PESQUISAS COM PARTICIPANTES VULNERÁVEIS: UMA ANÁLISE NA PERSPECTIVA DA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11518707


Juliana Moraes de Souza1
Lucilene Ferreira de Melo2
Ruth Pereira de Melo3


RESUMO

Este estudo teve como objetivo geral: refletir como os direitos humanos das populações vulneráveis são abordados nas dissertações de um programa de pós-graduação em direitos humanos, em nível de mestrado. Os objetivos específicos foram: 1) Elaborar um perfil dos direitos humanos abordados nas dissertações; 2) Evidenciar como as pesquisas sinalizam a reversão dos benefícios aos sujeitos pesquisados. A metodologia da pesquisa foi de natureza qualitativa, com estudo de casos múltiplos, fazendo uso da técnica de coleta de dados documental e para análise dos dados utilizou a análise de conteúdo. O locus da coleta de dados foi no site do Programa de Pós-Graduação, foram localizadas 10 (dez) dissertações que atenderam aos critérios previamente definidos, que são as dissertações de pesquisas com seres humanos/populações vulneráveis, e o critério de exclusão, dissertações anteriores à implementação da Resolução N. 510/2016 do CNS, sendo realizada a análise nas 10(dez) dissertações. Foi possível concluir que nas dissertações analisadas, a principal vulnerabilidade dos sujeitos participantes foi a situação de violência; em 70% das dissertações a temática era a violência contra a mulher. Seguida pela temática com participantes idosos com 10%, 10% crianças e, 10% populações de países subdesenvolvidos. As abordagens específicas da violência contra a mulher foram em torno do feminicídio; mulher vítima de violência física e psicológica; mulheres em situação de reclusão carcerária e a retirada de direitos a mínimos sociais.

Palavras-Chave: Ética. Pesquisa. Vulnerabilidade. Direitos Humanos.

ABSTRACT

The general objective of this study was to reflect on how the human rights of vulnerable populations are addressed in the dissertations of Postgraduate Programme in Human Rights at Master’s level. The specific objectives were 1) to draw up a profile of the human rights addressed in the theses; 2) to examine the relationship between the ethical values of the researcher and the guarantee of the human rights of vulnerable populations; 3) to highlight how research signals the reversal of the benefits for the subjects of research. The research methodology was qualitative, using multiple case studies, using documentary data collection and content analysis was used to analyse the data. The site of data collection was the website of the Doctoral Program, 10 dissertations were found that met the previously defined criteria, i.e. dissertations on research with human beings/vulnerable populations, and the exclusion criterion, dissertations before the implementation of Resolution N. 510/2016 of the CNS. The analysis was performed on the 10 (ten) dissertations. It was possible to conclude that in the dissertations analysed, the main vulnerability of the participating subjects was the situation of violence; in 70% of the dissertations, the theme was violence against women. This was followed by 10% of older participants, 10% of children and 10% of populations from underdeveloped countries. The specific approaches to violence against women were feminicide, women victims of physical and psychological violence, women in prison and deprivation of social minimum rights.

Keywords: Ethics. Search. Vulnerability. Humanrights

1 INTRODUÇÃO

A reflexão aqui realizada com participantes vulneráveis em pesquisas adotou a perspectiva dos direitos humanos. Tal escolha guarda relação com o histórico processo de luta pelos direitos humanos na sociedade, seu arcabouço jurídico-político e com o reconhecimento efetivo desses direitos por diferentes sujeitos sociais, coadunando com o pensamento de Bobbio (2004) quando o autor fez a seguinte afirmação, a saber:

[…] partimos do pressuposto de que os direitos humanos são coisas desejáveis, isto é, fins que merecem ser perseguidos, e de que, apesar de sua desejabilidade, não foram ainda todos eles (por toda parte e em igual medida) reconhecidos; e estamos convencidos de que lhes encontrar um fundamento, ou seja, aduzir motivos para justificar a escolha que fizemos e que gostaríamos fosse feita também pelos outros, é um meio adequado para obter para eles um mais amplo reconhecimento(Bobbio,2012,p.12).

Os direitos humanos são, frequentemente, alvo de violações e deslegitimação por parte de setores da sociedade, considerando o cenário nacional e no tempo presente de ultra neoliberalismo, avanço de forças políticas conservadoras e reacionárias.

Considera-se pertinente pensar tais questões envoltas nos direitos humanos a partir de pesquisas/dissertações na contemporaneidade, pois pesquisadores são sujeitos políticos que se encontram no processo de produção do conhecimento produzindo e reproduzindo valores.

