PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO PÚBLICO E FEDERALISMO DE COOPERAÇÃO: AS IMPREVISIBILIDADES EMERGENCIAIS DO RIO GRANDE DO SUL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11557699


Nicolle Krapp Colombino1
Saulo Carvalho Rosa2


Resumo

Através da análise de matérias jornalísticas bem como estudo bibliográfico, percebe-se que novas alternativas de gestão bem como novas ferramentas orçamentárias vêm sendo criadas para enfrentar a atual crise climática do estado do Rio Grande do Sul. Além dos efeitos humanos, a calamidade gera impactos profundos em âmbitos sanitários, sociais e econômicos em todo o país, resultando em mudanças significativas nas rotinas de famílias, empresas e governos. Nesse contexto, o papel emergencial dos governos no enfrentamento da crise tornou-se crucial.

Este artigo tem como objetivo analisar as alternativas de gestão utilizadas pelo governo brasileiro para enfretamento da atual crise do Rio Grande do Sul, passando pelas alterações orçamentárias e no planejamento fiscal.

Essa análise crítica é fundamental para compreendermos as implicações dessas medidas emergenciais e para avaliarmos como o sistema jurídico e político brasileiro vêm respondendo aos desafios impostos pela imprevisibilidade da vida.

Palavras-chave: Brasil; Planejamento e Orçamento Público de emergência; crises climáticas e ambientais; Rio Grande do Sul.

1. Introdução

O planejamento é uma ferramenta poderosa que nos ajuda a tomar decisões mais conscientes, alcançar objetivos e lidar com os desafios do dia a dia.

No âmbito laboral, o planejamento exerce influência sobre a ponderação entre a prioridade de iniciar determinada atividade em detrimento de outra. Na esfera acadêmica, ele delibera quais disciplinas merecem maior dedicação e quais podem ser abordadas de maneira mais concisa. Mesmo no lazer, o planejamento desempenha papel crucial ao eleger o destino das férias, demandando reflexão e estratégia.

A ausência de um planejamento adequado torna difícil decidir qual caminho seguir, aumentando os riscos de falhas e decisões inadequadas.

Indubitavelmente, no seio das organizações públicas, essa realidade não diverge. Um planejamento meticulosamente concebido assume relevância ímpar para a eficaz administração da máquina estatal e para a devida fiscalização dos dispêndios governamentais.

O planejamento público é um processo essencial para a gestão eficiente do setor governamental. Segundo Jackson de Toni, em seu trabalho intitulado “Reflexões sobre o Planejamento Estratégico no Setor Público”, o planejamento estratégico governamental envolve a definição de metas e objetivos a serem alcançados pelo governo, considerando as demandas da população e as prioridades administrativas. Além disso, a pesquisa de Cláudio L. de Medeiros destaca a importância do planejamento nas contratações públicas, prevenindo falhas e garantindo resultados efetivos.

Como afirma Machado (2011, p. 7):

“O planejamento é a primeira etapa em qualquer processo de gestão, seja na entidade pública ou na empresa privada, pois por meio dele serão traçados os desejos, as intenções, as expectativas, o futuro projetado para essa entidade ou empresa.”.

O planejamento público é, portanto, um processo que envolve a definição de objetivos e metas a serem alcançados pelo governo em um determinado período. Ele é elaborado com base nas demandas e necessidades da população, bem como nas prioridades definidas pela administração pública (Portal Contabilidade Publica, 2024¹).

Já orçamento público pode ser definido como instrumento de planejamento utilizado pelo Governo para prever a arrecadação de recursos e definir a destinação desses recursos em despesas e investimentos. De acordo com o professor Aliomar Baleeiro (1978):

“é o ato pelo qual o Poder Legislativo autoriza o Poder Executivo por um certo período e, em pormenor, às despesas destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica do País, assim como a arrecadação das receitas criadas em lei”.

No mesmo sentido, afirma Kohama (KOHAMA apud MACHADO et al, 2011, p. 30):

 “A elaboração do orçamento compreende a fixação de objetivos concretos para o período considerado, bem como o cálculo dos recursos humanos, materiais e financeiros necessários à sua materialização e concretização.”.

