REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202505191848
Lilian Pereira da Cunha
Resumo
Ainda hoje, passados mais de um século de abolição da sistema de escravidão, trabalhadores são encontrados laborando em condições degradantes, especialmente no âmbito rural. O objetivo é demonstrar que mesmo em áreas de assentamento rural, a distribuição de terras dissociada, ainda que parcialmente, de políticas públicas efetivas para inserção do trabalhador rural nas cadeias produtivas, é possível encontrar ambientes favoráveis à redução do trabalhador assentado à condição análoga à escravidão. O objetivo é demonstrar a relação entre assentamento e o trabalho escravo. Enquanto não for implementado uma forma efetiva de inserção de trabalhadores assentados nas cadeias produtivas, tal realidade não se transformará.
Palavras-chaves: Direito do trabalho, assentametos agrários, produtor rural, trabalho escravo, diginidade da pessoa humana
Abstract
Even today, more than a century after the abolition of slavery, workers are found working in degrading conditions, especially in rural areas. The aim is to demonstrate that even in areas of rural settlement, where land distribution is partially dissociated from effective public policies for the inclusion of rural workers in production chains, it is possible to find environments that are favorable to reducing settled workers to conditions analogous to slavery. The aim is to demonstrate the relationship between settlement and slave labor. Until an effective way of including settled workers in production chains is implemented, this reality will not change.
Keywords: Labor law, agrarian settlements, rural producer, slave labor, human dignity
INTRODUÇÃO
O objeto genérico é o trazer reflexões teóricas sobre o estudo do trabalho análogo ao de escravo, no âmbito rural, no Brasil contemporâneo.
O estudo delimitar-se-á aos aspectos que se relacionam com gênese deste fenômeno social, especificamente, a manutenção da condição vulnerabilidade/dependência do trabalhador rural inserido nas áreas de assentamentos em face das políticas públicas da reforma agrária, conforme delineado pela problemática.
Para a pesquisa propõe-se o título “Para além da reconstrução da dependência: As políticas públicas de combate ao trabalho análogo ao de escravo em assentamentos de reforma agrária no Brasil”.
Pretende-se desenvolver a investigação a partir da observação dos fenômenos ocorridos em assentamentos de reforma agrária, em cujas áreas são encontrados trabalhadores em condição análoga à escravidão, assentados ou não.
Desde já, impõe-se esclarecer a terminologia “trabalho escravo” adotada neste artigo. A partir do conceito legislativo fixado pela redação do art. 149 do Código Penal, a caracterização do trabalho escravo é realizada nas demais searas jurídicas brasileiras. A lei penal utiliza a terminologia redução do trabalhador a condições análogas à de escravo, pois, sendo a escravidão um conceito jurídico formalmente abolido, ou seja, não sendo a escravidão prática admitida pelo ordenamento jurídico vigente, não se pode admitir que a pessoa humana, mesmo em razão da conduta ilícita de outrem, possa vir a ser considerada escrava.
Todavia, tendo em vista a utilização de uma forma mais reduzida em relação à expressão mais ampla utilizada pela lei, pode-se denominar o fenômeno de forma mais reduzida pelo uso da expressão “trabalho escravo”, como o faz os órgãos governamentais¹ nacionais em suas políticas públicas e alguns autores dentre os quais cita-se José Cláudio Monteiro de Brito Filho (2004, p.73).
O objeto genérico do tema é o estudo do trabalho análogo ao de escravo, o qual se insere na temática Direitos Humanos, pois o direito de não ser submetido à escravidão, segundo Flávia Piovesan (2006, p. 153), se inspira na concepção contemporânea de direitos humanos, uma vez que toda e qualquer pessoa, tem o direito à dignidade, ao respeito à autonomia, e à liberdade.
Ao pretender propor um novo paradigma emancipatório para as políticas públicas da reforma agrária, crucial no combate ao trabalho escravo, insere-se a pesquisa na perspectiva de que os direitos humanos devem ser postos a serviço de uma política progressista e emancipatória (SANTOS, 2004, p. 240).
O viés a ser adotado na pesquisa é o da dignidade da pessoa humana, cuja defesa e proteção, segundo Flávia Piovesan (2006, p. 153), se volta à proposta emancipatória sobre o qual se edificam os direitos humanos. A mesma linha de pensamento é adotada por Brito Filho (2004, p. 45) para quem a “dignidade deve produzir efeitos no plano material”.
Por fim, o objeto de estudo se insere na temática meio ambiente em sua dimensão social, pois a relação trabalhista, em seus sentidos amplo e estrito, deve ser pautada pela dignidade humana e pelo cumprimento da legislação como condição de cumprimento da função social da propriedade/atividade empresarial, conforme assegurado pela ordem jurídica brasileira².
No enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo há uma enorme contradição entre a legislação formal e a realidade. Apesar dos avanços formais expressos na positivação de direitos, contudo, na prática, o direito de não ser escravizado não se concretiza para todos.
Outrossim, o trabalho análogo ao de escravo carece de análises e discussões mais aprofundadas na tentativa de abordar a problemática envolvida nesse fenômeno social. A investigação que se pretende parte da análise desta contradição/ambiguidade que se estabelece entre o abstrato/formal/positivado e a realidade/concreto.