Nesse circuito da produção do conhecimento, considera-se que há uma relação fundamental que se estabelece entre sujeito e objeto. Parte-se do pressuposto que essa relação é desigual, sobretudo quando os participantes de pesquisa são populações vulneráveis. Mesmo que nesse processo a ética na pesquisa cumpra seu papel e o pesquisador conduza com toda a responsabilidade a pesquisa, pois além do cumprimento das exigências éticas a pesquisa há questões políticas em relação ao respeito aos direitos humanos dos participantes, principalmente, no produto do conhecimento produzido. Ainda que, a resolução CNSnº510/16 estabeleça que o elo pesquisador-participantes e constrói continuamente, podendo ser redefinido a qualquer momento no diálogo entre subjetividades, implicando construção de relações não hierárquicas.

Diante disso, a pergunta da pesquisa que se colocou para a investigação foi: Como os direitos humanos das populações vulneráveis são abordados nas pesquisas realizadas? A escolha de um Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos é intencional, pois considera-se que a contribuição do programa se realiza não somente na formação de recursos humanos, mas também no desenvolvimento de pesquisas na perspectiva da garantia dos Direitos Humanos, aqui em especial neste trabalho, com as populações vulneráveis.

O estudo recorreu a fontes documentais, dissertações de um Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e realizou análise de conteúdo do material coletado. A base de definição do material empírico para a pesquisa pauta-se nas resoluções 466/2012/CNS e 510/2016/CNS. De acordo com Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, vulnerabilidade é o estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham na sua capacidade de autodeterminação reduzida ou impedida, ou de qualquer forma estejam impedidos de opor resistência, sobretudo no que se refere ao consentimento livre esclarecido (Brasil, 2012).

A Resolução CNS/ nº 510/2016 também nos esclarece sobre a vulnerabilidade como uma situação na qual pessoa ou grupo de pessoas tenha reduzida a capacidade de tomar decisões e opor resistência na situação da pesquisa, em decorrência de fatores individuais, psicológicos, econômicos, culturais, sociais ou políticos (Brasil, 2016).

A produção visou contribuir para a ampliação da reflexão da ética na pesquisa como um direito fundamental dos participantes vulneráveis, e, assim instigar mais produções nessa direção, pois elas ainda são muito escassas e pouco politizadas.

2 A ÉTICA NA PESQUISA SOCIAL E SEUS DESAFIOS AO PESQUISADOR

Apresenta aqui a discussão acerca do contexto normativo das pesquisas com participantes vulneráveis. Aborda-se também a Resolução CNS/nº466/2012 que trata de diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, e a Resolução CNS/ nº 510/2016 que determina diretrizes éticas específicas para as ciências humanas e sociais, nessas resoluções estão visíveis os pilares do reconhecimento e da afirmação da dignidade, da liberdade e da autonomia do ser humano, como está posto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).

Também, é apresentado o conceito de pesquisa científica, vulnerabilidade e ética em pesquisa e os direcionamentos dados pela legislação em prol do desenvolvimento das pesquisas com participantes vulneráveis de acordo com o comitê de ética em pesquisa.

Inicia-se a presente discussão tratando sobre a gênese dos protocolos éticos da pesquisa social, para assim contextualizar a imprescindibilidade do rigor ético do pesquisador, visando assegurar o respeito pela dignidade humana e a proteção devida aos participantes envolvidos na pesquisa científica com seres humanos, e assim, pontuar alguns dos desafios ao pesquisador em respeito às fases de desenvolvimento da pesquisa.

A pesquisa com seres humanos é um tema muito explorado principalmente na área das ciências biomédicas em virtude de fatos históricos ocorridos na 2a Guerra Mundial em prol do “progresso científico”. Fatos estes, que com o passar das décadas foram considerados crimes de guerras realizados por médicos nazistas, uma vez que se tratava de experimentos bárbaros realizados com humanos em campos de concentração, sem protocolos éticos, tampouco sob o consentimento dos sujeitos da pesquisa e respeito à dignidade humana (Pereira; Melo, 2022).

Por conseguinte, após o término da Segunda Guerra Mundial, tais experimentos foram divulgados e desencadearam uma grande discussão acerca dos valores éticos na aplicação das pesquisas com seres humanos, e a partir disso houve o surgimento da ética em pesquisa e documentos legais, como o código de Nuremberg. Esse código foi o primeiro documento de proteção ética aos participantes de pesquisas científicas, foi desenvolvido como resposta ao julgamento dos crimes de guerra cometidos em nome da ciência nazista (Guilhem e Diniz, 2014).

