REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202506112147
Ana Paula Rodrigues de Souza1; José Humberto Veríssimo Zuchetti2; Andreia Maria da Silva3; Milena Luiza Lucas Queiroz4; Rosiane Pereira de Jesus5; Daliane Cristina Barreto Lourenção6; Giancarlo Marinho Costa7; Jania Jesuína Fornazier8; Rozeli Ferreira9
Resumo
Este artigo analisa os impactos da política de Gratificação por Resultado (GR), implementada no estado de Mato Grosso, no desenvolvimento profissional e na formação continuada de professores efetivos de Matemática e Língua Portuguesa da Educação Básica. A pesquisa, de abordagem qualitativa, utiliza estudo de caso, entrevistas semiestruturadas e análise documental, buscando compreender como os professores relacionam seu desenvolvimento profissional e a busca por formação continuada, diante da necessidade de cumprir os itens que compõem a Gratificação por Resultados, no estado de Mato Grosso. A análise se apoia em autores como Day (2001), Marcelo García (1999), Libâneo (2014) e Tardif (2014), discutindo os desafios e tensões entre políticas meritocráticas e os princípios formativos emancipatórios da profissão docente. Destaca-se que, apesar do discurso de valorização, a GR gera efeitos negativos sobre a prática docente e evidencia a urgência de políticas participativas que reconheçam os saberes dos professores e promovam uma formação emancipadora e comprometida com a justiça social.
Palavras-chave: Desenvolvimento profissional docente. Formação continuada. Gratificação por Resultado. Políticas educacionais. Educação Básica.
1. Introdução
A docência é uma profissão marcada por transformações e contradições sociais, culturais, econômicas e políticas, exigindo de seus profissionais uma postura reflexiva, crítica e em constante processo formativo. No cenário educacional contemporâneo, o professor é constantemente desafiado a se reinventar diante das políticas públicas que impactam diretamente em seu trabalho na sala de aula, suas práticas pedagógicas e seu compromisso ético com a formação dos estudantes faz com que o educador busque formação constante.
No estado de Mato Grosso, uma dessas políticas é a Gratificação por Resultado (GR), instituída no âmbito do Programa EducAção – 10 Anos, e regulamentada pela Lei Complementar nº 756/2023. Essa política tem promovido mudanças significativas na dinâmica de trabalho dos professores da rede estadual, vinculando o recebimento de gratificação salarial ao cumprimento de metas institucionais, à participação em formações determinadas por plataformas e o desempenho dos estudantes nas avaliações externas, que não servem somente de diagnóstico dos estudantes, mas sim de parâmetro para nova Políticas voltadas à formação dos professores da rede estadual de Mato Grosso.
Neste contexto, o presente artigo visa analisar como os professores de Língua Portuguesa e Matemática, da Educação Básica do município de Mirassol d’Oeste, no estado de Mato Grosso, narram a relação entre seu desenvolvimento profissional e a política de Gratificação por desempenho.
Conforme aponta Day (2001), o desenvolvimento profissional está diretamente conectado às vivências pessoais e aos contextos institucionais dos docentes. Com isso, professores, gradualmente, constroem sentidos sobre sua formação e atuação diante de uma política, baseada em critérios quantitativos e muitas vezes descolada da realidade das escolas públicas. Embora, a GR, uma política que apresente a premissa de valorização do profissional da educação, pode, na prática, gerar efeitos colaterais preocupantes, como o aumento da pressão por resultados, a sobrecarga de trabalho e o comprometimento da autonomia docente.
2. Desenvolvimento Profissional Docente sob políticas públicas de formação continuada
O Desenvolvimento Profissional Docente (DPD) é um processo contínuo que envolve dimensões pessoais, sociais, políticas, emocionais e pedagógicas. De acordo com Ferreira (2020, p. 8), o DPD: “[…] envolve as próprias experiências. Baseia-se na reflexão e envolve a escola intimamente em seu processo. […] é multidimensional e sofre influências individuais, coletivas, emocionais, políticas, sociais, econômicas e profissionais”.
