PASSAGEM AO ATO EM DIREÇÃO À MORTE: IMPACTOS DA TENTATIVA DE SUICÍDIO

Passage to the act directing to the death: the impacts of the try of suicide

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7632544


Jhony Ronconi
Eloy San Carlo Maximo Sampaio


Resumo

Tentativa de suicídio é um tema complexo, que envolve a análise de vários campos do saber, cada vez mais presente no cotidiano e que faz questão a qualquer ser humano. O presente artigo é fruto de um trabalho de conclusão de curso e tem como objetivo investigar os possíveis impactos da tentativa de suicídio em adultas que tentaram tal ato. Foram realizadas entrevistas com 4 mulheres. Com base na análise do discurso e através da teoria psicanalítica, as falas das entrevistadas foram relacionadas com os conceitos psicanalíticos: pulsão, objeto a, luto e melancolia, masoquismo, acting out, inibição, sintoma e angústia. Através de seus relatos, compreendemos que há uma presença maciça com o vazio ou a destruição e que, na verdade, em tais atos, há uma busca em silenciar um profundo sofrimento psíquico, e não de fato tirar a própria vida, se identificando com o objeto que caiu fora da cena, sendo que em alguns casos, é a partir da própria falha (a não conclusão) do ato suicida que serve de pedra angular do sujeito para uma nova posição subjetiva no mundo. Concluímos que é necessário investir radicalmente nas palavras para abrir a possibilidade do sujeito simbolizar e manter-se com o mínimo de dignidade diante da vida.

Palavras-chave: Suicídio; Psicanálise; Pulsão de morte; Passagem ao ato; Linguagem.

Abstract

The attempt of suicide it is a complex subject, that involves many areas of knowledge, even more present in our daily life and makes question any human being. This present paper is the result of the term paper and have the purpose of research the possible impacts of the attempt of suicide in young adults. It was done interviews with four women. Based of the analysis of discourse and the psychoanalytic theory, the lines of the interviewees were related with the psychoanalytic concepts of : object a, grieve and melancholy, masochism, acting out, inhibition, symptom and angst. Beyond her lines, we could know that was a massive presence of emptiness or destruction that, actually, in such acts, there is a attempt to silence a profound mental suffering, not taking hers own life, identifying herself with the object that dropped outside the scene, whereas, it’s from the failure (the non-conclusion) of the suicide act that serves cornerstone for the person create subjective position in the world. We conclude that is necessary radically invest in the words to open a possibility to the subject symbolize and maintain a minimum of dignity in his life.

Keywords: Suicide; Psychoanalysis; Death drive; Passing to the act; Language.

Introdução

A história do suicídio acompanha a história da humanidade. O registro mais antigo de tal prática encontra-se no Egito Antigo, há cerca de 4000 anos, sendo também tema abordado nas mais diversas religiões (Bertolote, 2012).

Atualmente o suicídio tem ganhado os holofotes da população e da mídia com debates, documentários e séries sobre o tema. Muito dessa popularização do tema decorre do aumento progressivo, captado por estatísticas, do número de tentativas e de suicídios concretizados. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio é definido como:

Ato deliberado, intencional, de causar a morte a si mesmo, ou, em outras palavras, um ato iniciado e executado deliberadamente por uma pessoa que tem a clara noção (ou uma forte expectativa) de que dele pode resultar a morte, e cujo desfecho fatal é esperado (1998 como citado em Bertolote 2012, p. 21).

Tal conceito pode ser articulado com a psicanálise ao pensarmos a intenção de pôr fim à própria vida no sentido de conflitos de origem intrapsíquica e inconsciente que atravessam o sujeito durante a tentativa ou ato de suicídio. 

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que “cerca de um milhão de pessoas se suicidam por ano em todo o mundo” (como citado por Bertolote, 2012, p. 40). Isso significa que a cada 45 segundos um suicídio no mundo é concretizado, sendo, inclusive, maior que as “demais mortes por causas violentas juntas (homicídio, acidentes e guerras)” (De Leo, Bertolote, & Lester, 2002, como citado por Bertolote, 2012, p. 42). Pesquisas recentes demonstram um aumento em números absolutos de casos de suicídio em 10,4% no mundo em um período de doze anos (2000-2012) (O GLOBO, 2014).

Tradicionalmente, o suicídio, em números absolutos, é predominante sobre o sexo masculino (varia de cerca de 3 a 4 vezes mais que as mulheres, dependendo da faixa etária), sendo que caracteristicamente os homens utilizam métodos de maior letalidade comparada às mulheres. No entanto, “observa-se uma sensível diminuição da diferença das taxas de suicídio entre homens e mulheres a partir dos anos 1980” (Bertolote, 2012, p. 51). Ao olharmos os números referentes a faixa etária, percebemos que “as taxas de suicídio mais elevadas são encontradas entre as pessoas mais idosas – pico atual na faixa etária de 75 anos ou mais” (Bertolote, 2012, p. 52).

Ao olharmos os números relativos ao suicídio no Brasil notamos que as taxas podem ser consideradas baixas quando comparadas com outras nações (Bertolote, 2012). Dados estimam que a cada 45 minutos uma pessoa tira a própria vida no Brasil. (O TEMPO, 2016). A taxa de suicídios (33,5%) tem crescido em ritmo maior se comparado ao aumento da população brasileira (17,8%) e “com um claro gradiente que cresce do Norte para o Sul” (Bertolote, 2012, p. 61). Já entre as idades percebe-se um grande aumento para a faixa etária de 15 a 24 anos. Num período de 20 anos, a taxa global de suicídio dessa faixa etária passou de 0,4 para 4,0, ou seja, um aumento de 10 vezes” (Bertolote, 2012, p. 64). Dados apontam que, após uma tentativa de suicídio, cerca de 15% dos sujeitos tentarão novamente em um período de um ano (Marquetti & Milek, 2014).

Este artigo buscou como norteador responder o seguinte problema de pesquisa: quais os possíveis impactos da tentativa de suicídio em adultos que tentaram tal ato? Para isso, temos como objetivo geral compreender quais os impactos da tentativa de suicídio em adultos que cometeram tal ato. E como objetivos específicos investigar os motivos que os participantes atribuem como causa de sua tentativa de suicídio; examinar possíveis consequências nas relações sociais após a tentativa de suicídio; verificar possíveis consequências de ordem psicológica após a tentativa de suicídio.

Metodologia

A metodologia escolhida para o artigo, quanto a sua natureza, foi a pesquisa qualitativa, pois como compreende Gonsalves, a pesquisa qualitativa preocupa-se “com a compreensão, com a interpretação do fenômeno, considerando o significado que os outros dão às suas práticas” (2011, p. 70), estando de acordo com este artigo que busca ressaltar as variedades de relações, propriedade e condições acerca do fenômeno da tentativa de suicídio. Já quanto aos seus objetivos, o presente artigo enquadra-se como uma pesquisa do tipo ex-post-facto. Entende-se por pesquisa ex-post-facto “quando o estudo se realiza depois do fato, ou seja, o fato a ser pesquisado já ocorreu” (Costa & Costa 2011, p. 36). Portanto, sua escolha se justifica por se tratar de um estudo dos impactos de um fenômeno (tentativa de suicídio) que já ocorreu. Para a confecção deste artigo, entende-se como tentativa de suicídio “um ato autoagressivo deliberado (…) com a intenção de pôr fim à vida, cujo desfecho, porém, não é fatal”. (Bertolote, 2012, p. 24).