A Declaração de Helsinque, de 1964, mudou completamente a visão do que se diz respeito à questão ética, uma resposta às atrocidades ocorridas nas guerras, sendo “um documento considerado de referência internacional para a tratativa ética das pesquisas na saúde com ênfase aos direitos humanos” (Pereira; Melo, 2022, p.61).

Os crimes realizados pelos médicos nazistas na pesquisa com seres humanos foram sendo debatidos em outras áreas do conhecimento, não ficando mais tão restrita à ciências biomédicas e biológicas, mas também a ciências humanas e sociais e todas as áreas da pesquisa científica.

Portanto, hoje, a pesquisa social está estreitamente ligada à indispensabilidade da conduta ética por parte do pesquisador, durante todas as etapas da investigação. Para Appolinário (2004, p.150) pesquisa pode ser definida como:

Processo através do qual a ciência busca dar respostas aos problemas que se apresentam. Investigação sistemática de determinado assunto que visa obter novas informações e/ou reorganizar as informações já existentes sobre um problema específico e bem definido.

Sendo assim, a pesquisa segue um rigor científico. Evidentemente, isso inclui a necessidade de existir uma conduta ética a ser exigida ao pesquisador no processo da pesquisa.

Nessa perspectiva, Kottow (2003) afirma que:

A função prioritária da ética em pesquisa é proteger o participante, um indivíduo que se submete voluntariamente a um risco, vivenciando com frequência condições de vulnerabilidade ou por razões sociais – pobreza, subnutrição, falta de poder – ou por ser portador de doenças que podem ou não ser o motivo de seu recrutamento para o estudo (KOTTOW,2003, p.2).

Nesse sentido, entende-se que a pesquisa com seres humanos, necessita de participantes que contribuam com o cientista no fornecimento de respostas às perguntas da pesquisa que envolve acontecimentos humanos, concomitantemente a isso, ela contém benefícios e riscos, os quais o participante precisa estar ciente. A resolução (CNSnº510/16) dispõe quanto à definição e a gradação dos riscos:

Art. 19. O pesquisador deve estar sempre atento aos riscos que a pesquisa possa acarretar aos participantes em decorrência dos seus procedimentos, devendo para tanto ser adotadas medidas de precaução e proteção, a fim de evitar danos ou atenuar seus efeitos. §1 Quando o pesquisador perceber qualquer possibilidade de dano ao participante, decorrente da participação na pesquisa, deverá discutir com os participantes as providências cabíveis, que podem incluir o encerramento da pesquisa e informar o sistema CEP/CONEP. (Brasil, 2016)

Diante disso, é imprescindível que pesquisador esteja atento para os cuidados éticos visando sempre prestar assistência e resguardar os direitos humanos do participante da pesquisa, estando sob sua responsabilidade prestar as informações necessárias a respeito dela ao sujeito participante, de forma clara, em linguagem acessível, além de seguir as normativas e protocolos a serem submetidos ao comitê de ética em pesquisa. Sobre isso, a resoluçãoCNSnº510/16 estabelece que:

Art. 3. São princípios éticos das pesquisas em Ciências Humanas e Sociais: IV – empenho na ampliação e consolidação da democracia por meio da socialização da produção de conhecimento resultante da pesquisa, inclusive em formato acessível ao grupo ou população que foi pesquisada; (Brasil, 2016).

Assim, torna-se evidente que todo e qualquer tipo de pesquisa requer responsabilidade de quem a conduz. Dessa forma é imprescindível existência dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) para a produção científica, sendo constituída por bases sólidas conforme os documentos Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e a Declaração Interamericana de Direitos e Deveres Humanos de 1948 de forma a conduzi-la de acordo com a liberdade, autonomia, prestando toda assistência, direito de confidencialidade, consentimento livre e esclarecido, respeito à dignidade e aos direitos humanos, tanto dos participantes da pesquisa como dos pesquisadores.

Contudo, apesar dos benefícios decorrentes da execução de diretrizes éticas ainda assim existem alguns obstáculos acerca destes protocolos/resoluções, o que traz alguns desafios ao pesquisador como, por exemplo, as entraves da submissão à pesquisa nos comitês de ética em virtude de algumas inadequações relacionadas a algumas concepções de ética em pesquisa inspiradas nas ciências biomédicas,  mesmo após a resolução 510/16, pois apesar de existir uma resolução específica para a área das ciências humanas e sociais, nota-se que esta não traz de forma detalhada o que seriam de fato as especificidades que englobam todos os aspectos dentro de uma pesquisa de Ciências Humanas e Sociais.