Nesse sentido, autores como Day (2001) e Marcelo García (1999; 2009) entendem que o DPD deve ocorrer no contexto do trabalho docente, em especial na escola, onde o professor, em interação com seus pares, alunos e comunidade, aprende e reflete sobre sua prática.
Day (2001) salienta que a formação deve ser significativa, contextualizada e respeitar as necessidades dos professores. Entende-se que a profissionalização docente requer suporte não apenas técnico, mas também emocional e organizacional. Nesse contexto, a autonomia docente para escolher suas formações é central para a eficácia do processo formativo.
Complementando essa perspectiva, Nóvoa (2009) afirma que o Desenvolvimento Profissional deve ser construído na e pela profissão, por meio da prática reflexiva, da valorização das experiências docentes e da construção coletiva do saber pedagógico. Para ele, é preciso romper com modelos tradicionais de formação baseados em prescrições externas e promover uma profissionalidade docente baseada na colaboração, na pesquisa e na autonomia. Nóvoa (2009) defende a ideia de que os professores devem ser protagonistas de sua própria formação, por meio de espaços coletivos de diálogo e ação.
Libâneo (2013) também contribui com essa discussão ao destacar a necessidade de articulação entre as condições concretas de trabalho e os processos formativos. Para ele, não se pode pensar em uma formação efetiva sem considerar o contexto social, econômico e político no qual os professores estão inseridos. A formação que ignora as condições reais da escola e os desafios cotidianos da docência tende a ser ineficaz, pois desconsidera as necessidades formativas reais dos educadores. Este autor tece criticas as políticas educacionais que impõem modelos prontos de formação, distanciados da realidade do professor, defendendo que a valorização docente passa pela escuta, pela participação ativa e pela construção coletiva do saber.
Na mesma direção, Saviani (2018, p. 57) reforça que a educação e, consequentemente, a formação docente, não são neutras. Para ele, “agir como se a educação fosse isenta de influência política é uma forma eficiente de colocá-la a serviço dos interesses dominantes”. Assim, o DPD deve ser compreendido como um processo político, no qual o professor precisa ser sujeito consciente e crítico, capaz de compreender o papel social da educação e de atuar para sua transformação. A formação que contribui para o desenvolvimento profissional deve estimular a reflexão crítica sobre a prática, a realidade educacional e as estruturas que a condicionam. Portanto, o DPD não pode ser reduzido a cursos pontuais ou metas de desempenho. Trata-se de um processo que integra teoria e prática, experiência e reflexão, autonomia e colaboração, sempre com o objetivo de qualificar o trabalho docente e promover uma educação mais justa e significativa.
A formação continuada é compreendida como um processo contínuo articulado com a prática pedagógica, a valorização docente e o compromisso com uma educação de qualidade (MARCELO GARCÍA, 1999; LIBÂNEO, 2013; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009). Para que esse processo seja realmente emancipador, é importante que o professor tenha voz ativa sobre sua formação, que por meio da reflexão possa escolher seu percurso formativo.
Muitos autores defendem que políticas de formação de professores, quando imposta por políticas públicas, pode se tornar um mecanismo de controle que determina o que aprender, como e para quem. Como apontam Libâneo (2013) e Day (2001), formações impostas de forma padronizada, desconectadas da realidade escolar, tendem a perder sua efetividade, transformando-se em ações burocráticas, que muitas vezes apenas cumprem exigências administrativas e nem sempre surtem efeito na prática pedagógica.
Autores como Pereira et al. (2021) e Moretti e Maciel (2022), apontam que há uma crescente pressão por resultados nas escolas públicas, o que transforma as formações em instrumentos de adequação a políticas avaliativas, como a busca por metas e bonificações, em detrimento de um desenvolvimento pedagógico crítico e colaborativo.
Freitas (2019) e Diniz & Garcia (2017) chamam atenção para as más condições de trabalho, a sobrecarga e a desvalorização docente como obstáculos ao engajamento em processos formativos, o que muitas vezes, faz com que os professores busquem alcançar as metas educacionais em detrimento a busca pelo saber. Além disso, Fernandes e Costa (2023) destacam que a ausência de escuta ativa das necessidades dos professores fragiliza o processo formativo, gerando frustração e, em muitos casos, desmotivação profissional.
