REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10927181
Mateus Klabunde¹;
Gustavo Angeli².
Resumo: O presente artigo promove um debate sobre as reformulações e os atravessamentos históricos do conceito de cura e o método psicanalítico desde seu início até a contemporaneidade. Neste sentido, perpassamos as primeiras teorias freudianas em relação ao tratamento das histéricas, a hipnose, catarse e a associação livre, permitindo um olhar sobre o inconsciente para além do patológico e da psicanálise como uma terapêutica. A metodologia adotada para o desenvolvimento da pesquisa, trata-se de uma pesquisa bibliográfica no qual a coleta de dados é realizada a partir de artigos e livros publicados sobre o tema, assim como a associação a população LGBT+ ocorre em decorrência das indicações dos artigos e livros frente à demanda de uma escuta psicanalítica e reformulações teóricas dentro da própria psicanálise. Desta forma, identificou-se que a comunidade LGBT+ passa por um processo de despatologização que surge desde a psicanálise freudiana e a história do tratamento psicanalítico até chegar na contemporaneidade em um novo olhar frente ao sexual e a pluralidade de gênero. Trata-se de discutir como a psicanálise se transformou a partir de um retorno a Freud e aos novos modelos e demandas da clínica psicanalítica contemporânea.
Palavras-chave: Clínica Psicanalítica; Comunidade LGBT+; Cura.
Abstract: This article promotes a debate on the reformulations and historical crossings that the concept of healing and the psychoanalytic method have from its beginnings to contemporary times. In this sense, we go through the first Freudian theories in relation to the treatment of hysterics, hypnosis, catharsis and free association, allowing a look at the unconscious beyond the pathological and psychoanalysis as a therapy. The methodology adopted for the development of the research is a bibliographic research in which data collection is carried out from articles and books published on the subject, as well as the association with the LGBT+ population occurs as a result of the indications of the articles and books in the face of the demand for psychoanalytic listening and theoretical reformulations within psychoanalysis itself. In this way, it was identified that the LGBT+ community goes through a process of depathologization that arises from Freudian psychoanalysis and the history of psychoanalytic treatment until reaching contemporary times in a new look at the sexual and gender plurality. It is about discussing how psychoanalysis has been transformed from a return to Freud and to the new models and demands of contemporary psychoanalytic clinic.
Keywords: Psychoanalytic clinic; LGBT+ community; Cure.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo promove um debate a partir da teoria psicanalítica sobre o conceito de cura e o método psicanalítico visando problematizar os atravessamentos históricos e as reformulações que o tratamento e a clínica psicanalítica desenvolveram desde o seu início até a contemporaneidade. Para além de uma clínica, a psicanálise é reconhecida como um tratamento, esta compreendida como a invenção de uma saúde subjetiva, no qual não se encaixa nos moldes sociais pré-estabelecidos, no entanto, para se chegar nesta perspectiva, foi necessário o rompimento com o ideal de tratamento adotado até o final do século XIX.
As definições de normal e patológico possuem raízes profundas na história do tratamento que, por sua vez, constituem uma racionalidade sobre os caminhos do tratamento e o pensamento político adotado, dito de outro modo, a soberania da anatomia e de um olhar médico pautado nas configurações de doença e o mal do corpo. Neste sentido, o conceito de cura surgiu em defesa de uma determinada forma social de viver, portanto, não é determinado apenas pelos fenômenos clínicos, mas principalmente em privilegiar uma noção normalizada de saúde e limitada à subjetividade.
O conceito de cura sempre foi de grande significado para a psicanálise, historicamente passou por desconstruções e construções durante sua formulação, sempre acompanhando os desdobramentos do método psicanalítico. Na primeira fase, conhecida como catarse e utilizada durante o período de 1880 até 1895, Breuer juntamente de Freud utiliza da hipnose para regredir o paciente à situação traumática, para então, causar uma descarga psíquica removendo as tensões envolvidas no momento da formação dos sintomas, acreditava-se que a lembrança causava a erradicação sintomática e proporcionava a cura permanente dos seus pacientes (FREUD, 1917/1996).
Posteriormente, Freud abandona o método catártico por reconhecer que a hipnose produzia resultados incertos e que somente os pensamentos espontâneos dos pacientes podem ser utilizados na realização de um tratamento, portanto, a associação livre surge como o novo método psicanalítico, que consiste em convidar o paciente a falar livremente o que tiver vontade, sem necessariamente seguir uma sequência lógica da consciência (FREUD, 1924/1996).
Desta forma os modelos de estruturação do aparelho psíquico, tanto da primeira quanto da segunda tópica e a metapsicologia, permitiram releituras e revisões do tratamento psicanalítico, assim como, o processo de mudança permite que as novas formas de tratamento contribuam nos avanços do conceito de cura para a psicanálise.
A partir da associação livre, Freud constrói seu primeiro modelo de aparelho psíquico, concebendo o sujeito em três instâncias sendo elas inconsciente, pré-consciente e consciente. O inconsciente é a região que contém os registros mnêmicos, que são impedidos de emergir na consciência por conta da censura, o seu modo de funcionamento possui regras próprias que são regidas por meio dos processos primários e do princípio do prazer. O pré-consciente contém os registros que não estão de imediato disponíveis à consciência, contudo, podem ser acessados por meio de um aumento de excitação. Por fim, a consciência, é aquela que possui os conteúdos disponíveis de imediato para o sujeito, como por exemplo os derivados da percepção (FREUD 1901/1996).