Além disso, ainda nesse processo, são analisados os dados pretéritos (ou seja, a execução orçamentária em anos anteriores) e as expectativas para os próximos anos. Essa análise tem como finalidade estabelecer uma previsão de receita e autorizar as despesas que serão realizadas. É um momento crucial para garantir a eficiência na gestão dos recursos públicos e o cumprimento das metas estabelecidas.

Assim, o Orçamento Público é fundamental para a gestão pública, pois permite o planejamento e a execução de suas políticas públicas, além de garantir a transparência e o controle social sobre as contas públicas.

Ocorre que ambas ferramentas de gestão, planejamento e orçamento, devem ser submetidas a amplo debate e discussão pelos agentes políticos e sociedade, sopesando as previsões fiscais e demais receitas futuras, com os gastos imprescindíveis e inadiáveis, tais como aqueles relativos à previdência e ao pagamento dos servidores públicos, além da clara necessidade de serem transparentes, e estarem calcadas em estudos prévios, regularmente auditáveis.

Então, como planejar e orçar as finanças públicas diante de um cenário de imprevisibilidade climática e ambiental, agravada pelo contexto da repartição de competências que rege os entes políticos de uma Federação?

2. Atual crise no Rio Grande do Sul 

Atualmente, o Brasil vivencia um colapso humano, administrativo e financeiro no estado do Rio Grande do Sul, que, em decorrência do volume de chuvas muito superior ao previsto, teve grande parte de seu território totalmente inundado.

A cheia afetou 2,3 milhões de pessoas em todo o estado, com impactos em 473 dos 497 municípios gaúchos. Como destacado em reportagem do portal G1 da Globo4:

“Chegou a 169 o número de mortes em razão dos temporais e cheias que atingem o Rio Grande do Sul desde 29 de abril. Em boletim divulgado às 9h desta sexta-feira (31), a Defesa Civil do estado ainda informou que 44 pessoas estão desaparecidas.”

Além disso, os dados apontam que há mais 800 pessoas feridas e cerca de 619,7 mil desabrigados em todo o estado. Vale reforçar o tamanho da calamidade, até o momento4:

Mortos: 169

Desaparecidos: 44

Feridos: 806

Pessoas em abrigos: 39.595

Pessoas desalojadas: 580.111

Pessoas afetadas: 2.347.664

Pessoas resgatadas: 77.729

Animais resgatados: 12.527

Municípios afetados: 473 (de 497)

Ressalta-se, ainda, que, algumas cidades, como é o caso de Eldorado do Sul, submergiram integralmente diante da força da natureza. A título exemplificativo, como se extrai do inciso IV da fundamentação do Decreto Municipal nº 10.0061/2024, do Município de Eldorado do Sul: “100% da área urbana do município encontra-se submerso, atingindo aproximadamente 10 mil residências e 30 mil habitantes” ².

Mas não são só os prejuízos diretos e imediatos que decorrem da inundação, mas também os efeitos deletérios secundários que vêm se agravando. Como se extrai do portal BBC NEWS5:

“o prolongamento da crise, segundo os relatos de vítimas das inundações, voluntários e agentes públicos, vem aumentando a tensão em abrigos, gerando crises de ansiedade e desgastando os milhares de voluntários. Além disso, o temor é de que, com o passar do tempo, haja cada vez menos voluntários ajudando, apesar do grande número de desabrigados.”

Nesse contexto, destacam os especialistas que as chuvas extremas no Sul do Brasil espelham o futuro do que vai acontecer em todo o país caso nada seja feito, sendo certo que a sobrevivência da vida humana vai depender das medidas que serão tomadas para reduzir as mudanças no clima (Revista Radis apud Paulo Artaxo6, 2024). “É mais do que previsto que vai aumentar a taxa de chuvas e de eventos climáticos extremos. Precisamos estruturar políticas públicas”.

O apontamento do pesquisador deixa claro que a amplitude do problema vai além do atual momento, projetando situação futura estarrecedora.