Freire (1996) reforça que o professor só poderá contribuir com uma educação libertadora se ele próprio for libertado das condições que o oprimem. Assim, pensar em uma formação continuada eficaz exige reconhecer o professor como sujeito ativo no processo educativo, cuja experiência e contexto devem nortear a construção de deus saberes.
2.1 A Gratificação por Resultado no entrelaçamento entre política pública e prática docente em Mato Grosso
No Estado de Mato Grosso, por meio do Programa EducAção – 10 Anos (Decreto nº 1.497/2022) e da Lei Complementar nº 756/2023, instituiu-se a Gratificação por Resultado (GR), articulando a formação e o desempenho docente a uma lógica meritocrática. Sob o discurso de valorização profissional, essa política vincula benefícios salariais e progressão na carreira ao cumprimento de metas quantitativas e à participação em formações promovidas pelo Estado, bem como ao desempenho dos estudantes em avaliações externas.
O programa estabelece como critérios para concessão da GR aspectos como a redução do absenteísmo (CRA), a conclusão de cursos de formação profissional na plataforma AVADEP e o uso obrigatório de outras plataformas digitais, como Letrus e MatFic. Estas plataformas estão diretamente associadas ao planejamento e à prática pedagógica de professores de Língua Portuguesa e Matemática. Entretanto, a formação continuada prevista na política frequentemente assume caráter padronizado, compulsório e descolado da realidade escolar, desconsiderando a autonomia dos docentes e seus saberes profissionais construídos ao longo da experiência (TARDIF, 2014; LIBÂNEO, 2013).
Embora apresentadas como estratégias de valorização, tais medidas têm se configurado como mecanismos que intensificam e sobrecarregam o trabalho docente. Ocorre um desgaste emocional dos professores, inseridos em uma dinâmica escolar orientada por indicadores de produtividade que ignoram as especificidades dos contextos em que atuam. Esse cenário é particularmente grave em regiões periféricas, onde as condições de trabalho são precárias e o suporte institucional é limitado.
A regulamentação imposta pelo Decreto nº 256/2023 agrava esse quadro ao desconsiderar fatores externos à atuação do professor, como infraestrutura deficiente, ausência de apoio pedagógico e demandas administrativas que extrapolam sua função original. Nesse sentido, a GR deixa de ser apenas um instrumento de incentivo e passa a operar como dispositivo de controle e responsabilização individualizada.
Ainda que, em tese, a política da GR tenha como objetivo valorizar o desempenho docente e promover avanços na aprendizagem, sua ênfase em metas e indicadores quantitativos têm produzido efeitos adversos no cotidiano escolar. Professores, especialmente os que atuam nas áreas-alvo das avaliações externas, relatam o desvio do foco pedagógico em direção à performance, à burocratização e à exaustão.
Como adverte Saviani (2018), políticas educacionais que se pretendem neutras, mas que ignoram os determinantes estruturais do sistema de ensino, acabam por reforçar mecanismos de controle e subordinação, enfraquecendo a dimensão crítica da docência. Assim, a GR deve ser compreendida como parte de uma lógica de responsabilização individual, em detrimento de ações efetivas de valorização coletiva da profissão.
Nóvoa (2009) denomina esse processo de “transbordamento”, referindo-se à acumulação de funções, tarefas e expectativas sobre a escola e seus profissionais, que passam a atuar em um ambiente de sobrecarga e desencaixe entre política educacional e prática docente. A obrigatoriedade do uso de plataformas digitais e a adesão forçada a formações que nem sempre dialogam com a realidade da sala de aula exemplificam esse distanciamento.
Saviani (2018, p. 35) também critica a aparente neutralidade dessas políticas, afirmando que: “Agir como se a educação fosse isenta de influência política é uma forma eficiente de colocá-la a serviço dos interesses dominantes”. Nesse mesmo sentido, Lima e Silva (2022) alertam que políticas que atrelam formação a bonificações salariais, sem escuta dos profissionais e sem considerar desigualdades territoriais, tendem a ampliar as assimetrias nas redes públicas de ensino.
