POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO: CONCEPÇÕES HEGEMÔNICAS QUE FUNDAMENTAM AS POLÍTICAS NACIONAIS DE ALFABETIZAÇÃO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202501101010


Prof. Me. Mayranda Carvalho Miranda
Prof. Dr. Benedito de Jesus Pinheiro Ferreira


RESUMO

O estudo objetiva analisar os processos históricos, econômicos e, principalmente, pedagógicos que incidem diretamente nas políticas nacionais de alfabetização a fim de compreender se essa base histórica, econômica e teórica educacional apresenta-se coerente para contribuir e melhorar os índices de alfabetismo no Brasil. Conclui-se que para além das concepções que fundamentam as políticas de alfabetização e, para além do próprio funcionamento dessas políticas, não se pode deixar de lado o projeto macro de transformação da sociedade, onde somente com a alteração do modo de produção capitalista todos os homens e mulheres poderão almejar uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária.

Palavras-chave: Políticas educacionais. Políticas de alfabetização. Construtivismo. Pedagogia Histórico Crítica.

ABSTRACT

The study aims to analyze the historical, economic and, mainly, pedagogical processes that have a direct impact on national literacy policies. In order to understand if this historical, economic and theoretical educational base is coherent to contribute and improve the literacy rates in Brazil. It is concluded that in addition to the conceptions that underlie literacy policies and, beyond the very operation of these policies, the macro project of transformation of society can not be ignored, where only with the change of the capitalist mode of production all men and women can aim for a truly just and equal society.

Keywords: Educational policies. Literacy policies. Constructivism. Critical Historical Pedagogy.

1 INTRODUÇÃO

O interesse central contempla a reflexão sobre as concepções que, hegemonicamente, são pautadas para fundamentar tais políticas, a nível nacional. Desse modo, terão destaque os ideários do construtivismo, especialmente no que tange a obra de Emília Ferreiro denominada: ‘Reflexões sobre a alfabetização’ e, as concepções defendidas no período denominado como ‘década da alfabetização’.

A inquietação pela temática se justifica pois, passado esse período considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e, de certa maneira, incorporado pelo governo brasileiro, como a década da alfabetização (2003 a 2012), o analfabetismo permanece configurando-se como um problema social mesmo diante da criação de programas governamentais e do ‘aparente’ interesse público sobre a questão.

Para além do movimento nacional em prol da alfabetização, é necessário, também, compreender os movimentos internacionais que, politicamente, inspiraram e inspiram o Brasil na formulação de seus programas, metas e avaliações. De acordo com Gontijo (2014), a priori, o respaldo da ONU ao declarar a década da alfabetização se baseia em três razões fundamentais: 1 – há um contingente grande de pessoas analfabetas no mundo; 2 – a alfabetização é um direito reconhecido pela Declaração Universal dos direitos humanos e; 3 – os esforços para aumentar os níveis de alfabetismo têm se mostrado insuficientes.

Por isso, a partir da compreensão de que os conhecimentos são historicamente criados e socialmente desenvolvidos, opta-se por uma concepção que parte da matriz histórica e material para basear as análises científicas, de acordo com os determinantes de sua época e, considerando a complexa teia dos múltiplos elementos que compõem a realidade. A saber, o materialismo histórico e dialético de Karl Marx.

Investigar e entender a realidade pelo viés do materialismo dialético pressupõe, inicialmente, partir da própria realidade, do que é concreto. Entretanto, precisa-se ter a clareza de que a relação imediata, entre sujeito e objeto, não será suficiente para revelar ao primeiro – quem se propõe a compreender – toda complexidade e determinações sintetizadas no segundo – quem emite à luz possibilitando a compreensão.

O real concreto nada mais é que, a síntese de múltiplas determinações. Portanto, compreender a essência da coisa/do objeto/da realidade, implica necessariamente conhecer as suas determinações; as quais não são visíveis na aparência fenomênica.

O ato de investigação exige do investigador um movimento de aproximação e afastamento do objeto. Aproximação da realidade caótica e afastamento desta para entendê-la também na teoria. Assim, “da vital, caótica, imediata representação do todo, o pensamento chega aos conceitos, às abstratas determinações conceituais” (KOSIK, 2002, p. 16). Posteriormente, faz-se novamente o movimento de aproximação, de retorno à realidade.