Após o surgimento do conceito de metapsicologia na teoria freudiana, alguns conceitos foram redefinidos, a metapsicologia afetou a passagem do primeiro para o segundo modelo de aparelho psíquico de maneira que o conceito de inconsciente se tornasse mais amplo, que passa a conter, não apenas os conteúdos recalcados, mas também as instâncias recalcantes. Ao mesmo tempo, atuou na redefinição do conceito de ego, que passou a ser reconhecido como um sistema diferente de pré-conciente ou consciente, pois o seu núcleo é inconsciente. Por fim, como consequência da ampliação do conceito de ego, a metapsicologia atuou na explicitação das instâncias ideais, que posteriormente foram a base da construção do superego. Portanto, o novo modelo de aparelho psíquico surge não para substituir o primeiro, mas sim, complementar e redefinir a teoria (SAMPAIO, 2013).
Em 1923 o segundo modelo é inaugurado, agora é composto por id, ego e superego. O id é um sistema totalmente inconsciente que é regido pelas pulsões, o ego surge como o sistema que entra em contato com a realidade externa, ele se estrutura por meio de funções secundárias, como a busca pela manutenção de vida e, da mesma forma, uma instância ativa recalcante, diferentemente da primeira tópica, o ego pertence simultaneamente ao inconsciente e consciente. Por fim, o superego, é um sistema herdeiro do complexo de édipo que sustenta os ideais de cada sujeito (SAMPAIO, 2013).
A clínica se apresenta como um lugar que demanda desconstruções durante o processo de sua formação, ao mesmo tempo, a escuta psicanalítica se transforma, diante deste contexto, o tema desta pesquisa se destina em apresentar os desdobramentos do conceito de cura para a teoria psicanalítica, a fim de discutir na contemporaneidade uma clínica e a escuta psicanalítica em relação à população LGBT+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e o indicativo “+” é utilizado para alcançar uma amplitude maior diante do movimento). Através de uma pesquisa bibliográfica, se analisou dois eixos centrais que se referem ao tratamento, o primeiro se refere a população LGBT+ e suas demandas e o segundo a sexualidade do analista e o processo de formação.
Por meio de uma pesquisa bibliográfica em artigos e livros publicados, identificou-se que a comunidade LGBT+ passa por um processo de despatologização, no qual inclui em questão tanto a sexualidade do paciente quanto a do analista em relação ao tratamento. A psicanálise surge a partir do rompimento com as noções de tratamento constituídas pela medicina, desconstruindo a ideia de um sujeito “normal” e abrindo um espaço de acolhimento para o desejo e a escuta singular. Neste sentido, o método psicanalítico descarta a possibilidade de uma normalidade e se reinventa pensando em seus conceitos em relação ao tratamento e a escuta. Entrelaçamos as concepções de cura e tratamento às questões da população LGBT+ para problematizar as reformulações da teoria psicanalítica em relação à escuta e ao tratamento clínico.
O tema cura e tratamento psicanalítico dizem respeito ao pesquisador e sua implicação no percurso na Clínica-escola. Uma inquietação teórica a partir dos atendimentos clínicos que se desdobrou nesse tema de pesquisa. Desta forma, o conceito de cura ganhou uma grande importância para o autor, no sentido de investigar os desenvolvimentos do movimento psicanalítico desde o método catártico até mesmo na contemporaneidade com a associação livre, visto que a cura atravessa e é atravessada pelas transformações do movimento histórico atribuindo novos sentidos a se pensar. A psicanálise se trata de um método analítico que oferece a cura pela palavra, no qual o sujeito é visto como dotado de singularidade e mantém uma relação com outras pessoas desde a sua constituição. Partimos desse pressuposto para construir um diálogo sobre as novas demandas, em especial as questões LGBT+, e as transformações da escuta e da concepção de cura dentro da psicanálise.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 HISTÓRIA DO TRATAMENTO PSICANALÍTICO: CHARCOT, BREUER E FREUD
Sigmund Freud é um grande admirador dos estudos realizados por Jean-Martin Charcot, sobretudo aqueles que se referem às histéricas e o tratamento através da hipnose. Historicamente, a histeria foi diversas vezes associada a sinais negativos, em séculos anteriores, as mulheres histéricas se apresentavam como feiticeiras ou possuidoras do demônio, sendo julgadas e condenadas através dos próprios estigmas e seus sinais somáticos. No mundo contemporâneo, a histeria carrega consigo diversos preconceitos enraizados, como os que se referem à simulação durante um quadro clínico, entendia-se que as histéricas eram mentirosas e enganavam a medicina com sintomas inexplicáveis (FREUD, 1886/1996).
Em seu estudo sobre a histeria, Charcot demonstra a existência da histeria masculina e a histeria traumática, encontrando em meio ao seu percurso alguns sinais somáticos que possibilitaram o diagnóstico da doença, tais como os distúrbios da visão, a natureza do ataque, a anestesia e os pontos histerógenos. A partir da hipnose, Charcot desenvolve uma teoria do sintoma histérico, levando em consideração o discurso dos pacientes como verdadeiros, desta forma, um movimento de desmistificação teve início, além de atribuir um lugar de escuta à neurose (FREUD, 1886/1996).
