PARA ALÉM DOS MORTOS: A REAL DIMENSÃO DA VIOLÊNCIA LETAL E NÃO LETAL NO BRASIL (2015-2024)

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202505311322


Marcos José de Moraes Affonso Júnior
Diogenes José Gusmão Coutinho


RESUMO

Este estudo analisa comparativamente os dados de homicídios dolosos e tentativas de homicídio no Brasil entre 2015 e 2024, evidenciando a real dimensão da violência letal e não letal no país. A pesquisa revela que, para cada homicídio consumado, há praticamente uma tentativa frustrada, totalizando 858.952 vítimas no período analisado (435.574 homicídios dolosos e 423.378 tentativas). Os resultados demonstram uma redução significativa dos homicídios após 2017, acompanhada de estabilidade nas tentativas, que passaram a superar os homicídios consumados nos anos mais recentes. Conclui-se que, embora a letalidade tenha diminuído, a violência potencialmente letal permanece elevada, evidenciando a necessidade de superar a tradicional invisibilidade das tentativas de homicídio nas estatísticas oficiais, políticas públicas e debates acadêmicos. O estudo propõe uma abordagem mais abrangente e integrada sobre a violência no Brasil, ressaltando a importância de sistemas padronizados de registro, políticas públicas intersetoriais e pesquisas interdisciplinares para o enfrentamento efetivo desse fenômeno.

Palavras-Chave: Violência letal. Tentativa de homicídio. Segurança pública. Brasil. Políticas públicas.

ABSTRACT

This study comparatively analyzes data on intentional homicides and attempted homicides in Brazil between 2015 and 2024, highlighting the real dimension of lethal and non-lethal violence in the country. The research reveals that for each consummated homicide, there is practically one frustrated attempt, totaling 858,952 victims in the analyzed period (435,574 intentional homicides and 423,378 attempted homicides). The results demonstrate a significant reduction in homicides after 2017, accompanied by stability in attempted homicides, which have surpassed consummated homicides in recent years. The conclusion indicates that although lethality has decreased, potentially lethal violence remains high, evidencing the need to overcome the traditional invisibility of attempted homicides in official statistics, public policies, and academic debates. The study proposes a more comprehensive and integrated approach to violence in Brazil, emphasizing the importance of standardized recording systems, intersectoral public policies, and interdisciplinary research for effectively addressing this phenomenon.

Keywords: Lethal violence. Attempted homicide. Public security. Brazil. Public policies.

1. INTRODUÇÃO

A violência letal, especialmente os homicídios, constitui um dos maiores desafios enfrentados pela sociedade brasileira nas últimas décadas (Waiselfisz, 2015; Cerqueira et al., 2023). O problema atingiu proporções inimagináveis para um país sem guerras e internacionalmente conhecido como propagador da paz. Tradicionalmente, o debate público sobre segurança tem se intensificado, e a percepção do risco e da falta de segurança passou a fazer parte do cotidiano dos brasileiros, tornando a segurança pública a principal preocupação nacional. De acordo com pesquisa Genial/Quest, 29% dos entrevistados apontaram a violência e a criminalidade como o maior problema do país, superando questões sociais e o desemprego.

O relatório “What Worries the World”, de março de 2025, reforça esse cenário ao indicar que a preocupação dos brasileiros com segurança pública e inflação está acima da média mundial, sendo que 43% dos entrevistados citaram o crime e a violência como principal temor (Ipsos, 2025). Apesar disso, a formulação de políticas de segurança e a cobertura midiática continuam concentradas nos números de homicídios consumados, frequentemente utilizados como principal indicador da gravidade da violência no Brasil (Cerqueira et al., 2023). No entanto, essa ênfase exclusiva nas mortes pode ocultar uma realidade ainda mais complexa e alarmante: o elevado número de tentativas de homicídio, que, embora não resultem em morte, representam episódios de extrema gravidade e risco à vida.