Sob a luz desse método, o estudo tem como objetivo principal analisar os processos históricos, econômicos e, principalmente, pedagógicos que incidem diretamente nas políticas nacionais voltadas para a alfabetização, a fim de compreender se essa base histórica, econômica e teórica educacional apresenta-se coerente para contribuir e melhorar os índices de alfabetismo no Brasil.

Para tanto, no primeiro momento, será abordado, brevemente, o marco histórico que versa sobre as políticas e programas instituídos com centralidade nos processos de alfabetização. Gontijo (2014) ajudará na discussão sobre as condições sociais, políticas e econômicas que levaram a alfabetização, no início do século XXI, a se tornar central nos planos de educação dos organismos internacionais. 

No segundo momento, serão apresentadas as questões teóricas e concepções pedagógicas que fundamentam as políticas hegemônicas e as políticas de alfabetização. Mortatti (2010); Ferreiro (2011); Gontijo (2014) será o referencial para o trato com as políticas de alfabetização, os modelos teóricos e propostas pedagógicas consolidadas.

Por fim, serão abordados os parâmetros teóricos que sustentam a concepção (contra hegemônica) apropriada e defendida por este estudo. Dangió e Martins (2018) auxiliarão no diálogo acerca das proposições contra hegemônicas no que tange a concepção pedagógica histórico crítica da alfabetização.

2 POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO: O DESTAQUE PARA A ALFABETIZAÇÃO

É consenso que em uma sociedade letrada saber ler e escrever torna-se imprescindível para a participação ativa, consciente e crítica dos indivíduos. A humanidade alcançou um patamar de elaboração do sistema alfabético de escrita e por ele instituiu sua principal forma de comunicação, de maneira tal que, a alfabetização torna-se base para todo o desenvolvimento escolar e social dos indivíduos.

No século XX a história da humanidade passa a ser palco de grandes mudanças tecnológicas. A era da informação tem seu auge com a globalização e aparente encurtamento da distância entre indivíduo, conhecimento e indivíduo. No entanto, apesar deste cenário que contempla avanços científicos jamais observados, a sociedade mundial e instituição escolar não conseguiram dar soluções ao problema do fracasso escolar, de modo especial, ao problema embrionário que é a questão do analfabetismo. Segundo Gontijo (2014, p.8):

Nessa direção, o aumento das taxas de analfabetismo mundiais leva consequentemente à suposição de que a escola, por não conseguir proporcionar a aprendizagem da leitura, da escrita e do cálculo, é também incapaz de promover o desenvolvimento de aprendizagens mais complexas que demanda a sociedade hodierna.

O excerto é reflexo da Avaliação da educação básica, organizada pela Organização das Nações Unidas e discutida em 2000 na Conferência Regional de Educação para Todos nas Américas. Na ocasião, pôde-se evidenciar que as metas para a alfabetização, elaboradas em acordo com os governos na Conferência Mundial sobre Educação para Todos e realizada em 1990, não foram alcançadas. Instituindo assim, um período de preocupação a nível internacional, onde o analfabetismo passa a representar não apenas o fracasso do sistema escolar, mas também figura-se como um fracasso da própria sociedade.

Diante do exposto, cabe afirmar que a centralidade dada a alfabetização, especialmente a partir do século XXI, tem motivações relacionadas ao fracasso das políticas mundiais que previam diminuir o índice do analfabetismo entre a população adulta, bem como, guarda relação com a forte ideologia de que as melhorias educacionais no que tange a prioridade em alfabetizar todos os indivíduos serão capazes de provocar avanços qualitativos no desenvolvimento econômico das nações. Sobre esta situação, Graff apud Gontijo (2014, p.13) tece críticas e, indica como errônea:

A tentativa de correlacionar linearmente a alfabetização e desenvolvimento econômico, social, individual, etc., sem levar em conta que o analfabetismo é resultado dos processos de exclusão e de marginalização gerados por sociedades fundadas na exploração do trabalho e, portanto, dos seres humanos.

A advertência acima sucinta reflexões que ultrapassam a esfera isolada do sistema educacional. Nesse sentido, vale destacar que toda e qualquer análise deve partir da realidade concreta em que vivemos, no caso, a sociedade capitalista. Esta tem em sua base estrutural a primazia da diferença entre classes, onde uma delas – a burguesia – é detentora dos meios de produção e explora àqueles que têm apenas sua força de trabalho – os trabalhadores. Uma sociedade que, portanto, mantém sua estrutura a partir da marginalização, exclusão e exploração de parte da população.