A valorização docente, portanto, não pode ser reduzida a premiações meritocráticas, mas deve contemplar salários dignos, condições adequadas de trabalho, tempo para a formação e participação efetiva dos professores na formulação das políticas educacionais.
A GR, nesse contexto, constitui uma política que aparenta ser técnica, mas que atua como instrumento de regulação e subordinação do trabalho docente. A lógica gerencialista que a sustenta insere-se em um movimento mais amplo de mercantilização da educação. Laval (2019) e Gentili (1996) argumentam que a submissão da escola a critérios de produtividade transforma o espaço educativo em ambiente de desempenho e competição, em que professores e alunos são convertidos em peças de um sistema regulado por metas.
Nesse modelo, a qualidade da educação é reduzida a resultados mensuráveis, frequentemente descolados da realidade escolar. A criatividade pedagógica, a escuta ativa e a construção coletiva do conhecimento são substituídas por práticas padronizadas e voltadas à eficiência, em detrimento da formação integral dos sujeitos.
Tal concepção confronta a perspectiva freireana de uma educação humanizadora e emancipadora, baseada no diálogo, na criticidade e na valorização da experiência dos educandos. Como sublinha Gentili (1996), as reformas neoliberais na educação fragilizam o papel do professor como intelectual transformador e ampliam as desigualdades, favorecendo a adaptação à ordem vigente em lugar da transformação crítica.
3. Metodologia
A pesquisa desenvolvida adota uma abordagem qualitativa, de natureza interpretativa, orientada pelo interesse em compreender os sentidos atribuídos pelos sujeitos às suas experiências formativas no contexto das políticas educacionais. Conforme apontam Bogdan e Biklen (1994), a pesquisa qualitativa busca interpretar os fenômenos em seus ambientes naturais, reconhecendo a complexidade das interações sociais e a centralidade da perspectiva dos participantes.
Trata-se de um estudo de caso (YIN, 2001), realizado com professores de Matemática e Língua Portuguesa da Educação Básica, atuantes no município de Mirassol d’Oeste, no estado de Mato Grosso. Essa escolha metodológica justifica-se pela possibilidade de examinar em profundidade os significados, percepções e práticas que emergem em um contexto educacional específico, favorecendo a construção de interpretações contextualizadas e sensíveis à realidade dos sujeitos envolvidos (STAKE, 1999).
Os procedimentos metodológicos adotados incluíram: Pesquisa bibliográfica, com revisão de autores que discutem o desenvolvimento profissional docente e a formação continuada, como Marcelo García (1999), Nóvoa (1992, 2009), Tardif (2002) e Imbernón (2009), entre outros que problematizam os saberes da docência e as políticas de formação, e a Pesquisa documental, centrada na análise de leis, decretos, resoluções e diretrizes emitidas pelo Estado de Mato Grosso, especialmente aquelas relacionadas à Gestão por Resultados (GR), com o intuito de compreender as intenções normativas e os enquadramentos institucionais que incidem sobre a formação docente.
A análise dos dados será orientada pela técnica de Análise de Conteúdo, conforme proposta por Bardin (1977), por meio da qual serão identificadas categorias emergentes nas narrativas dos professores a respeito da GR e de seus impactos na formação continuada. A codificação será realizada em etapas, respeitando os princípios da pré-análise, exploração do material e interpretação inferencial, com o objetivo de revelar regularidades, contradições e sentidos atribuídos pelos docentes às experiências formativas mediadas pelas políticas públicas.
4. Resultados e Discussão
A pesquisa foi realizada com 10 (dez) professores, de um universo total de 19 (dezenove) docentes das disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, em uma escola da rede pública estadual de Mato Grosso, localizada no município de Mirassol d’Oeste. A escolha dessa unidade escolar deve-se ao fato de que ela possui o maior número de professores efetivos e contratados pelo Estado atuando nas disciplinas de interesse para este estudo, sendo que alguns desses professores também lecionam em outras unidades escolares além daquela onde a pesquisa foi desenvolvida.
