PERSPECTIVAS SOBRE O LUTO NA CULTURA DO POVO XERENTE

PERSPECTIVES ON MOURNING IN THE CULTURE OF THE XERENTE PEOPLE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102412061632


Samuel Marques Borges[1]
                              Neila Barbosa Osório[2]
Marlon Santos De Oliveira Brito[3]
Euler Rui Barbosa Tavares[4]
Leonardo Sampaio Baleeiro Santana[5]
Nubia Pereira Brito Oliveira[6]
Francijanes Alves De Sousa Sá[7]
Andre Ribeiro De Goveia[8]
Glauce Gonçalves Da Silva Gomes[9]
Luciano Paulo De Almeida Souza[10] 
Janaina Ferreira Magalhaes[11]
Aline Barros Da Rocha[12]
Evanildes Barbosa Tavares[13]
João Antônio Da Silva Neto[14]
Dalâyne Lopes Dos Santos[15]


RESUMO

A metodologia adotada foi uma revisão bibliográfica qualitativa, focada em obras antropológicas, sociológicas e psicanalíticas que discutem o luto em diferentes contextos culturais, com ênfase nas tradições indígenas. Foram estudados autores que exploram tanto a dinâmica cultural quanto as transformações e hibridizações contemporâneas. Nos resultados, constatou-se que o luto Xerente não se retomou a um período de dor, mas constitui um processo prolongado, enraizado nos ciclos da natureza e na renovação espiritual. O envolvimento de toda a comunidade e o papel central do território foram pontos de destaque, evidenciando como os rituais de luto reforçam os laços entre as gerações e com o espaço sagrado onde vivem. A conclusão do estudo reforça que, para os Xerente, o luto é uma expressão contínua de pertencimento, memória e resistência cultural. Mesmo diante das pressões externas, o grupo preserva seus rituais, adaptando-se sem perder o elo profundo com suas raízes. O luto, portanto, emerge não apenas como uma forma de lidar com a morte, mas como uma celebração da vida, das tradições e da relação indissolúvel com a terra e os ancestrais.

Palavras-chave: Luto. Cultura Xerente. Resistência Cultural.

ABSTRACT

The methodology adopted was a qualitative bibliographic review, focused on anthropological, sociological and psychoanalytic works that discuss mourning in different cultural contexts, with an emphasis on indigenous traditions. Authors who explore both cultural dynamics and contemporary transformations and hybridizations were studied. In the results, it was found that Xerente mourning did not return to a period of pain, but constitutes a prolonged process, rooted in the cycles of nature and spiritual renewal. The involvement of the entire community and the central role of the territory were highlights, highlighting how mourning rituals reinforce ties between generations and with the sacred space where they live. The conclusion of the study reinforces that, for the Xerente, mourning is a continuous expression of belonging, memory and cultural resistance. Even in the face of external pressure, the group preserves its rituals, adapting without losing the deep link with its roots. Mourning, therefore, emerges not only as a way of dealing with death, but as a celebration of life, traditions and the indissoluble relationship with the land and ancestors.

Keywords: Mourning. Xerente Culture. Cultural Resistance.

1. INTRODUÇÃO

A morte, embora universal, carrega significados diversos de acordo com o grupo cultural que a vivência. Para alguns, é um aspecto biológico; para outros, uma travessia espiritual que ecoa na ancestralidade e no coletivo. O processo de luto, muitas vezes investigado sob perspectivas ocidentais, encontra contornos únicos nas culturas indígenas, onde a perda de um ente querido é indissociável das tradições e do território. Nesse sentido, a abordagem do luto dentro das comunidades indígenas revela nuances profundas que vão além da despedida física, tocando em aspectos simbólicos e espirituais que transcendem gerações.

O que chama a atenção nesse processo é a maneira como as práticas de luto se entrelaçam com a identidade cultural do grupo. Não se trata apenas de um momento de dor, mas de um reencontro com os princípios fundamentais que norteiam a comunidade. Entre esses princípios, a conexão com a terra, os ciclos da natureza e a ancestralidade são determinantes na forma como o luto é experimentado e expresso. Nas culturas indígenas, a morte não interrompeu o vínculo entre os vivos e os que partiram; ela o transforma e o ressignifica.