Para ilustrar a real dimensão da violência letal e não letal no Brasil, dados da Base de Dados e Notas Metodológicas dos Gestores Estaduais – Sinesp VDE indicam que, entre 2015 e 2024, foram registradas 435.574 vítimas de homicídios dolosos e 423.378 vítimas de tentativa de homicídio no país. Esses números revelam que, para cada homicídio consumado, há praticamente uma tentativa frustrada, evidenciando que o universo de vítimas da violência é ainda mais amplo do que normalmente divulgado (Sinesp VDE, 2025).

Apesar da gravidade, a tentativa de homicídio frequentemente fica à margem das análises sobre o padrão de violência no Brasil. Trata-se de um crime que, assim como o homicídio consumado, é julgado pelo Tribunal do Júri, justamente por envolver a intenção clara de matar, sendo que a não consumação do resultado decorre apenas de circunstâncias alheias à vontade do autor. Ou seja, a violência efetivamente ocorreu; a morte, por fatores externos, não.

Se o objetivo é demonstrar o grau de pacificidade ou violência de uma sociedade, é imprescindível analisar com responsabilidade e transparência tanto os homicídios consumados quanto as tentativas. Entre 2015 e 2024, somando-se homicídios dolosos e tentativas de homicídio, o Brasil contabilizou impressionantes 858.952 vítimas — um verdadeiro flagelo social, considerando apenas dois delitos previstos no Código Penal brasileiro em um intervalo de nove anos.

Esse cenário suscita questionamentos relevantes. Por exemplo, frequentemente se afirma que o Brasil é campeão mundial em encarceramento. No entanto, ao confrontar os quase 900 mil casos de homicídio e tentativa de homicídio no período analisado com os dados do sistema penitenciário nacional — segundo o RELIPEN da Secretaria Nacional de Políticas Penais, são 670.265 pessoas presas em estabelecimentos físicos, considerando os regimes fechado, semiaberto e aberto, sem contar aqueles em regime domiciliar com ou sem tornozeleira eletrônica —, percebe-se uma discrepância significativa entre o volume de crimes graves e o número de pessoas efetivamente encarceradas.

Curiosamente, mesmo com o Código Penal brasileiro contando com 361 artigos e inúmeros parágrafos, a população carcerária não reflete a magnitude dos crimes violentos registrados, o que evidencia desafios tanto na repressão quanto na prevenção da violência letal e não letal no país.

Segundo o Dr. Bruno Amorim Carpes, Promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, autor do livro “O MITO DO ENCARCERAMENTO EM MASSA”, afirma na página 43, do referido livro o seguinte:

A afirmação de que “se prende demais” sempre acompanhada do dito “punitivismo” penal, nunca teve tão dissociado da realidade. Afinal, 50,67% das penas no Brasil comportam transação penal. 24,10% comportam suspensão condicional do processo, outras 3,42% admitem a substituição por penas privativas de direitos. Ou seja, 78,19% sequer possibilitam que o juiz estipule pena privativa de liberdade em meio aberto. Por fim, apenas 2,67% (28 intervalos das penas) impõem que o juiz aplique o regime inicialmente fechado. (Carpes, Bruno Amorim, 2021, pág. 43).

A sociedade costuma tomar como parâmetro da violência as mortes intencionais ocorridas, mas, ao analisar outros dados, percebe-se que as tentativas de homicídio não recebem a mesma atenção, apesar de sua gravidade. Entre 2015 e 2024, o Brasil manteve-se entre os países com maiores taxas de homicídio do mundo, segundo organismos nacionais e internacionais (ONU, 2023; Cerqueira et al., 2023). Contudo, pouco se discute sobre as tentativas de homicídio, que, em muitos casos, só não resultam em óbito devido a fatores alheios à vontade do agressor, como a rapidez no atendimento médico ou a intervenção de terceiros (Waiselfisz, 2015). A ausência de visibilidade dessas ocorrências nas estatísticas oficiais e no debate público contribui para uma subestimação da real dimensão da violência letal e não letal no país (FBSP, 2023).