Sem descartar a importância das medidas repressoras[3] no combate ao trabalho análogo ao de escravo e a possibilidade de se estudar o assunto sob este enfoque, diferentemente, a investigação proposta pretende analisar as contradições que envolvem a gênese/causa deste fenômeno social.
Especificamente, a pesquisa se volta à análise da manutenção da condição de vulnerabilidade/dependência do trabalhador rural inserido nos assentamentos e respectivo entorno em face das políticas públicas da reforma agrária. Parte-se do pensamento de que a vulnerabilidade precede a exploração degradante que caracteriza o trabalho análogo ao de escravo.
Assim, pretende-se analisar as práticas desenvolvimentistas implementadas na gestão dos assentamentos da reforma agrária à luz da Teoria do Desenvolvimento Humano de Amartya Sen (2010).
Sendo assim, a pesquisa pretende elucidar ao seguinte questionamento: As políticas públicas da reforma agrária brasileira são efetivas para a emancipação do trabalhador rural inserido na área dos assentamentos de reforma agrária ou reforçam a condição de vulnerabilidade/dependência que precede a redução do trabalhador à condição análoga a escravidão?
A par do problema principal pretende-se ainda responder aos seguintes questionamentos: As políticas públicas voltadas para a gestão dos assentamentos são efetivadas? Qual a perspectiva/modelo desenvolvimentista que orienta as atuais políticas públicas de gestão nos assentamentos? A partir de quais ações/omissões estatais se afasta/constrói a vulnerabilidade que precede a redução do trabalhador assentado a condição análoga à escravidão? Sob quais parâmetros as políticas públicas inseridas no sistema de reforma agrária podem ser eficazes no combate o trabalho escravo?
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Apesar da proscrição jurídica e dos planos nacionais para erradicação do trabalho escravo, a redução de trabalhadores à condição análoga à escravidão no Brasil é prática que permeia as relações trabalhistas, nos meios urbano e rural e continua sendo uma das maiores expressões de degradação humana e social que assolam o país.
Entre os anos de 1995 e 2016, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, foram libertadas da escravidão no Brasil um total de 49.816 pessoas (REPORTER BRASIL, 2018). Somente no ano de 2016, quando já vigoravam há alguns anos as políticas de combate ao trabalho escravo, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) apontou o resgate de 885 (oitocentos e oitenta e cinco) trabalhadores submetidos à condição análoga a escravidão, conforme dados divulgados pela Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE) vinculada ao Departamento de Fiscalização do Trabalho (DEFIT).
As políticas brasileiras foram tidas como “um exemplo a ser seguido na luta contra o trabalho escravo” (OIT, 2010, p. 181), todavia o cenário brasileiro, nos âmbitos legislativo, judiciário e executivo é marcado por contradições: constatam-se avanços formais expressos na positivação de direitos, contudo na prática, o direito de não ser escravizado não se concretiza para todos. Além disso, em face das disputas de interesses pela bancada ruralista no governo4 no cenário político, há constantes riscos de retrocessos.
Um episódio nacional recente ilustra bem o risco de retrocessos na política brasileira de combate ao trabalho escravo. A pretexto de disciplinar a forma de concessão de segurodesemprego aos trabalhadores resgatados pela fiscalização, a Portaria 1.129, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) publicada em 16 de outubro de 2017, reformulou o conceito de trabalho escravo, subordinando a caracterização da jornada exaustiva e das condições degradantes à existência de privação ou cerceamento do direito de ir e vir e à inexistência de consentimento do trabalhador em relação a sua situação. (Brasil, 2017a, Artigo 1o, incisos I a III).
A Portaria destinada aos fiscais enfraquecia a política de enfrentamento à exploração do trabalho escravo, porém a reação de entidades sindicais, movimentos e organizações sociais, como a CPT, além das duras críticas feitas pelo MPT5 e da manifestação da PGR em favor da revogação da Portaria, obrigou o governo a rever sua posição.
Assim, o governo editou, em dezembro de 2017, a Portaria no 1.293, do MTE em que restabelecia os conceitos de jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho e revogava a Portaria 1.129/2017. Esse recuo político reiterou a definição de trabalho escravo introduzida no ordenamento jurídico brasileiro (Brasil, 2017b, Artigo 2o).
A ambiguidade nas políticas públicas de combate ao trabalho escravo consubstancia-se também no modelo de desenvolvimento adotado no espaço agrário brasileiro, pois o “mesmo Brasil que fomenta um plantio de políticas para a erradicação da escravidão contemporânea, afirmando que o combate ao trabalho escravo contemporâneo é prioridade nacional, não apenas tolera, mas fomenta um modelo de desenvolvimento no campo calcado no agronegócio, no latifúndio e na escravidão”. (SILVA FILHO, 2011, p. 238).