O respeito à memória do falecido é uma constante, mas o que realmente se destaca é o papel coletivo no processo de luto. O luto, nesse contexto, deixa de ser um evento privado e passa a ser um ato comunitário, onde cada indivíduo participa não apenas da dor, mas da manutenção da continuidade cultural. É nesse momento que as tradições se intensificam e reafirmam, com choros, rituais e tradições a partir dos respeitos aos seis clãs, criando uma ponte entre o presente e a eternidade. A ausência física é preenchida com a presença simbólica, garantida por rituais transmitidos de geração em geração.

Por outro lado, a percepção do tempo também assume uma dinâmica própria. A ideia ocidental de “superar” o luto em um determinado período parece não se encaixar em contextos indígenas. O luto não é visto como algo a ser resolvido, mas como um estado que acompanha a comunidade e o indivíduo, evoluindo-se ao longo dos ciclos da vida. Em muitos casos, os rituais não cessam com o enterro; eles continuam na visita e alguns casos específicos no Kuprê(Pós-Funeral), adaptando-se às estações, às colheitas e aos ciclos naturais, reafirmando o pertencimento à terra e à ancestralidade.

A forma como o luto é vívido dentro dessas comunidades pode parecer paradoxal aos olhos de quem vem de fora. Ao mesmo tempo em que há tristeza, há uma celebração da vida e da conexão eterna com os que partiram. Essa dualidade é central para a compreensão das dinâmicas culturais que envolvem o luto. Não há uma divisão clara entre os mundos dos vivos e dos mortos; ambos coexistem em um equilíbrio que só pode ser compreendido a partir da tradição na cosmologia do grupo. Esse equilíbrio, muitas vezes, desafia as compreensões lineares e racionais de vida e morte.

São eles que, através de palavras e gestos rituais, guiam a comunidade para além da perda. Sua sabedoria não se limita a confortar, mas situar a morte dentro de um contexto cósmico mais amplo, onde cada um faz parte de uma teia invisível que conecta o passado, o presente e o futuro. Eles resgataram histórias ancestrais e perpetuam ensinamentos que garantem que a morte seja compreendida não como fim, mas como continuidade.

A preservação dessa visão de mundo, entretanto, enfrenta desafios contemporâneos. O contato com outras culturas e as imposições externas de práticas funerárias ocidentais muitas vezes geram rupturas e rupturas. Em alguns casos, as tradições são adaptadas, ou que geram discussões internas sobre mudanças e transformação cultural. O luto, que sempre foi uma forma de reafirmação identitária, agora também se torna um espaço de resistência cultural frente à modernidade e às influências externas.

Por fim, é importante observar que o estudo sobre o luto nessas comunidades ultrapassa o campo antropológico e entra na esfera da sobrevivência cultural. O luto, nesse sentido, não é apenas sobre os mortos, mas sobre os vivos e sua relação com a história, o território e o futuro. Entender esses processos em profundidade é crucial para reconhecer o valor das práticas tradicionais e como elas resistem às pressões da sociedade contemporânea, mantendo-se como pilares fundamentais da identidade e da continuidade do grupo.

1.1. justificativa

No entanto, essa visão ocidental do luto, conforme discutida por autores como Maranhão (1998), deve ser contrastada com perspectivas mais amplas que envolvem a diversidade cultural e a particularidade dos povos indígenas. A obra de Cunha (2012) contribui ao colocar em foco a história e os direitos dos povos indígenas, evidenciando que o luto, dentro dessas comunidades, também reflete as dinâmicas complexas de resistência e afirmação identitária. Farias (1990) oferece um olhar específico sobre a organização social Xerente, revelando como os fluxos e interações entre aldeias influenciam e moldam as práticas de luto, integrando-as na estrutura social e espiritual do grupo.

Além disso, o conceito de culturas híbridas proposto por Canclini (2015) também se aplica a essa análise, pois as tradições de luto dos povos Xerente estão constantemente em diálogo com influências externas, seja através de interações com outras comunidades indígenas, seja pelo contato com práticas funerárias ocidentais. Tal hibridização de culturas reflete as adaptações permitidas para a manutenção das tradições no contexto de um mundo em transformação.

Em um cenário de disputa por terras e resistência cultural, como evidenciado por Arbex Jr. (2005), a morte e o luto assumem papéis fundamentais na reafirmação da cultura e no combate ao esquecimento. Barroso (2016), ao abordar as crianças Akwe, também destacou a relevância dos ritos de passagem e a preservação da memória ancestral, aspectos que se entrelaçam de forma única com as práticas de luto entre os Xerente.