A tentativa de homicídio está prevista no artigo 14, inciso II e parágrafo único, do Código Penal brasileiro, que estabelece ser considerado tentado o crime cuja execução é iniciada, mas não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente (Brasil, 1940). Ou seja, a violência grave ocorre, deixando traumas e lesões na vítima, e a morte só não acontece por fatores externos. Além de distorcer a percepção social do problema, a desconsideração das tentativas de homicídio pode comprometer a elaboração de políticas públicas eficazes, ao limitar o entendimento sobre o perfil e a dinâmica dos crimes violentos (Cerqueira et al., 2023). Ademais, as vítimas sobreviventes carregam marcas físicas e psicológicas profundas, demandando atenção do sistema de saúde e assistência social, aspectos frequentemente negligenciados nas análises tradicionais (Minayo, 2021).

Diante desse cenário, este estudo propõe-se a analisar, de forma comparativa, os números de homicídios consumados e tentativas de homicídio no Brasil entre 2015 e 2024, buscando evidenciar a real magnitude da violência e discutir as implicações dessa subestimação para a sociedade e para as políticas de segurança pública. Ao ampliar o olhar para além dos mortos, pretende-se contribuir para um debate mais honesto, abrangente e fundamentado sobre a violência no Brasil.

2 REVISÃO DE LITERATURA

A compreensão aprofundada da violência letal e não letal no Brasil exige uma sólida base teórica e empírica, que permita contextualizar o fenômeno, identificar seus determinantes e analisar suas consequências. Esta revisão de literatura busca estabelecer os conceitos-chave e explorar o panorama histórico, os fatores associados e os impactos sociais e institucionais da violência no país.

2.1 Conceitos-chave

A compreensão dos conceitos de homicídio doloso e tentativa de homicídio é fundamental para o estudo da violência letal e não letal no Brasil. O homicídio doloso é definido pelo artigo 121 do Código Penal Brasileiro como o ato de “matar alguém”, sendo caracterizado pela intenção do agente em provocar a morte da vítima (Brasil, 1940). Trata-se de um dos crimes mais graves do ordenamento jurídico brasileiro, refletindo diretamente nos indicadores de segurança pública e na percepção social sobre a violência.

Por sua vez, a tentativa está prevista no artigo 14, inciso II, do mesmo Código, que dispõe: “Diz-se o crime: II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente” (Brasil, 1940). Ou seja, a tentativa de homicídio ocorre quando o agente manifesta a intenção de matar e dá início à execução do crime, mas não alcança o resultado morte por fatores externos, como a intervenção de terceiros ou o socorro médico rápido. Apesar de não resultar em óbito, a tentativa de homicídio é considerada de extrema gravidade, pois representa risco concreto à vida e pode deixar sequelas físicas e psicológicas profundas nas vítimas (Minayo, 2021).

Ambos os delitos – homicídio consumado e tentativa de homicídio – são julgados pelo Tribunal do Júri, o que evidencia o reconhecimento institucional da gravidade dessas condutas. No entanto, enquanto o homicídio consumado é amplamente utilizado como principal indicador da violência letal, a tentativa de homicídio costuma receber menos atenção em estudos, estatísticas e políticas públicas (Cerqueira et al., 2023).

Além disso, é importante distinguir entre violência letal e violência não letal. A violência letal refere-se aos crimes que resultam em morte, como o homicídio doloso, enquanto a violência não letal engloba condutas que atentam gravemente contra a vida, mas não produzem o resultado morte, como as tentativas de homicídio e lesões corporais graves (Minayo, 2021). Essa distinção é essencial para uma análise mais abrangente da segurança pública, pois revela que o universo de vítimas da violência é ainda maior do que os números de mortes sugerem.

Portanto, compreender esses conceitos e suas implicações jurídicas e sociais é o primeiro passo para ampliar o debate sobre a real dimensão da violência no Brasil, superando a visão restrita que se limita apenas aos casos fatais.

