PERSPECTIVES ON THE LEGAL SYSTEM AND ECONOMIC DEVELOPMENT: A CRITICAL AND REFLECTIVE EXAMINATION
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10827947
Silvana Gomes dos Santos1
Edson José de Souza Júnior2
RESUMO
Este artigo analisa a relação entre sistemas judiciais e desenvolvimento econômico, destacando a dissonância entre diferentes perspectivas sobre o tema. Investigamos o papel dos tribunais na promoção do desenvolvimento e os impactos negativos do mau funcionamento do Judiciário na economia. Utilizamos uma abordagem exploratória, revisando a literatura existente e analisando estudos empíricos, com ênfase nos trabalhos de Castelar (2009), Castro Junior (1999), Dias (2023), Fux (2021) e Allemand (2023). Os resultados ressaltam a necessidade de reavaliar a interação entre sistemas legais e panorama econômico, reconhecendo o papel significativo dos sistemas judiciais na configuração econômica. Além disso, destacamos a importância de considerar as implicações da tecnologia, inteligência artificial e capacitação profissional para o desenvolvimento do sistema judiciário e da economia. Reconhecemos os limites deste estudo, visando contribuir para uma reflexão mais aprofundada sobre essa relação complexa.
Palavras-chaves: Sistemas Judiciais; Desenvolvimento Econômico; Mau Funcionamento do Judiciário.
ABSTRACT
This article examines the relationship between judicial systems and economic development, highlighting the dissonance among different perspectives on the subject. We investigate the role of courts in promoting development and the negative impacts of the malfunctioning of the Judiciary on the economy. We employ an exploratory approach, reviewing existing literature and analyzing empirical studies, with emphasis on the works of Castelar (2009), Castro Junior (1999), Dias (2023), Fux (2021) and Allemand (2023). The results underscore the need to reassess the interaction between legal systems and the economic landscape, recognizing the significant role of judicial systems in economic configuration. Furthermore, we emphasize the importance of considering the implications of technology, artificial intelligence, and professional training for the development of the judicial system and the economy. We acknowledge the limitations of this study, aiming to contribute to a deeper reflection on this complex relationship.
Keywords: Judicial Systems; Economic Development; Malfunctioning of the Judiciary.
INTRODUÇÃO
Numa jornada de contínua observação e reflexão, muitas vezes nos deparamos com uma dissonância entre teoria e prática, entre as narrativas estabelecidas e a realidade vivenciada. É nesse espaço de questionamento e análise crítica que emergem insights que desafiam as premissas convencionais e nos convidam a olhar para além do óbvio.
No contexto da relação entre os sistemas judiciais e o desenvolvimento econômico, essa mudança de perspectiva revela um fenômeno intrigante: a escassez de literatura empírica que explore o papel dos tribunais na promoção do desenvolvimento. No entanto, paradoxalmente, encontramos uma profusão de estudos que evidenciam de forma contundente os impactos adversos do mau funcionamento do judiciário na economia.
Essa aparente contradição nos impele a reexaminar as interações entre os sistemas legais e o panorama econômico com um novo olhar. Em vez de nos determos apenas nas lacunas da literatura, buscamos direcionar nossa atenção para a evidência emergente de que os sistemas judiciais desempenham, sim, um papel significativo na configuração do cenário econômico de uma nação.
Inspirados por insights provenientes de estudos seminais e reflexões contemporâneas, embarcamos em uma jornada de exploração para desvelar as complexidades subjacentes à funcionalidade e disfuncionalidade dos sistemas judiciais. Especial ênfase é direcionada à avaliação do impacto das novas tecnologias, especialmente a inteligência artificial, na administração da justiça, e às implicações éticas e de governança que permeiam esse cenário.
Além disso, este trabalho busca iluminar a importância primordial do desenvolvimento profissional contínuo e da capacitação dentro das esferas judiciais. Por meio de uma análise crítica das intervenções políticas e institucionais, almejamos esboçar um caminho em direção a um ambiente jurídico mais ágil, inclusivo e responsivo às demandas da sociedade.
Neste artigo, mergulhamos nesse terreno fértil de indagações e descobertas. Ao traçarmos um caminho entre as lacunas do conhecimento e as evidências observadas, almejamos oferecer aos leitores, uma visão mais abrangente e esclarecedora sobre o tema.