A história do tratamento na psicanálise se inicia a partir das descobertas de Josef Breuer e Sigmund Freud sobre os estudos da histeria, no qual, os sintomas dos pacientes consistem em cenas significativas que foram esquecidas, se transformando em traumas. O tratamento desenvolvido na época é conhecido como catarse e fundamenta-se em retomar as lembranças e reproduzi-las em um estado de hipnose, em teoria, os sintomas reprimidos carregam uma carga de excitação fonte das tensões psíquicas e para que ocorra a cura, seria necessário que ocorresse a descarga do afeto, uma descarga psíquica removendo as tensões do momento da criação dos sintomas, o método catártico foi utilizado por Freud e Breuer durante o período de 1880 até 1895 (FREUD, 1914/1996).
Logo após a publicação de Estudos sobre a Histeria (1893 – 1895), a relação entre Freud e Breuer chegou ao fim. Breuer abandonou o estudo de pacientes nervosos porque não concordava com a sexualidade na etiologia das neuroses e Freud decidiu aprimorar o seu método de tratamento, introduzindo novas descobertas que transformaram a catarse em psicanálise. O maior desafio encontrado foi abandonar a hipnose como técnica sugestiva, essa decisão partiu de dois motivos, sua insuficiência ao induzir o estado de transe em uma grande quantidade de pacientes e sua insatisfação com os resultados produzidos através da utilização da hipnose, apesar de serem notáveis, não eram permanentes e dependiam demasiadamente da relação entre paciente e médico (FREUD, 1923/1996).
O abandono da hipnose provocou uma reformulação no método psicanalítico, foi necessário encontrar um método substituto capaz de evocar as lembranças reprimidas do paciente, Freud teve a ideia de introduzir a associação livre, que consiste em convidar o paciente a falar livremente o que tiver vontade, sem necessariamente seguir uma sequência lógica da consciência. Freud (1893/1996) ao longo do tempo foi substituindo gradativamente o método catártico e a hipnose pela associação livre, seu objetivo era retirar a sugestão como prática fundamental da psicanálise. A partir da escuta de uma de suas pacientes, Emmy Von N, Freud percebe que ao falar livremente, a investigação dos conteúdos inconscientes acontecia de forma mais confiável, ele se dá conta deste movimento quando sua paciente solicitou que parasse de intervir em seu discurso e a deixa-se falar. A associação livre representa a abstenção de qualquer pensamento consciente e a renúncia em um estado de concentração, em que somente os pensamentos espontâneos e involuntários possam surgir em sua fala (FREUD, 1923/1996).
Ao se referir a escolha da associação livre como método investigativo, Freud (1923/1996) demonstrou que o material manifesto de fato não seria livre, mas sim, determinado pelo inconsciente. A associação livre é considerada a regra fundamental da psicanálise, e quando respeitada, pode produzir representações que se aproximam do conteúdo recalcado pelo paciente, com o auxílio da interpretação, é possível produzir novos pensamentos a partir do material recalcado, desta forma, a associação livre desempenha o mesmo papel que a hipnose.
A partir da associação livre, com intenção de desenvolver um fundamento teórico para a psicanálise, Freud (1914/1996) aprofunda seus estudos na metapsicologia, a abordagem metapsicológica é representada pelo desenvolvimento de modelos teóricos que surgem a partir da clínica, ou seja, não estão diretamente ligados à experiência prática, ela se justifica através dos pontos de vista dinâmico, tópico e econômico (ROUDINESCO, PLON, 1998).
Ambos os modelos de aparelhos psíquicos tanto da primeira quanto da segunda tópica Freudiana foram atravessados pela metapsicologia, esses sistemas contribuem para o entendimento dos modos de manifestação dos conflitos, permitindo a descrição dos processos psíquicos e suas relações. Estes modelos permitem a reflexão da escuta psicanalítica e a abertura para outras investigações teóricas (SAMPAIO, 2013).
2.2 ASSOCIAÇÃO LIVRE E AS CONCEPÇÕES DE CURA EM PSICANÁLISE
Com o início da associação livre e o rompimento da noção de tratamento do final do século XIX, Freud encontra na clínica um espaço de acolhimento e um ponto de partida a partir do inquietante. A associação livre fundamenta uma clínica que transforma a psicanálise em uma abertura a um tipo de experiência em que a cura se vincula a uma forma de vida e não a repetição de um padrão imposto por um ideal civilizatório de saúde (NEVES, 2020).
O conceito de cura para a teoria psicanalítica inicialmente é entendido como um termo antipredicativo, trata-se da isenção dos ideais e das normas positivas comuns, o objetivo do tratamento não é buscar a felicidade e o bem estar como uma prática já proposta por um molde social, uma vez que tanto a felicidade quanto a saúde adquirem para cada sujeito um sentido singular. A ética que permeia a noção de cura produziu efeitos significativos no percurso freudiano, pois no decorrer de sua obra ele desconstrói o fanatismo da felicidade e da saúde. Portanto, a cura para Freud é a invenção de uma saúde própria que seja possível levando em conta o contexto e a história do sujeito, o objetivo do tratamento é produzir um sentido singular que, muitas vezes, pode não corresponder os valores normativos de uma determinada sociedade (NEVES, 2020).