Além de todas essas questões, há que se analisar o impacto econômico sem precedentes ocasionado pela calamidade ora em análise. De fato, no Brasil, nunca houve tanto estrago econômico provocado por um evento climático. A avaliação é do economista Sergio Vale, da MB Associados, consultoria que está monitorando os impactos das enchentes de maio na economia7:

Para se avaliar o impacto econômico das inundações no Rio Grande do Sul, é preciso olhar para o exterior para se achar algo semelhante — como no caso da destruição provocada pelo furacão Katrina nos Estados Unidos em 2005.

Nos Estados Unidos, o Katrina fez o Estado da Louisiana contrair 1,5% — em um ano em que se esperava que crescesse 4%. No caso do Rio Grande do Sul, a MB Associados prevê que a economia vai se contrair 2% — em vez do crescimento de 3,5% que vinha registrando nos últimos 12 meses até abril.

E no caso brasileiro, o impacto em âmbito nacional será muito maior do que aconteceu no efeito do Katrina nos Estados Unidos — já que a economia gaúcha corresponde a 6,5% do PIB brasileiro (a Louisiana representa 1% da economia americana).” 

A soma de todas essas coisas nos leva ao tema deste trabalho, uma vez que, em tais situações, é indubitável a necessidade de atuação efetiva e imediata do Poder Público, com o fito de evitar ou atenuar os efeitos deletérios que calamidades de grandes proporções podem provocar. Nesse contexto, o aparente congestionamento do governo exsurge como barreira quase intransponível entre a necessidade da população e a possibilidade de efetuar gastos não previstos sem que incorra em fraudes e desvios.

3. Federalismo de cooperação

O Estado Federal, em síntese, configura-se como um arranjo organizacional e distributivo do poder estatal. Nesse modelo, a existência de um governo central não impede a delegação de responsabilidades e competências aos Estados-membros.

Segundo KONRAD HESSE, o Estado Federal se traduz em:

“uma união de várias organizações estatais e ordens jurídicas, e, precisamente,  aquelas dos “Estados-membros”, e aquelas do “estado total”, em que estado-total e Estados-membros são coordenados mutuamente na forma que as competências estatais entre eles são repartidas, que aos Estados-membros, por meio de um órgão especial, são concedidas determinadas possibilidades de influência sobre o estado-total, ao estado-total determinadas possibilidades de influência sobre os Estados-membros e que uma certa homogeneidade das ordens do estado-total e dos Estados-membros é produzida e garantida.”

Para REINHOLD ZIPPELIUS:

“O Estado federal é uma união de Estados de natureza tal que também a própria associação organizada de Estados (ou seja, a federação) reveste a qualidade de Estado. Tenta-se enquadrar a relação entre federação e Estados membros num esquema, distinguindo-se ora dois ou três elementos. Uns defendem que no Estado federal existem os Estados membros e o Estado global; enquanto os outros dizem que no Estado federal estão reunidos o Estado global, os Estados membros e o Estado central (Nawiasky III, 158 ss.). Na verdade, a totalidade das competências do Estado global é assumida em parte pelos órgãos dos Estados membros e em parte pelos órgãos centrais da associação organizada dos Estados, não sendo possível materializar, num Estado central separado, as competências dos puros órgãos centrais. A distribuição das competências no Estado federal é equilibrada por forma a que nem os órgãos centrais da federação, nem os órgãos dos Estados membros possuem, por si sós, a supremacia das competências.”

No ponto, cabe destacar que, cerca de 100 anos antes da atual Constituição Cidadã, o Federalismo Brasileiro, nascido com a proclamação da república em 1889, foi originado de forma centrífuga, ou seja, surgiu de um Estado Unitário que se fragmentou em outros estados, num movimento de dentro para fora.

Esse movimento contrasta, por exemplo, com àquele dos Estados Unidos da América, que foi formado através da união de vários Estados autônomos em um ente central sendo, portanto, de fora pra dentro, num movimento centrípeto.

Não obstante, em que pese as origens do federalismo brasileiro serem de um movimento centrífugo, quanto à concentração do poder ele pode ser qualificado como federalismo centrípeto, ou seja, a União detém uma maior concentração de poder do que os estados-membros.

Por essa razão, em que pese o modelo brasileiro ter sido eleito com o objetivo de promover maior descentralização, nossa prática revelou, ao longo do tempo, ineficiências sistêmicas, evidenciadas pela concentração de poder no governo central. Tal relevo do ente federal gerou diversas crises no decorrer da jovem república brasileira, necessitando um aprimoramento do modelo governamental.