Ao pretender analisar a efetividade das políticas públicas que se inserem na política da reforma agrária no que diz respeito ao seu papel emancipatório, a pesquisa se mostra relevante quanto ao que se pode chamar de enorme pedra no caminho do enfrentamento do trabalho escravo
cuja remoção requer, mais do que medidas de repressão penal e trabalhista, a adoção de um novo modelo de desenvolvimento agrário (a estrutura fundiária, a política agrícola e a forma como é recrutado, realizado e apropriado o trabalho nesse modelo), mais justo e mais democrático, que relativize o (quase) “sagrado” direito à propriedade privada no campo, submetendo-o incondicionalmente ao interesse de todo o povo, melhor equacionando a questão da tensão permanente entre liberdade, terra trabalho (direitos sociais) e terra negócio (direitos patrimoniais) (SCHWARZ, 2014, p. 228)
A escravidão atual “não coincide necessariamente com diferenças de raça entre senhores e escravos” (MARTINS, 1999, p. 159), mas com a pobreza, a vulnerabilidade e a falta de oportunidades. No caso brasileiro atual
a escravidão, que é escravidão temporária e circunstancial, ainda que persistente, está diretamente ligada ao modo como se dá o desenvolvimento capitalista. Na maioria dos casos, mas não necessariamente em todos, decorre da escassez de mão-de-obra em algumas regiões do país, pelos salários que os empresários estão dispostos a pagar e para o trabalho que necessitam executar” (Martins, 1999, p.159).
No meio rural, a exploração do homem em condições indignas e degradantes se insere na questão agrária, por sua vez, marcada pela violência e pela dificuldade ao acesso à terra. A distribuição desigual de terras marcada pela concentração fundiária priva o trabalhador da autosuficiência que caracteriza as sociedades camponesas (COSTA, 2010, p.113). Desse modo, “a luta pela terra no Brasil se desenvolveu no campo de uma disputa por direitos e não necessariamente numa disputa por um bem” (Maia, 2013, p. 9).
Na luta contra a exclusão ao acesso a terra, a conquista de assentamentos da reforma agrária é fruto de tensões sociais e embates políticos, já que segundo Boaventura de Sousa Santos (2007, p. 36),
(…) no caso da terra, confrontam-se fundamentalmente duas concepções de propriedade: a concepção que tem na sua base o direito agrário, ligado ao trabalho; e as concepções individualistas do direito civil, com uma concepção de propriedade mais ligada ou à posse directa ou ao título. São duas concepções que estão, neste momento, em conflito.
Os assentamentos rurais de reforma agrária representam uma situação recente na questão agrária brasileira, e o desempenho dos projetos de reforma agrária é um tema muito presente na sociedade. Pode se dizer que são espaços de transformação social, onde realidades individuais e coletivas são alteradas para além de suas areais limítrofes.
Nesse contexto, a reforma agrária não pode implicar em mera reforma fundiária (distribuição de terra), pois o mero acesso à terra, per si¸ não é suficiente para a transformação e emancipação que se espera da reforma agrária.
Dificuldades como ausência de infra-estrutura, dificuldade de acesso a crédito, precariedade de estradas, falta de acesso a serviços básicos (eletricidade, água, esgoto), baixa escolaridade, falta de capacitação são causas freqüentes da evasão de assentados, a exemplo, dentre outros casos, do caso dos trabalhadores de Barras, no Piauí que se deslocam repetidas vezes para os estados do Pará, Mato Grosso e Goiás e vivenciam formas de trabalho análogo à escravidão, conforme aponta Rocha (2010, p.15).
Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, atualmente Barras é um município que tem o maior número de assentamentos por reforma agrária do País, e, no entanto, tem sido um dos principais polos de arregimentação de trabalhadores para o trabalho análogo à de escravo fora do Estado. Parte dos migrantes deste município possui pequenos pedaços de terra, ou vivem em terras de familiares, mas não tem condição de investir na agricultura, como é o caso dos entrevistados Francisco Arcanjo e Francisco Rodrigues. Outros vivem em terras de familiares, tem posse legal das terras, entre eles, Reginaldo Pereira, Francisco Filho, Raimundo Ramos e Bruno. Já outros foram assentados recentemente pelo programa da reforma agrária do governo federal. Todos eles vivem em precárias condições de vida e trabalho. Cabe considerar que a aquisição de terras por parte das famílias dos sujeitos entrevistados se fez através de desapropriação de áreas de conflito por terra, onde viviam sob condição de morada. Estes trabalhadores são contratados por empreiteiros; são coordenados e vigiados por eles e pelos fiscais e podem exercer variadas atividades na unidade de produção: limpeza de pasto, roçagem e derrubada de mata, feitura de cerca e aceiros, corte de cana, etc. (Rocha, 2010, p. 15).
O Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Desenvolvimento Agrário do ano de 2005 previa medidas contemplando exatamente no município de Barras, no Piauí. O plano compreendia dois eixos, a prevenção da irregularidade e a reinserção dos trabalhadores resgatados à sociedade, mediante a qualificação nos assentamentos nos meios rurais. Para tanto, envolvia linhas de créditos fundiários para os trabalhadores resgatados, investimentos em capacitação e assistência técnica e aumento de desapropriação para reforma agrária, nas regiões de origem dos trabalhadores (BRASIL, 2005).
Para além de uma perspectiva de desenvolvimento meramente econômica, na qual a produção geralmente se vincula à interesses hegemônicos, como é o caso dos insumos (agrotóxicos, por exemplo), a pesquisa se propõe a analisar as políticas públicas direcionadas aos assentamentos de reforma agrária sob o viés da dignidade humana e da Teoria de Desenvolvimento de Amartya Sen (2010), para quem as políticas públicas devem aliar à percepção de benefício pecuniário, outras ações que ações que visem à emancipação do indivíduo através do desenvolvimento de suas capacidades fundamentais. Sen defende que o desenvolvimento humano deve compreender um projeto global de expansão das liberdades reais dos indivíduos, que passa pela remoção das formas de provação dessa liberdade: pobreza, tirania, falta de oportunidades econômicas, serviços públicos inoperantes, violência, dentre outras.