Foram entrevistadas quatro (4) mulheres, de forma aleatória e de conveniência, acima de dezoito (18) anos, que tenham passado por uma tentativa de suicídio (Tabela 1). Os nomes utilizados são fictícios e foram escolhidos pelas próprias entrevistadas. O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a entrevista, pois é “aplicado quando se quer atingir um número restrito de indivíduos”, além de preservar a “interação entre o pesquisador e o entrevistado” (Costa & Costa, 2011, p. 49), do tipo semiestruturada, que são realizadas “perguntas estruturadas abertas” (p. 50). Tal modelo de entrevista está adequado para o tipo de pesquisa que este artigo propõe, pois se busca um alcance limitado de sujeitos, privilegiando a interação entre ambas as partes e permitindo um maior grau de liberdade do entrevistador no decorrer da entrevista. Os participantes foram identificados de acordo com o critério acessibilidade e conveniência, estabelecido o local e o horário vantajoso e em comum acordo de ambas as partes. Somente após leitura e assinatura dos Termos de Consentimento Livre Esclarecido (Apêndice A) foi iniciada a entrevista com gravação de áudio da mesma que, posteriormente, foram transcritas, analisadas com base na Análise de Discurso e Teoria Psicanalítica para que, finalmente, seja redigido um artigo científico. A Análise de Discurso (AD) é definida como um trabalho que se preocupa “com o sentido e não com o conteúdo do texto, um sentido que não é traduzido, mas produzido” (Caregnato & Mutti, 2006, p. 680), portanto esta pesquisa adotou a Análise de Discurso (AD), por esta ter como característica buscar interpretar os sentidos verbais e não verbais do discurso do sujeito estudado. Além disso, a abordagem teórica adotada para interpretação dos dados é a Teoria Psicanalítica, por essa permitir a análise aprofundada do entrevistado, da interpretação dos diversos sentidos da linguagem do sujeito.

Este trabalho não causou nenhuma forma de consequência negativa aos participantes, resguardando sua integridade e seu anonimato durante a confecção do artigo científico. Em qualquer momento o voluntário pode obter esclarecimentos sobre todos os procedimentos utilizados na pesquisa e nas formas de divulgação dos resultados. Tem também a liberdade e o direito de recusar sua participação ou retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, sem prejuízo do atendimento usual fornecido pelos pesquisadores.

Desenvolvimento

Suicídio é um tema complexo, que envolve a análise de vários campos de saber, tais como antropologia, sociologia, filosofia, medicina, psicologia e psicanálise. Neste trabalho, especificamente, falaremos em tratar o fenômeno da tentativa suicida sob o olhar da psicanálise.

O ato suicida é compreendido pela psicanálise como uma tentativa radical de livrar-se de “uma dor psíquica insuportável” (Macedo & Werlang, 2007, p. 185), sendo a tentativa de suicídio um forte fator de propensão ao suicídio. Ao entrarmos no campo da psicanálise acerca de tal fenômeno, compreendemos a dificuldade de abordar diretamente tal assunto. Portanto, é necessário esclarecer conceitos transversais e próximos para abordá-lo, quais sejam: inibição, sintoma, angústia, passagem ao ato, objeto a, as pulsões (em especial a de morte), luto, melancolia, sadismo e masoquismo.

Memórias anteriores às tentativas de suicídio

Sigmund Freud, desde muito cedo em suas investigações sobre o psiquismo humano, já havia teorizado de que todo discurso possui um elemento ficcional, ou seja, o mestre vienense percebeu que aquilo pelo qual denominamos de “memória” possui um caráter fantástico, que encobrem situações demasiadamente traumáticas sobre o sujeito que sempre “o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une” (1908/1996 g, p. 138). Sobre a realidade Jacques Lacan afirma:

Não há nenhuma realidade pré-discursiva, pela simples razão de que o que faz coletividade, e que chamei de os homens, as mulheres e as crianças, isto não quer dizer nada como realidade pré-discursiva. Os homens, as mulheres e as crianças, não são mais do que significantes (1972-1973/1985, p. 46).

Isto significa que todo discurso efetuado por um sujeito, seja sobre si, seja sobre outro, é considerado pelo psicanalista francês como um discurso do Outro, pois há uma determinação de um Outro e da linguagem que antecipam e constituem o sujeito e o inserem na rede de significantes do social, a partir da construção de uma “ficção”, a tela da fantasia, que sustenta a função do sujeito. Portanto, toda fala deve apontar para a posição subjetiva que o sujeito se introduz diante deste Outro e é sob este prisma que direcionaremos as falas das participantes deste primeiro momento em que destacamos as marcas psíquicas anteriores as tentativas de suicídio.

Fernanda descreve-se como uma pessoa muito tímida, sempre quieta e com tendência a fazer todas suas atividades sozinha e com poucos amigos, características que foram se acentuando com o passar do tempo, chegando a interferir no curso profissionalizante de nível médio que estava fazendo. “Muito tímida – tímida demais, eu acho – e com o passar do tempo eu fui ficando mais tímida ainda, assim, mais antissocial. Muito antissocial, não consigo ter nenhum amigo. Eu converso… até os que eu tinha eu não tenho mais. Eu acho que eu evito ter amizade, eu não sei muito o porquê”. Relata sintomas de ansiedade, déficit de atenção, crise de pânico, fobia social, apatia, falta de desejo sexual. Tem o desejo de nunca ter existido e afirma não reconhecer sua imagem diante do espelho e sentir separado seu corpo de sua consciência. “As vezes eu preferia não ter existido. Eu falava pra médica: às vezes parecia que tinha outra pessoa na minha cabeça, que eu tava assim só um corpo vazio e minha cabeça era de outra, tinha alguém comandando eu fazer “faz isso, faz aquilo, faz…”, aí eu me olhava no espelho e parecia que eu não tava me vendo, não consigo me ver no espelho e parece que não é eu . . . às vezes parece que eu sinto que tô sendo controlada por uma coisa de fora ou não sou eu que tá dentro”.

Madalena relata que durante a infância foi abusada sexualmente (na faixa dos nove aos dez anos), entretanto, diz que ao mesmo tempo que sabia ser errado, consentia com o abuso, fantasiando estar namorando. “como tinha consentimento [da entrevistada] e na época levava como se fosse – eu sabia que era errado, porque não contava pra ninguém –, só que eu meio que gostava daquilo que tava acontecendo, era como se, na minha cabeça, era fantasiado como se fosse um namoradinho”. Aponta a ida dos pais para outro país quando tinha catorze anos, deixando ela e a irmã mais velha no Brasil, como origem dos seus sintomas. Ela diz: “eu não vivia com problema de saúde, não tinha nada, depois dos catorze anos, tudo que você pensar eu tenho . . . só que eu sei que todas as minhas doenças são relativas ao fundo emocional”. 

A entrevistada relata conflito e sentimento de abandono em relação aos pais “toda vez quando ela [mãe] vem, a gente entra em conflito, não sei o porquê, não sei se é mágoa que eu tenho de no fundo, entre aspas, ela ter abandonado”. Sempre ligada à demanda do Outro, Madalena diz: “sempre fiquei muito preocupada com a opinião dos outros, acho que por meus pais estarem longe, era muita gente cobrando “tá fazendo isso certo? Tá num sei o quê? Como tá as coisas?”, assim eram as tias, avós, todo mundo perguntando . . . então assim, o medo de decepcionar muita gente, de não tá suprindo aquilo que as pessoas pensavam de mim, isso me deixava muito desesperada”. Diante do traumático desamparo dos pais, inicia um relacionamento, aos dezesseis anos, que, segundo a mesma, era sua “salvação na ausência dos pais . . . ele era minha estrutura que eu tinha ao meu lado, era a única pessoa que eu sabia que eu posso contar”.