Por fim, a visão comparativa de Palgi e Abramovitch (1984) sobre a morte e o luto em diferentes culturas contribui para situar a análise dentro de uma perspectiva antropológica mais ampla, permitindo entender como as práticas Xerente dialogam com outros contextos, mas preservam sua especificidade. Dessa forma, este trabalho justifica-se pela necessidade de aprofundar o entendimento sobre como o luto, dentro da cultura Xerente, ultrapassa a simples perda e se transforma em um elemento de resistência, preservação e identidade cultural.

1.2. metodologia

A metodologia deste trabalho seguirá uma abordagem qualitativa, com base em uma revisão bibliográfica e análise teórica das principais obras e autores que discutem a questão do luto em diferentes contextos culturais, com ênfase na cultura dos povos indígenas Xerente. Para isso, serão utilizados referenciais de antropologia, sociologia e psicanálise, permitindo uma compreensão ampla e multifacetada do tema. A escolha por uma revisão bibliográfica justifica-se pela necessidade de explorar as interpretações existentes e estabelecer conexões entre o luto, as práticas culturais e a preservação da identidade entre os Xerente.

Os dados serão obtidos a partir de uma seleção criteriosa de textos acadêmicos, livros e artigos de relevância, como os trabalhos de Cunha (2012), Farias (1990) e Canclini (2015), que abordam as dinâmicas culturais e sociais dos povos indígenas. Além disso, autores como Arraes e Viana (2007) e Maranhão (1998) forneceram subsídios teóricos importantes para a análise das facetas emocionais e simbólicas do luto, possibilitando a aplicação de conceitos psicanalíticos ao contexto específico do estudo.

O método consistirá na leitura e análise crítica das obras selecionadas, com o objetivo de identificar padrões, divergências e complementaridades nos discursos sobre o luto e a morte nas culturas indígenas, em especial nos povos Xerente. Serão considerados aspectos como a ritualidade, a função social do luto, as interações com outras culturas e as transformações contemporâneas que afetam essas práticas. Uma análise comparativa entre os textos permitirá uma visão teórica que busca compreender como os Xerente integram o luto em seu modo de vida e como essas práticas têm resistido ou se transformam diante de influências externas.

Além disso, o estudo utilizará uma análise de relatos etnográficos e antropológicos, com destaque para as dinâmicas sociais e espirituais discutidas em Palgi e Abramovitch (1984), de forma a enriquecer a análise com uma perspectiva comparativa. A ausência de uma pesquisa in loco não comprometerá a profundidade do estudo, visto que a metodologia baseada se baseia em fontes já determinadas e exclusivamente reconhecidas, permitindo a construção de uma narrativa consistente sobre o tema.

2. A Experiência do Luto Entre os Xerente

A experiência do luto entre os Xerente revela um universo cultural que ultrapassa a dor da perda física e adentra os campos da ancestralidade, identidade e pertencimento. A vivência do luto, nesse contexto, não é apenas uma resposta emocional à morte, mas uma reafirmação dos laços entre os vivos e os mortos, integrando a comunidade em torno de rituais que fortalecem sua coesão e continuidade histórica. Para os Xerente, a morte não representa uma separação definitiva, mas uma transição que mantém o indivíduo conectado à sua linhagem e à terra, em um processo de integração cósmica e social que reflete as profundas inter-relações entre a cultura e o luto (Cunha, 2012).

O caráter comunitário do luto é central nas sociedades indígenas. Enquanto, em muitas culturas ocidentais, o luto é vivenciado de forma mais privada e individualizada, entre os Xerente ele adquire um aspecto ritualístico e coletivo, envolvendo toda a comunidade. Os rituais fúnebres são momentos de reencontro entre os vivos e os mortos, em que a memória do falecido é evocada e celebrada por meio de cânticos, danças e oferendas. Esse tipo de prática mostra que o luto, entre os Xerente, não é um evento que se encerra com o funeral, mas um processo contínuo que pode durar meses ou anos, acompanhando os ciclos naturais e os rituais de renovação espiritual (Farias, 1990).