Entretanto e, apesar disto, essa mesma sociedade que tem como modo de produção o sistema capitalista, tem sua realidade permeada por resistência, disputas e contradições. A classe trabalhadora resiste, luta, ocupa e exige acesso ao conhecimento, aos espaços sociais, às escolas. A burguesia por sua vez, lida com a contradição da necessidade de manutenção da ordem, pois, se por um lado necessita manter seus privilégios, por outro necessita, também, qualificar mão de obra para produção e geração das riquezas.

Em meio ao contexto do conflito de classes, constrói-se o Plano de Ação Internacional com foco no atendimento à população marginalizada dos processos educativos escolares, especialmente as mulheres que moram nos países do Sul; os jovens e adultos não alfabetizados; as crianças e jovens que se encontram fora da escola e; as crianças que frequentam a escola, mas não tem acesso a ensino de qualidade. O Plano ressalta, também, a atenção especial que deve ser dada às minorias linguísticas e étnicas, populações indígenas, migrantes, refugiados, portadores de deficiências, idosos e crianças em idade pré-escolar (GONTIJO, 2014).

Após esta breve exposição dos movimentos feitos pelos organismos internacionais, por meio de conferências, fóruns e Planos em larga escala mundial, avançamos para o diálogo mais específico ao qual se propõem este texto, qual seja: o movimento nacional brasileiro influenciado por esta pressão mundial em prol da alfabetização de todos, com ênfase nas questões teóricas e concepções pedagógicas que fundamentam as políticas educacionais com vistas ao avanço dos índices de alfabetismo no Brasil.

3 AS CONCEPÇÕES TEÓRICO-PEDAGÓGICAS QUE FUNDAMENTAM AS POLÍTICAS NACIONAIS DE ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

O primeiro documento nacional que trata da necessidade de rever as concepções de alfabetização adotadas para dar subsídio às políticas e as práticas de alfabetização no Brasil é o relatório final apresentado no seminário ‘O Poder Legislativo e a Alfabetização Infantil: os novos caminhos’. O documento citado foi apresentado pelo Grupo de Trabalho (GT) constituído pela Câmara dos deputados em 15 de setembro de 2003 (GONTIJO, 2014).

Em síntese, o relatório final aponta que as atividades de leitura têm a finalidade de fazer com que a criança aprenda a decodificar. Assim, a leitura refere-se ao processo de decodificação e a escrita ao processo de codificação. A composição do GT, formada por especialistas do Brasil, Portugal, França, Estados Unidos e Inglaterra, pensa a alfabetização como um conjunto autônomo de competências onde o enfoque fonético apresenta-se como o mais adequado para o ensino da leitura e escrita.

Na perspectiva do GT a ênfase da alfabetização infantil está no ler. No entanto, a leitura associada à capacidade de interpretar é um estágio além da aprendizagem da decodificação. Em outras palavras, de acordo com o relatório elaborado por este grupo, a ênfase metodológica na alfabetização deve ser dada ao significante, às unidades menores da língua que constituem a base do sistema alfabético. Segundo o GT, essa fase de escolarização não visa à compreensão de significados ou sentidos.

De acordo com Gontijo (2014) toda esta concepção que fundamenta o documento elaborado para dar o ponta pé inicial à década da alfabetização – 2003 à 2012 – no Brasil, mostra-se incoerente com a revisão de conceitos proposta, inclusive pelos organismos internacionais, particularmente a UNESCO, os quais  via de regra, passam a questionar os métodos tradicionais de ensino pautados na perspectiva dita ‘mecânica’ e que, segundo as estatísticas apontam para o fracasso das metas estipuladas para o sistema escolar no âmbito da alfabetização.

O GT também tece críticas frontais a concepção construtivista de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, adotada no Brasil como orientadora das políticas de alfabetização na década de 1990 e início dos anos 2000.

A teoria construtivista chegou ao Brasil na década de 1980, sendo divulgada como uma teoria conceitualmente transformadora, em razão do papel conferido ao aluno como sujeito ativo, colocando-o na condição de construtor que se deu conhecimento. No entanto, apesar dessa premissa, o construtivismo produziu um confronto na rede pública, fomentando um sentimento de insegurança e mal-estar entre os docentes, pois apontava a necessidade do abandono de práticas supostamente “tradicionais”, entre elas, o trabalho com palavras e sílabas, por exemplo, sem, contudo, indicar para seu lugar práticas consistentes de alfabetização (DANGIÓ; MARTINS, 2018, p. 07).