Nessa ordem de ideias, no Brasil, o federalismo cooperativo foi adotado a partir da Revolução de 1930, com o intuito de corrigir as falhas que já se mostravam evidentes em cerca de 40 anos de federação. Porém, o intuito não teve sucesso, já que através da constituição de 1937, o modelo brasileiro acabou por se deformar em um centralismo usurpador da autonomia dos Estados-membros, caracterizando o denominado federalismo orgânico.

De fato, a existência de múltiplos níveis de governo que atuam sobre um mesmo espaço territorial podem resultar em desafios significativos. A ausência de limitações claras pode levar à fragmentação das políticas sociais, culminando em duas situações indesejáveis: a falta de ações governamentais coordenadas ou a sobreposição de iniciativas de diferentes esferas governamentais em um mesmo tema.

Assim, ao longo do século 20 o modelo adotado no Brasil passou por diversas reformulações, até o atual Pacto Federativo Brasileiro, consagrado pela Constituição de 1988, que estabeleceu de forma explícita o Federalismo Cooperativo, com a redistribuição da autonomia político-financeira entre os entes que compõem a Federação: União, Estados e Municípios, mas prevendo explicitamente diversas competências comuns e concorrentes entre eles, como se nota nos arts. 23 e 24 da CF/88:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (…)

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (…)

Esse arcabouço nos leva a análise da atual forma de estado no âmbito do enfretamento da crise estadual. Isso porque, no que diz respeito à organização do gasto para a reconstrução do Rio Grande do Sul, por determinação constitucional, o protagonismo legislativo e administrativo da União é latente, ainda que o fato esteja ocorrendo em território de ente estatal dotado de autonomia política e financeira.

Outrossim, não se deve perder de vista que, nos termos do artigo 21, inciso XVIII da Constituição Federal de 1988, é competência da União Federal planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas.

Essa configuração do Estado, em consonância com o contexto específico vivenciado pelo Rio Grande do Sul, remete-nos a necessidade de aprofundar o conceito mais moderno e afeto à nossa realidade, o de federalismo de cooperação.

“O que caracteriza o federalismo cooperativo é uma maior intervenção da União no domínio econômico, a fim de garantir o modelo do Estado de bem-estar social, a partir de uma livre cooperação da União com as entidades federadas. Não há uma rígida separação de competências entre a União Federal e os demais entes federados.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2024).

O federalismo cooperativo é definido por REINHOLD ZIPPELIUS como:

“aquele que acarreta uma “obrigação ao entendimento”, quer dizer, o dever das partes no sentido de se harmonizarem entre elas e, caso necessário, aceitarem compromissos. O envolvimento funcional dos Estados membros (e eventualmente até dos corpos territoriais a nível autárquico) nos processos centrais de planejamento e regulação, pode servir de exemplo a esse respeito.”

Esse conceito abarca duas ideias fundamentais: a cooperação vertical e a cooperação horizontal. Nas palavras de José Maurício Conti, ao abordar esse tema, constatamos que as transferências ocorrem tanto entre unidades de grau diverso (ou seja, entre diferentes níveis de governo) — caracterizando a cooperação vertical — quanto entre unidades de mesmo grau (ou seja, entre entes federativos equivalentes) — configurando a cooperação horizontal. Essa colaboração financeira entre as unidades da federação constitui uma das bases essenciais do moderno federalismo.

Nesse contexto, os sistemas federativos cooperativos sobrepõem a questão do “quem deve fazer isto?” para a pergunta “o que deve ser feito?”.

Evidentemente a atuação do governo Federal, que é o ente federativo que mais congrega competências e por via de consequência possui o maior leque de possibilidades de ação, torna-se essencial para que haja o desenvolvimento da cooperação entre os entes federados.

4. Calamidade Pública

Noutro giro, não obstante as incertezas de um regime jurídico apto a lidar com tais situações, como estudado acima, é latente que o primeiro passo a ser adotado em quaisquer dessas situações, no sentido de possibilitar o planejamento orçamentário emergencial e atuação da União Federal no ente federado, é o reconhecimento da calamidade pública pelos governos afetados.