Pretende-se desenvolver a investigação a partir observação dos fenômenos ocorridos em assentamentos de reforma agrária e entorno, a exemplo do assentamento Areia situado na divisa dos municípios de Trairão e Altamira, região oeste do Estado do Pará, o qual está inserido em área onde se constatou a presença de trabalhadores em condições análogas à escravidão. O assentamento é porta para entrada e saqueio dos recursos naturais, principalmente madeira, das unidades de conservação que lhe são próximas Floresta Nacional do Trairão, Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio e Parque Nacional do Jamanxin.
A área onde se situa o assentamento de reforma agrária PA Areia foi reconhecido pela INCRA em 1998, porém, como noticia a Comissão Pastoral da Terra (CPT)6
em 2002, o projeto de assentamento foi considerado consolidado pelo Incra através da Superintendência de Belém, até então, responsável pela gestão do assentamento. No entanto, o PA Areia não possuía lotes titulados, nem havia infraestrutura básica para que as famílias pudessem ter uma vida digna na terra, os lotes não contavam com água, energia ou estradas de acesso, ou seja, os critérios estabelecidos para emancipação de um assentamento não haviam sido atendidos e a omissão do estado deixou o território abandonado para que houvesse a sua apropriação criminosa formando um quadro de milícias que executa quem se opõe ao esquema e ou denuncia, como o caso da Osvalina e Daniel, que passaram a produzir alimentos de forma agroecológica e foram jurados de morte por não colaborarem com a extração de madeira ilegal e o trabalho escravo no PA Areia.
Osvalina e Daniel foram assentados em um lote de 100 hectares no Projeto de Assentamento Areia e, segundo narra a CPT, Osvalina e Daniel verificando a situação das famílias que residem no PA Areia viram uma realidade de vulnerabilidade e completa dependência dos madeireiros já que muitas famílias que vivem na vila do assentamento vendem sua força de trabalho se submetendo ao trabalho escravo e dependendo exclusivamente dos madeireiros para sobreviver, os quais agem pela lei do silêncio e da morte.
Conforme a noticia a CPT, em 2010, Osvalinda e Daniel organizaram as mulheres e fundaram a Associação de Mulheres do Areia, com o objetivo principal de desenvolver atividades formativas (direitos humanos, cooperativismo, agroecologia, dentre outras) e produtivas (tais como horas, extrativismo, piscicultura, avicultura, artesanatos, produção de óleo e farinha) a fim de que todos pudessem não depender dos grileiros e madeireiros que residem do PA Areia.
Entretanto, esse trabalho de organização de mulheres não foi visto com bons olhos e em 2011 as tensões no assentamento aumentaram sendo que os assentados descontentes com os madeireiros iam sendo executados7, conforme noticia a CPT, como medida em face do descontentamento com as condições de salário e trabalho, dentre outras.
O caso teve repercussão na imprensa em 2012 e foi denunciado pela CPT, pela Terra de Direitos e pelo Ministério Público Federal (MPF), após o que, o INCRA instaurou várias ações no assentamento, dentre os quais procedimento para revisão ocupacional das terras. Além disso, Osvalina e Daniel, também ameaçados de morte, foram inseridos no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos.
No ano de 2015, a gestão do assentamento precisou ser novamente retomada pelo INCRA, após novas denuncias do MPF, da CPT, da Terra de Direitos e de associações representativas.
O casal de agricultores que possuem produção agroecológica com sistemas agroflorestais, produzem artesanatos, comercializam sua produção em feiras, mercados locais e na própria comunidade e não depende dos madeireiros do assentamento, neste ano de 2018, conforme notícia a Terra de Direitos8, encontraram duas covas no terreno da casa onde vivem as quais representam ameaça de morte.
EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DE PROTEÇÃO NO BRASIL
A escravidão no Brasil foi abolida há cento e trinta anos pela Lei nº 3.363, de 13 de maio de 1988, conhecida como Lei Áurea.
Desde então, o Brasil vem incorporando ao seu ordenamento jurídico normas internacionais que vedam a escravidão e o trabalho forçado, ratificando-as9.
A Carta Magna brasileira elenca nos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, o fundamento da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) e dos valores sociais do trabalho (artigo 1º, inciso IV). Além disso, garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e à igualdade (artigo 5º, caput), assevera que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, inciso III), estatui a liberdade de locomoção (artigo 5º, inciso XV).
Por sua vez, o Código Penal define e prevê punição de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência, ao crime de redução a condição análoga à escravo (art. 149). A partir do conceito legislativo fixado pela redação do art. 149 do Código Penal, a caracterização do trabalho escravo é realizada nas demais searas jurídicas brasileiras.
A política brasileira voltada aos direitos humanos, de um modo geral, costuma ser contraditória. Apesar dos avanços formais, da positivação de direitos, na prática, contudo, muitos direitos formalizados e positivados não se concretizam em sua totalidade, por diversas razões.
A par do aspecto legislativo no sentido da abolição formal da escravidão no território brasileiro, a modalidade de exploração extrema do trabalho alheio ainda permanece, embora com características diversas da escravidão colonial.