2.2 Panorama histórico e tendências da violência no Brasil

O Brasil tem sido, historicamente, um dos países com as mais altas taxas de violência letal no mundo, um fenômeno complexo enraizado em profundas desigualdades sociais e estruturais (Waiselfisz, 2015). Desde a década de 1980, o país observou um crescimento contínuo nos índices de homicídios, atingindo picos alarmantes em diferentes períodos e regiões. Essa escalada da violência tem sido objeto de intensa pesquisa e debate, com diversos estudos buscando compreender as dinâmicas regionais, as características das vítimas e agressores, e os fatores socioeconômicos e institucionais que a impulsionam (Cerqueira et al., 2023).

Apesar de uma recente tendência de queda nos homicídios dolosos a partir de 2018, conforme apontado por diversos relatórios anuais de segurança pública (FBSP, 2023), a violência no Brasil permanece em patamares elevados. Essa redução, no entanto, não se traduz necessariamente em uma diminuição da violência em sua totalidade, especialmente quando se considera a dimensão da violência não letal. A atenção predominante aos homicídios consumados nas estatísticas e no debate público pode gerar uma percepção distorcida da realidade, negligenciando a persistência de outras formas graves de violência que não resultam em óbito, mas que causam traumas e impactos sociais significativos. A análise das tentativas de homicídio, portanto, torna-se crucial para complementar essa visão e oferecer um panorama mais fidedigno da segurança pública no país.

2.3 Fatores associados à violência letal e não letal

A violência no Brasil é um fenômeno multifacetado, influenciado por uma complexa rede de fatores socioeconômicos, culturais e institucionais. Entre os principais determinantes, destacam-se a desigualdade social e a pobreza, que criam um ambiente propício para a criminalidade ao limitar oportunidades e gerar exclusão (Minayo, 2021). A presença e a atuação de grupos criminosos organizados, especialmente no tráfico de drogas e armas, são também elementos centrais na dinâmica da violência, disputando territórios e rotas, o que frequentemente resulta em confrontos e mortes.

A disponibilidade e a circulação de armas de fogo, legais e ilegais, são amplamente reconhecidas como um fator que potencializa a letalidade dos conflitos. Estudos indicam uma correlação entre o aumento do acesso a armas e o crescimento das taxas de homicídio (Cerqueira et al., 2023). Além disso, a fragilidade das instituições de segurança pública e justiça criminal, caracterizada por baixa resolutividade de crimes, corrupção e ineficiência, contribui para a sensação de impunidade e para a perpetuação do ciclo de violência. A superlotação carcerária e as condições desumanas nos presídios também são fatores que realimentam a criminalidade, dificultando a ressocialização e fortalecendo as facções criminosas (RELIPEN, 2025).

A eficácia das respostas estatais à criminalidade é, contudo, objeto de intenso debate no campo da criminologia e do direito penal. Diferentes escolas de pensamento propõem abordagens distintas para a compreensão e o enfrentamento da violência. Enquanto algumas perspectivas enfatizam a responsabilidade individual e o livre-arbítrio na prática criminosa, outras, como vertentes da criminologia crítica, tendem a focar nas causas estruturais e sociais da criminalidade, como as desigualdades socioeconômicas e as falhas do sistema. Essa divergência teórica pode influenciar a formulação de políticas públicas e decisões judiciais, gerando discussões sobre o equilíbrio entre a repressão individual e a transformação social como estratégias de enfrentamento da violência. A complexidade do fenômeno exige, portanto, uma análise que considere tanto as dimensões individuais quanto as estruturais, evitando reducionismos e buscando soluções que integrem diferentes níveis de intervenção.

Esses fatores não apenas aumentam a probabilidade de ocorrência de atos violentos, mas também influenciam a sua gravidade, determinando se um ataque resultará em homicídio consumado ou em tentativa. A interação entre esses elementos cria um cenário complexo que exige abordagens integradas e intersetoriais para o seu enfrentamento.