Vale destacar que as orientações e legislações que subsidiam as ações pedagógicas e o trabalho docente são igualmente aplicadas nas sete unidades escolares estaduais sediadas neste município. Para atender ao objetivo central deste estudo, foi aplicado um questionário online composto por 12 questões distribuídas em três categorias: perfil dos respondentes, percepção sobre a Gratificação por Resultados e valorização profissional. A análise a seguir trata dessas questões.
Ao analisar o perfil dos respondentes com base nos estágios do ciclo de vida profissional docente proposto por Huberman (1992), foi possível perceber uma diversidade significativa de fases entre os professores participantes.
Tabela 1: Intervalo, em anos, de exercício da docência em escolas Estaduais em Mato Grosso
Tempo de atuação na Educação Básica | Número de Professores |
Menos de 05 anos | 02 |
De 05 a 10 anos | 02 |
De 11 a 20 anos | 04 |
Mais de 20 anos | 02 |
Total | 10 |
Fonte: Elaborado pelos autores.
O gráfico sinaliza que a maioria dos dez respondentes possui entre 11 e 20 anos de experiência de docência, na Educação Básica, em escolas públicas no estado de Mato Grosso. Huberman (1992) trabalha com a categorização de distintos períodos de desenvolvimento da docência. Segundo ele, os professores com até 5 anos de experiência, dois respondentes, estão na fase de entrada na carreira, período frequentemente marcado pelo “choque com a realidade escolar”. Nessa etapa, os docentes tendem a enfrentar grandes desafios relacionados à gestão da sala de aula, adaptação às rotinas escolares e desenvolvimento de sua identidade profissional. Embora essa fase possa ser entusiasmante, também é atravessada por inseguranças e instabilidades, o que torna fundamental o apoio institucional e a formação contínua.
Já os docentes com 5 a 10 anos de atuação, dois dos sujeitos, se referindo aos estudos de Huberman (1992), se situam na fase de estabilização, na qual há maior segurança em relação à prática pedagógica e consolidação de estratégias didáticas. É um momento em que os professores começam a desenvolver autonomia profissional, sentindo-se mais à vontade para afirmar seus estilos de ensino. Contudo, também pode ser uma fase de início de questionamentos, especialmente em contextos de mudanças políticas e exigências externas, como ocorre com políticas de bonificação atreladas ao desempenho.
Os quatro docentes com 11 a 20 anos de experiência tendem a estar na fase de diversificação ou de questionamento. Nessa etapa, é comum que os professores revisitam suas práticas, reflitam sobre sua trajetória e busquem novas abordagens, formações e formas de engajamento profissional. Pode haver uma oscilação entre inovação e acomodação, dependendo das condições de trabalho e das políticas educacionais em vigor (HUBERMAN, 1992). A presença da Gratificação por Resultados, por exemplo, pode ser percebida de maneiras ambíguas nessa fase — ora como um estímulo à ação, ora como uma imposição externa que limita a autonomia pedagógica.
Por fim, os dois professores com mais de 20 anos de carreira possivelmente se encontram nas fases de serenidade ou de desinvestimento. De acordo com Huberman (1992) esses docentes já atravessaram momentos de intensa atividade e experimentação e podem adotar uma postura mais reflexiva e ponderada diante das exigências da profissão. Entretanto, se não houver reconhecimento institucional, valorização concreta ou espaço para contribuição ativa, essa fase pode ser marcada por frustração, cansaço e afastamento emocional em relação ao trabalho.
Essa distribuição revela uma equipe docente heterogênea em termos de trajetória profissional, o que permite uma pluralidade de olhares sobre políticas como a Gratificação por Resultados. Professores em diferentes fases do ciclo profissional tendem a reagir de formas distintas: enquanto os mais jovens podem buscar adaptar-se às exigências como forma de afirmação, os mais experientes podem resistir a elas, questionando sua efetividade e seu impacto na prática pedagógica. Tal heterogeneidade reforça a necessidade de que políticas de formação e valorização profissional sejam sensíveis às diferentes etapas da carreira, respeitando as experiências acumuladas e os desafios específicos de cada fase.