Por isso, pode-se afirmar que a noção de cura possui um valor antipredicativo, que sustenta uma proposta de tratamento e cura que descarta a produção da normalidade. Freud (1910/1996) afirma a impossibilidade da prática psicanalítica na perspectiva de um ideal técnico, mecanizado e invariável, pois o sintoma ao ser produzido, é um resultado de uma condição psíquica específica e que não pode ser interpretado com uma mesma técnica interpretativa. Portanto, no decorrer da obra freudiana, além do método, existe uma preocupação com a ética do desejo e a escuta de um sujeito singular.
Por fim, vale salientar que a ética na psicanálise, desconstrói a ideia de um método produtor de hábitos e costumes normativos, o sujeito é atravessado por uma visão ética, assim como a escuta do analista é orientada pela associação livre e o manejo da transferência. Koltai (2008) destaca que a sociedade contemporânea deixou de ser atravessada e perturbada pelo desejo e passou a ser dominada pelo gozo, estabeleceu-se um discurso social que faz acreditar que a ordem simbólica do sujeito não traz em si a inquestionável decepção. Cada vez mais pessoas buscam o analista como se estivessem indo ao médico ou o psiquiatra, as tristezas mais banais como o luto e a separação se tornaram patologias, o sujeito parece ser incapaz de suportar o tempo de cicatrização e busca por uma cura imediata, não importando se o tratamento está disponível nas farmácias ou nos consultórios.
A ética da psicanálise e o discurso do analista se estruturam em um sentido oposto a lógica do gozo, o analista não possui o domínio do saber para oferecer a satisfação imediata ao sujeito, mas sim, colocar em análise um interesse que convoca o sujeito a falar de seu sofrimento e do seu desejo, implicando o sujeito como detentor da verdade, sua verdade singular (BRITO, 2019).
2.3 PSICANÁLISE E PSICOTERAPIA
A clínica psicanalítica surge a partir da transformação do saber que se opõe a aplicação de métodos e técnicas que buscam o furor sanandis cada vez mais presente nos modelos atuais, sejam estes de base comportamentais ou humanistas. Levando em conta a intervenção freudiana e o rompimento de seus discípulos, ambos os modelos se multiplicaram e transformaram-se em uma variada diversificação de práticas psicoterápicas. As demandas de soluções rápidas associadas à promessa de cientificidade de seu método ganham espaço cada vez maior no que diz respeito ao mal-estar do sujeito na contemporaneidade (OLIVEIRA 2008).
Ainda que as psicoterapias e a psicanálise utilizam da mesma ferramenta, a palavra, as primeiras tentam sugerir que o sujeito se conduza a um sentido único e singular, com efeito, a psicanálise se propõe a escutar o lugar do não-sentido. O analista opera uma forma refinada de saber que inclui o não saber, resistindo aos modelos clínicos voltados para uma ideia de cura que normaliza o sujeito. O manejo transferencial, incluindo o término do tratamento e a formação do analista, atravessam diferentes questões que identificam a distinção entre psicoterapia e psicanálise, a diversidade da psicanálise abrange uma variedade de sentidos em relação à cura e a psicoterapia (OLIVEIRA 2008).
Koltai (2012) compreende a psicanálise como uma forma de psicoterapia, salienta que a relação entre psicanálise e psicoterapia deve ser entendida como uma possibilidade para que o sujeito encontre uma outra via para o seu desejo, ampliando os limites do pensável em uma determinada sociedade. Ao deparar-se com uma irrupção do real, o sujeito faz uma aposta na psicanálise para tentar entender sua relação consigo próprio e com o mundo, no falar e interrogar-se sobre o sofrimento que o constitui, ele será acolhido e poderá ressignificar e elabora um novo sentido. A psicoterapia se liga na construção de um sentido e a análise em uma desconstrução e na abertura do devir.
Esta representação de uma diferença entre psicoterapia e psicanálise foi, da mesma forma, abordada por Zygouris (2017). A autora destaca que a psicoterapia se satisfaz e desempenha um papel de diminuição do sofrimento, enquanto que a psicanálise pretende buscar uma transformação que vai mais adiante do que a supressão do sintoma, podendo, aliás, sustentar seu convívio. Zygouris (2017) complementa com alguns aspectos que podem explicitar o tratamento psicanalítico, ou seja, os indícios de psicanálise, como o desejo do analisando de saber mais sobre o seu próprio funcionamento psíquico e os desdobramentos dos movimentos transferenciais que reverberam a abertura de outros e novos caminhos na história do paciente.
No final de sua vida, Freud ressaltou o traço interminável de uma análise, abdicando-se de qualquer ideal perfeito ou uma cura completa do sujeito, além de introduzir a ideia de reformulação da experiência da análise caso necessário. Estas inovações reafirmaram a psicanálise como um método não cristalizado, que modifica sua prática conforme o passar dos anos, assim como as transformações decorrentes da demanda do desejo dos pacientes (ROUDINESCO; PLON, 1998).