Ferreiro (2011) desloca o enfoque do ‘como se ensina’ para o ‘como se aprende’.  Segundo a autora, as pesquisas apontam que é necessário abandonar a ideia de que a leitura e a escrita devam ser consideradas como objeto de uma instrução sistemática, como algo que deva ser “ensinado” e cuja “aprendizagem” suporia o exercício de uma série de habilidades específicas. Para Ferreiro e Teberosky (1989) a escrita, longe de ser a transcrição da fala – conforme defesa do GT da Câmara dos Deputados – é um sistema de representação da linguagem oral.

O enfoque construtivista delineado por Ferreiro (2011) compreende que, por ser a invenção da escrita um processo histórico de construção de um sistema de representação, assim o deve ser apreendido pelos sujeitos no processo de alfabetização. Isto é, para ser alfabetizada a criança deve compreender o processo de construção e regras de produção do sistema de escrita. Por outro lado, se a escrita é, erroneamente, concebida como um código de transcrição, sua aprendizagem é concebida, unicamente, como a aquisição de uma técnica.

Partindo desse pressuposto, a perspectiva construtivista contrapõem-se frontalmente às práticas ditas tradicionais que apresentam prioridades cronológicas para o ensino da leitura e escrita, que operam mecanismos de aprendizado com base nos exercícios de repetição e cópia, que valorizam a padronização da escrita em sua forma gráfica, etc. Para Ferreiro (2011, p.59) o papel dos adultos, especialmente dos professores, no que se refere a aprendizagem é “não dar inicialmente todas as chaves secretas do sistema alfabético mas criar condições para que a criança as descubra por si mesma”.

Por fim, o construtivismo enquanto um modelo teórico foi apresentado como revolução conceitual, com ênfase na maneira como a criança aprende a ler e a escrever, ou seja, como a criança se alfabetiza.

O construtivismo não pode e não pretende ser nem um novo método de ensino da leitura e escrita nem, portanto, comporta uma nova didática (teoria do ensino) da leitura e escrita. Por esse motivos, do ponto de vista da história da alfabetização no Brasil, desse modelo teórico decorre o que denomino desmetodização da alfabetização (MORTATTI, 2010, p. 332).

Diante do exposto, com base nas duas concepções apresentadas, tanto as discussões e reflexões apresentadas no GT quanto às proposições teóricas construtivistas de Emília Ferreiro – ambas fortemente respaldadas para conduzir as políticas nacionais de alfabetização – observa-se a tentativa de superação por negação, ou seja, ambas inclinam-se ao extremo uma da outra ao passo em que se opõem por completo às elaborações de correntes teóricas diferentes.

De um lado o construtivismo ao privilegiar os aspectos psicológicos envolvidos na aprendizagem da leitura e da escrita, obscureceu sua faceta linguística (SOARES, 2016). De outro, o relatório produzido pelo GT composto pela Câmara dos Deputados, concentra suas elaborações em uma ‘excessiva especificidade’, preocupa-se centralmente com as relações entre o sistema fonológico e o sistema gráfico, obscurecendo e limitando-se a uma vertente mecanicista que não ultrapassa o debate da aprendizagem puramente técnica.

Por acreditar em uma realidade dialética, onde a produção coletiva, historicamente criada e socialmente desenvolvida pela humanidade deva ser considerada como mola propulsora para novas elaborações e sínteses, passamos ao último tópico deste estudo, com intuito de provocar uma reflexão acerca da possibilidade pedagógica, sob o enfoque histórico crítico, em superar as duas concepções incorporando àquilo que, essencialmente, seja relevante no processo de alfabetização. 

4 PEDAGOGIA HISTÓRICO CRÍTICA: UMA SÍNTESE PROPOSITIVA

Exposta a ‘disputa’, permeada pelo emaranhado teórico apresentado, pretende-se adiante, explorar uma teoria que se propõe a superar, por incorporação, os enfoques pedagógicos abordados no tópico anterior. Tem-se como premissa que a transformação dessa realidade deve ser precedida da superação dos enfoques dualistas e lógico-formais, pela via da compreensão dialética. Desse modo, deve-se priorizar o percurso didático onde os alunos aprendam a ler e escrever não de maneira espontânea, como defende o construtivismo, nem pela mera repetição vazia de significados, como faziam as cartilhas.