De acordo com o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, regido pela Lei nº 12.608/2012, em seu artigo 1º, inciso VI, o estado de calamidade pública pode ser conceituado como:

 “situação anormal provocada por desastre causadora de danos e prejuízos que implicam o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido, de tal forma que a situação somente pode ser superada com o auxílio dos demais entes da Federação”.

O estado de calamidade pública é decretado por governantes em situações reconhecidamente anormais, decorrentes de desastres (naturais ou provocados) e que causam danos graves à comunidade, inclusive ameaçando a vida dessa população.

No Brasil, essa prerrogativa é reservada para as esferas estadual e municipal, ou seja, governadores e prefeitos podem decretar uma calamidade pública.

Para caracterizar a calamidade, é necessário que haja pelo menos dois entre três tipos de danos: danos humanos, materiais ou ambientais.  Esse estado requer medidas excepcionais e possibilita a adoção de ações necessárias à racionalização de todos os serviços públicos.

Com o fito de se enquadrar no regime extraordinário de calamidade pública, o estado do Rio Grande do Sul, através da edição extra do Diário Oficial do Estado (DOE) publicou o Decreto 57.596, que “declara estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul afetado pelos eventos climáticos de chuvas intensas” ocorridos a partir de 24 de abril de 2024”:

Art. 1º Fica declarado estado de calamidade pública no território do Estado do Rio Grande do Sul, atingido pelos eventos climáticos de Chuvas Intensas, COBRADE 1.3.2.1.4, ocorridos no período de 24 de abril a 1 o de maio de 2024.

§ 1o Os órgãos e as entidades da administração pública estadual, observadas suas competências, prestarão apoio à população nas áreas afetadas em decorrência dos eventos de que trata este Decreto, em articulação com a Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil.

§ 2º A situação de anormalidade declarada em âmbito estadual por este Decreto, não obsta o início ou o prosseguimento da declaração em âmbito local pelos Municípios, que poderão avaliadas e homologadas pelo Estado.

No mesmo sentido, e cumprindo o modelo Cooperativo estudado no capítulo anterior, o Senado editou o Decreto Legislativo nº 36/2024, o qual reconhece estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul até 31 de dezembro de 2024, e possibilita a instituição do próximo passo, a saber, o Planejamento Orçamentário Emergencial com o fito de enfrentar a situação imprevista e grave reconhecida. Diz o Decreto Legislativo nº 36 de 2024:

Reconhece, para os fins do disposto no art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), a ocorrência do estado de calamidade pública em parte do território nacional, para atendimento às consequências derivadas de eventos climáticos no Estado do Rio Grande do Sul.

Com efeito, após o supracitado reconhecimento da Calamidade Pública, possibilitou-se a adoção de um novo Plano Orçamentário pelos entes federativos afetados, capaz de permitir aos governos alocarem recursos de seus orçamentos para financiar ações emergenciais. Isso inclui realocação de verbas de outras áreas e a criação de fundos específicos para crises.

5.  Orçamento emergencial e outras medidas já utilizadas no passado

O orçamento emergencial efetivamente inaugura regime extraordinário que facilita a execução orçamentária de medidas emergenciais, afastando dispositivos constitucionais e legais aplicados em situações normais. Dessa forma, possibilita maior agilidade na execução de despesas com pessoal, obras, serviços e compras pelo Poder Executivo durante o estado de calamidade pública.

Em decorrência deste regime extraordinário orçamentário, o Governo Federal editou Medida Provisória (nº 1.220/2024) que cria, com status de ministério, a Secretaria Extraordinária da Presidência da República para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul. Referido Ministério terá a responsabilidade de auxiliar o governo estadual e as prefeituras na recuperação do estado atingido por enchentes, coordenando ações a serem executadas pela administração pública federal no Rio Grande do Sul, em parceria com os ministérios competentes e promovendo a articulação entre os governos federal, estadual e municipais do RS e fará a interlocução com a sociedade civil.

Cabe salientar, que o novo órgão será extinto dois meses após o fim do estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul reconhecido pelo Decreto Legislativo 36/24.