2.4 Impactos sociais e institucionais da violência

Os impactos da violência letal e não letal no Brasil transcendem as estatísticas de mortes, afetando profundamente a estrutura social e as instituições. Para as vítimas sobreviventes de tentativas de homicídio, as consequências são devastadoras, abrangendo desde lesões físicas permanentes e deficiências até traumas psicológicos profundos, como transtorno de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão (Minayo, 2021). Essas sequelas exigem um suporte contínuo dos sistemas de saúde e assistência social, que muitas vezes se mostram despreparados ou subdimensionados para atender a essa demanda crescente.

No âmbito social, a violência gera um clima de medo e insegurança que restringe a liberdade individual, afeta a qualidade de vida e compromete o desenvolvimento comunitário. A percepção de risco elevada, como demonstrado por pesquisas de opinião (Ipsos, 2025), impacta o bem-estar da população e a confiança nas instituições. Institucionalmente, a violência sobrecarrega o sistema de justiça criminal, desde as fases de investigação policial, que frequentemente enfrentam desafios como a falta de recursos e a dificuldade de elucidação de crimes, até o sistema judiciário, que lida com um volume massivo de processos.

A desconsideração ou a subestimação das tentativas de homicídio nas análises e políticas públicas agrava esses impactos, pois impede uma compreensão completa da extensão do problema. Ao focar apenas nos óbitos, perde-se a oportunidade de intervir em casos de violência grave que, embora não fatais, representam um risco iminente e deixam um rastro de sofrimento e custos sociais. A visibilidade dessas ocorrências é fundamental para o desenvolvimento de estratégias de prevenção mais eficazes e para a garantia de direitos e assistência às vítimas.

3 METODOLOGIA

Esta seção descreve o delineamento metodológico adotado para analisar a dimensão da violência letal e não letal no Brasil, com foco nos homicídios dolosos e tentativas de homicídio no período de 2015 a 2024.

3.1 Tipo de Estudo

Trata-se de um estudo quantitativo, descritivo e comparativo, que busca analisar e contrastar as tendências de duas categorias de crimes violentos: homicídios dolosos e tentativas de homicídio. O caráter descritivo visa apresentar a magnitude e a distribuição desses fenômenos ao longo do tempo, enquanto o caráter comparativo permite identificar padrões e discrepâncias entre as duas modalidades de violência. A abordagem documental foi empregada, utilizando dados secundários de fontes oficiais.

3.2 Fontes de Dados

Os dados primários para esta pesquisa foram obtidos da Base de Dados e Notas Metodológicas dos Gestores Estaduais – Sinesp VDE (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, de Material Genético, de Digitais e de Drogas – Violência Doméstica e Familiar), do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Esta base de dados compila informações fornecidas pelos gestores estaduais de segurança pública, sendo uma fonte oficial e abrangente para o monitoramento da criminalidade no Brasil. O período de análise compreendeu os anos de 2015 a 2024. As variáveis específicas coletadas foram o número total de vítimas de homicídios dolosos e o número total de vítimas de tentativas de homicídio em nível nacional para cada ano do período.

Para contextualização e discussão, foram consultadas outras fontes secundárias relevantes, como o Atlas da Violência (Cerqueira et al., 2023), o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2023), relatórios da ONU (ONU, 2023), dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (RELIPEN, 2025) e estudos de pesquisadores renomados na área da violência (Minayo, 2021; Waiselfisz, 2015).

3.3 Procedimentos de Coleta e Análise de Dados

Os dados anuais sobre homicídios dolosos e tentativas de homicídio foram extraídos diretamente da plataforma Sinesp VDE para o período especificado. Após a coleta, os dados foram organizados em planilhas eletrônicas para facilitar a análise.

A análise dos dados foi predominantemente descritiva, utilizando estatísticas como frequências absolutas e relativas, e a construção de séries temporais para observar a evolução de cada tipo de crime ao longo dos anos. Foi realizada uma análise comparativa entre os números de homicídios consumados e tentativas de homicídio, calculando-se a proporção entre eles para cada ano e para o período total. O objetivo foi identificar tendências, pontos de inflexão e a relação entre as duas modalidades de violência. A soma total de vítimas de ambos os crimes foi calculada para demonstrar a dimensão combinada da violência letal e potencialmente letal.