O percurso didático ao que se propõe a pedagogia histórico crítica não guarda identificação com nenhuma das concepções até aqui abordadas, mas ao mesmo tempo, contém delas o que pode ser chamado de essencial, assim, em sua concepção “contempla o equilíbrio na medida em que resgata os conteúdos necessários à alfabetização, prioriza a dialética conteúdo/forma e no destaque que confere ao destinatário do processo, isto é, o aluno” (DANGIÓ; MARTINS, 2018, p. 109).

No entanto, esse destaque dado ao destinatário, de modo algum pode ser reduzido a um deslocamento e abandono das ferramentas de ensino para o enfoque total à mera compreensão acerca do aprendizado. O professor alfabetizador deve ser instrumentalizado com conhecimentos técnicos específicos, minuciosamente detalhados e abrangentes acerca da alfabetização.

Dangió e Martins (2018) destacam dentre esses conhecimentos necessários ao ensino da leitura e escrita, os aspectos históricos, neurolinguísticos, estruturais e discursivos da língua portuguesa. Ora, se a língua que falamos representa parte do que somos, nada mais coerente que compreender seus processos históricos de origem e desenvolvimento. Do mesmo modo, faz-se necessário a apropriação das transformações que a inserção dessa forma de comunicação causou e causa no organismo humano. Assim como, reconhecer que a língua escrita e falada se constitui como um produto cultural e que, portanto, precisa ser apreendido em sua estrutura padrão.

Com base nesses conhecimentos necessários, as autoras aprofundam o enfoque neurocientífico para compreender, por meio de estudos científicos, o funcionamento do cérebro humano a partir da prática da leitura e escrita, a fim de subsidiar a defesa de determinadas posturas que devem ser adotadas no ensino dessas práticas. Por exemplo, através do entendimento de que a região cerebral denominada planum temporale tem papel fundamental na leitura, pois permite o encontro entre as informações visuais e auditivas, é possível inferir que:

“Para a aprendizagem da escrita, somente os processos iniciais de escuta atenta dos sons não são suficientes, ainda que necessários, tornando-se premente à criança a aprendizagem de como esses sons podem ser representados e, até mesmo, a aprendizagem da leitura de suas diferentes formas de representação (DANGIÓ; MARTINS, 2018, p.95)”.

Ou seja, obstante da proposta construtivista, vale ressaltar que o ensino sistemático e a valorização do ‘como se ensina’ são fundamentais ao aprendizado da leitura e escrita. Por mais estimulada que seja a criança, se considerarmos o nível letrado no qual se encontra a sociedade atualmente, os processos metodológicos que selecionam o conhecimento acumulado, organizam o conhecimento escolar e instruem os aprendizes são indispensáveis na busca pela consolidação da alfabetização.

Ainda sob enfoque histórico crítico, as autoras apontam três características centrais da língua portuguesa, quais sejam: 1 – o predomínio de um sistema alfabético, isto é, não é possível negar que a comunicação tem como base a utilização de códigos; 2 – a memória etimológica, em outras palavras, nossa língua influenciou e foi influenciada por diversos povos, de modo que, a composição do léxico português abrange palavras de outras nações e que, portanto, sua escrita deriva de outros parâmetros ortográficos; 3 – nossa língua possui uma regulamentação ortográfica, a qual se constitui enquanto uma norma, uma convenção social.

Diante disso, destaca-se outro aspecto relevante no ensino da alfabetização, o reconhecimento que a apropriação dos códigos é o primeiro passo para o desenvolvimento pleno da leitura e escrita.

A decodificação e a compreensão caminham lado a lado […] aprender a soletrar a pronúncia das palavras não deverá se constituir num fim em si mesmo. Mas a compreensão passa antes de tudo pela fluência da decodificação. Quanto mais rápida essa etapa for automatizada, melhor o aluno poderá se concentrar no significado do texto. (DEHAENE apud DANGIÓ; MARTINS, 2018, p. 143).

Saviani (2005) se utiliza da expressão automatismo para explicar esse processo. Segundo o autor, os mecanismos próprios da linguagem devem ser incorporados, integrados ao nosso próprio ser para que assim, depois de dominadas, as formas de leitura e escrita possam fluir com segurança e desenvoltura. O alfabetizando, aos poucos, se liberta dos mecanismos e concentra maior atenção aos significados e sentidos.