Valquíria se define como extremamente dependente afetivamente do outro “o que me incomoda em mim é o fato de eu ser muito dependente das pessoas, . . . ao fato de se eu souber que alguém não vai com a minha cara eu ficar mal, sabe, e o fato de eu tenho a impressão de que a minha vida, pra ela seguir pra frente, pra ela entrar nos eixos, eu tenho que estar me relacionando bem com alguém, relacionamento amoroso, eu queria ir pra frente sem estar me relacionando com alguém, parece que esse é o ponto principal da minha vida” associando isso à carência dos pais “eu tenho uma carência fora do normal, talvez venha da minha infância, talvez da falta da minha mãe, do meu pai”. Diz não ter muitas lembranças da infância, porém diz que teve uma infância curta, pois “minha infância foi muito rápida, porque com 12 anos já comecei a namorar”, iniciando sua sexualidade genital e casando aos 16, sendo os poucos momentos que lembra não são bons, pois a mãe e a avó a batia muito. Ela atribui isso ao fato da imaturidade da mãe em lidar com o conflito que se encontrava com os filhos do primeiro casamento do marido, decorrente da morte do pai quando a entrevistada ainda tinha 5 anos, objetificando, na filha, como símbolo de seu infortúnio. “Eu tenho meio que ela meio que me culpava pelo que tava passando com os filhos do meu pai . . . que se não fosse eu, talvez ela não tivesse passando por aquilo, aquela situação toda de ser xingada dentro da própria casa, dos filhos do meu pai tirar as coisas da casa dela”.

Marina diz que há três versões de sua infância “existem a infância que me contaram, a infância que eu sinto e a infância que eu achava que eu sentia”, sendo “ a infância que me contaram que eu era uma criança feliz; a infância que eu achava que eu era uma criança muito frígida; e a que eu sinto é que eu acho que fui uma criança perturbada”. Conta que nunca sofreu castigos físicos de seus pais e da família, entretanto demonstrações de desapontamento e o pedido para refletir sobre seus atos era recebido pela entrevistada, segundo a mesma, de “repressão psicológica”, surgindo um profundo sentimento de culpa. “A minha avó batia em um, batia em outro, o outro não, porque ela tinha um favorito, e eu não, eu não apanhava… eu queria apanhar, porque eu sofria pressão psicológica, não era pressão psicológica, era o “tô desapontada”, “pensa nos seus atos”, porque não me dão uma chinelada? Pronto. Que no dia seguinte as crianças esqueceram, eu não, eu ficava… “tenho que pensar nos meus atos…””. Esse desejo de ser agredida tem um destaque em sua vida infantil, manifestando-se de forma recorrente em sua vida. Na adolescência tem a primeira embriaguez e, desejando inconscientemente um castigo físico, é apenas advertida verbalmente. “Primeira bebedeira, quem disse, achei que ia tomar a primeira surra… única coisa que ganhei foi “você que “pagar” de adulta?”, então meu castigo foi ser tratada como adulta, com quinze anos, né, que eu sumi, que eu quis beber, meu ato rebelde, que foi quando eu aprendi a cozinhar na marra, porque não foi o castigo tipo “você vai fazer comida”, foi assim, novamente, “pensa nos seus atos”, essa coisa de ficar pensando, pensando, sempre reprimindo, né”.

No início de sua vida acadêmica, foi vítima de estupro por um colega que tinha recebido em sua própria casa. Inicialmente não contou para ninguém, contando após dois meses do ocorrido para o namorado, somente por conta de perseguições do abusador. Após o estupro passou, propositalmente, a engordar, pois em sua fantasia era uma forma de não ser desejada sexualmente, em especial pelo abusador: “depois do estupro eu comecei a comer muito, porque eu queria que ele não me desejasse mais, que ninguém me desejasse mais!”

A teoria da pulsão (Trieb) em Freud

Freud, fundador da psicanálise, entendia que as ações humanas são movidas por uma força interna nomeada por ele como Trieb (pulsão) e que, mais precisamente, está “situado na fronteira entre o mental e o somático” (1915/1996a, p.127). Isso significa que a pulsão cumpre a função de ligação e comunicação entre os sistemas psíquico e somático. Além de conceituar a pulsão, Freud, buscou caracterizá-la por possuir como caráter “um impacto constante” (1915/1996a, p. 124). Aumento e diminuição de tensão desse impacto constante da pulsão estão ligados ao surgimento de sentimentos desagradáveis e agradáveis, respectivamente (1915/1996a), sendo sua finalidade visa sempre uma satisfação (1915/1996a), entretanto, vale ressaltar, que sua satisfação é sempre parcial, nunca completa e busca-se ligar a um objeto como meio do qual “o instinto¹ [leia-se pulsão] é capaz de atingir sua finalidade [a satisfação]” (1915/1996a, p. 128), sendo que originalmente, o objeto que o sujeito utiliza para satisfazer parcialmente sua pulsão não possui uma correlação a priori.

Podemos observar tais características da pulsão em Marina, que insatisfeita com o próprio corpo e alvo de críticas da família, começa a sua, segunda à mesma, “loucura de emagrecer”, desenvolvendo sintomas de bulimia. A pulsão adquiriu seu caráter patológico, demandando tiranicamente por satisfação: “quando eu chegasse num determinado ponto eu ia parar, acho que pra toda cabeça de bulímico é assim, até hoje eu não parei (…) segunda-feira eu caí porque tava sem comer e não equilibrava, aí quando percebi que não dava pra parar sozinha, não era assim “ok, não vou mais, chega””. Foi quando percebeu que necessitava de ajuda profissional para lidar com seu sofrimento, pois “quando eu cheguei numa altura que eu não conseguia mais lidar sozinha com bulimia, estupro e o famoso ligar o jornal, só via desastre, “meu Deus, que mundo é esse, que mundo é esse…”, destruição em mim, essa destruição lá fora”. Entretanto, os profissionais de saúde que a atenderam trataram o sintoma bulímico como “secundário” ou “normal”, sendo receitado vários psicotrópicos, tais como antidepressivo, anticonvulsivante, ansiolítico-hipnótico e benzodiazepínico. Entretanto, sentia-se cada vez pior com o uso dos medicamentos. Os fármacos também adquiriram um objeto de caráter compulsivo “Tomava, ia pra aula e eu não aguentava o que os outros falavam e tomava outro, só pra suportar uma pessoa enjoada e o remédio me fazia suportar e fazia rir das coisas (…) eu queria ficar sem crises, que era muito bom e eficiente. Crise de ansiedade, crise de pânico, eu ficava geralmente animada, não animada, tipo, feliz assim, eu ficava drogada, eu virei uma viciada por quatro meses ou mais, né, se considerar o tempo que eu sabia do que que o remédio estava me causando”.

Freud sobre a utilização de substâncias, sejam elas de que origem for, que aliviam o sofrimento psíquico afirma que:

Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos (1930/1996 h, p.86).

Com este apontamento de Freud, percebemos que Marina passou também a consumir de forma compulsiva os medicamentos, chegando ao ponto de ingerir em vinte dias o medicamento calculado para dois meses. Entende-se nesse movimento uma tentativa encontrada pela via química de suportar a dor de existir.