Ressalta-se que a natureza da pesquisa com seres humanos é heterogênea, assim, a relação do pesquisador com os participantes do estudo não se mantém da mesma maneira nas diferentes comunidades científicas. Ademais, as CHS têm especificidades nas suas concepções e práticas de pesquisa, na medida em que nelas prevalece uma acepção pluralista de ciência, bem como lidam com atribuições de significados, práticas e representações, sem intervenção direta no participante de pesquisa, com natureza e grau de risco específico. Acresce-se que a relação pesquisador-participante neste tipo de pesquisas constrói continuamente o processo da investigação, podendo ser redefinida, a qualquer momento, no diálogo entre subjetividades, implicando construção de relações não-hierárquicas. Tal especificidade, por vezes, tem gerado dificuldades de revisão ética. (Lopes Junior et al.,2016,p.04)

Paralelamente a isto, existe um debate acerca do Capítulo IV referente aos riscos da Resolução/CNS 510/16, o qual implica que há pouca especificidade dentro da resolução do que seriam de fato os riscos para as áreas das Ciências Humanas e Sociais de modo mais específico, pois tal resolução aborda de modo genérico, o que pode configurar uma dificuldade enfrentada pelos pesquisadores da área. Sarti et al (2017) afirma que;

Um dos grandes desafios para o sistema CEP/Conep, especialmente no que tange às problemáticas das ciências sociais e humanas, diz respeito a o fato de que a biomedicina é quem fornece as fundamentações teóricas para a produção dos pré-requisitos para uma submissão na Plataforma Brasil. Neste sentido, os termos solicitados, bem como os itens que devem ser preenchidos e/ou que precisam constar nos projetos encaminhados, são sempre aqueles que fazem sentido para esta forma de produção do conhecimento. Assim, os pesquisadores das ciências humanas adaptam seus projetos para que seja possível a verificação técnica burocrática e, posteriormente, a avaliação ética por parte dos pareceristas (Sarti et al,2017, p13).

É evidente que além dos fatos elencados acima, existem também desafios relacionados à submissão de pesquisas que envolvem crianças ou povos indígenas, haja vista que estes são considerados grupos vulneráveis, os quais pedem atenção redobrada do pesquisador no que diz respeito a definições de riscos de pesquisa, esclarecimento da pesquisa ao participante, aplicação do TCLE [Termo de Consentimento Livre e Esclarecido], que informa e esclarece o sujeito sobre sua participação na pesquisa. Tanto o TCLE quanto os demais termos de compromisso, anuência e assentimento. Haja vista que o Conselho de Saúde afirma que;

A Conep possui autonomia para a análise ética de protocolos de pesquisa de alta complexidade (e de áreas temáticas especiais, como genética humana, reprodução humana, populações indígenas e pesquisas de cooperação internacional) e em projetos de pesquisa propostos pelo Ministério da Saúde, enquanto os CEP são responsáveis pelos protocolos de pesquisa de baixa e média complexidade e são a porta de entrada para todos os projetos de pesquisa envolvendo seres humanos. Dessa forma, as análises que competem à Conep passam primeiramente no CEP e automaticamente são encaminhadas para análise na Conep. (Brasil, 2023)

Tornando mais minucioso o trabalho do pesquisador para lidar com tais temáticas, pois o mesmo perpassa por protocolo rigoroso com documentação comprovada para avaliação de um CEP/CONEP, tendo em vista a complexidade de tais assuntos e seriedade do tema, os quais visam proporcionar o menor risco ao participante da pesquisa.

3 PARTICIPANTES VULNERÁVEIS E A GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS NA PESQUISA

O conceito de vulnerabilidade e de direitos humanos serão discorridos a fim de lançar luz sobre as especificidades do trabalho do pesquisador com o segmento vulnerável e como isso implica na postura do pesquisador em face de tal particularidade.

Nas pesquisas em Ciências Humanas e Sociais as possibilidades de risco resultam da apreciação dos seus procedimentos metodológicos e do seu potencial de causar danos maiores ao participante do que os existentes na vida, ainda mais, quando esses, são participantes considerados vulneráveis. A Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, lança luz sobre o conceito de vulnerabilidade:

Vulnerabilidade é o estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida ou impedida, ou de qualquer forma estejam impedidos de opor resistência, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido. (Brasil, 2016)

Paralelamente a isto, a Resolução 510/2016 também nos esclarece sobre a vulnerabilidade, definida como:

[…] uma situação na qual pessoa ou grupo de pessoas tenha reduzida a capacidade de tomar decisões e opor resistência na situação da pesquisa, em decorrência de fatores individuais, psicológicos, econômicos, culturais, sociais ou políticos (Brasil,2016).