A mudança de olhar para um determinado problema pode fazer nossa visão enxergar com outros olhos certas situações e conceitos pré-definidos. Isso nos capacita a encontrar soluções concretas para conflitos, interesses e situações específicas; e nos permite explorar novos rumos, inclusive para o desenvolvimento de um país, que vai além do desenvolvimento econômico.
Embora a literatura empírica sobre o papel dos sistemas judiciais na promoção do desenvolvimento seja escassa, a abundância de estudos empíricos sobre o impacto do mau funcionamento do Judiciário na economia evidencia a relevância desse tema. Essa perspectiva alternativa destaca como os sistemas judiciais podem desempenhar um papel crucial na promoção do desenvolvimento, quando analisados sob uma nova ótica.
Sob essa nova perspectiva, diante dos diversos temas debatidos e estudos realizados no mestrado em desenvolvimento regional em curso, surgiu a oportunidade de conhecer histórias de Estados e regiões que tinham todos os elementos para fracassar. Entre essas histórias, destaca-se o exemplo do Vale do Silício (O’Mara, 2021), Singapura (Serra, 1996) e Costa Rica (Guardia, 2005). Inicialmente desfavorecidas para o crescimento econômico no pós-guerra, essas regiões tornaram-se potências mundiais. Isso nos leva a compreender que um novo enfoque, baseado em estratégias, indivíduos capacitados e tecnologia, pode reescrever a história de um país, elevando-o à categoria de um país desenvolvido. No entanto, a falta de estratégias, de pessoas capacitadas, o subaproveitamento da tecnologia e deficiências na governança podem resultar na estagnação de um país, mesmo com riquezas naturais e uma localização favorável, mantendo-o por séculos na categoria de país em desenvolvimento.
Castelar (2009, p. 1), ao referenciar economistas como North (1981; 1990), Barro e Lee (1994), destaca o amplo reconhecimento de que a qualidade das políticas públicas e das instituições desempenha um papel significativo nas diferenças de crescimento do PIB per capita entre os países. Ele ressalta que essa é considerada não apenas uma causa, mas possivelmente a mais importante, conforme analistas renomados, incluindo os economistas North (1981) e Olson (1996). Olson (1996, p. 20 apud Castelar, 2009, p. 1) compreende, em sua análise, que reformar a política econômica e as instituições é suficiente para rapidamente alçar uma trajetória de elevadas taxas de crescimento: “Qualquer país pobre que implemente políticas econômicas e instituições relativamente adequadas experimenta uma rápida retomada do crescimento” (Olson, p. 20 apud Castelar, 2009, p. 1).
Castelar (2009, p. 1) contribui ainda, mencionando:
Os argumentos de Olson encontram respaldo empírico em Scully (1988), que analisou o impacto das instituições sobre níveis de eficiência e taxas de crescimento em 155 economias de mercado. Scully chegou a três conclusões principais. Primeiro, que países dotados de boas instituições – ou seja, “sociedades politicamente abertas e comprometidas com o império do Direito (rule of law), a propriedade privada e a alocação de recursos pelo mercado” – crescem três vezes mais rápido, em termos per capita, do que países com instituições precárias (2,73% contra 0,91% a.a). Segundo, que países com instituições frágeis apresentam apenas metade de eficiência observada nos países dotados de uma boa estrutura institucional; terceiro, países com instituições precárias tendem a apresentar um declínio contínuo em eficiência, enquanto aqueles caracterizados por boas instituições já capturaram todos os ganhos de eficiência, de modo que, em tais países, “não se deve esperar uma melhora de eficiência ao longo do tempo” (Castelar, 2009, p. 1).
Castro Junior (1999, p. 61) aborda um tema crucial para o desenvolvimento econômico: a segurança jurídica. Segundo o autor, a segurança jurídica está intrinsecamente ligada ao Estado de Direito e garante a iniciativa empresarial, estimulando os investimentos públicos e privados na economia. Ele ressalta que a ausência de segurança jurídica resulta na perda de confiança no processo democrático, na economia de mercado e no próprio Estado. Além disso, destaca que a vigência do Estado de Direito e a implementação da segurança jurídica são condições essenciais para as reformas econômicas e os processos de transformação.