Luto e melancolia: considerações freudianas

Buscando compreender melhor a origem da melancolia, o inventor da psicanálise comparou-a com o luto, em que “de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido” (Freud, 1914/1996b, p. 249), sendo que autor afirma que o luto é um processo de afetação normal e a melancolia, por sua vez, uma condição e um processo de maior complexidade e de disposição patológica.

No luto há uma tendência de afastamento do meio, especialmente daquelas atividades que fazem memória ao objeto perdido (Freud, 1914/1996b), além de ser um processo em que o sujeito experimenta sentimentos extremamente dolorosos. A psicanálise nos mostra que durante o luto há um desligamento das pulsões que eram destinadas ao objeto perdido – período de sofrimento – e posteriormente com “o ego fica outra vez livre e desinibido” (1914/1996b, p. 250) é possível um reinvestimento libidinal em outro (s) objeto (s), restando ao objeto anteriormente perdido sentimentos de respeito e memória (Freud, 1914/1996b).

Assim como no luto, na melancolia há uma perda de interesse pelo mundo externo, sentimentos profundos de sofrimento, entretanto difere-se por haver uma “perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição” (Freud, 1914/1996b, p. 250). Em resumo podemos dizer que no luto é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego” (Freud, 1914/1996b, p. 251). Ocorre que, psiquicamente, no luto, o sujeito sabe delimitar com boa precisão o objeto que perdeu – possui consciência daquilo que perdeu –, o melancólico, por outro lado, possui uma incapacidade nesse aspecto e, mesmo quando consegue eleger o objeto causa de seu sintoma e sofrimento, sabe apenas “quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém” (Freud, 1914/1996b, p. 251, grifo do autor).

Percebemos uma sintomatologia melancólica em Fernanda, que desde pequena sentia-se diferente das demais pessoas, desde os colegas até aos membros mais próximos da família: “Eu sempre me senti muito diferente, desde que eu tenho lembrança das coisas, desde os meus cinco anos, sempre me senti muito diferente dos meus colegas. Ah, eles eram felizes e tal, eu tava tipo fingindo que eu tava feliz com eles, eu tinha que fingir aquelas coisas, tinha que brincar, fingir, eu preferia brincar em casa”. Entende-se que sua distinção com os irmãos sempre foi marcante, pois além perceber a diferença física, de gostos e preferências. “Em tudo. Eu gosto de estudar, os dois não. Eu penso de um jeito, eles pensam de outro. Os dois são iguaizinhos, são de sexos diferentes, mas são a mesma coisa e eu já sou diferente. (…) Sou muito calada, eles não. Eles conhecem todo mundo do bairro, eu não conheço ninguém.” Tudo isso levou a um questionamento da sua própria origem em relação aos pais “eu tentei até fazer um teste de DNA pra ver se era… mas eu nunca fiz não, eu acho que são meus pais mesmo.” Sobre os pais diz que ainda mora com eles, mas não tem uma relação muito próxima e afetiva, pois não gosta de contato físico.

Na melancolia, o que ocorre é que num momento anterior havia um investimento psíquico em um determinado objeto, entretanto, há um impedimento externo, impossibilidade imposta pela realidade ou até uma recusa do próprio objeto que força uma finalização da relação com objeto retirando a libido do mesmo. Entretanto, uma vez novamente desinibido, ao invés de buscar um objeto externo “a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego”, ocorrendo “uma identificação do ego com o objeto abandonado”. A conclusão desse processo é de cunho narcisista de “uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação” (Freud, 1914/1996b, pp. 254-255, grifo do autor). Ou seja, o objeto pelo qual era uma vez direcionado amor, passou a ser recusado e foi introjetado ao próprio ego (narcisismo) e agora há a possibilidade de haver uma satisfação parcial dessas pulsões, mas dessa vez sob a forma de pulsões sádicas e de ódio direcionadas ao ego como representante do objeto. Dessa forma o sujeito “vingar-se do objeto original e torturar o ente amado através de sua doença, à qual recorrem a fim de evitar a necessidade de expressar abertamente sua hostilidade para com ele” (Freud, 1914/1996b, p. 257). Segundo o vienense, esta – a melancolia – é uma das chaves para entender o suicídio, pois é só na medida em que o sujeito é capaz de objetificar-se, ou seja, tratar-se como objeto – na identificação com o objeto uma vez amado e perdido – que abre a possibilidade de direcionar para si pulsões sádicas de grande magnitude.

O enigma da morte

O suicídio é um fenômeno genuinamente humano, que deixa marcas profundas micro e macrossociais, forçando e impulsionando filósofos, médicos, sociólogos, religiosos a refletirem sobre o assunto. Um dos grandes enigmas que a humanidade carrega durante os séculos e que sem sucesso moveu grandes intelectuais em todas as épocas a fornecer uma resposta final acerca da finitude humana. Como exemplos de grande notoriedade podemos mencionar um trabalho no fim do século XIX, acompanhando o nascimento da sociologia, de Durkheim (1897/2011) que revoluciona a forma de pensar o suicídio de sua época, atribuindo um caráter e determinação social, dividindo tal ato em três subtipos, a saber, o suicídio egoísta, altruísta e anômico. Já no século XX o filósofo existencialista franco-argelino Albert Camus, no seu árduo trabalho de retorno à filosofia clássica, afirma que “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia” (1941/2016, p. 19). É decorrente do paradigma do valor da vida que Camus irá edificar sua teoria intitulada filosofia do absurdo. Dentre os autores que buscaram compreender a questão e sem alguma pretensão de fechar a questão, Sigmund Freud mostra que no cotidiano de nossas vidas, vivemos como imortais, sem pensar em nossa morte, pois uma característica do inconsciente é não haver representação psíquica da morte. Isso significa dizer que não há nada na dimensão simbólica, lugar das palavras, por excelência, que dê conta de fechar um sentido em torno da morte e do morrer, mantendo, dessa forma, seu caráter enigmático. A nossa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade” (1916/1996c, p. 317). Isso evidencia o caráter constituinte do sujeito com a morte em que este sempre é obrigado a relacionar (Justus, 2003).

As falas das entrevistadas preservam o caráter enigmático da morte marcado no psiquismo, tal como Freud elucidou, pois Fernanda responde “eu gostaria de saber o que é a morte, por isso que eu queria ir no centro espírita pra eu saber realmente o que se transforma, o que é a alma dentro da gente, o que que é esse corpo que a gente tem, eu não consigo identificar assim. Eu queria saber como é que é o sentimento de morte . . .  Eu só queria saber o sentimento também, o que a pessoa sente quando está morrendo realmente. As pessoas falam alguma coisa, mas elas não morreram, como ela vai saber? Quando vão enterrar falam que enterram só a casca. Tá, o que que é ali, o que que os nossos pensamento, para onde vão, o que acontece com eles, queria saber pra onde que vai isso tudo. Não acaba assim, você morreu, sumiu tudo, como que a gente é feito, num sei, aí vem esse monte de coisa assim na minha cabeça.”

Madalena diz: “eu nunca parei pra pensar sobre a morte (…) nunca pensei assim “ah, a morte!” eu simplesmente morri e pronto, passou, tô em paz”. Já Valquíria relata que: “eu tenho um fascínio tão grande por morte. Quando entrei pra História, eu queria estudar a arte tumular e eu sempre vou a cemitérios e gosto de estudar arte cemiterial, arte tumular, o viver e o morrer na sociedade, isso sempre foi objeto de estudo pra mim, mas de forma distante”. Por fim, para Marina, a morte é “um limbo, o mundo que eu senti lá no hospital foi a morte. Não dá pra descrever o que eu senti lá, eu não senti a capa preta com a foice, estereótipo, mas eu senti a morte e não consigo descrever por enquanto, um dia eu vou saber descrever, mas não consigo agora”.