Entender a linguagem humana como forma de interação verbal permitirá ao professor planejar um ensino da linguagem oral e escrita na escola, respaldado pelo objetivo da aprendizagem da língua padrão. E, além disso, também oportunizará um movimento dialético por meio do qual, reproduzindo o existente, o indivíduo possa avançar em direção a novas criações (DANGIÓ; MARTINS 2018, p.90).

Os processos históricos da humanidade são constituídos das apropriações acerca daquilo que já foi produzido, com vistas às novas objetivações por parte de quem já se apropriou. Em outras palavras, o ser humano necessita se apropriar da língua em sua forma mais elaborada para poder reproduzi-la e posteriormente ter condições de criar, inovar, produzir novas formas de elaboração. 

Ademais, por mais que possa parecer sedutora a ideia de que as crianças devam construir seu próprio conhecimento através da descoberta de seus próprios caminhos entendidos como percursos individuais, não podemos esquecer que todo produto histórico é coletivo e que, portanto, pertence a toda humanidade e por ela deve ser apropriada. Garantir o acesso de todas as pessoas aos espaços escolares e garantir que todos sejam alfabetizados com qualidade, é também garantir que, essas pessoas tenham condições de participar ativa, consciente e criticamente da sociedade.

Conclamamos a alfabetização para além da aquisição do código. Entendemos que a alfabetização deva pressupor o desenvolvimento da capacidade linguística dos alunos por meio do ensino dos aspectos estruturais da língua e, principalmente, do uso adequado da linguagem nas diferentes situações comunicativas (DANGIÓ; MARTINS, 2018, p. 90).

5 CONCLUSÃO

Em primeira instância, pode-se observar que o percurso histórico das políticas de alfabetização é marcado pelo embate de métodos pedagógicos, os quais surgem e se sustentam pela crítica radical aos métodos anteriormente difundidos. De modo que, as elaborações emergentes desconsideram por completo as produções já instituídas e culpabilizadas pelos resultados não alcançados ao que se propunham em sua essência. Esse processo descontínuo em relação aos métodos caracteriza-se como uma fragilidade na fundamentação das políticas nacionais de alfabetização. 

Outro elemento que se mostra descontínuo e, portanto, frágil, são os próprios programas e políticas voltados para a alfabetização que, por possuírem caráter de governo e não de estado, pois contemplam conjunturas pontuais de períodos efêmeros. A descontinuidade dos programas torna-se um verdadeiro obstáculo no alcance das metas e objetivos estabelecidos.

Salienta-se que, diante de uma análise concreta da realidade, o problema quanto aos elevados índices de analfabetismo não possui uma solução isolada em si mesmo. Os problemas sociais, de modo geral, na sociedade capitalista, são determinados e sofrem influências de diversos setores.

Nesse sentido, para além das concepções que fundamentam as políticas de alfabetização e, para além do próprio funcionamento dessas políticas, não pode-se deixar de lado o projeto macro de transformação da sociedade, onde somente com a alteração do modo de produção capitalista todos os homens e mulheres poderão sonhar com uma sociedade verdadeiramente justa, igualitária e que garanta à todos o direito não só a alfabetização, mas a um sistema público de ensino com qualidade, saúde, lazer, trabalho digno sem a exploração e alienação, processos típicos de uma sociedade dividia em classes.

REFERÊNCIAS

DANGIÓ, Meire Cristina dos S.; MARTINS, Lígia Márcia. A alfabetização sob o enfoque histórico crítico: contribuições didáticas. – Campinas, SP: Autores Associados, 2018. – (Coleção educação contemporânea).

FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. (1989). Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre, Artes Médicas.

FERREIRO, Emilia. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 2011.

GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. Alfabetização: políticas mundiais e movimentos nacionais. – Campinas, SP: Autores Associados, 2014. – (Coleção educação contemporânea).

KOSIK, Karel. Reprodução espiritual e racional da realidade. In: KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Trad. Castro e Costa, L. C. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

MORTATTI, M. R. L. Alfabetização no Brasil: conjecturas sobre as relações entre políticas públicas e seus sujeitos privados. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n.44, maio/ago. 2010.

PAULO NETTO, José. Introdução ao estudo do método em Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

SAVIANI, D. Escola e democracia. 33. Ed. Campinas: Autores Associados, 2000.

_______. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 9. Ed. Campinas: Autores Associados, 2005.
SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2016.