Como destacado pela reportagem do jornal Estadão³, até meados de maio de 2024, a calamidade no Rio Grande do Sul já exigiu do governo federal a liberação de R$ 20 bilhões em “dinheiro novo” do Orçamento.

Não bastasse isso, o referido plano emergencial possibilitou amplas medidas financeiras, orçamentárias e fiscais, como antecipação de benefícios e a prorrogação do pagamento de tributos. A seguir, encontram-se destacadas aquelas mais relevantes8:

– Auxílio Reconstrução – R$ 174 milhões para o pagamento de R$ 5,1 mil a cada família, em parcela única, para aquisição de itens perdidos nas enchentes.

– Liberação do FGTS – 228,5 mil trabalhadores em 368 municípios – R$ 715 milhões.

– Seguro Desemprego – duas parcelas adicionais a 6.636 trabalhadores – R$ 11 milhões.

– Restituição antecipada do Imposto de Renda para 900 mil pessoas – R$ 1,1 bilhão.

– Importação de até 1 milhão de toneladas de arroz para suprir os prejuízos com a safra no estado – R$ 7,2 bilhões.

– Prorrogação do recolhimento de tributos federais por até três meses para pessoas físicas e jurídicas – R$ 4,8 bilhões.

– Postergação do pagamento da dívida com a União por três anos – R$ 11 bilhões.

– Abatimento da suspensão de juros por três anos – R$ 12 bilhões

Apesar de serem medidas impactantes e com alto custo no orçamento federal, cabe destacar que outras medidas ainda mais gravosas já foram adotadas no Brasil em contextos de grave crise.

No âmbito da recente pandemia de COVID-19, através da EC 106/2020, foi concebido o chamado “Orçamento de Guerra”, com o objetivo de instituir um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentar a calamidade pública nacional decorrente da pandemia internacional.

Tal ferramenta consistiu em inovação na governança, sedimentando certo protagonismo do Congresso Nacional: a criação de uma nova instância de gestão da crise, sobrepondo àquelas criadas na Casa Civil, e com a proposta de o Congresso poder sustar qualquer decisão em caso de “ofensa ao interesse público”.

Em outro caso recente, no ano de 2018, foi decretada, de maneira inédita no país até então, a Intervenção Federal de que trata o art. 34 da CF/88 no estado do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, tal medida foi decretada com o objetivo de amenizar a situação da segurança interna, com término em 31 de dezembro de 2018. A decisão foi instituída por meio do Decreto n.º 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, outorgado pelo Presidente da República, com publicação no Diário Oficial da União no mesmo dia.

6. Conclusão

Nos capítulos iniciais desse estudo, fomos apresentados aos conceitos de planejamento e orçamento, bem como suas funções essenciais diante de situações de emergência.

Cabe rememorar que quando estamos falando de planejamento e orçamento público, estamos a falar da administração de recursos recolhidos de todos os cidadãos, recursos esses que financiam atividades essenciais como saúde, educação e assistência social.

Enquanto as necessidades de saúde são praticamente infinitas, os recursos para atendê-las não o são, e a saúde, apesar de um bem fundamental e de especial importância, não é o único bem que uma sociedade tem interesse em usufruir (Newdick, 2005).

De acordo com Stoner (1985, p.98):

 É preciso que haja planos para que a organização tenha seus objetivos e para que se estabeleça a melhor maneira de alcançá-los. Além disso, os planos permitem que a organização consiga e aplique os recursos necessários para a consecução de seus objetivos, os membros da organização executem atividades compatíveis com os objetivos e os métodos escolhidos e o progresso feito rumo aos objetivos sejam acompanhados e medidos, para que se possam tomar medidas corretivas se o ritmo do progresso for insatisfatório.

Visto isso, analisamos a situação caótica pela qual passa o estado do Rio Grande do Sul, com todas as mazelas causadas direta e indiretamente pela catástrofe ambiental decorrente das chuvas que assolam o referido estado desde abril de 2024.

Avançamos para análise do modelo federativo adotado no Brasil e como ele se relaciona com os necessários enfoques dados pela crise climática e suas esferas de governo.

Seguimos adiante para reconhecer a necessidade de adoção do regime de Calamidade Pública por cada ente federativo, seus regimes, e requisitos, com o fito de possibilitar a adoção de medidas extraordinários no âmbito financeiro, orçamentário e fiscal.