O masoquismo como expressão da pulsão de morte

Questionado acerca do problema econômico do masoquismo, ou seja, como as pessoas de forma geral queixam-se de sofrimentos psíquicos se, segundo a teoria psicanalítica, o aparelho mental é regido pelo princípio de prazer, Freud nos oferece como resposta que “o sofrimento e o desprazer podem não ser simplesmente advertências, mas, em realidade, objetivos” (1919/1996d, p. 177) que paralisam o princípio de prazer. Esta afirmação representa que o princípio de prazer, às últimas consequências, está inteiramente a serviço dos instintos de morte” (1919/1996d, p. 177). Freud define o masoquismo como um desejo em “ser tratado como uma criança pequena e desamparada, mas, particularmente, como uma criança travessa” (1919/1996d, p. 180). Ainda investigando sobre o masoquismo, Freud apresenta três formas de expressão do mesmo, em que são separadas apenas didaticamente: a primeira forma de masoquismo, o erógeno, é o “prazer no sofrimento” (1919/1996d, p. 179). Sua origem encontra-se na pulsão de morte, buscando a destruição, desintegração e retorno ao inorgânico. Uma vez que essa foi combatida pela libido da pulsão de vida na tentativa de neutralizá-la. O resultado desta operação é o desvio de uma parte para fora, dando origem ao sadismo, e outra parte para dentro do sujeito, originando o masoquismo erógeno (Freud, 1919/1996d). O segundo é o masoquismo feminino, que seriam fantasias em que o sujeito (de ambos os sexos) se estabelece em uma posição feminina, causando o desejo em “ser castrado, ou ser copulado, ou dar à luz um bebê . . . ou ser cegado, que o representa – com frequência deixa um traço negativo de si próprio nas fantasias” (1919/1996, p. 180). O masoquismo moral, ao contrário dos outros que dependem de um sujeito externo específico ou seu substituto, esse não precisa desta restrição, pois “o próprio sofrimento é o que importa; ser ele decretado por alguém que é indiferente não tem importância” (Freud, 1919/1996d, p. 183).

De modo geral, todas as entrevistadas possuem grande culpabilização, seguido de ações de autopunição. Podemos ver isso em Fernanda, que diz ser muito pessimista e que censura muito seus pensamentos e atos, culpando-se pelo não dito, causando ansiedade e pensamento acelerado e, por fim, mutilando-se como forma de alívio. “Eu acho que deixo juntar muita coisa na minha cabeça, aí quando junto muita coisa eu faço isso”, sendo um importante gatilho para sua auto-mutilação e tentativa de suicídio. Apesar de ter tido alguns casos amorosos (namorados), diz enjoar com facilidade das pessoas. Quanto ao nível das relações sexuais, relata sintomas de frigidez, sendo a penetração genital algo extremamente desprazeroso. Quando questionada sobre qual a diferença entre a dor do ato sexual e a dor auto infligida relata que na primeira ela está ali, totalmente presente, sendo convocada por um outro e com todo o real invadindo seu corpo, já o segundo é algo que há uma vontade consciente em provocar dor e também há um momento de um não pensar, ou seja, uma cisão entre ato e consciência. “Quando eu tô me cortando é uma coisa que eu quero fazer, certo quando eu me furei e sangrei demais, cortei até aqui, os braços, até o pé eu me furei. Ali eu não tava em mim, eu acho” (grifo nosso).

Ao todo, considera que foram duas tentativas de suicídio, pois estas chegaram a ser hospitalizada, entretanto, houveram outras tentativas em que buscava auto infligir dor com o objetivo amenizar sua ansiedade: “Ah, eu só pegava e furava. Eu queria sentir dor, eu gosto de sentir dor. . . . Às vezes “ah, tô cansada”, ia lá e pegava e tomava remédio, aí eu dormia, ficava dormindo… Cortei já algumas vezes, eu pegava, cortava… Também fazia tatuagem, furar orelha… Quando tava muito estressada eu tinha que fazer alguma coisa pra me amenizar.”

Angústia em Freud e Lacan

Freud caracteriza a angústia como um afeto de desprazer, que busca uma descarga e possui uma percepção característica do fenômeno (Freud, 1926/1996 e), além disso, a angústia é compreendida como um afeto primitivo e constituinte da estruturação psíquica do homem. Cada ser humano passa pela experiência angustiante do parto, um rompimento do seu corpo do corpo da mãe que marca psiquicamente uma separação radical de um objeto que imaginariamente supõe-se que o satisfazia plenamente (das Ding). Portanto, a angústia é um “símbolo de uma separação” (Freud, 1926/1996 e, p. 130). A angústia tem uma relação próxima com o sintoma, sendo seu plano de fundo, pois o segundo surge como uma defesa que busca evitar a aparição da primeira (Freud, 1926/1996 e).

Buscando dar continuidade ao caminho trilhado por Freud, Lacan (1962-1963/2005) também afirma que a angústia é um afeto. Além disso é um afeto que “não é recalcado”, que se “desprende, fica à deriva”, pois o que é recalcado são os significantes que o amarram” (p. 23). Esta proposição encontra consonância com os escritos freudianos, pois este afirma que a sede do afeto da angústia encontra-se no ego (Freud, 1926/1996 e). De acordo com Lacan, “a angústia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar” (1962-1963/2005, p. 51), a saber, a falta (-phi). Isso significa que o afeto da angústia aparece como um signo de que algo que se pôs no lugar da falta, onde “a falta vem a faltar” (p. 52). Lacan faz um pequeno adendo sobre a teoria freudiana sobre a origem do sintoma, demonstrando que o neurótico não recua da castração, mas que toda formação sintomática vem “fazer de sua castração o que falta ao Outro” (1962-1963/2005, p. 56). É na medida que essa falta é garantida psiquicamente que o sujeito pode operar seu gozo e seu desejo. A aparição da angústia estaria “ligada a tudo o que pode aparecer no lugar (-phi)” (1962-1963/2005, p. 57), ou seja, no lugar da falta.

Contrariando o modelo kleiniano de angústia, que afirma que essa se estabelece na alternância presença-ausência do objeto de desejo, sendo ela o sinal de desprazer diante da ausência do objeto, Lacan (1962-1963/2005) afirma que a angústia se estabelece justamente diante de uma presença maciça do objeto, impedindo, assim, do sujeito experimentar a falta e operar seu desejo, estabelecendo demandas. Para entender a famosa frase de Lacan sobre a angústia, a saber: “admite-se comumente que a angústia é sem objeto”, por outro lado “ela não é sem objeto” (1962-1963/2005, p. 101) é necessário entender a relação entre sujeito-objeto. O objeto a é a marca radical da falta no ser humano, pois é sempre falho, é um objeto que nunca completa um desejo, mas serve de causa para o desejo. O sentido desta frase está no fato de que a angústia opera justamente nessa relação fundamental sujeito-objeto. Esse objeto a, na realidade, não é objeto da angústia, mas é na medida em que o objeto invade o sujeito em um momento em que não consegue exercer sua função, de manter uma falta fundamental para o surgimento do desejo, mas no lugar da falta (-phi). É nesse momento que a angústia se manifesta como sinal desta relação.