Esse autor também defende as condições enumeradas pelo prof. Klaus M. Leisinger, quando este menciona que a falta de segurança jurídica é um dos maiores problemas de governança; e que cinco condições facilitam sobremaneira as decisões a respeito de projetos a longo prazo e com altos custos de investimento: (a) as leis devem ser claras e garantir informações confiáveis, não poderá haver leis retroativas, pois a segurança jurídica é fundamental para os investidores, que precisam de estabilidade e previsibilidade; (b) as autoridades estatais devem garantir que todos cumpram as leis, e estas devem ter aplicação prática, real; (c) as regras devem ser orientadas por critérios transparentes, justos e equitativos, mas poderá haver flexibilização das normas quando isso for necessário ao bem comum; (d) os conflitos devem ser resolvidos, de forma independente, pelo Judiciário ou por um órgão de arbitragem; (e) não deve haver leis ou regulamentos contraditórios, pois isso leva à arbitrariedade no exercício do poder, o prejuízo ao progresso em direção ao bem comum e o desserviço à expansão da liberdade individual (Leisinger, 1996, pp. 81-82, apud Castro Junior, 1999, pp. 61-62).
Portanto, se não interdependentes, existe uma linha tênue entre Direito e Desenvolvimento, sendo que o conceito de Desenvolvimento vai muito além do aspecto econômico, englobando todo o contexto social, econômico, cultural e político de um povo. A relevância desse tema é tão significativa que, em 1986, o direito ao desenvolvimento foi reconhecido na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas e confirmado pela Conferência de Viena sobre Direitos Humanos de 1993.
A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento da ONU afirma:
O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, pelo qual todos os seres humanos e todos os povos têm o direito de participar, de contribuir e de desfrutar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.
Artigo 3.º:
1. A responsabilidade primordial pela criação de condições nacionais e internacionais favoráveis à realização do direito ao desenvolvimento incumbe aos Estados.
2. A realização do direito ao desenvolvimento exige o pleno respeito dos princípios de direito internacional relativos às relações amistosas e à cooperação entre Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas.
3. Os Estados têm o dever de cooperar reciprocamente para assegurar o desenvolvimento e eliminar os obstáculos que se lhe colocam. Devem promover uma nova ordem econômica internacional baseada na igualdade soberana, na interdependência, no interesse mútuo e na cooperação entre todos os Estados, além de encorajar a observância e a realização dos direitos humanos.
Artigo 4.º:
1. Os Estados têm o dever de tomar providências, individual e coletivamente, para a formulação de políticas internacionais de desenvolvimento destinadas a facilitar a plena realização do direito ao desenvolvimento.
2. É necessária uma ação sustentada para promover um mais rápido desenvolvimento dos países em vias de desenvolvimento. É essencial uma cooperação internacional efetiva para fornecer os meios e instrumentos adequados para fomentar seu desenvolvimento integral. (ONU – Declaração do Direito ao Desenvolvimento – Resolução 41/128, 1986)
A relevância do tema é inquestionável. Sistemas judiciais ineficientes podem prejudicar o crescimento econômico ao promoverem o uso ineficiente de recursos, afastando os países das melhores práticas de produção. O alto risco e custo das transações resultantes do mau funcionamento da Justiça distorcem a alocação de recursos e podem minar a competição no mercado.
Retomando a abordagem inicial deste artigo e considerando as contribuições dos autores e analistas aqui pesquisados, voltamos nosso olhar não apenas para o papel dos sistemas judiciais na promoção do desenvolvimento, mas também para os efeitos e reflexos do mau funcionamento do judiciário na economia. Evidências apontam a relevância do tema abordado, especialmente diante da crescente preocupação entre os operadores do Direito brasileiro com a busca por serviços jurisdicionais de qualidade e celeridade. O aumento da litigiosidade e o acesso à justiça apresentam desafios para o Poder Judiciário, cuja atuação disfuncional pode comprometer a segurança jurídica do país.
Castelar (2009. p. 3), citando Sherwood et al. (1994, p. 6), aponta que a afirmação de que processos judiciais sólidos melhoram o desempenho econômico ainda requer evidências conclusivas. No entanto, ele ressalta que a falta de compreensão dos custos econômicos resultantes do mau funcionamento da Justiça tem inibido o debate sobre o assunto e as tentativas de aprimorar sua administração.