Esses dados mostram que, do grupo investigado, a maioria dos participantes é composta por profissionais experientes, que já vivenciaram diversas reformas educacionais e, portanto, têm uma visão crítica e fundamentada sobre as políticas públicas em vigor.
Ao analisar a categoria percepção sobre a Gratificação por Resultados, ao questionarmos sobre o conhecimento das regras da GR, metade dos professores afirmou conhecê-las, enquanto a outra metade admitiu desconhecê-las parcialmente. Esse dado revela um distanciamento entre os docentes e a política, o que pode comprometer sua efetividade.
Interpreta-se que o fato de muitos professores não se sentirem informados sobre as regras inerentes a essa política reforça a necessidade de maior transparência e diálogo na implementação de políticas educacionais, além de evidenciar a fragilidade de sua inserção no cotidiano escolar.
Sobre o impacto da gratificação no trabalho docente, oito dos respondentes afirmaram que ela influencia positivamente sua atuação e dois discordam que essa política beneficia sua atuação docente. No entanto, ainda revelaram que após implantação dessa política no cenário educativo do estado, os sujeitos se dividem igualmente em dois grupos em que um destes afirmam que a GR reflete em motivação real para o trabalho, enquanto o outro alega que essa política não influencia diretamente sua motivação para o exercício da docência.
Figura 1: Influência positiva da GR na atuação docente

Fonte: Elaborado pelos autores.
Esse dado evidencia uma contradição: embora parte dos professores reconheça algum efeito positivo na prática, isso não se traduz em engajamento ou valorização subjetiva do trabalho, o que reforça a ideia de que políticas meritocráticas não alcançam as dimensões mais profundas do desenvolvimento profissional.
No que diz respeito à cultura de competição, frequentemente associada às políticas de bonificação, 70% dos professores participantes (sete sujeitos) da pesquisa afirmaram que a GR não interfere negativamente nas relações entre os colegas, não havendo competições entre os pares, mas destacam que o trabalho em equipe ainda é uma prioridade.
Figura 2: Competição entre docentes em decorrência da GR

Fonte: Elaborado pelos autores.
Esse dado contraria a expectativa de que esse tipo de política promove disputas individuais, enfraquecendo os vínculos coletivos. Ainda assim, todos os participantes foram unânimes ao afirmar que a gratificação não é suficiente para valorizar o trabalho docente, nem de forma geral, nem parcialmente. Para os professores, a valorização profissional deveria vir na forma de aumento salarial fixo, melhores condições de trabalho e um plano de carreira estruturado, aspectos que realmente contribuem para o desenvolvimento docente de forma contínua e sustentável.
Quanto ao planejamento pedagógico, 70% dos respondentes indicaram que a GR não interfere em suas decisões, enquanto 30% disseram que ela influencia negativamente.
Figura 3: GR subsidia o planejamento docente

Fonte: Elaborado pelos autores.
Isso sugere que a gratificação não está integrada ao processo pedagógico, sendo percebida mais como uma política administrativa do que como um mecanismo de apoio à prática docente.
No que tange a categoria Valorização Profissional quando perguntados se a GR faz parte de uma política meritocrática, 40% negaram essa associação, outros 40% reconheceram essa vinculação de forma parcial, 10% afirmaram que sim e 10% disseram não saber opinar. Essa dispersão nas respostas pode estar relacionada à falta de clareza e de comunicação sobre os objetivos e critérios da política, o que compromete sua legitimidade entre os profissionais da educação.
Figura 3: GR como uma política caudada em pressupostos de meritocracia justa

Fonte: Elaborado pelos autores.
Os dados revelam uma percepção crítica por parte dos professores, que reconhecem as limitações da GR como instrumento de valorização profissional. Esse dado corrobora para que a unanimidade dos sujeitos afirme que a valorização deve ir além das bonificações indica um desejo coletivo por políticas que considerem as complexidades da prática docente.
Como apontam autores como Freitas (2019) e Diniz e Garcia (2017), a valorização da carreira docente não pode estar conectada unicamente ao cumprimento de metas quantitativas, pois isso ignora a natureza multifacetada do trabalho pedagógico, que envolve dimensões afetivas, éticas, culturais e sociais. A docência exige tempo para planejamento, estudo, reflexão, escuta e diálogo com os estudantes e colegas — aspectos que não se reduzem a indicadores de desempenho.