Também é perceptível um mecanismo masoquista de autopunição nas tentativas de suicídio de Madalena, pois sempre diante de alguma dificuldade financeira Madalena tem ideações suicidas “sempre quando eu tô num agravo financeiro é quando eu tenho a vontade de sumir e de tirar a minha vida, porque eu falo “eu não posso decepcionar a minha mãe de novo, eu não posso decepcionar as pessoas que botaram expectativa em cima de mim novamente””. A situação de agravo financeiro é, para Madalena, um momento em que esta falta fundamental para a operação do desejo vem a faltar e, no lugar da falta, está a presença angustiante do dinheiro, substituto de uma das forma de objeto a, o objeto anal. Deste modo a angústia evidencia e manifesta-se como signo da função da falta. Essa é dividida em duas formas: a falta simbólica corresponde a um não preenchimento do símbolo no real que “presentifica o que não está presente” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 147); e a falta no real é nomeada como privação.

Acting out e passagem ao ato

Dois conceitos psicanalíticos que parecem confundir-se é o acting out e a passagem ao ato. Na verdade, são conceitos opostos, mas ambos são reações diante da presença do objeto e da angústia (Lacan, 1962-1963/2005). O primeiro refere-se a “alguma coisa que se mostra na conduta do sujeito”, em que toda sua “ênfase de demonstrativa” é dirigida “para o Outro” (p. 137). A segunda estrutura-se como uma posição infantil de “confronto do desejo com a lei” e “identificação absoluta do sujeito com o [objeto] a ao qual ele se reduz” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 125), em que se precipita deixando-se cair de sua cena sintomática do sujeito, com o objetivo de escapar-se dela (Lacan, 1962-1963/2005), como podemos perceber em Fernanda, no relato de suas duas tentativas de suicídio.

Sua primeira tentativa foi aos 18 anos, após passagens no hospital por falta de ar, apresentou sintomas de riso eufórico, choro desmedido, tremedeira e inchaço, tomando todos os remédios que tinham sido receitados. Questionada sobre a motivação desta tentativa, afirma ser decorrente do excesso de compromissos que a levou a um sentimento de esgotamento “eu tava fazendo muita coisa ao mesmo tempo, acho que não tava aguentando mais… eu saía de casa, tipo, seis da manhã e chegava em casa quase onze da noite, eu tava muito cansada, estava em muitos lugares o dia inteiro, aí cheguei, não sei o que aconteceu e fiz isso. . . . Na hora que eu me furei parecia que eu não estava dentro de mim, então eu me furei” (grifo nosso). A segunda tentativa é dividida em dois momentos: na madrugada anterior Fernanda se furou com agulha diversas vezes até ser injetada no braço, deixando o sangue escorrer pelo corpo, chegando a ir ao médico. Quando retornou para casa foi à rua com canivete e remédios. Chegando em uma praça tomou vinte comprimidos e cortou os pulsos. “Aí minha irmã tava dormindo no mesmo quarto que eu, aí eu acordei de madrugada assim, peguei a agulha e fui furando, só que deixei ela injetada aqui assim [demonstrou], aí ficou saindo sangue e o sangue coagulando, aí eu me sujei toda de sangue, fui pro hospital, só que eles disseram que não tinha o que fazer nada porque eu só furei e tal, aí eu tinha que ir no médico. Aí cheguei em casa, passou umas horas, aí eu falei “ah, mãe, vou ali na rua e tal”, aí eu fui na rua, só que levei o canivete e os remédios. Aí eu fui, cheguei na pracinha, tomei os remédios, acho que tomei era uns vinte comprimidos, peguei o canivete e “tcha, tcha” [demonstrando cortar os pulsos] e eu tava nem sentindo porque parece que eu tava desligada” (grifo nosso). Dessa forma, constatamos que no fenômeno da passagem ao ato há uma íntima relação com a angústia, pois há uma identificação com o objeto como resto da operação do sujeito com o Outro. O acting out, por outro lado, está relacionado com a evitação da angústia (Lacan, 1962-1963/2005).

Outro ponto a ser destacado é que as passagens ao ato estão mais correlacionadas com os suicídios e as tentativas de suicídio (Lacan, 1962-1963/2005), visto que nestes casos há uma tentativa (às vezes definitiva) de evadir-se da cena do Outro e destruir o objeto causa de angústia, como percebemos em Madalena que afirma como motivação sua tentativa de suicídio que “é a tentativa de esquivar dos problemas que eu tinha, de silenciar, de parar com aqueles problemas que eu tava tendo . . . ao invés de procurar uma solução, eu me sentia incapaz de solucionar, então eu procurava sanar o problema silenciando tudo de uma vez sem dar satisfação pra alguém do porquê o problema tá acontecendo”.

A função da angústia nos processos sádico e masoquista

Valquíria trabalhou em uma empresa de telemarketing e passou a relacionar-se com um funcionário, entretanto, o mesmo estava noivo e sua parceira também passou a trabalhar na mesma empresa. Momento extremamente doloroso para Valquíria que, mesmo se submetendo ao relacionamento, tinha dificuldade em aceitar tal situação, pois conta que “depois que eu descobri eu ainda fiquei seis meses com ele, tentando me convencer que era mentira, de que ele tava falando a verdade”. Com isso, passou a desenvolver sintomas de anorexia durante esses seis meses, perdendo a metade do peso. Tal sintoma aparece como uma forma de autopunição inconsciente devido ao fato de identificar-se com a figura de adúltera. “Eu me olhava no espelho [antes de emagrecer] e não me achava gorda nem nada, nunca tive problema com o corpo assim, mas eu achava na minha cabeça que comer era um prazer que eu não merecia ter, porque eu aceitava àquela vida de ser “a outra”, então eu acabava me punindo ficando sem comer, na minha cabeça comer era um prazer que não era pra mim, então fiquei seis meses sem comer”, sendo seu único alimento jujuba e chocolate como prevenção a qualquer princípio de desmaio. Após descobrir que seu companheiro havia levado uma outra mulher (uma terceira mulher) para sua casa, decide dar um ponto final ao relacionamento, mas também à sua vida. Vai ao banheiro da empresa e toma duas caixas de medicamentos psicotrópicos.

Interessante notar que, conscientemente, Valquíria não pensou em tirar a própria vida: “eu falava pro médico que eu queria ir ao banheiro e ele me falava assim “você só vai depois que me contar porque que fez isso” e eu falei “que que eu fiz?”, aí que a primeira vez que eu ouvi que eu tentei suicídio, aí que meio que tomei um susto, porque na minha cabeça não era me matar, era matar a dor, mas a dor tava em mim, como eu ia matar a dor?”. Lacan nos mostra que a angústia no masoquista aparece como resposta “à queda essencial do sujeito em sua miséria suprema” (1962-1963/2005, p. 182), na sua fantasia e identificação com resto do objeto é buscado no Outro a resposta.

Já no sádico, a angústia no Outro aparece como precondição para sua operação para mascarar a própria angústia (LACAN, 1962-1963/2005). Os conceitos são separados apenas didaticamente, pois cada sujeito carrega em si tanto pulsões sádicas, quanto pulsões masoquistas. Nos atos de autoflagelação e tentativa de suicídio vemos como o sujeito se representa masoquistamente como mero objeto do Outro.