2.4 PERSPECTIVAS FUTURAS
Durante sua clínica, Freud percebe que cada paciente transfere e resiste ao tratamento de forma diferente, sendo necessário introduzir variações no seu método para lidar com as defesas encontradas, portanto o método psicanalítico é atravessado por transformações indefinidas durante o processo da experiência da análise, cada novo encontro é uma reinvenção e autorização de uma nova psicanálise. Os sucessores de Freud podem ser numerosos exemplos que afirmam o caráter transformador da teoria, pois as inovações atribuídas por eles trouxeram a prova de que a psicanálise não permaneceu cristalizada e soube modificar o fazer do analista ao longo dos anos (ROUDINESCO, PLON, 1998).
Uma das principais transformações atribuídas ao movimento psicanalítico foi reinventar a relação entre analista e paciente, ao escutar o sujeito e aceitar que ele mesmo pode verbalizar o seu sintoma. A psicanálise rompeu com a fronteira entre o saber e a verdade, resultando na transformação de estigmas, incluindo o conceito de cura, para além da erradicação sintomática a cura representa uma transformação e tradução de si (ROUDINESCO, PLON, 1998).
Freud (1910/1996) apostou que a psicanálise continuaria a se desenvolver após a sua morte e que a autoridade do analista seria reconhecida em lugares não explorados por ele próprio. Pode-se perceber que a psicanálise realmente conquistou novos espaços na contemporaneidade, sendo inserida até mesmo nas universidades e em outros dispositivos de comunicação como em televisões e rádios, na saúde pública e no serviço social. A psicanálise se transforma na medida em que a sociedade mobiliza novas demandas, constituindo a subjetividade de cada época. Portanto, reafirmamos que investigar a reinvenção, os avanços e as possibilidades de transformação da psicanálise enquanto uma modalidade terapêutica é a proposta deste trabalho.
3 MÉTODO
A psicanálise é um procedimento de investigação dos processos psíquicos de caráter inconsciente, da mesma forma, um método de tratamento dos distúrbios neuróticos, desta maneira reconhecida como uma disciplina científica e um campo de saber (FREUD, 1920/2011).
A modalidade de pesquisa com o método psicanalítico exige a presença de um analista em atividade clínica, compreendendo que a escuta possui papel fundamental de permitir que o objeto analisado ressurja de forma desconstruída e transformada. A participação é ativa no processo, buscando por meio das práticas clínicas hipóteses que sustentam o tema abordado, uma mera observação dos fatos não suporta uma teoria científica, portanto, é papel do pesquisador se implicar em procurar conhecer as determinadas manifestações, para então, se implicar subjetivamente realizando a escuta a partir de um lugar teórico, que possibilita construir novos diálogos acerca do assunto (SILVA, MACEDO, 2016).
Portanto, a pesquisa e seus meios de investigação promovem resultados a posteriori, ou seja, os conceitos são interpretados após a realização de um percurso de elaboração e escuta transferencial, não tornando o sujeito da pesquisa ou os conceitos um objeto de desejo do analista, assegurando assim, as regras de abstinência e neutralidade da escuta. Este método pode ser utilizado para interpretar qualquer manifestação que faça parte da realidade humana, desta forma, o método psicanalítico possui valor significativo para associar a pesquisa, a psicanálise e a criatividade do pesquisador, para a construção dos recortes clínicos (SILVA, MACEDO, 2016).
Os recortes clínicos são constituídos a partir de experiências analíticas, ou seja, para a realização de uma pesquisa com o método psicanalítico, o pesquisador irá dispor da escuta como forma de intervir nas histórias que surgem na relação transferencial da análise, promovendo o encontro entre a pesquisa e a clínica.
Desta forma, a presente pesquisa se sustenta em uma concepção de pesquisa em psicanálise assim como utiliza-se a pesquisa bibliográfica. O método de pesquisa bibliográfica, consiste no exame da bibliografia, para o levantamento e análise do que já foi produzido sobre o assunto assumido como tema de pesquisa científica. Tal método foi realizado em duas fases: a coleta de fontes bibliográficas, na qual foi feito o levantamento da bibliografia existente e, logo após, a coleta de informações, na qual foi realizado o levantamento dos dados, fatos e informações contidas na bibliografia selecionada. A busca pelos textos foi realizada a partir das seguintes palavras-chave: clínica psicanalítica, comunidade LGBT+ e tratamento psicanalítico, de forma predominantemente manual em uma diversidade de bases de dados.
Foi feita uma leitura exploratória, verificando se existiam ou não informações a respeito do tema proposto e de acordo com os objetivos do estudo. Nessa leitura, foram selecionados 230 artigos. Logo após, foi realizada uma leitura seletiva, a partir da qual foi determinado o material que seria utilizado na pesquisa, selecionando as informações pertinentes de acordo, novamente, com os objetivos do estudo. Nessa fase, foram selecionados 8 artigos que abordavam o tema da pesquisa.
Dos artigos selecionados, foi realizada uma leitura crítica, buscando elaborar e produzir um diálogo dos conceitos psicanalíticos frente a proposta e problemática da presente pesquisa e, em seguida, uma leitura interpretativa, na qual foram relacionadas as informações e ideias dos autores com as questões para os quais se buscavam elaborações e a construção de novos e outros saberes. Desta forma, esta pesquisa possui dois eixos centrais de desenvolvimento e discussão, o primeiro se trata das transformações que o tratamento e a escuta psicanalítica mobilizaram para dar espaço e voz a sexualidade não normativa e a pluralidade de gênero, e o segundo eixo se refere a sexualidade do analista juntamente com o processo de formação psicanalítica que inclui o analista e suas questões, assim como o preconceito e a cristalização da teoria em torno da sexualidade do analista e dos analisandos.