De acordo com os conceitos abordados, entende-se que trabalhar com sujeitos vulneráveis, demanda aos pesquisadores, maior cautela no delineamento da pesquisa. É necessário ter em vista o contexto histórico de violação de direitos vividos por esses sujeitos, uma vez que os direitos humanos são, frequentemente, alvo de violações e deslegitimação por parte de setores da sociedade, considerando o cenário nacional e o tempo presente de ultraneoliberalismo, avanço de forças políticas conservadoras e reacionárias propiciam ainda mais o desrespeito aos direitos humanos, Fontes (2005, p.92), define ultraliberalismo como:

O chamado ultraliberalismo se trata de transformações qualitativa sem relação ao liberalismo, entretanto, não no sentido de constituição de uma nova razão do mundo, mas sim para perpetuar a velha ordem e razão burguesa, solidificando-a em patamares ainda mais regressivos de expropriação e exploração da classe trabalhadora. (FONTES,2005, p.92).

Torna-se evidente, portanto, o quão sérias são as questões envolvendo tais temáticas, uma vez que são problemas viscerais da sociedade, e dizem respeito a riscos reais a seres humanos, os fazendo suscetíveis a diversas formas de violências, sejam elas, físicas, psicológicos, econômicos, culturais, sociais ou políticas. A resolução do Conselho Nacional de Saúde nº466/2012 dispõe sobre ser preferível que a pesquisa:

j) ser desenvolvida preferencialmente em indivíduos com autonomia plena. Indivíduos ou grupos vulneráveis não devem ser participantes de pesquisa quando a informação desejada possa ser obtida por meio de participantes com plena autonomia, a menos que a investigação possa trazer benefícios aos indivíduos ou grupos vulneráveis. (CNS nº466/2012).

Em consideração a essas questões é função do pesquisador dedicar-se em compreender seu papel relevante na condução da moralidade e ética da investigação destes sujeitos, de acordo com o que preconiza as diretrizes do sistema Cep/Conep.

A fim de seguir todas as medidas cabíveis para proteger o participante quando criança, adolescente, ou qualquer pessoa cuja autonomia esteja reduzida ou que estejam sujeita a relação de autoridade ou dependência que caracterize situação de limitação da autonomia, reconhecendo sua situação peculiar de vulnerabilidade, independentemente do nível de risco da pesquisa (CNS n º 5190/16).

Entretanto compreender que a garantia dos direitos humanos vai além dos princípios éticos e valores morais, mas também como o pesquisador vê o outro para além do comitê de ética, pois os direitos humanos devem sobressair no processo da pesquisa.

4 PERFIL DAS DISSERTAÇÕES: temas, participantes e direitos humanos

A partir dos dados expostos no gráfico 1, observa-se que os temas abordados nas 10 (dez) dissertações do Programa de pós-graduação analisadas, 50% (cinquenta por cento) dizem respeito a violência em todas as suas configurações, seja física, psicológica, moral, sexual, doméstica e patrimonial. Em seguida, com 40% (quarenta por cento) têm-se as dissertações com temáticas jurídicas e, por fim, 10% dez por cento tratam sobre migração.

Foi constatado que 100% (cem por cento) das dissertações, ou seja, nas 10 (dez) dissertações analisadas trazem como participantes sujeitos considerados vulneráveis de acordo com a Resolução CNS n.466/2012, sendo os componentes desse grupo: formado por crianças 10%, 10% idosos, 10% por populações de países subdesenvolvidos e 70% por mulheres.

A maior incidência de situações de vulnerabilidade ocorreu majoritariamente nas dissertações que tinham mulheres como sujeitos participantes. Os principais indicadores de vulnerabilidade apresentados nas dissertações foram:  feminicídio; mulher vítima de violência física e psicológica; mulheres em situação de reclusão carcerária e a retirada de direitos aos mínimos sociais. Nesse eixo temático, as dissertações trazem o debate das questões de gênero, evidenciando uma completa violação dos direitos humanos, civis, políticos, econômicos e sociais em detrimento do contexto histórico patriarcal do Brasil e suas diversas implicações negativas, opressoras e violentas.