Sua tentativa de suicídio serviu como um ponto fundamental para a superação de sua dependência extrema do então parceiro amoroso, pois de acordo com a mesma “era tudo verdade, ele levou outra mulher na minha casa e eu tinha que sustentar aquilo que eu tinha decidido, era a única coisa que eu queria, era sustentar a minha decisão de colocar ponto final naquilo e eu achei que a pior dor [que culminou na tentativa de suicídio] já tinha passado, que era aquela do ponto final, que o resto eu ia superar e foi o que aconteceu, superei . . . demorou uns três, quatro meses pra eu conseguir me ordenar. Fiquei com muita raiva dele, transformei aquele amor em ódio”. 

Produções psicanalíticas atuais

Na atualidade há uma considerável produção clínica e acadêmica psicanalítica acerca da tentativa de suicídio e ato suicida. O que está de acordo com Freud que diz que “transforma-se em trauma psíquico toda impressão que o sistema nervoso tem dificuldade em abolir por meio de pensamento associativo ou da reação motora” (1893/1996 f, p. 174). Posteriormente, Freud complementa essa teoria com o conceito da fantasia, ou seja, que o trauma não necessariamente ocorre na realidade, mas podendo ser vivenciada imaginariamente (teoria da fantasia).

Após fazer um percurso na teoria psicanalítica, de Freud a Lacan, sobre os conceitos de melancolia e ato e aquele sobre passagem ao ato e acting out, Brunhari (2015) diz que o ato suicida é da ordem de uma dor insuportável e irrepresentável e que é em sua falha que a escuta psicanalítica pode intervir. O autor vai na contramão de propostas que afirmam uma racionalidade e vulnerabilidade do ato suicida ao expressar que “embora a pessoa saiba da consequência de seu ato (a própria morte), não sabe o que é a morte. (…) Desde então se conclui que o suicida não quer morrer” (Brunhari & Darriba 2010, p. 34). Estando de acordo com a formulação freudiana sobre o não registro da morte no psiquismo humano. De modo geral, todas as entrevistadas afirmam que no momento da tentativa de suicídio há um não pensar, uma total dissociação entre consciência e ato. 

Fernanda conta que o momento antecedente da tentativa de suicídio é acompanhado por um pensamento acelerado e desorganizado, com a sensação de falta de controle de si: “Minha cabeça não parava, parecia que era um turbilhão assim. Muita coisa ao mesmo tempo vinha, eu via muita coisa de sangue, sangue, sangue na minha cabeça. Até quando eu fui me furar, antes de tentar cortar eu tava acho que em “transe”. Eu não percebi que eu tava saindo da cama, fui, peguei as agulhas . . . as vezes eu me via eu me ferindo, me cortando, via um monte de coisa morta… . . . tipo, eu tava me traindo, mas eu achava que era coisa da minha cabeça que eu tava me traindo. Às vezes eu nem sabia que eu estava fazendo isso. Aí quando eu via o sangue escorrendo eu gostava daquilo, ficava olhando assim” (grifo nosso).

Durante a tentativa de suicídio (a ingestão de medicamento, em específico), Fernanda dizia que pensava em acabar com os pensamentos, relaxar e dormir. Tal finalidade é algo almejado rotineiramente, pois a mesma afirma: “eu prefiro ficar dormindo do que acordada, aí eu fico calma, não escuto nada na minha cabeça, minha cabeça fica tranquila”. O que confirma o conceito de pulsão de morte, cunhada por Freud, como uma tendência inerente a todo ser humano de retornar ao estado inorgânico, de silenciar e afastar a presença maciça do Real no corpo (Freud, 1920/1996 i).

O psicanalista José Nazar (2009), a partir de sua experiência clínica, afirma que o ato suicida revela o drama humano em suas últimas consequências, além de “apontar para uma crueldade de uma ruptura” (p.60). O autor prefere utilizar o termo “vidas interrompidas” no lugar de suicídio, por permitir uma abordagem psicanalítica “a partir de uma responsabilidade do próprio sujeito no ato de causar a própria morte” (p. 62). Aquele que provoca a própria morte busca com esse ato dirigir uma agressividade dirigida ao outro, em especial dirigida à função paterna, matando “a si mesmo para não matar a outrem” (Nazar, 2009, p. 68) e de toda história herdada que o constituiu até ali, “gozando numa posição de vítima da história, vítima dos infortúnios que recebeu e que não conseguiu reverter num bom sentido” (p. 63) buscando acusar o outro de sua desgraça.

Apoiando-se na teoria psicanalítica, Nazar (2009) define o suicídio como “passagem ao ato em direção à morte” (p. 66), de “uma necessidade de ultrapassar um estado de angústia, de angústia de morte” (p. 67), ratificando e atualizando a submissão de todo organismo diante da poderosa pulsão de morte.

Darlene Angelo retoma a reflexão psicanalítica afirmando que o ato suicida “interroga profunda e radicalmente a condição humana, uma vez que diz respeito à relação do sujeito ao desejo, ao discurso inconsciente, denotando a extrema precariedade desta condição” (2009, p. 131), ou seja, o suicídio remete ao nascimento, inserção e constituição do sujeito no campo da fala e da linguagem. Para a autora, pensar sobre o suicídio a partir da psicanálise, dois conceitos são fundamentais, a saber, identificação e agressividade (Angelo, 2009). O infans², para que se humanize e se insira na civilização, é necessário uma alienação primordial, ou seja, é necessário que se³ faça de objeto de desejo do Outro – Outro da linguagem – para que deste Outro lhe dê um lugar e uma sustentação psíquica, o desejo da mãe, entretanto, a psicanalista afirma ser necessário manter certo distanciamento do Outro, pois poderá ser uma:

Fonte inesgotável de uma série de perturbações das quais o sujeito muitas vezes só se livre ao realizar um ato que, na realidade, na sua relação com o seu semelhante ou consigo mesmo, seja simbólico dessa separação que não pode se dar de outra forma. Neste ponto é que se inscrevem tanto as passagens ao ato suicida, em que o sujeito “mata” esse objeto em si mesmo (ANGELO, 2009, p. 132, grifo do autor).

Isso diz respeito ao jogo simbólico infantil do Fort-da, em que o lúdico dá lugar ao sujeito encenar com o objeto causa de desejo sua presença-ausência, vida-morte. No entanto, com ausência de recursos simbólicos que dê amparo ao sujeito, ele se identifica com o objeto que é lançado para fora da cena (Angelo, 2009).

No dia anterior à tentativa de suicídio, Marina participou do aniversário de um parente, em que, sob o efeito do remédio, comportando-se de forma vexatória. No dia seguinte, acorda com um profundo sentimento de culpa, de abandono e uma forte ideação suicida “falei [pra si mesma] “que merda de filha eu sou”, foi tipo uma coisa assim… parece que foi uma decisão assim, acordei, sentei na cama e falei “preciso acabar com essa vida, mas não melhorar ela, acabar com essa vida””. Logo após acordar a mãe diz que vai à missa e que era para Marina ir em um horário depois, mas a mesma recebe essa mensagem de forma invertida como uma acusação “só que pra mim ela tava assim, não queria mais que eu fosse filha dela, eu tinha sido uma enorme decepção”. Durante o caminho até a missa (segundo a entrevistada de cinco minutos), sua ideação suicida ganha um planejamento mais elaborado.