Dias (2023, p. 27) ressalta que, desde os primórdios, a busca pela prestação de serviços jurisdicionais com qualidade e de forma célere é uma preocupação que parece acompanhar os operadores do Direito. Ao analisar a Exposição de Motivos dos Códigos de Processo Civil de 1939, de 1973 e de 2015, verifica a autora que é crônico o sentimento de que o Poder Judiciário se encontra em crise e com dificuldade de prestar jurisdição de forma célere, sobretudo diante dos desafios de crescimento da litigiosidade e do maior acesso à justiça.
Aponta Dias (2023, p. 29) que muitas alterações na legislação processual foram motivadas pela necessidade de acompanhar o desenvolvimento histórico da organização e das competências atribuídas ao Estado; pelo reconhecimento de direitos fundamentais aos cidadãos; e, por fim, pela evolução em si do papel desempenhado pelo Direito Processual e pela extensão e amplitude que se espera da função jurisdicional.
As ideias e contribuições acima defendidas nos levam ao entendimento de que, no âmbito da governança, é essencial voltar às raízes de um país e compreender que o Estado, o governo e os Poderes surgem em função da sociedade. O sistema judicial reflete as grandes mudanças no contexto nacional e mundial, repercutindo-se nelas. Dias (2023, p. 46) destaca que o reconhecimento de diversos direitos sociais e as alterações socioeconômicas observadas desde então, bem como o amplo acesso à justiça assegurado pela atual Constituição Federal (Brasil, 1988), transformaram as características dos litígios submetidos à cognição do Poder Judiciário. Além do fenômeno das ações coletivas, verificou-se no Brasil uma explosão de litigiosidade, em grande parte, provocada pelo ajuizamento de ações que discutem direitos individuais homogêneos e pela criação de normas que facilitam e asseguram o acesso à justiça.
Para Dias (2023, p. 48), desde a década de 80 do século passado, a legitimidade do Poder Judiciário está em crise, sintetizada pela baixa confiança do cidadão nessa instituição, o que persiste até os dias atuais.
Dias (2023, p. 49) traz, em sua obra, uma pesquisa que retrata o índice de confiança na Justiça no Brasil:
O Índice de Confiança na Justiça do Brasil (ICJ Brasil) de 2017 foi de 4,5, em uma escala de 0 a 10, indicando uma má avaliação do Poder Judiciário. Esse índice é apurado considerando a composição de dois subíndices, quais sejam o de “percepção”, que mede a opinião da população sobre a justiça e a forma como ela presta o serviço público (considerando aspectos como confiança, celeridade, custos, facilidade de acesso, entre outros), para o qual foi dada uma nota 2,8, e o de “comportamento”, que mensura a predisposição da população em recorrer ao Judiciário para solucionar conflitos, recebendo uma avaliação 8,4 (Dias, 2023, p. 49).
Dias destaca uma curiosidade interessante ao final da pesquisa: embora a população avalie negativamente o Poder Judiciário, há um alto grau de disposição para resolver conflitos na Justiça. A autora observa também uma percepção de que o Poder Judiciário brasileiro se diferencia, em relação a outros sistemas judiciais do mundo, pela falta de celeridade e pelos custos excessivos. Essa constatação evidencia um desafio crescente que o sistema judicial enfrenta.
Acertadamente Leal Júnior (2015, p. 148) conclui que:
Um judiciário eficiente, que solucione os conflitos em prazo razoável é essencial para que firmas e indivíduos se sintam seguros ao fazer investimentos específicos, sejam eles físicos ou em capital humano. A qualidade do serviço judiciário gera impacto sobre os investimentos, especialmente quanto mais especializada for a natureza dele. Não basta, portanto que o direito material atenda às expectativas dos cidadãos se o sistema de solução de controvérsias, naquele Estado, é moroso, e por conseguinte, ineficiente (Leal Júnior, 2015, p. 148).
Diante do aumento explosivo no número de ações judiciais, resultado das mudanças identificadas, Dias relaciona esse fenômeno com as transformações ocorridas na última metade do século XX, apontando-as como responsáveis por instigar o legislador a revisar a legislação processual. Dias (2023, p. 50) cita:
Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realizações dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformaram em pura ilusão sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo. Brasil. Exposição de Motivos do Código de Processo Civil de 1939 (Dias, 2023, p. 50).