Segundo José Cláudio Monteiro de Brito Filho o trabalho escravo contemporâneo pode ser comparado ao plágio romano, cuja expressão original plagium, esclarece o autor citando Pierangeli (2007, p. 156), “etimologicamente, vem do verbo plagiare, que na Roma antiga significava a compra de um homem livre sabendo que o era, e retê-lo em servidão ou utilizá-lo como próprio servo” (PIERANGELI apud BRITO FILHO, 2014, p. 593). Por essas explicações
fica claro porque o plágio serve para uma melhor comparação. É que esse delito ocorria quando se dava a um ser humano livre o tratamento de um escravo, ou seja, reduzia-se o ser humano a uma condição que não era a sua, a de escravo, nos mesmos moldes do artigo 149. (BRITO FILHO, 2014, p. 593/594).
Para o sociólogo norte americano Kevin Bales (1999, p. 129), tanto na antiga quanto na nova escravidão a manutenção dos trabalhadores em regime de trabalho forçado ocorre por meio de ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e até assassinatos, mas a nova escravidão não possui critérios étnicos10 e/ou religiosos e está ancorada na miserabilidade social, se concentrando na fraqueza, na ingenuidade e na privação. Justificando o trabalho escravo na atualidade, o autor argumenta que “existe na sociedade disparidade econômica. Essa injustiça se traduz numa enorme quantidade de pessoas que, de tão pobres, se tornam vulneráveis à escravidão” (BALES, 1999, p. 129).
Além disso, conforme explica Bales (1999, p. 129), enquanto na antiga escravidão, legalmente permitida, a riqueza de uma pessoa podia ser medida pela quantidade de escravos, havendo altos custos com a compra e manutenção destes, diferentemente, na nova escravidão, vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro, os custos para a aliciação passam a ser extremamente baixos e os lucros diversamente proporcionais, em virtude da condição do trabalhador de pessoa descartável, dispensada sem qualquer contraprestação quando estiver doente ou não mais for útil.
Assim, o trabalho escravo na contemporaneidade em todo o mundo sustenta-se em uma só realidade, “de um lado a procura por mão de obra barata e submissa; do outro, a oferta de pessoas desesperadas e faminta” (Le Breton, 2002, p. 19).
Os parâmetros legais de caracterização e conceituação do trabalho escravo no âmbito nacional são fixados a partir da redação do art. 149 do Código Penal. A partir da redação do citado dispositivo é que ocorre a caracterização do trabalho escravo nas demais searas jurídicas brasileiras.
De acordo com o conceito legal, preconizado no art. 149, do Código Penal, dá se a redução da pessoa a condição análoga à de escravo mediante a submissão a trabalhos forçados, a jornada de trabalho exaustiva, a condições degradantes de trabalho ou restrição de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador, de vigilância ostensiva ou da retenção de documentos.
Entretanto, decorridos quinze anos da alteração do artigo 149 do Código Penal Brasileiro pela nova redação introduzida pela Lei 10.803 de 11 de dezembro de 2003, persiste a discussão dos âmbitos doutrinário e jurisprudencial a respeito da caracterização do crime de redução à condição análoga à de escravo, assim como da definição de seus modos de execução.
O debate doutrinário que envolve a caracterização e o conceito do trabalho em condições análogas à escravidão passa por duas perspectivas: a) A perspectiva da dignidade da pessoa humana, para a qual a configuração da escravidão contemporânea dispensa prova da coação física da liberdade de ir e vir ou do cerceamento da liberdade de locomoção; b) A perspectiva da restrição da liberdade de locomoção, para a qual é exigida a demonstração da completa sujeição do trabalhador ao tomador de serviços para que haja a configuração da escravidão contemporânea.
Com efeito, constata Figueira (2004, p. 45):
Como conceito de escravidão, sob o ângulo jurídico assim como as interpretações formais e conservadoras do direito estão atreladas unicamente ao critério de liberdade formal, para Castilho, era preciso incluir na conceituação dos crimes as práticas que iam contra a dignidade da pessoa. Não se trata mais de proteger a liberdade individual, mas a dignidade da pessoa humana. É, sem dúvida, um conceito mais amplo e mais apropriado à efetiva repressão das formas contemporâneas de escravidão.
Acerca das perspectivas debatidas, José Claudio Monteiro de Filho¹¹ aponta que
Temos presenciado debates envolvendo autoridades nacionais e internacionais, em que se considera que só haveria “trabalho escravo” nos casos em que presente a falta de liberdade. Nesse sentido, o trabalho em condições degradantes não poderia ser considerado como trabalho com redução à condição análoga à de escravo. Isso, além da negação do próprio dispositivo legal, que é claro a respeito, representa visão conceitual restritiva, no sentido de que o fundamento maior da proibição do trabalho com redução do homem à condição análoga à de escravo seria o da preservação do princípio da liberdade. (…) E qual é o fundamento que impede a quantificação, a coisificação do homem? A dignidade da pessoa humana. Esse o fundamento maior, então, para a proibição do trabalho em que há a redução do homem à condição análoga à de escravo.
A perspectiva da restrição da liberdade de locomoção não foi a adotada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) ao conceituar trabalho forçado12 que optou por construir o conceito a partir da dignidade da pessoa humana. Tal concepção “não procurou referir-se às formas específicas de trabalho escravo existentes nas diversas regiões do mundo, mas abarcar todas as formas possíveis de trabalho forçado” (OIT, 2010, p. 36).