A importância dos rituais no luto Xerente está diretamente relacionada à sua cosmologia. A morte não é entendida como o fim da vida, mas como uma passagem para um outro estado de existência, em que o espírito do falecido continua a influenciar e proteger os vivos. Essa compreensão se alinha com a noção de culturas híbridas, conforme planejado por Canclini (2015), em que a modernidade e a tradição coexistem, e as influências externas são absorvidas e ressignificadas de acordo com as interações e práticas locais. No caso dos Xerente, as práticas fúnebres tradicionais são constantemente reinterpretadas à luz das transformações sociais e culturais, preservando, ao mesmo tempo, o núcleo de suas origens ancestrais.

A forma como o luto se entrelaça com a identidade cultural dos Xerente é outro ponto importante. Para eles, a morte não é apenas uma questão pessoal, mas coletiva, que afeta toda a aldeia e a comunidade em geral. Esse aspecto é reforçado pela dinâmica das relações entre as aldeias, em que a participação nos rituais fúnebres de outras aldeias reafirma os laços de solidariedade e pertença entre os diferentes grupos. A tese de Farias (1990) sobre os fluxos sociais Xerente revela como esses intercâmbios ritualísticos entre aldeias são essenciais para a manutenção da coesão social e para a reafirmação das tradições culturais.

No entanto, o luto entre os Xerente também enfrenta desafios contemporâneos. A influência crescente de práticas funerárias ocidentais, ligada à presença de instituições religiosas e à expansão do Estado, tem introduzido novas formas de vivenciar a morte e o luto, gerando entre a preservação das tradições e a adoção de práticas externas. Conforme observa Arbex Jr. (2005), as pressões externas sobre os territórios e culturas indígenas, especialmente na Amazônia, têm implicações diretas na forma como os povos indígenas, como os Xerente, se relacionam com seus mortos e com suas práticas culturais.

Ainda assim, a resistência cultural é uma constante. As comunidades Xerente continuam a realizar seus rituais tradicionais, apesar das pressões externas, reafirmando sua ascendência e suas origens. Barroso (2016) destaca como as crianças Akwe, desde cedo, estão envolvidas nos rituais de passagem e nos rituais de luto, aprendendo a importância de preservar as tradições e a memória dos antepassados. Essa transmissão geracional de saberes culturais é essencial para a sobrevivência da identidade Xerente em um mundo que se transforma rapidamente.

A relação entre o luto e a terra também é um elemento fundamental na cosmologia Xerente. Para eles, o território não é apenas um espaço físico, mas um lugar de memória e de conexão espiritual com os antepassados. A morte e o luto reforçam essa conexão, pois os rituais fúnebres geralmente envolvem o retorno do corpo à terra, em um ciclo que simboliza a continuidade da vida através da morte. A análise de Palgi e Abramovitch (1984) sobre as perspectivas transculturais da morte reforça essa ideia, destacando como diferentes culturas lidam com o luto e a morte de maneiras que refletem suas concepções de continuidade e ruptura.

Além disso, o papel dos líderes e líderes espirituais no luto é crucial para o entendimento desse processo entre os Xerente. Eles são os guardiões dos rituais e das tradições, orientando a comunidade sobre como lidar com a morte e o luto de forma que reforçam os laços com a ancestralidade e com o território. Maranhão (1998) aborda a importância da morte como um evento social que envolve a reafirmação dos valores e convicção da comunidade, algo que se aplica diretamente ao contexto dos Xerente, onde o luto é tanto uma forma de celebração da vida quanto uma reafirmação da cultura.

O luto também desempenha um papel importante na organização social Xerente. A forma como os indivíduos e as famílias lidam com a morte reflete suas posições dentro da comunidade e sua relação com os outros membros. Arraes e Viana (2007) apontam que o luto pode ser visto como uma expressão de afeto e dor, mas também como uma reafirmação de identidades individuais e coletivas. No contexto dos Xerente, o luto reflete não apenas a perda de um ente querido, mas a reafirmação dos laços que unem a comunidade e que garantem sua continuidade.

A importância da memória no processo de luto entre os Xerente também merece destaque. A preservação da memória dos mortos, através de cânticos, histórias e rituais, garante que o falecido continue a fazer parte da vida da comunidade, mesmo após sua partida física. Esse processo de manutenção da memória é fundamental para a identidade Xerente, que se baseia em uma forte conexão com o passado e com os antepassados. Cunha (2012) destaca a importância dessa conexão na construção da cidadania indígena e na afirmação dos direitos dos povos indígenas no Brasil.

