – No âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – No âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – Em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. (BRASIL, 2006)
Também é relevante destacar que, no ano de 2018, a Lei Maria da Penha passou por uma alteração significativa no inciso II do caput do artigo 7º, incluída pela Lei 13.772 de 2018. Essa modificação tornou crime o registro não autorizado de conteúdo com cenas de nudez ou atos sexuais de caráter íntimo e privado, contribuindo para a proteção do direito à privacidade das mulheres.
Além disso, há casos que envolvem menores de idade, que se enquadram na competência do Estatuto da Criança e do Adolescente. Também existem situações que não se encaixam estritamente como pornografia de vingança, mas que envolvem crimes cibernéticos cometidos por meio de acesso não autorizado a dispositivos, tipificados na Lei nº 12.737/2012 (Lei Carolina Dieckmann). Essa lei introduziu os artigos 154-A e 154-B no Código Penal, criminalizando a invasão de dispositivos informáticos de terceiros, conectados ou não à rede de computadores, sem autorização do usuário do dispositivo. Isso inclui a violação de ferramentas de segurança com o objetivo de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem a autorização do titular, bem como a introdução de vulnerabilidades no dispositivo para facilitar o acesso não autorizado. A pena foi alterada pela Lei nº 14.155, de 27 de maio de 2021, impondo reclusão de 1 a 4 anos, além de multa.
Portanto, o compartilhamento de imagens íntimas sem consentimento é uma conduta grave, pois as consequências podem afetar a vítima ao longo de toda a vida. Depressão severa, ideações suicidas, ataques de pânico, paranoia e outros sintomas podem ser experimentados pelas vítimas de pornografia de vingança. Isso sem mencionar as alterações na dinâmica de suas vidas que muitas vezes precisam ser ocultadas para evitar o julgamento social.
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste artigo, é evidente que a pornografia de vingança é utilizada como um ataque severo direcionado às mulheres. Além disso, é possível compreender os recursos legais disponíveis no contexto jurídico brasileiro para combater a divulgação não consensual de imagens. Uma análise mais profunda revelou que essa prática pode ser principalmente considerada uma forma de violência de gênero perpetrada por homens contra mulheres, e sua extensão é ampliada devido ao julgamento da sociedade em relação ao comportamento e às atitudes das mulheres que não se enquadram nos padrões convencionais.
Os casos de pornografia de vingança estão se tornando cada vez mais comuns no mundo virtual, onde a transferência de intimidade afetiva para esse ambiente cria riscos de vazamentos não autorizados. É importante destacar que não se busca culpar as vítimas, muitas das quais compartilham material íntimo com ex-parceiros na construção da confiança, mas sim evidenciar as sérias consequências de violações à privacidade.
É inegável que a pornografia de vingança causa um impacto trágico nas vítimas do sexo feminino, que continuam a ser alvo de julgamento severo em uma sociedade permeada pelo machismo. Homens que optam por “punir” uma mulher sentem-se à vontade para compartilhar vídeos ou fotos, tornando-os públicos.
O ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de várias leis que abordam essa questão, incluindo o Código Penal, que leva em consideração os direitos violados por esse crime, tais como a honra, a intimidade, a privacidade e a liberdade pessoal. A Lei 13.718/2018, por exemplo, introduziu o artigo 218-C no Decreto-lei nº 2.848, de 07/12/1940, que tipifica a conduta de distribuir fotos e vídeos íntimos de natureza sexual sem o consentimento em meios eletrônicos. Além disso, ela modificou o artigo 7º § 2º da Lei Maria da Penha, reconhecendo a violação da intimidade da mulher como uma característica da violência doméstica.
Dada a relevância atual desse tema, é inegável que as discussões sobre a pornografia de vingança devem ser promovidas nas escolas, não apenas como uma responsabilidade das autoridades, mas também porque não são raros os casos envolvendo jovens nesse tipo de crime.
É crucial que a sociedade reconheça as terríveis consequências para aqueles que sofrem tais violações à intimidade. A conscientização é essencial para desencorajar o compartilhamento, a culpabilização das vítimas e para incentivar a denúncia dos infratores. Isso pode contribuir significativamente para proteger a vida íntima e a dignidade das vítimas de pornografia de vingança.
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1Artigo apresentado ao Curso de Bacharelado em Direito.
2Bacharelanda em Direito na Unidade de Ensino Superior do Sul do Maranhão-(UNISULMA). E-mail: mikaellesantos769@gmail.com
3Tanira Alves Novaes de Oliveira. Especialista em Direito Penal – E-mail: taniranovaes@gmail.com