Por outro lado, registra-se que não foram encontrados nos 10 (dez) estudos dissertativos outros grupos que são considerados também vulneráveis, de acordo com a Resolução CNS/466/2012, a saber: povos indígenas, pessoa com deficiência intelectual ou física, povos quilombolas e adolescentes, abrindo um questionamento   quais fatores estariam implicando para algumas temáticas se sobreporem às outras?  Ficou evidenciada uma tendência no trato dos direitos humanos do segmento mulheres no conjunto das populações vulneráveis abordadas pelas dissertações do Programa de Pós-Graduação. Essa constatação expõe uma possível lacuna nas temáticas abordadas no que tange às populações vulneráveis. Pesquisas com mais participantes vulneráveis dariam visibilidade maior aos direitos humanos desses sujeitos o que, certamente, traria conhecimentos especializados para a sociedade, assim, como subsidiar políticas públicas.

Dentre as 10 dissertações analisadas do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, 88% (oitenta e oito por cento) refere-se a estudos que trazem como conteúdo a defesa e garantia dos direitos humanos, enquanto apenas 12% (doze por cento) não abordam a defesa e garantia dos Direitos Humanos.

Esse resultado evidencia que o Programa se destaca por manter-se sincronizado com o histórico processo de luta pelos direitos humanos na sociedade, seu arcabouço jurídico-político e com o reconhecimento efetivo desses direitos por diferentes sujeitos sociais.  Dentre os dados analisados, os direitos humanos mais abordados nas dissertações, após a sistematização, foi possível relacionar à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) sobressaindo-se os artigos 2, 5, 12 e 19.

Art. 2. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 
Artigo 5. Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. 
Art. 12. Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem no ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. 
Art. 19. Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. (Assembleia Geral da ONU, 1948).

Nota-se um perfil que evidencia as mulheres como as participantes mais frequentes na situação de vulnerabilidade e uma postura política do corpo discente/docente em defesa dos direitos humanos no processo de pesquisa em um embate direto com a condição de desigualdade e invisibilidade desses sujeitos na sociedade.

5 SINALIZAÇÃO DA REVERSÃO DOS BENEFÍCIOS AOS SUJEITOS PESQUISADOS

A resolução 510/16 lançou luz sobre a implicação de riscos e benefícios, devendo a pesquisa informar como eles serão revertidos aos sujeitos, pois esses devem se sobrepor aos riscos. Uma vez que a resolução 510/16 estabelece que:

[…] a produção científica deve implicar benefícios atuais ou potenciais para o ser humano, para a comunidade na qual está inserido e para a sociedade, possibilitando a promoção de qualidade digna de vida a partir do respeito aos direitos civis, sociais, culturais e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado; (BRASIL, 510/2016).

Nesse sentido, percebe-se a responsabilidade e o dever do pesquisador em garantir que os benefícios sejam revertidos aos participantes, como forma de proporcionar a ele e a comunidade um retorno, produto do conhecimento resultado da pesquisa.

Sobre o que sejam os benefícios, a Resolução 466/2012 faz a seguinte definição:

Benefícios da pesquisa – proveito direto ou indireto, imediato ou posterior, auferido pelo participante e/ou sua comunidade em decorrência de sua participação na pesquisa; (Brasil, 2012).

Observa-se que os benefícios podem ser durante ou após a pesquisa, importa que o participante tenha proveito oriundo do estudo realizado, ainda que seja de modo indireto.  

Ainda sobre os benefícios, conforme Rosário (2016) eles não devem se ater ao plano teórico, mas devem ser de cunho prático, ou seja, que tragam resultados concretos de modo geral, proporcionando mudanças e contribuições efetivas para o fazer científico.

Ao buscar dados sobre os benefícios da pesquisa mencionados nas 10 (dez) dissertações do Programa de pós-graduação, procurou-se, inicialmente nos Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, e foi possível localizar 04 (quatro) dissertações com Termo anexado e 06 (seis) não constam o documento pesquisado.

Diante disso procedeu-se da seguinte forma, naqueles que possuíam o TCE a coleta foi ali realizada, naquelas que não constava optou-se por fazer a busca na introdução e conclusão dos trabalhos.