A hibridização cultural, conforme discutido por Canclini (2015), também está presente no processo de luto entre os Xerente, à medida que eles lidam com as influências externas de práticas religiosas e culturais diferentes. No entanto, essa hibridização não significa a perda das tradições, mas sim a sua adaptação e ressignificação de acordo com as situações contemporâneas. Essa capacidade de adaptação é o que garante a sobrevivência das práticas culturais Xerentes, mesmo diante das pressões externas.

A ritualidade do luto entre os Xerente também serve como uma forma de resistência cultural. Ao manter suas práticas tradicionais, eles não apenas preservam sua identidade cultural, mas também resistem aos testes de assimilação e homogeneização cultural. Barroso (2016) argumenta que essa resistência é particularmente visível nas gerações mais jovens, que, apesar das influências externas, continuam a participar dos rituais e a valorizar as tradições ancestrais.

3. O Luto na Cultura Xerente

Ao contrário das tradições ocidentais, em que o luto muitas vezes é vívido como um processo particular e intimista, no contexto Xerente ele se torna um ato social que envolve toda a comunidade. A morte, nesse sentido, não é encarada como o fim definitivo, mas como uma transição para outro estágio de existência, em que o falecido mantém laços simbólicos com os vivos e com o território que todos se unem. Essa transição é marcada por uma série de rituais que prolongam a presença espiritual do morto no cotidiano da aldeia, garantindo que sua memória se perpetue e que sua influência continue sendo sentida (Farias, 1990).

A interligação entre luto e território é um dos aspectos mais marcantes da cultura Xerente. Para esse povo, o território não é apenas o lugar onde vive identidade, mas a própria base de sua coletiva. Assim, quando ocorre uma morte, o retorno do corpo à terra é visto como um ciclo de continuidade, em que o falecido é reintegrado à natureza e à história ancestral do grupo. Este ciclo, que conecta a vida à terra, fortalece o vínculo espiritual entre os membros da comunidade e seus antepassados, numa perspectiva em que a morte reforça a coexistência entre os mundos dos vivos e dos mortos (Cunha, 2012).

Os rituais fúnebres Xerente possuem uma estrutura complexa, envolvendo cânticos, danças e oferendas que celebram a passagem do espírito para o reino dos ancestrais. Esses rituais não são oportunidades apenas para lamentar a perda, mas para reafirmar os laços comunitários e fortalecer a identidade cultural. Durante o processo de luto, a comunidade se une, não apenas para consolar a família enlutada, mas para garantir que os ritos sejam realizados corretamente, perpetuando assim as tradições culturais que unem o grupo. Dessa forma, o luto se torna um ato de preservação cultural, ao mesmo tempo em que permite à comunidade processar a dor da perda (Maranhão, 1998).

O papel dos anciãos na condução dos rituais de luto é central na cultura Xerente. São eles que guardam o conhecimento ancestral e que conduzem os mais jovens nas práticas e ritos relacionados à morte. Os anciãos orientam o processo, garantindo que as tradições sejam seguidas e transmitindo ensinamentos que ressoam por gerações. Sua função não é apenas espiritual, mas também educativa, uma vez que esses momentos de luto são oportunidades para que os jovens aprendam sobre a importância da ancestralidade e da continuidade cultural, garantindo que os valores do grupo sejam mantidos vivos (Barroso, 2016).

Outro aspecto fundamental do luto Xerente é a longa duração do processo. Enquanto muitas culturas ocidentais tendem a encarar o luto como um período finito, os Xerente estendem seus ritos por meses ou até anos, acompanhando o ciclo das estações e os ritmos da natureza. A morte de um membro da comunidade é um acontecimento que reverbera por um longo tempo, e o luto não é algo que deva ser apressado ou superado rapidamente. Pelo contrário, é um processo contínuo de transformação e ressignificação, em que os rituais servem para manter a presença simbólica do falecido na vida da comunidade (Farias, 1990).

A morte, na cosmologia Xerente, não rompe os laços entre os vivos e os mortos, mas redefine esses vínculos. O espírito do falecido continua a ser parte integrante do cotidiano, seja através de rituais periódicos, seja por meio de narrativas e memórias que preservam sua existência. Assim, a morte é compreendida como uma transição para uma nova forma de estar no mundo, onde o indivíduo não deixa de existir, mas se transforma em um guia espiritual para a comunidade. Esse aspecto espiritual é crucial para entender como o luto entre os Xerente é vívido como um processo de continuidade e renovação (Palgi; Abramovitch, 1984).