4 ANÁLISE
4.1 COMUNIDADE LGBT
Os movimentos mobilizados pelas minorias sociais no século XX, como o feminismo, lutando pelos direitos das mulheres e a comunidade LGBT+, defendendo o reconhecimento de pessoas que não se enquadram na categoria heterossexual, promoveram avanços políticos em inúmeras pautas sociais, no qual se destacam a igualdade de direitos civis, a existência pública de pessoas LGBT+, o reconhecimento jurídico de pessoas trans com o ajustamento de seu nome social, além do combate a violência em nome das diferenças (LIMA, VORCARO, 2020). Neste sentido, o presente tópico vislumbra um debate de como a psicanálise se reinventou a partir do movimento social LGBT+. Historicamente, em um período em que a clínica médica foi fundamentada pela religiosidade e o código moral, as pessoas que não se dizem heterossexuais eram rotuladas e patologizadas de diversas formas como perversos, doentes, anormais, pecadores entre outros estigmas, inclusive, buscou-se um tratamento voltado para estes sujeitos. Medicalização e eletrochoques foram por muito tempo atos clínicos de uso comum em um possível tratamento da sexualidade, além da utilização de técnicas de condicionamento aversivo com o intuito de direcionar o sujeito para a heterossexualidade. O despreparo da sociedade ao lidar com a população LGBT+ continuou gerando situações opressoras, as internações involuntárias em estabelecimentos particulares chamados de “comunidades terapêuticas”, teriam submetido os seus pacientes a terríveis sessões de crueldade em busca da cura da sexualidade humana, o que em uma visão psicanalítica constitui um sujeito (TOLEDO, 2012).
A psicanálise apresenta um contraponto ao método da medicina, um sintoma não pode ser pensado excluindo todos os outros, uma vez que exista uma lógica que opera na sua construção, uma estrutura diagnóstica nunca é um conjunto de sintomas desligados uns dos outros, este sentido só é possível na medida em que a escuta tenha como ponto de partida o sujeito. A escuta da demanda inclui o sujeito a se posicionar diante do seu desejo (TRIBUZY, LUSTOZA, 2021).
Em uma clínica voltada para a população trans, por exemplo, ao solicitar ajuda médica, o sujeito passa a entregar-se aos elementos da ordem da medicina, no qual existem critérios que distinguem o normal e o patológico. Portanto, para ter acesso a um tratamento, o sujeito é posto no lugar de doente, no qual ele não quer estar, mas deseja dispor dos benefícios, especificamente o reconhecimento, neste sentido, ao deparar-se com a clínica, passa por um diagnóstico, o que gera uma tensão psíquica inevitável diante da possibilidade de transição (TRIBUZY, LUSTOZA, 2021).
Um sujeito trans quando procura a clínica se atravessa por um diagnóstico, o que pode transmitir, por alguns, a noção de uma psicanálise produtora de estigmas daqueles pacientes. No entanto, a ética que permeia a psicanálise não perpassa por uma visão moral de normalidade, pois “se não existe um sujeito normal, evidentemente não poderia existir os que desviam da norma” (TRIBUZY, LUSTOZA, 2021, p.31). O intuito da psicanálise ao utilizar um diagnóstico estrutural não tem haver com rotular, estigmatizar ou segregar o paciente, o diagnóstico é produzido a partir da transferência com o objetivo de orientar o analista nos caminhos da análise. Neste sentido, a clínica psicanalítica permite a despatologização do sujeito e a escuta do seu desejo.
Nesta perspectiva, pode-se identificar que os discursos ocidentais que se referem à sexualidade, são constituídos por períodos sócio-históricos que produzem normas e regras a respeito da libido e o prazer. A norma surge como um agente regulamentador que pretende determinar as práticas sexuais “normais” e as “patológicas”, assim como oferecer um tratamento às últimas, neste sentido, o desenvolvimento de uma normalização da sexualidade se transforma em um objeto de controle do corpo, constituído por uma ordem religiosa, jurídica ou médica, além de, fazer parte dos interesses do estado. A partir deste momento, surge o discurso psiquiátrico, estabelecido por um olhar moralista e higienista, sustentando a posição teológica e jurídica adotada (CECCARELLI, ANDRADE, 2018).
Freud, no entanto, se baseia em um caminho diferente, na medida em que a sexualidade humana se constitui em uma estrutura polimórfica e perversa, são os desvios da normalidade que mobilizam suas questões de base. Considerar que a sexualidade seja um impulso natural, no qual seu princípio fundamental, consiste na reprodução é uma “fábula poética”, este equívoco provocou graves consequências na contemporaneidade, sendo um dos principais fatores da incompreensão da vida sexual de hoje. O discurso moralista é atravessado por vertentes religiosas e biológicas que vulgarizam a opinião popular, se enganando em uma suposta natureza da sexualidade (CECCARELLI, ANDRADE, 2018).