3.4 Considerações Éticas

Este estudo utilizou exclusivamente dados secundários, de acesso público e agregados, disponibilizados por órgãos governamentais. Não houve envolvimento direto com seres humanos ou coleta de dados primários que pudessem identificar indivíduos. Dessa forma, a pesquisa foi conduzida em conformidade com os princípios éticos aplicáveis a estudos com dados de domínio público, dispensando a necessidade de aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nesta seção apresenta os principais resultados da análise comparativa entre homicídios dolosos e tentativas de homicídio no Brasil no período de 2015 a 2024, seguida de uma discussão aprofundada sobre suas implicações para a compreensão da violência e para as políticas de segurança pública.

4.1 Apresentação dos Resultados

A análise dos dados da Base de Dados e Notas Metodológicas dos Gestores Estaduais – Sinesp VDE para o período de 2015 a 2024 revelou uma dimensão alarmante da violência no Brasil, ao considerar tanto os homicídios dolosos quanto as tentativas de homicídio. No total, foram registradas 858.952 vítimas desses dois tipos de crimes. Especificamente, o período contabilizou 435.574 vítimas de homicídios dolosos e 423.378 vítimas de tentativa de homicídio.

Um achado particularmente notável é a proporção quase equitativa entre os dois fenômenos: para cada homicídio consumado, houve praticamente uma tentativa frustrada. Essa relação de aproximadamente 1:1 sublinha que a violência com intenção de matar é muito mais disseminada do que os números de homicídios isoladamente sugerem.

A série temporal dos dados demonstra uma tendência de redução significativa nos homicídios dolosos após 2017, um período que marcou o pico da violência letal no país. Contudo, essa queda nos homicídios não foi acompanhada por uma redução proporcional nas tentativas de homicídio. Pelo contrário, as tentativas de homicídio mantiveram uma estabilidade relativa ao longo do período e, nos anos mais recentes, passaram a superar o número de homicídios consumados.

Tabela 1 – Vítimas de Homicídios Dolosos e Tentativas de Homicídio no Brasil (2015-2024) (Fonte Arial, tamanho 10, centralizado)

Análise da Tabela:

Esta tabela detalha a evolução dos homicídios dolosos e das tentativas de homicídio no Brasil entre 2015 e 2024.

  • Homicídios Dolosos: Observa-se um pico em 2017 (56.007 vítimas), seguido por uma tendência de queda nos anos subsequentes, atingindo o menor número em 2024 (35.427 vítimas) dentro deste período.
  • Tentativas de Homicídio: Os números de tentativas mostram uma variação, mas com uma tendência de estabilidade ou até mesmo aumento em anos mais recentes, como 2024 (41.302 vítimas), superando os homicídios dolosos naquele ano.
  • Proporção Tentativas/Homicídios: A proporção é um indicador crucial.
    • Nos primeiros anos (2015-2018), a proporção é geralmente inferior a 1,00, indicando que o número de homicídios era maior que o de tentativas.
    • A partir de 2019, a proporção começa a se aproximar ou superar 1,00 (como em 2019, 2022, 2023 e 2024), o que significa que o número de tentativas de homicídio se iguala ou até excede o de homicídios dolosos.
    • A proporção total de 0,97 reforça a tese de que, para cada homicídio consumado, há praticamente uma tentativa frustrada no período analisado.
4.2 Discussão dos Resultados

Os resultados apresentados revelam uma complexidade na dinâmica da violência brasileira que vai “além dos mortos”. A redução dos homicídios dolosos a partir de 2017, embora positiva, não pode ser interpretada como uma diminuição generalizada da violência com intenção de matar. A estabilidade e, em alguns anos, a superação das tentativas de homicídio em relação aos crimes consumados indicam que a violência potencialmente letal permanece em níveis alarmantes. Essa dissociação pode ser atribuída a diversos fatores, como a melhoria na capacidade de atendimento médico de emergência, que salva vidas que antes seriam perdidas, ou a mudanças nas táticas de grupos criminosos, que podem visar a intimidação ou o controle territorial sem necessariamente buscar o óbito em todos os confrontos.