As influências externas, no entanto, trouxeram desafios à preservação dessas tradições de luto. A presença de práticas funerárias ocidentais, especialmente aquelas ligadas às religiões cristãs, tem introduzido novas formas de lidar com a morte, o que gera uma certa tensão dentro das aldeias. Ainda que muitas dessas influências sejam absorvidas e reinterpretadas, há um esforço contínuo por parte dos Xerente em manter suas tradições vivas, vender no luto não apenas um processo de cura emocional, mas também uma forma de resistência cultural (Arbex Jr., 2005).

A vivência da morte não é um encerramento, mas uma reafirmação dos laços que unem os membros da aldeia ao seu passado, ao seu território e uns aos outros. Esse processo de luto revela contínua a profundidade com que os Xerente compreendem a vida e a morte como partes de um ciclo maior, onde o indivíduo, a comunidade e a terra estão intrinsecamente conectados (Canclini, 2015).

4. resultados e discussão

Os resultados desta análise sobre o luto na cultura Xerente revelaram um processo profundamente enraizado na relação entre o indivíduo, a comunidade e o território. O luto, para os Xerente, é muito mais que uma resposta emocional à morte; ele se configura como uma reafirmação da identidade coletiva e uma manutenção dos laços ancestrais. Isso ficou claro ao observar que, em cada fase do luto, existe uma reafirmação da continuidade entre os mundos dos vivos e dos mortos, em que a morte não é um fim, mas uma passagem que envolve tanto o falecido quanto aqueles que permanecem na comunidade . A integração entre os rituais e o território reforça essa percepção, onde o retorno do corpo à terra se conecta diretamente com a ideia de que o ciclo da vida continua, permeado por uma conexão espiritual intensa (Farias, 1990).

Os rituais de luto, embora longos e complexos, demonstram ser uma maneira eficaz de manter viva a memória dos mortos e, ao mesmo tempo, fortalecer a coesão comunitária. O envolvimento de toda a aldeia nos ritos sugere que o luto não é apenas uma vivência individual, mas uma experiência coletiva que garante a perpetuação das tradições culturais. Esse aspecto coletivo do luto, ao invés de isolar ou enlutado, o coloca em contato com sua própria história e com a história de seu povo. Esse ciclo contínuo entre memória, ritual e comunidade mostra-se como uma estratégia não apenas de enfrentamento da dor, mas de celebração da vida e da ancestralidade (Barroso, 2016).

A constatação de que o luto entre os Xerente não segue a lógica ocidental de “superação” rápida da perda é mais um resultado interessante. Pelo contrário, ele é um processo que se desenrola ao longo do tempo, em consonância com os ciclos da natureza. O luto é vívido em várias camadas, onde o tempo não é um fator limitante, mas um componente fluido que acompanha os rituais e os ciclos da vida. Essa abordagem revela uma visão de mundo onde o tempo espiritual e o tempo físico estão entrelaçados, permitindo que o luto seja vivenciado como uma prática contínua de reconexão e renovação (Maranhão, 1998).

A resistência cultural se mostrou como outro aspecto essencial nos resultados. Mesmo diante da crescente influência externa, como a introdução de práticas ocidentais e cristãs, os Xerente têm mantido suas tradições de luto vivas, adaptando-se sem perder o núcleo de suas crenças. Isso se alinha com a ideia de culturas híbridas de Canclini (2015), onde elementos externos são integrados e ressignificados, mas a essência cultural permanece inalterada. As influências externas podem ter alterado superficialmente alguns aspectos do luto Xerente, mas o cerne da prática, que envolve a ligação com os ancestrais e com o território, permanece inquebrantável (Canclini, 2015).

A centralidade do território nos rituais de luto também emergiu como um resultado de grande relevância. O território, para os Xerente, não é apenas o lugar de moradia, mas um espaço sagrado, onde os antepassados ​​estão presentes e onde os vivos continuam seu legado. O retorno do corpo à terra é um momento simbólico que reafirma a conexão entre o falecido e a comunidade, entre os vivos e os mortos. Essa ligação espiritual com o território foi constantemente reafirmada durante o processo de luto, mostrando como a cultura Xerente integra morte, vida e espaço de maneira inseparável (Cunha, 2012).