A leitura freudiana provocou reflexões inovadoras acerca da sexualidade, modificando drasticamente a ordem sexual atual, sobretudo, oferecendo um novo olhar revolucionário a partir da publicação dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1905/1996). Em suas palavras, Paulo Roberto Ceccarelli (2018, p. 69) menciona um recorte sobre a teoria:
Um dos aspectos da famosa “ruptura freudiana” foi a formulação do inconsciente (Freud, 1915/1976d), que revelou a alteridade interna que desconhecemos. É nele que encontramos os impulsos sexuais, ou simplesmente o sexual: o sexual é polimorfo, múltiplo e perverso; é o recalcado por excelência, que se manifesta nas fantasias e nos devaneios, nos atos falhos e nas ocasiões quando somos surpreendidos pelo estranho (Das Unheimlich). Trata-se de impulsos antes do recalque, isto é, das vicissitudes do sexual infantil antes da construção dos diques (vergonha, asco, exigências estéticas), organicamente condicionado e fixado pela hereditariedade (Freud, 1905/1976a). Em sua busca anárquica, incessante e amoral de prazer, na qual a procriação está ausente e o objeto é o que menos importa, tudo serve, embora nada satisfaça, para que a tensão diminua: a força do impulso é constante.
O fato é que o sexual é um enigma para a sociedade, neste sentido, os discursos sobre a sexualidade são produzidos de maneira cultural e constituem o momento sócio-histórico em que se encontram as narrativas do “politicamente correto”, por exemplo, trazem os movimentos conservadores e moralistas aos poucos para a atualidade. Apesar disso, estes discursos e narrativas não são capazes de prevalecer por muito tempo, visto que a sexualidade opõe-se a qualquer forma de normatização (CECCARELLI, ANDRADE, 2018).
Desta forma, os movimentos de despatologização da comunidade LGBT+, foram possíveis a partir das transformações discursivas, que sustentam a sexualidade como uma construção social, sem nenhuma relação com uma suposta “natureza humana”. Na clínica, os analistas tiveram que questionar seus princípios, remanejando a escuta e reformulando as novas formas de transferência, pois a pouco tempo, um sujeito que não se define como heterossexual era visto como possuidor de um distúrbio, portanto, a clínica psicanalítica mobiliza um lugar da escuta e de quem escuta. Dito de outro modo, a clínica psicanalítica demanda a escuta do singular e uma despatologização da pluralidade de gênero e da sexualidade ao entender um sujeito constituído pelo inconsciente e pela pulsão.
4.2 A SEXUALIDADE DO ANALISTA E A CLÍNICA
O processo de patologização estabelecido desde os primórdios da medicina acompanhou todo o percurso de estruturação do método psicanalítico, não apenas os sujeitos que apostam em uma análise estavam submetidos a se enquadrarem a um transtorno, como também, os candidatos a formação como analistas foram afetados. No início do século XX, se uma mulher lésbica ou um homem gay estivessem dispostos a adentrar o sistema de formação psicanalítica e fossem aprovados a partir das entrevistas iniciais eram acometidos por um medo constante de serem descobertos e expulsos, visto que tanto as instituições psicanalíticas atribuíam a homossexualidade uma tentativa de desconstruir os valores de família e sociedade sustentados por seus discursos. Apesar dos homossexuais desempenharem um papel compatível com suas funções, muitas vezes excelentes psicanalistas, caso fossem descobertos seriam expulsos para que os valores e o estereótipo de um sujeito heterossexual prevalecessem acima da homossexualidade (BULAMAH, KUPERMANN, 2018).
Portanto, o estigma da normalidade heterossexual apoiava concepções, muitas vezes imprecisas e equivocadas, acerca da homossexualidade, visto que eram motivos adequados para a expulsão de homossexuais da formação em psicanálise. O argumento em que o discurso conservador sustentava-se, era que somente um analista heterossexual teria acesso aos conteúdos de um sujeito com a mesma orientação sexual que ele. Neste sentido, a escuta do analista se enquadrava em uma norma e moral que permitia com que se sustentasse um lugar de saber em que um analista homossexual não conseguiria ou poderia ocupar. No caso de uma análise ofertada por um psicanalista homossexual, se supõe a produção de uma possível patologia de cunho iatrogênico, no qual o analista é o responsável por danificar a estrutura psíquica do sujeito, uma vez que sua sexualidade esconde graves sintomas que não se adequavam às competências de um psicanalista. (BULAMAH, KUPERMANN, 2018).
Cabe destacar que algumas escolas psicanalíticas possuíam diferentes posicionamentos acerca da homossexualidade na formação, Rachel Cunningham (1991) expõe uma visão Kleiniana destes fatos:
Parece que um fator central militando contra o treinamento analítico de homossexuais é a assunção da presença de fantasias anti-pais, anti-bebês no centro da vida inconsciente homossexual. É um dos pilares da psicanálise, particularmente na escola kleiniana, que o marco da saúde mental e maturidade emocional seja a tolerância da noção do casal parental realizando o ato sexual. (…) A apreensão parece ser a de que o homossexual, querendo ser como o genitor do outro sexo, está na verdade invejosamente usurpando a identidade e posição daquele genitor e falsamente reclamando-a como a sua própria, ao mesmo tempo reclamando o genitor do mesmo sexo como objeto de amor. (CUNNINGHAM, 1991, p. 53-54).