Nas 10 (dez) dissertações do Programa de pós-graduação foram buscadas as informações sobre benefício direto ou indireto, imediato ou posterior. Sobre o que sejam benefícios diretos, a cartilha de orientação do pesquisador faz a seguinte definição:

Benefícios diretos: Ocorre quando o participante se beneficia de algum tipo de intervenção utilizada no decorrer do estudo. (Brasil, 2020)

Portanto, estes benefícios estão associados a algum ganho que o participante receba pela sua participação durante o estudo. Do mesmo modo, esta também lança a luz sobre o conceito de benefícios indiretos, são esses: 

Benefícios indiretos: São provenientes da participação na pesquisa, ainda que o sujeito não receba a intervenção experimental […] (Brasil, 2020)

Entende-se por este benefício que, ainda que o mesmo não tenha tido a reversão de forma direta ao participante, de um modo ou de outro a contribuição decorrente da pesquisa será revertida seja para o participante, sociedade ou comunidade.

Para selecionar e discriminar os dados a respeito dos benefícios diretos e indiretos buscou-se utilizar o conceito definido na cartilha de orientações ao pesquisador do CEP, já os benefícios imediatos e posteriores, foram selecionados da seguinte forma, beneficio imediato foi interpretado como aquele proveniente da participação da pesquisa, revertido imediatamente ao participante, ou seja, durante o estudo realizado. 

Em relação aos benefícios posteriores, estes foram interpretados como possíveis benefícios ao participante, comunidade ou sociedade, revertidos posteriormente à pesquisa, isto é, após o término da mesma, ainda que ele não seja revertido de modo imediato, possui papel igualmente importante, pois continua sendo um benefício, só que de longo prazo.

Sobre os benefícios diretos e indiretos, em 04 (quatro) dissertações não foi possível localizar nem benefício direto ou indireto. Em 03 (três) dissertações não foi possível identificar benefícios diretos, mas em 03 (três) foi possível identificar 07 (sete) benefícios diretos. Dos benefícios indiretos todos os 06 (seis) contemplava, e em 06 (seis) foi possível identificar 13 (treze). 

Para melhor compreensão dos benefícios diretos e indiretos, imediato e posterior, serão apresentados exemplos de cada um. No que se refere a benefícios diretos encontrados na coleta temos: atendimento psicológico e acolhimento social aos participantes no processo de falar sobre suas experiências, recebendo apoio emocional ou social, possibilitar ao participante melhor conhecimento acerca das medidas protetivas de urgência, ajudar o participante vitima de violência a identificar os motivos pelos quais o mesmo desiste de denunciar seu agressor e proporcionar subsídios para participantes quebrarem o ciclo da violência sexual e intrafamiliar.

Quanto a benefício indireto, foram detectadas as amostras, a saber: compreensão do fluxo das rotas críticas percorridas por participantes em situação de violência até o atendimento na rede de proteção, contribuição para novas reflexões e estudos referentes ao tema, dar visibilidade aos serviços prestados pelos gestores e a importância da rede de proteção, possibilidade de surgirem propostas e/ou contribuições que visem à melhoria dos fluxos e dos serviços de atendimento aos participantes, vítimas de violência, como a proposta de criação de mecanismos institucionais que favoreçam a coordenação e acompanhamento das atividades da rede, etc.

Em relação aos benefícios imediato ou posterior, em 04 (quatro) dissertações não foi possível localizar nem benefício imediato ou posterior. Em 03 (três) dissertações não foi possível identificar nenhum benefício imediato, por outro lado, em 03 (três) foram localizados 07 (sete).  Sobre benefício posterior, 06 (seis) contemplava, e das 06 (seis) foi possível mapear 12 (doze) indicações de benefício posterior.

Quanto aos benefícios imediatos do estudo, foram encontrados estes a seguir: viabilização de um momento de escuta e de questionamento sobre dúvidas relacionadas à sua vida econômico-financeira e a denúncia do seu agressor, oportunidade de dar voz às mães de vítimas de violência doméstica, conhecer suas expectativas em receber um atendimento de excelência pela rede de proteção e dar subsídio a participantes pela rede de proteção. 

Por fim, como exemplo de benefícios posteriores selecionados na coleta está: possibilidade de ações de melhorias a órgãos de serviço de atendimento à comunidade a partir dos resultados do estudo realizado, facilitar acesso a futuros usuários a busca pelos direitos, influência de possível realização de políticas públicas em decorrência ao estudo realizado entre outros.

Foi possível verificar que as dissertações reverteram uma ampla gama de benefícios aos participantes, abrangendo benefícios diretos e indiretos, bem como imediatos e posteriores. Benefícios diretos incluíram o desenvolvimento pessoal e o acesso a recursos educacionais e psicológicos para lidar com suas dificuldades, que promoveram melhorias imediatas nas condições de vida dos participantes. 

Benefícios indiretos se manifestaram na forma de informações valiosas que contribuíram para a formulação de políticas públicas mais eficazes e justas. Adicionalmente, as pesquisas forneceram dados que apoiaram no aprimoramento de práticas institucionais, beneficiando a sociedade em longo prazo. 