Fux (2021, p. 4) também identifica o surgimento da Constituição de 1988 e o reconhecimento dos direitos transindividuais como fatores nacionais que contribuíram significativamente para o aumento expressivo das demandas judiciais. Ele destaca um paradoxo decorrente desse processo: o fácil acesso à justiça resultou em uma sobrecarga do sistema, exemplificada pela máxima “better the roads, more the traffic”, na qual a Justiça fica abarrotada de processos, ações e recursos, comprometendo a eficiência e a celeridade. Isso evidencia a influência da sociedade no poder-dever de julgar do Estado. Diante desse cenário, tornou-se imperativo que o Estado-Juiz não permanecesse inerte. Era necessário que a entrega jurisdicional fosse realizada de forma adequada. Surgiu, então, a necessidade de ampliar o uso das ferramentas de tecnologia e inteligência artificial no Poder Judiciário, visando aprimorar a eficiência do sistema e lidar com os desafios apresentados pela crescente demanda.
É verdade que a automatização da Justiça brasileira não é recente, surgindo de um gradual processo de informatização da sociedade como um todo. Isso ocorreu até mesmo antes da Reforma do Judiciário, Emenda n. 45 (Brasil, 2004). Porém, desde sua criação em 2004, o Conselho Nacional de Justiça vem se empenhando na expansão do processo digital, como evidenciado na Lei n. 11.419 – Lei dos Processos Eletrônicos (Brasil, 2006).
É fato inquestionável que, durante a pandemia de COVID-19 em 2019, a interação entre direito e desenvolvimento se tornou evidente. O Poder Judiciário brasileiro teve que se adaptar rapidamente às novas demandas, ampliando o uso da tecnologia em todos os graus de jurisdição. A saúde das pessoas, das empresas, do agronegócio, assim como a sociedade como um todo, exigia uma resposta. O Estado, tanto no âmbito governamental quanto judiciário, devia uma solução para os danos e reflexos trazidos por aquele momento inesperado e delicado.
O Conselho Nacional de Justiça, desde sua criação, tem se empenhado na expansão do processo digital. No entanto, o uso da tecnologia no Poder Judiciário teve um avanço significativo após esse acontecimento. Podemos citar a edição da Resolução 345 – Juízo 100% Digital (Brasil, 2020); Resolução 372 – Justiça 4.0 (Brasil, 2021); e o aumento exponencial no investimento em Inteligência Artificial (IA) para que a Justiça pudesse chegar até ao autor principal, de todo o texto, seja ele político, econômico, social ou jurídico, o cidadão. O investimento em tecnologia, como a regulamentação da Online Dispute Resolution (ODR), destaca a capacidade adaptativa do sistema judiciário.
Contudo, dois outros pontos relevantes merecem ser mencionados neste artigo, embora demandem uma discussão mais detalhada em futuros trabalhos devido à sua importância: a ética, transparência e governança na produção e no uso da IA no Poder Judiciário; e a capacitação dos magistrados e servidores, fatores que podem influenciar positiva ou negativamente na entrega da justiça e, por conseguinte, interferir na economia e no desenvolvimento regional, quiçá no desenvolvimento global.
A atual Constituição Federal (Brasil, 1988), de maneira inovadora nos artigos 218 e 219, estabelece garantias para promoção, incentivos científicos, pesquisa e capacitação tecnológica, visando ao desenvolvimento cultural e socioeconômico. A Lei n. 10.973 (Brasil, 2004), conhecida como lei da inovação, respaldada pelas garantias constitucionais, foi criada para fomentar a inovação na pesquisa científica e tecnológica em instituições públicas e privadas em todo o país. Essa lei representa um marco significativo para o ambiente empresarial, oferecendo um arcabouço legal para estimular a inovação em diversos setores da economia.
A partir da Lei n. 13.246 (Brasil, 2016), a lei da inovação ganhou mais força e autonomia com o marco regulatório da inovação. Sua importância reflete-se em todas as esferas da sociedade, promovendo o desenvolvimento tecnológico, econômico e regional. A colaboração entre instituições de pesquisa e empresas, ao criar polos de inovação e conhecimento em diferentes partes do país, pode impulsionar o desenvolvimento regional.