Buscando barrar tal impulso mortífero, tentou dar dicas ao namorado durante a missa: “eu tentava com meu lado racional dar dicas pro meu namorado do lado, porque a arma que eu usei foi do meu sogro, que eu tava tentando me salvar ao mesmo tempo fazendo perguntas idiotas pro meu namorado, eu perguntava assim “a arma continua no mesmo lugar?”, eu sabia onde tava”. Após a missa, foi a casa do namorado, arranjando uma desculpa para o mesmo e seu irmão saírem de casa. Depois de saírem, encontra a arma no quarto dos sogros e delimitando na barriga o local onde faria o disparo, pois queria que fosse “rápido, doloroso e vai fazer sangrar e sentir dor. Vai me dar bastante tempo pra pensar… e sentir dor… e pensar…”. Entretanto, não foi o que conseguiu obter, pois diz que: “quando apertei o gatilho eu não senti nada, foi só uma parada que atravessou e eu falei “ok, cadê a dor?” . . . e eu fiquei muito “puta”, porque aonde tava o alívio da dor que eu tava achando que ia vir com aquilo tudo?”. Marina foi levada rapidamente ao hospital e seria submetida a uma cirurgia de urgência e suspeitando de sua morte, decide fazer sua confissão para sua mãe: “senti que eu tava perdendo muito sangue, eu senti que minha pressão tava baixa, senti sede, frio e todas as coisas da hemorragia interna, eu tava na maca e falei as coisas que eu tava escondendo dela, né, falei a questão do estupro, . . . que eu já tinha comido brownie de maconha”. Entretanto, frustra-se ao perceber a tristeza dos pais. “voltou aquele momento, eu: “olha, que saco” – olhei pras minhas mãos – “olha a porra da decepção que você deu”. Entende-se que Marina criou um momento para confessar sobre os acontecimentos do qual sentia culpa, na tentativa de salvar o Outro. “eu queria livrar a minha família e o mundo de mim, eu me achava uma pessoa horrível . . . naquele momento eu tava muito, aquele sentimento de querer livrar todo mundo do peso já tava há muito tempo, mas o que eu nunca tinha ficado tão assim, tão enraizado”.

Marina aponta como motivo de sua tentativa de suicídio o entorpecimento por psicotrópicos, que a fez perder seu controle mental, além disso elenca o estupro e a bulimia “talvez uma fatiazinha do estupro, uma enorme fatia da bulimia, porque tava frustrada, porque eu não conseguia lidar com ela, muito frustrada…”. Entretanto, percebemos que o sintoma bulímico é decorrente de seu aumento de peso, que, por sua vez, estava associado ao estupro.

Brunhari (2017) afirma que a tentativa de suicídio é uma das modalidades de passagem ao ato, pois conserva seu efeito de testemunha e ruptura com algo pelo qual o sujeito passava e seu recurso simbólico fora desarticulado. Entretanto, apesar do ato suicida objetivar a morte, ele falha, e esta falha pode ser apreendida como um dizer, ou um ato concreto direcionado ao Outro, estabelecendo uma função de corte, em que é marcado um antes e um depois do ato sem a possibilidade de voltar atrás. Podemos observar o efeito da falha e do corte provocado pelo ato suicida nas participantes. De modo geral todas as participantes conservam, em alguma medida, um empuxo da pulsão de morte para a passagem ao ato suicida.

Para Fernanda a tentativa de suicídio exerceu função de maior atenção dos pais, em especial na mãe, entretanto ainda seu isolamento recrudesceu. Uma das formas de barrar com seu empuxo à morte é formar-se em um curso técnico na área da saúde, podendo ser entendido como uma forma de salvar e manter, de alguma forma, ativa a função do Outro, para dar o mínimo de sustentação simbólica.

Para Madalena, o trauma do ato suicida a fez compreender as consequências para terceiros, buscando apoio nos amigos, em especial do namorado e na prática religiosa.

Em Valquíria, a tentativa de suicídio serviu como um ato paradigmático, marcando claramente a morte subjetiva do outro, encarnado no então parceiro amoroso, naquele momento, em que somente a partir disso, pôde dar novo rumo à sua vida terminando o relacionamento e retornando a se alimentar normalmente.

A tentativa de suicídio em Marina propiciou o momento em que pôde fazer sua confissão para a mãe de sua transgressão e abuso sofrido que carregava com intenso sentimento de culpa, buscando apoio nos pais, familiares e namorado.

Considerações finais

Em decorrência de tais dados alarmantes sobre o suicídio no Brasil e no mundo, entende-se a importância de pessoas envolvidas em refletir, pesquisar e desenvolver políticas públicas de tratem do tema com a dignidade e qualidade necessária para com o problema do suicídio, que nos impõe um enigma, uma questão sobre a própria vida, e o desejo de viver.

Entendemos que este artigo respondeu parcialmente o problema proposto, pois o tema é de grande complexidade, impossível de concluí-lo em um pequeno estudo e em uma pequena amostra. Buscamos ampliar sua compreensão, objetivando chamar atenção da comunidade científica sobre o tema. Além de almejar inserir-se e contribuir no estudo científico acerca do suicídio e incentivar o desenvolvimento da Psicologia e da Psicanálise enquanto ciência e em sua prática.

A psicanálise é um campo do saber que busca teorizar sobre os efeitos e a articulação da linguagem na singularidade de cada sujeito, portanto, os dados e a interpretação do discurso inconsciente que se apresenta em cada caso não podem ser generalizados. Por isso, não serão esgotadas todas as riquezas de aspectos que os casos trazem e que foram estudados a partir dos conceitos, mas podemos compreender o que há de estrutural no ato suicida e as mudanças provocadas. Tendo em conta isso, a relevância deste artigo reside na importância que é dada a linguagem, e todo cuidado e sensibilidade que se deve ter com ela, em especial em no suicídio, podendo fornecer importantes indícios da cena inconsciente, além de ser a via por excelência de qualquer possibilidade de ressignificação e ressubjetivação da dor de existir.

A psicanálise aposta no poder e na função das palavras, dando lugar ao que há de incompreensível e demasiadamente humano, a saber, da manifestação do sujeito do inconsciente que habita a todos nós, abrindo a possibilidade de alguma intervenção naquilo em que se sofre. Investir nas palavras é sempre um bom negócio.

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Notas

¹Leia-se pulsão pois a tradução das Obras Completas de Sigmund Freud pela Imago do inglês para o português utilizou o termo “instinto”, entretanto, atualmente os psicanalistas preferem adotam o termo “pulsão” como o termo que mais se aproximaria ao termo alemão trieb, utilizado para diferenciar do termo instinkt, trabalhado originalmente por Freud.

²O infans é aquele que ainda não fala, não anda e várias funções orgânicas ainda estão pouco organizadas, mas já é falado pelo Outro, sendo este que o responsável de inseri-lo na linguagem e na cadeia significante. Este processo é a sua alienação fundamental e constituinte para a posição de sujeito desejante.

³A partícula “se”, neste caso, trata-se da submissão do infans ao circuito pulsional do Outro, mas num sentido ativo em que a criança busca se oferecer como objeto de desejo, para que, dessa forma, o circuito pulsional se inscreva no seu lado também, fundamental para a constituição de seu psiquismo.

Tabela 1. Dados gerais dos participantes (n=4)

Tabelas

Participantes*Idade (anos)Método da última tentativaNúmero de tentativas anteriores/método
Fernanda26Corte (pulsos) e ingestão de remédiosUma (ingestão de remédios)
Madalena28Ingestão de medicamentosCinco (4 ingestão de remédios e 1 corte dos pulsos)
Valquíria41Ingestão de medicamentosNenhuma
Marina20Disparo de arma de fogoNenhuma

Nota. Os nomes atribuídos às participantes são fictícios.