A preservação da memória também é mostrada um componente-chave. O luto, para os Xerente, não se limita ao ato de enterrar o corpo ou de realizar cerimônias, mas envolve uma série de rituais contínuos que mantêm viva a memória dos mortos. Isso inclui cânticos, narrações orais e eventos que evocam a figura do falecido. Desta forma, o luto é uma prática que reforça a presença espiritual do morto na vida diária da comunidade. A memória se torna uma forma de prolongar a existência do falecido e garantir que ele continue a fazer parte do ciclo comunitário (Arraes; Viana, 2007).

Diante da pressão da modernidade e das influências externas, os Xerente utilizam seus rituais de luto como um meio de reafirmar sua cultura e preservar suas tradições. Através do luto, eles não apenas enfrentam o dor da perda, mas reforçam os laços que os conectam ao passado e às suas raízes culturais, mostrando que, mesmo em tempos de transformação, uma essência de sua identidade cultural permanece inabalável (Arbex Jr., 2005).

5. conclusão

A conclusão deste artigo destaca a profundidade do luto na cultura Xerente, revelando como ele vai além da perda individual, para se tornar um evento comunitário e espiritual que reafirma a identidade cultural e a conexão com a ancestralidade. O luto, para os Xerente, não é simplesmente um processo de despedida, mas um ciclo contínuo que integra a vida e a morte de forma simbiótica, em que os mortos continuam a fazer parte da comunidade através de rituais, memórias e práticas coletivas.

Além disso, o artigo revelou que a resistência cultural desempenha um papel fundamental na preservação dessas práticas. Mesmo diante das influências externas e das transformações socioculturais, os Xerente têm encontrado maneiras de manter vivos seus rituais e tradições, adaptando-se sem perder a essência de suas crenças. O luto, nesse sentido, torna-se uma poderosa ferramenta de manutenção da coesão social e preservação da identidade coletiva.

O luto é vívido em um tempo e espaço que ultrapassam as fronteiras da materialidade, reforçando os laços entre o presente, o passado e o futuro. Assim, o luto na cultura Xerente é mais do que uma resposta à perda, é uma expressão contínua da vida, da resistência

REFERÊNCIAS

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ARBEX JR. José. “Terra sem povo”, crime sem castigo pouco ou nada sabemos de concreto sobre a Amazônia. In: TORRES, Maurício org. Amazônia revelada os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005.

BARROSO, Lidia Soraya Liberato. As pequenas pegadas na história dos senhores do mundo: as crianças Akwe. In: Cultura e História dos Povos Indígenas – Formação, Direitos e Conhecimento Antropológico. Organização Márcia Machado. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2016.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas – estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 2015.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios do Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 1ª ed. 2012.

FARIAS, Agenor José T. P. Fluxos sociais Xerente: organização social e dinâmica das relações entre aldeias. Tese (Mestrado em Antropologia Social) – Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.

MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é morte.4ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1998.

PALGI, Phyllis; ABRAMOVITCH, Henry. Death: a cross-cultural perspective.  Annual Review of Anthropology, n. 13, p. 385-417, 1984


[1] Mestrando em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: samuelbiologo11@gmail.com

[2] Pós-Doutora em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: neilaosorio@uft.edu.br

[3] Doutorando em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: marlonoliveirabrito@gmail.com

[4] Doutorando em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: euler.tavares@ifto.edu.br

[5] Mestre em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: leonardosbsantana@gmail.com

[6] Mestre em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: professoranubiabrito@gmail.com

[7] Mestre em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail francijanes2015@gmail.com

[8] Mestrando em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: andregoveiar@gmail.com

[9] Mestranda em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: glaucegomes@seduc.to.gov.br

[10] Mestrando em Educação. Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: lucianocoordenador26@gmail.com

[11] Especialista em Gestão Escolar. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: janamagalhaes2103@gmail.com

[12] Especialista em Docência do Ensino Superior. Faculdade Guaraí. Email: vidaamadaaline@gmail.com

[13] Especialista em Gestão Escolar. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: evanildes212@gmail.com

[14] Bacharel em Psicologia. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: joaonetosat@gmail.com

[15] Graduada em Pedagogia. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: dalaynelopesdossantos@gmail.com