As contradições a respeito da caracterização do trabalho análogo ao de escravo podem ser percebidas, também, no Poder Judiciário, espaço em que os tribunais pátrios proferem decisões divergentes a respeito do mesmo fato.
Ao interpretar o crime de redução do trabalhador à condição análoga a de escravo, tipificado no art. 149, do Código Penal, o Supremo Tribunal Federal (STF) o fez a partir da dignidade da pessoa humana, dispensando para a configuração do crime a prova de coação física da liberdade de ir e vir ou do cerceamento da liberdade de locomoção, adotando a mesma caracterização do trabalho escravo adotada pela OIT¹³.
Apesar de o STF ter se posicionado acerca da dignidade da pessoa humana como elemento balizador da interpretação do crime descrito no art. 149, os Tribunais Regionais Federais (TRFs) ainda são controversos quando se propõe a esta mesma interpretação. A caracterização do trabalho escravo em condições análogas ao de escravo e o bem jurídico tutelado pelo art. 149, CPB, segundo esclarece Mesquita e Freitas (2016, p. 72) “ainda é objeto de controvérsias jurisprudenciais entre os Tribunais Regionais Federais, apesar do tema já se encontrar consolidado no âmbito do Supremo Tribunal Federal desde 2006”.
Acerca dos elementos que norteia à contradição, as autoras citadas apontam que
no âmbito dos TRFs, tem prevalecido na 3ª e na 4ª Região o entendimento firmado pelo STF, contudo, no âmbito da 1ª, da 2ª e da 5ª Região, o crime de redução do trabalhador à condição análoga a de escravo só tem sido reconhecido quando demonstrada o cerceamento da liberdade de locomoção do indivíduo. (MESQUITA E FREITAS, 2016, p. 72).
Esclarecendo as consequências da postura do julgador na interpretação, Mesquita (2016, p. 117) constatou que no âmbito da jurisprudência do TRF 1ª Região14 o crime descrito pelo art. 149 é interpretado na perspectiva da restrição à liberdade de locomoção, consequentemente, os réus são absolvidos quando não há restrição efetiva à liberdade de locomoção da vítima.
Das condutas judiciais observa-se que os tribunais adotam duas perspectivas diferentes na interpretação deste dispositivo penal, a saber: A perspectiva da dignidade da pessoa humana, para a qual a configuração do crime dispensa a prova da coação física da liberdade de ir e vir ou do cerceamento da liberdade de locomoção; a perspectiva da restrição da liberdade de locomoção, para a qual é exigida a demonstração da completa sujeição do trabalhador ao tomador de serviços para que haja a configuração do crime.
As divergências interpretativas poderiam ser sanadas caso o STF reconhecesse a repercussão geral em relação ao trabalho em condições análogas ao de escravo, contudo mesmo diante da manifesta relevância social, econômica, política e jurídica do tema, o STF tem adotado postura omissa nesse sentido (MESQUITA E FREITAS, 2016, p.72).
Como a construção do conceito de trabalho análogo ao escravo passa pela perspectiva adotada na sua caracterização, trata-se de um conceito que vem sendo construído ao longo dos anos e que também passa pelas mesmas contradições.
A investigação pretendida funda-se na dignidade da pessoa humana que, como conceitual Sarlet (2007, p. 62) é
A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Sendo assim, a definição de trabalho escravo que melhor se relaciona com a pesquisa é a formulada pelo professor doutor José Cláudio Monteiro de Brito Filho (2006, p. 137), um dos referenciais teóricos a serem adotados na investigação, para o qual
considera-se trabalho em condições análogas à condição de escravo como o exercício do trabalho humano em que há restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador, e/ou quando não são respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador.
Mais recentemente, Brito Filho reformulou seu conceito, definindo o trabalho em condições análogas à de escravo
ou trabalho escravo, como o trabalho prestado por pessoa física em condições que importem na instrumentalização do trabalhador, violando sua dignidade e sua liberdade pessoal, e que possam ser enquadradas em ao menos um dos modos de execução previstos no artigo 149 do Código Penal Brasileiro: trabalho forçado, em jornada exaustiva, em condições degradantes, com restrição de locomoção por dívida contraída, ou com retenção do trabalhador no local de trabalho por meio de vigilância ostensiva, cerceamento dos meios de transporte ou porque o tomador dos serviços se apodera de documentos ou objetos pessoais do prestador dos serviços. (BRITO FILHO; ALBUQUERQUE, 2017, p. 71)
Quanto ao papel do estado de combater o trabalho escravo as dificuldades não se resumem à caracterização e conceituação. A política brasileira voltada aos direitos humanos é contraditória. Alguns direitos, embora positivados, não se concretizam simplesmente por carecerem de instrumentos normativos outros que lhes garantam eficácia, os quais não são inseridas no ordenamento pátrio por omissão (como por exemplo, o caso de normas cuja eficácia carecem de leis complementares).
É o caso da Emenda Constitucional nº 81, de 2014 que deu nova redação ao art. 243, da Constituição Federal ao prever que as propriedades rurais e urbanas onde forem localizadas exploração de trabalho escravo serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e à programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Sem desconsiderar que o direito assegurado pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014 representa importante avanço formal no cenário do combate ao trabalho escravo, todavia, o efeito prático imediato desta norma restou condicionado à lei complementar, que enquanto não for editada, torna o preceito constitucional sem eficácia plena.