Segundo Allemand (2023, p. 312), embora a vigente Constituição (Brasil, 1988) tenha destacado a importância estratégica da ciência, tecnologia e inovação para o Brasil, na prática, esses princípios não foram efetivamente aplicados. Vivemos em uma era de conhecimento, com o surgimento contínuo de tecnologias disruptivas, exigindo uma redefinição dos modelos sociais e organizacionais. A responsabilidade ética e a governança tornam-se essenciais, especialmente no desenvolvimento e uso da inteligência artificial, para evitar, dentre várias outras complicações e danos, vieses cognitivos e injustiças.
Diante da falta de normas específicas no Brasil para a governança e os parâmetros éticos no desenvolvimento da inteligência artificial, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou a Resolução n. 332 (Brasil, 2020), que aborda a ética, transparência e governança na produção da IA no Poder Judiciário. A Resolução destaca a importância da publicidade e transparência (artigo 8º) e regula os vieses cognitivos (artigo 7º), considerados aspectos fundamentais para o uso ético da inteligência artificial no sistema judiciário.
Noutro vértice, o capital humano se revela fundamental nesse contexto de transformação. A velocidade exponencial das inovações tecnológicas, como a inteligência artificial, demanda constante atualização e aprimoramento dos profissionais do judiciário. O impacto do mau funcionamento do sistema judiciário pode reverberar na economia e no desenvolvimento regional, afetando diretamente a confiança na justiça e a efetividade das decisões.
É imprescindível que o capital intelectual da organização esteja apto a compreender e utilizar as novas tecnologias de forma ética e transparente, garantindo que as decisões judiciais preservem princípios fundamentais como igualdade, não discriminação, pluralidade e solidariedade. Portanto, investir em programas de capacitação contínua e atualização profissional é uma estratégia essencial para o fortalecimento do sistema judiciário e a garantia da entrega da justiça de forma eficaz e equitativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, a percepção comum de que os sistemas judiciais têm pouca influência no desenvolvimento econômico contrasta com a firme convicção de que o mau funcionamento do Judiciário afeta drasticamente a economia. Essa aparente dicotomia revela uma verdade paradoxal: o Poder Judiciário exerce, de fato, uma influência significativa na economia, embora muitas vezes essa relação não seja reconhecida explicitamente.
Ao examinarmos mais de perto essa dinâmica, torna-se claro que os sistemas judiciais desempenham um papel crucial na configuração do panorama econômico de uma nação. A incapacidade de resolver disputas de forma eficiente, a falta de segurança jurídica e a morosidade dos processos judiciais podem minar a confiança dos investidores, distorcer a alocação de recursos e prejudicar a competitividade das empresas.
Além disso, ao considerarmos as implicações da tecnologia, inteligência artificial e capacitação profissional no contexto jurídico-econômico, é evidente que o aprimoramento do sistema judicial é essencial para promover um ambiente de negócios saudável e estimular o crescimento econômico sustentável.
No entanto, para desbloquear todo o potencial do sistema judicial como catalisador do desenvolvimento econômico, é necessário um esforço concertado para promover a transparência, a ética e a governança no uso da tecnologia e na administração da justiça. Da mesma forma, investimentos contínuos em capacitação profissional e atualização dos magistrados e servidores são fundamentais para garantir a eficácia e a equidade do sistema judicial.
Neste contexto, é essencial reconhecer a influência mútua entre os sistemas judiciais e o desenvolvimento econômico. Essa relação complexa requer uma abordagem holística que promova a colaboração entre os diversos atores da sociedade, visando ao aprimoramento contínuo do sistema judicial e ao fomento do crescimento econômico. No entanto, não se tem a intenção neste artigo de esgotar o tema. O tema é complexo, necessita de mais estudos empíricos e há muitas divergências sobre o assunto. Portanto, é fundamental que futuras pesquisas explorem mais a fundo essa relação e suas ramificações para uma compreensão mais completa e robusta.
REFERÊNCIAS
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1ORCID: https://orcid.org/0492074417790097
Centro Universitário Alves Faria (UNIALFA), Brasil
E-mail: vana.castelo@hotmail.com
2ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8131-409X
Centro Universitário Alves Farias (UNIALFA), Brasil
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