Finalmente, visualizamos as principais medidas tomadas pelo Governo Federal até o momento, mantendo em vista o que foi estudado nos capítulos anteriores.

Podemos concluir, portanto, que todas essas medidas somente puderam ser adotadas em razão do sistema federativo cooperativo adotado pelo Brasil na Constituição Federal de 1988, bem como a importância do instituto da Calamidade Pública para possibilitar o apoio dos demais entes federados.

Essas adoções, além de permitirem a atenuação dos efeitos deletérios causados por esses imprevistos graves, reforçam a unidade do país e denotam a necessidade de nos mantermos íntegros, solidários e partícipes como cidadãos.

Referências

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MEDEIROS. C. L. A importância do planejamento nas contratações públicas https://revistaacademica.mpce.mp.br/revista/article/view/83 (acesso em 28/04/2024)

1 CONTE. A. Planejamento e orçamento público: o que são e como funcionam 29/03/2023 portalcontabilidadepublica.com.br/planejamento-e-orcamento-publico/ (acesso em 31/05/2024)

2 Declara Situação de Anormalidade – ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA – nas áreas do Município afetadas pelo evento adverso Chuvas Intensas – COBRADE 1.3.2.1.4, conforme Portaria nº 260/2022 – MDR. Disponível em https://www.eldorado.rs.gov.br/arquivos/decreto_-_calamidade_11105506.pdf acesso em 21/05/2024

3 DANIEL WETERMAN Conta da tragédia do Rio Grande do Sul para o governo federal já chega a R$ 20 bi de ‘dinheiro novo’ https://www.estadao.com.br/economia/ajuda-rio-grande-do-sul-impacto-contas-publicas-divida-pib/ (acesso em 31/05/2024) https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/20/cheias-no-rs-veja-numeros.ghtml (acesso em 29/05/2024)

4 Cheias no RS: número de óbitos sobe para 169; veja situação do estado | Rio Grande do Sul | G1 (globo.com) https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/20/cheias-no-rs-veja-numeros.ghtml (acesso em 29/05/2024)

5 Enchentes no RS: ‘Após 3 semanas, as pessoas não aguentam mais estar aqui’ – BBC News Brasil  https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6ppl3yexrzo (acesso em 31/05/2024)

6 Paulo Artaxo é físico, climatologista e membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que reúne os cientistas mais importantes do mundo para monitorar e assessorar a ciência global frente às mudanças climáticas. https://portal.fiocruz.br/noticia/2024/05/nova-edicao-da-radis-destaca-crise-climatica-e-tragedia-no-rs (acesso em 31/05/2024)

7 Enchentes no RS: 3 efeitos do desastre natural com maior impacto na economia brasileira – BBC News Brasil https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgyy1gne5do (acesso em 31/05/2024)

8 Ajuda do governo federal ao Rio Grande do Sul já soma R$ 62,5 bilhões | Agência Brasil (ebc.com.br)  https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/ajuda-do-governo-federal-ao-rio-grande-do-sul-ja-soma-r-625-bilhoes  (acesso em 30/05/2024)

Disponível em  Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br) https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/tesauro/pesquisa.asp?pesquisaLivre=FEDERALISMO%20COOPERATIVO#:~:text=NOTA%3A-,O%20que%20caracteriza%20o%20federalismo%20cooperativo%20%C3%A9%20uma%20maior%20interven%C3%A7%C3%A3o,Uni%C3%A3o%20com%20as%20entidades%20federadas (acesso em 20/05/2024)

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STONER.J.A.F.; FREEMAN.R.E. Administração. 5º edição. Editora Prentice-Hall do Brasil. 1985.


1Formada em Psicologia na UNIVERSO, Pós-Graduada em Gestão Estratégica de Pessoas pela Universidade Estácio de Sá e servidora Técnica Administrativa da Universidade Federal Fluminense. E-mail: nicollekap@hotmail.com

2Formado em Direito na UFF, Especialista em Direito Público e Oficial de Gabinete no Tribunal Regional Federal da 2ª Região. E-mail: saulocarvalhorosa@gmail.com