Acerca da desconstrução da política de combate ao trabalho escravo, instrumentos de repressão ao trabalho escravo, criados por pressão social, a exemplo da lista suja15 e da possibilidade de expropriação a que se refere a EC nº 81/2004 são retirados do ordenamento jurídico ou deixam de ser utilizados (MOURA, 2016, p. 89).
A lista suja, um dos principais instrumentos de coibição da exploração do trabalho escravo, sistema que após implementado foi impedida de ser divulgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com base no argumento de que a portaria que a instituía carecida de respaldo na legislação16. Em consequência, ainda no início de 2015 os bancos públicos anunciaram a suspensão do veto à concessão de empréstimos às empresas que figurassem na lista.
Recentemente, em 24/08/2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reestabeleceu, por meio da Portaria nº 135, o Comitê Nacional Judicial de Enfrentamento à Exploração do Trabalho em Condição Análoga à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas. Dentre as principais ações a serem efetivadas pelo comitê estão o monitoramento das ações judiciais em curso que tratem do tema e ações de prevenção desses crimes junto a entidades da sociedade civil. Além disso, o comitê nacional tem a função de presidir o Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (FONTET), criado em 2015 por meio da Resolução CNJ nº 212.
A PERSPECTIVA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
As contradições relacionadas ao tema sob investigação remetem à necessidade de se repensar os modelos das práticas adotadas pelo Estado e pela sociedade na compreensão e no combate ao trabalho escravo. No enfrentamento desta exploração humana degradante, o encorajamento legislativo e as políticas públicas adotadas pelo estado brasileiro apresentaram significativos avanços, porém os números de casos de trabalhadores resgatados nesta condição ainda é expressivo, conforme demonstrado.
A ruptura com essa realidade passa pela adoção da perspectiva da dignidade da pessoa humana na caracterização e conceituação do trabalho escravo como defende José Cláudio Monteiro de Brito Filho (2010, p. 14/15), para o qual
Na atual definição que deve ser emprestada ao trabalho em que há a redução do homem à condição análoga à de escravo deve forçosamente ser reconhecido que não é mais a liberdade o fundamento maior que é violado, mas sim outro, mais amplo, e que repele as duas espécies: o trabalho forçado e o trabalho em condições degradantes. Ora, o que é que aproxima essas duas espécies? A desconsideração da condição humana do trabalhador. No caso do trabalho forçado porque, pela falta de liberdade, o homem é tratado como um bem, como coisa que pertence ao tomador dos serviços. No caso do trabalho em condições degradantes, da mesma forma. Embora não exista a restrição à liberdade, o homem, ao ter negadas as condições mínimas para o trabalho, é tratado como se fosse mais um dos bens necessários à produção; e, podemos dizer sem dúvidas, “coisificado”. E qual é o fundamento que impede a quantificação, a coisificação do homem? A dignidade da pessoa humana. Esse o fundamento maior, então, para a proibição do trabalho em que há a redução do homem à condição análoga à de escravo. Assim deve ser visto, hoje, o crime de redução à condição análoga à de escravo, até no caso do trabalho em condições degradantes. É preciso, pois, alterar a definição anterior, fundada na liberdade, pois tal definição foi ampliada, sendo seu pressuposto hoje a dignidade.
Na análise dos modelos de desenvolvimento o pensamento do indiano Armatya Kumar Sen (2010) se situa como importantes à pesquisa pretendida, pela adoção de perspectiva emancipatória. Para este pensador, as políticas públicas desenvolvimentistas devem aliar à percepção de benefício pecuniário, outras ações que ações que visem à emancipação do indivíduo através do desenvolvimento de suas capacidades fundamentais. Sen defende que o desenvolvimento humano deve compreender um projeto global de expansão das liberdades reais dos indivíduos, que passa pela remoção das formas de provação dessa liberdade: pobreza, tirania, falta de oportunidades econômicas, serviços públicos inoperantes, violência, dentre outras.
Nas ações estatais de enfretamento do fenômeno, a ruptura que se impõe passa, ainda, pelas concepções da teoria da justiça de Rawls, para o qual segundo explica Sen (2011, p. 95):
Na teoria da justiça de Rawls, um lugar importante é dado à eliminação da pobreza medida quanto à privação de bens primários, e esse enfoque rawlsiano com efeito foi poderosamente influente na análise de políticas públicas para a remoção da pobreza. Rawls reconhece indiretamente a importância da liberdade humana em dar às pessoas oportunidades reais para fazerem o que bem entendam com suas próprias vidas (SEN, 2011, p. 95).
Na perspectiva a ser adotada na relação entre desenvolvimento e direitos humanos, mostra-se relevante o pensamento de Boaventura Sousa Santos para o qual os direitos humanos devem ser postos a serviço de uma política progressista e emancipatória (2004, p. 240).
Também se mostra relevante à pesquisa a perspectiva de Flávia Piovesan (2006, p. 159/160) por exaltar que o desenvolvimento deve ser concebido como “processo de expansão das liberdades reais que as pessoas podem usufruir”, portanto se concretiza a partir da justiça social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível encontrar aspectos das políticas públicas que se inserem na vigente política nacional da reforma agrária que não contribuem para a emancipação do trabalhador rural assentado e, ao contrário, reforçam a condição de vulnerabilidade que precede a redução a redução do trabalhador à condição de escravo;
Por outro lado, políticas emancipatórias de desenvolvimento baseadas na dignidade humana afastam ou minoram a vulnerabilidade do trabalhador rural (assentado ou não) inseridnas áreas de assentamentos da reforma agrária.