Quando indagados sobre a forma de valorização que desejam:
Figura 4: Mecanismos para a valorização profissional

Fonte: Elaborado pelos autores.
Os professores revelam qual tipo de valorização necessitam e realmente lhes seriam importantes. Evidenciando sua totalidade favorável ao aumento fixo de seus salários, melhores condições de trabalho e planos de carreira que sejam claramente instituídos e atrativos. Além desses mecanismos, os professores almejam apoio a formação continuada gratuita e que esta esteja sendo efetivada com base em seus anseios profissionais e ao contexto em que desenvolvem suas atividades profissionais.
Destaca-se que a formação continuada, quando submetida à lógica da GR, corre o risco de se tornar uma exigência burocrática, perdendo seu caráter emancipador. Conforme argumentam Oliveira-Formosinho (2009) e Souza (2022), o desenvolvimento profissional é mais significativo quando ocorre em contextos colaborativos, que respeitam as necessidades reais dos professores e a especificidade de seus contextos escolares. Políticas formativas impostas de forma vertical, atreladas a sistemas de avaliação de desempenho, tendem a engessar as práticas pedagógicas, enfraquecendo a autonomia docente e esvaziando os espaços de reflexão crítica.
Dessa forma, os dados da pesquisa apontam para uma evidente contradição entre o discurso oficial que promove a bonificação como forma de valorização e a experiência concreta dos professores, que pouco sentem esse reconhecimento em seu cotidiano escolar. A expectativa é que este estudo contribua para o debate crítico sobre os limites e possibilidades das políticas de desempenho vinculadas à valorização profissional. Como reforça Libâneo (2013), valorizar o professor exige reconhecer sua formação como um processo contínuo, dialógico e intimamente ligado às condições reais de trabalho nas escolas. Quando a valorização se baseia em metas externas e indicadores quantitativos, corre-se o risco de comprometer o bem-estar docente, a qualidade das interações pedagógicas e o sentido formativo da educação, substituindo a construção coletiva do conhecimento por uma lógica tecnicista e gerencial que empobrece a prática educativa.
Considerações Finais
Este estudo buscou contribuir para a ampliação do debate sobre as políticas públicas educacionais e seus impactos no desenvolvimento profissional docente, especialmente à luz da implementação da Gratificação por Resultado (GR) no Estado de Mato Grosso. Embora essa política apresente um discurso de valorização e incentivo ao desempenho, os resultados apontam para uma série de efeitos colaterais que merecem atenção, tais como a intensificação do trabalho docente, a padronização das práticas pedagógicas, a limitação da autonomia profissional e o esvaziamento formativo das ações continuadas.
A política de bonificação atrelada a metas e resultados quantitativos tende a desconsiderar as múltiplas dimensões que compõem o fazer docente — dimensão humana, afetiva, política e ética — além de negligenciar as condições reais de trabalho vivenciadas pelos professores da rede pública. Tal contexto pode não apenas comprometer o bem-estar dos educadores, como também gerar um ensino pautado na lógica do cumprimento de metas, em detrimento da construção de aprendizagens significativas e transformadoras.
Reafirma-se, portanto, a necessidade urgente de políticas formativas que reconheçam o professor como sujeito histórico e ativo no processo educativo. Para isso, é fundamental que essas políticas sejam construídas com os professores, e não para eles, valorizando suas vozes, experiências, contextos e saberes. A formação continuada deve ir além da exigência burocrática, assumindo um caráter emancipador, colaborativo e dialógico.
A construção de uma educação pública de qualidade, socialmente referenciada, exige a valorização efetiva do trabalho docente em sua totalidade. Isso implica garantir condições dignas de trabalho, investimento contínuo na formação com base nas demandas reais da escola, e respeito à autonomia dos profissionais da educação. Somente por meio de políticas mais humanizadas e integradas à realidade escolar será possível consolidar práticas pedagógicas comprometidas com a equidade, a justiça social e a transformação da sociedade.
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