A “invisibilidade” das tentativas de homicídio, conforme discutido na introdução e na revisão de literatura, é um ponto crítico que os resultados deste estudo tornam inegável. A sociedade e as políticas públicas tendem a focar no indicador mais dramático – a morte –, negligenciando um universo de quase meio milhão de vítimas que sobreviveram a ataques com intenção de matar. Essas vítimas carregam consigo não apenas as marcas físicas, mas também os traumas psicológicos e sociais, demandando atenção e recursos que frequentemente não são adequadamente providos (Minayo, 2021). A ausência de um olhar atento para as tentativas impede a compreensão do perfil completo da violência, dos agressores e das circunstâncias que levam a esses atos, limitando a eficácia das estratégias de prevenção e repressão.

A discrepância entre o volume de crimes graves (homicídios e tentativas) e o número de pessoas efetivamente encarceradas, conforme apontado na introdução, também merece destaque. Com quase 900 mil casos de homicídio e tentativa de homicídio no período analisado, e um sistema penitenciário que abriga cerca de 670 mil pessoas (RELIPEN, 2025), a relação entre a criminalidade violenta e a resposta do sistema de justiça criminal é complexa. Essa disparidade pode indicar desafios na elucidação dos crimes, na efetividade das investigações, na capacidade do sistema judiciário de processar e julgar os responsáveis, ou mesmo na aplicação de penas alternativas. A baixa resolutividade e a percepção de impunidade podem, por sua vez, alimentar o ciclo da violência, desestimulando a denúncia e a confiança nas instituições.

Em suma, os resultados deste estudo reforçam a necessidade de uma abordagem mais holística e integrada da segurança pública no Brasil. A análise da violência não pode se restringir aos óbitos, mas deve incorporar a totalidade dos atos com intenção de matar, incluindo as tentativas. Somente assim será possível desenvolver políticas públicas que respondam de forma mais eficaz à real dimensão do problema, promovendo a prevenção, a repressão qualificada e o suporte adequado às vítimas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo analisou comparativamente os dados de homicídios dolosos e tentativas de homicídio no Brasil, no período de 2015 a 2024, buscando ampliar a compreensão sobre a real dimensão da violência letal e não letal no país. Os resultados revelaram uma redução significativa dos homicídios dolosos após 2017, acompanhada de uma estabilidade relativa nas tentativas de homicídio, que passaram a superar os homicídios consumados nos anos mais recentes.

Esses achados evidenciam que, embora a letalidade dos crimes tenha diminuído, a violência potencialmente letal permanece elevada, reforçando a necessidade de superar a tradicional invisibilidade das tentativas de homicídio nas estatísticas, políticas públicas e debates acadêmicos. A análise demonstrou ainda a existência de fragilidades estruturais e institucionais, como a insuficiência das leis penais, a baixa resolutividade do sistema judiciário e a persistência de fatores sociais, econômicos e culturais que alimentam a violência.

Diante desse cenário, torna-se imprescindível:

  • Ampliar e padronizar os sistemas de registro e monitoramento das tentativas de homicídio;
  • Desenvolver políticas públicas integradas de prevenção, repressão e atendimento às vítimas sobreviventes;
  • Investir em ações intersetoriais que articulem segurança, saúde, assistência social e justiça;
  • Fomentar pesquisas interdisciplinares que aprofundem a análise dos determinantes e consequências da violência letal e não letal.

Por fim, este trabalho contribui para o debate acadêmico ao evidenciar a importância de uma abordagem mais abrangente e integrada sobre a violência no Brasil, ressaltando que o enfrentamento desse fenômeno exige não apenas ações imediatas, mas também transformações estruturais de longo prazo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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