¹Acerca da nomenclatura, as Convenções nº 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho se utilizam da terminologia “trabalho forçado ou obrigatório”.
²A tutela aos valores sociais do trabalho encontra-se inserida na Constituição Federal (art. 1º, inciso IV) e é fundamento do Estado Democrático de Direito. Trata-se de expressão básica da proteção à personalidade humana e orienta a busca pelo equilíbrio social e econômico em razão da hipossuficiência do trabalhador inserido em um modelo de produção instaurado dentro de uma economia globalizada. Alem disso, a ordem econômica, pela dicção do art. 170, da Constituição Federal, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social e é fundada na valorização do trabalho humano e da livre iniciativa.
³No combate ao trabalho escravo, o ordenamento brasileiro consagra penalidades nos âmbitos penal, trabalhista (indenizações) e administrativo (multas), estas últimas aplicadas por órgãos de fiscalização.
4Em abril de 2016, a Frente Parlamentar da Agropecuária entregou ao então vice-presidente da República Michel Temer, que veio a assumir o governo, um conjunto de reivindicações do setor, intitulado Pauta Positiva. Na seção dedicada às relações trabalhistas, o documento lista, como reivindicações do setor, o estabelecimento da “diferenciação entre trabalho escravo, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva” e de “limites aos auditores do trabalho e às Normas Regulamentadoras do Trabalho (NRs). (Ver: <https://goo.gl/7enr9q>. Acesso em: 28 out. 2018.)
5Ver: <https://goo.gl/p15Duw>. Acesso em: 28 jun. 2018.
6Ver: https://www.cptnacional.org.br/multimidia/12-noticias/conflitos/4370-grileiros-e-madeireiros-anunciam-a-morte-de-agricultores-na-regiao-oeste-do-para. Acesso em 02/01/2019.
7Segundo a CPT, algumas das execuções são explicitamente citadas pelos moradores, como a do senhor João Carlos Baú (o Cuca), que foi executado quando dançava em uma festa no assentamento, Edivaldo da Silva (Divaldinho), no dia da inauguração da energia elétrica no assentamento, foi esfaqueado dentro de sua casa e João Chupel Primo que foi executado com um tiro na cabeça, dentro de sua oficina mecânica, no Distrito de Miritituba, município de Itaituba (PA), à beira da Rodovia Transamazônica. Chupel como era conhecido, foi executado por denunciar o esquema da extração de madeira ilegal dentro do PA Areia ao Ministério Público Federal em Altamira um dia antes da sua morte. Ver: https://www.cptnacional.org.br/multimidia/12-noticias/conflitos/4370-grileiros-e-madeireiros-anunciam-a-morte-de-agricultores-na-regiao-oeste-do-para. Acesso em 02/01/2019.
8Ver: https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/artigo-osvalinda-e-daniel-a-resistencia-agroecologica-na-fronteira-do-agronegocio/22836. Acesso em 02/01/2019.
9Dentre os marcos legislativos internacionais relacionados ao objeto de estudo incorporados ao ordenamento pátrio se destacam: A Convenção n° 29, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada no Brasil através do Decreto nº 42.721, de 1957, pelo qual o Brasil comprometeu-se a abolir o trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas; a Convenção sobre Escravatura de 1926, emendada pelo Protocolo de 1953 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura de 1956, promulgadas através do Decreto nº 58.563, de 1966, pelo qual a nação brasileira se comprometeu a abolir todas as formas de escravidão, incluindo a servidão em geral e, particularmente, a servidão por dívidas; a Convenção nº 105, da OIT, promulgada através do Decreto nº 58.822, de 1966, pelo qual o Brasil comprometeu-se a suprimir o trabalho forçado em todas as suas modalidades; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto nº 678, de 1992; o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que foi promulgado pelo Decreto nº 4.388, de 2002.
10Não há como negar, entretanto, que a miséria e a pobreza ainda estão vinculadas a etnia no Brasil, como demonstram alguns estudos.
¹¹Ver: http://pgt.mpt.gov.br/publicacoes/escravo/dignidade-trabalhoescravo.pdf. Acesso em 02/01/2019.
¹²O artigo 2º da Convenção nº 29, OIT, estabelece que “Para os fins da presente convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”.
¹³Em 2006, com o julgamento do RE nº 398.041-PA e, também, no julgamento do INQ n. 3412, publicado no DJe de 12 de novembro de 2011.
14O TRF 1ª Região tem sob sua jurisdição o Distrito Federal e os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins.
15Trata-se de uma lista inicialmente regulada pela Portaria no 540/2004, posteriormente substituída pela Portaria Interministerial MTE/SDH nº 2, de 12 de maio de 2011, que arrola o nome dos empregadores envolvidos na prática do trabalho escravo, pessoas físicas ou jurídicas. A lista é divulgada ao público e é encaminhada ao sistema bancário a fim de coibir que empresas nela inseridas se beneficiem de créditos públicos ou sejam contratadas pelo Estado.
16Publicada em 23 de dezembro de 2014 a partir de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5209 impetrada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).
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