A reversão foi evidente tanto no apoio psicológico imediato recebido pelos participantes quanto nas mudanças duradouras efetivadas nas comunidades estudadas, ao proporcionar uma compreensão mais aprofundada das questões abordadas e ao influenciar futuros estudos relevantes e intervenções políticas e sociais.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, partindo dos objetivos específicos, no que tange elaborar um perfil dos direitos humanos elaborados nas dissertações, identificou-se que das 10 dissertações analisadas todas tinham como participantes sujeitos considerados vulneráveis, sendo eles idosos, crianças , mulheres e imigrantes. Constatou-se ainda que a temática mais tratada foi a violência, seja ela física, psicológica ou sexual sendo o foco do pesquisador trabalhar a violação dos direitos humanos dos indivíduos participantes da pesquisa, em qual 88% das dissertações discorrem sobre a defesa e garantia dos direitos humanos enquanto 12% não tratam da questão.

Além disso, observou-se que as mulheres são os sujeitos mais em evidência nas pesquisas, destacando uma postura política dos pesquisadores atrelada à defesa e garantia dos direitos humanos da mulher e na luta contra a desigualdade e invisibilidade tão sofrida por esse grupo. 

Desse modo, retomando ao segundo objetivo deste trabalho para evidenciar como as pesquisas sinalizam a reversão dos benefícios aos sujeitos pesquisados, concluímos que os benefícios podem ser revertidos aos participantes de forma direta, indireta,  imediato ou posterior, além disso, os benefícios podem ocorrer durante a pesquisa ou após. 

A identificação dos benefícios foi feita pelo TCLE e quando não achado no documento, optou-se por averiguar na introdução ou conclusão do trabalho. Evidenciou-se que nas dissertações trabalhadas obtivemos tanto benefícios direto e indireto, como benefícios imediato ou posterior. Sendo eles revertidos durante a pesquisa como momentos de escuta, apoio emocional, orientação sobre direitos do participante ou como posteriormente na implementação de novas políticas públicas ou novos estudos que afetarão a vida do participante e seu grupo social de forma direta ou indireta, trazendo benefícios e melhoria na sua qualidade de vida e garantia e defesa de seus direitos humanos.  

Os resultados obtidos indicam que a pesquisa cumpriu plenamente esses objetivos, revertendo benefícios significativos aos participantes e delineando um perfil claro dos direitos humanos tratados. Conclui-se também, que foi possível refletir sobre a importância da contribuição da pesquisa com participantes vulneráveis para a sociedade, participantes e a comunidade acadêmica, com vistas a enxergar o quão ainda é necessário percorrermos para se contrapor a forças reacionárias e conservadoras que não priorizam e se debruçam fortemente contra defesa intransigente dos direitos humanos. 

Tais fatos históricos denotam que a busca por direitos necessita ser insistente, pois observamos a partir dos dados, que apesar dos participantes serem sujeitos políticos de direitos, por se encontrarem em situação de vulnerabilidade ainda assim existe a falta de acesso, os deixando vulneráveis a diversas formas de violência. Além disso, observa-se a indispensabilidade dos valores éticos do pesquisador para evitar que estes sujeitos já vulneráveis corram o risco de ser duplamente violentados no tocante aos riscos existentes dentro da pesquisa em ciências humanas e sociais.

 Desse modo, os resultados poderão qualificar as práticas em pesquisa científica oferecendo subsídios teóricos e conceituais, e, assim, contribuir na incorporação do referencial dos Direitos Humanos de modo transversal nas pesquisas, além da ampliação de debates sobre a proposição, a execução e a avaliação de resultados de pesquisas com populações vulneráveis. A continuidade de estudos nesta área é essencial para aprofundar a compreensão das dinâmicas de vulnerabilidade e para desenvolver estratégias cada vez mais eficazes de intervenção e apoio.

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1Graduando em Serviço Social pela UFAM. E-mail: julianaempresa709@gmail.com
2Doutora em Ciências Biológicas pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), AM, Brasil. Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (PPGSS/UFAM), Manaus, AM, Brasil. E-mail: lucilenefmelo@yahoo.com.br
3Assistente Social Mestra em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia. Membro do Grupo de Pesquisa Gestão Social, Direitos Humanos e Sustentabilidade na Amazônia/Universidade Federal do Amazonas (GEDHS/UFAM). E- mail: ruthpmoliveira@gmail.com