Na segunda metade do século XX, a partir da mobilização da comunidade LGBT+, a luta por direitos se intensificou, foi fundado o Comitê Científico-humanitário (WhK) com o intuito de descriminalizar e promover o reconhecimento social dos homossexuais. Um dos grandes desafios consistia em barrar o parágrafo 175 do código penal alemão, que era contra as práticas homossexuais em todo o território germânico. Este registro inicial de uma reformulação nos modelos institucionais frente ao tratamento, conhecida pela sociedade da época por se submeter a uma repressão espiritualista e moralista aos rituais monogâmicos do casamento e o ato sexual limitado a procriação, se estabeleceu como uma época áurea da psicanálise. Houve um rompimento com as leis sagradas dos discursos institucionais que afetou diretamente a negação da psicanálise com proscrição dos candidatos à formação (ROUDINESCO, PLON, 1998).
Um dos questionamentos mais recorrentes que surgem na discussão sobre o processo de formação dos psicanalistas homossexuais está relacionado à neutralidade do analista. Em defesa da neutralidade, alguns analistas sugerem que ao desvelar a homossexualidade o psicanalista deixa de ser neutro e passa a expor sua vida privada, o que contribui com os apontamentos mencionados anteriormente, no qual o analista seria responsável por danificar de alguma forma a estrutura psíquica dos pacientes. O mesmo argumento foi utilizado em um projeto de lei na França, por exemplo, no qual permitiria a união homoafetiva, psicanalistas se manifestaram publicamente insinuando uma “catástrofe simbólica” à função paterna e a diferenciação entre os sexos, desta forma, contribuindo com a reprodução de estereótipos heteronormativos (AYOUCH, CHARAFEDDINE, 2013).
Neste sentido, se levarmos em conta a questão da neutralidade, velar a homossexualidade seria tão relevante quanto velar a heterossexualidade, portanto, esta exigência não passa de uma propagação de um ideal de sujeito universal cristalizado que se enquadra no modelo republicano. A sexualidade do analista se torna um falso problema, na medida em que é levada em consideração somente nos grupos minoritários que estão por fora da heteronormatividade (AYOUCH, CHARAFEDDINE, 2013).
Atualmente, encontramos em pleno movimento mudanças sociais, refletindo diretamente na escuta dos analistas. Discute-se o método psicanalítico com uma visão ampliada que permita o reconhecimento e o acolhimento dos sujeitos que demandam novas formas singulares de identidade de gênero e subjetivação. Existe a necessidade de um resgate do olhar revolucionário proposto por Freud para produção de uma desconstrução das normas e dos preconceitos dentro da própria teoria psicanalítica, ou seja, uma aposta nos desvios em relação a escuta de caminhos não lineares e previstos, justamente para sustentar o enigma do ser humano e a pluralidade que se constitui o desejo. Neste sentido, se torna imprescindível que a psicanálise se reinvente e seja capaz de acolher a diversidade de gênero dos pacientes, o sofrimento psíquico ao mal-estar inerente à condição humana e as renúncias das demandas pulsionais que a sociedade exige. (AYOUCH, CHARAFEDDINE, 2013).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer desta pesquisa discutiu-se como o conceito de cura e a clínica psicanalítica se transformaram através de um recorte histórico, desde um rompimento com o modelo de tratamento adotado pelo viés da medicina do século XIX até a contemporaneidade. As perspectivas futuras da psicanálise promoveram grandes discussões e debates muitas vezes equivocados, principalmente ao ser atravessado pelos movimentos da população LGBT+. Por se tratar de um método não cristalizado, a psicanálise se reinventa na medida em que novas demandas surgem de movimentos progressistas, fazendo-se questionar quanto ao lugar de quem escuta, assim como de quem é escutado. Dito de outro modo, a psicanálise carrega e implica um espírito revolucionário.
A partir de um recorte da comunidade LGBT+, pode-se perceber que a reformulação da conceituação do tratamento se transforma na medida em que a população passa por um processo de despatologização e que encontra na clínica um espaço e uma aposta para escuta do desejo singular e da pluralidade de gênero. Neste sentido, os movimentos mobilizados pela comunidade LGBT+ refletiram em um resgate freudiano de uma escuta da sexualidade polimórfica-perversa, que vai além da moral sócio-histórica enviesada por vertentes religiosas e biológicas.
Vale lembrar, que a formação psicanalítica um dia foi e ainda permanece em muitos aspectos cristalizada, tomamos como exemplo os candidatos homossexuais que tiveram que escolher entre se tornar um psicanalista ou serem expulsos das sociedades de formação. Apesar dos movimentos de despatologização estarem crescendo cada vez mais, ainda existe uma camada de discriminação contra a população LGBT+, tanto dos analistas quanto daqueles que se propõem a serem escutados, vimos neste último tópico, que muitos psicanalistas ainda se propõem a levantar questões para impor uma desigualdade, como no caso do falso problema da neutralidade. Neste sentido, produzimos um diálogo em torno do processo de desconstrução e reinvenção do método psicanalítico para apostarmos em um retorno à Freud, na medida que vislumbramos uma clínica psicanalítica em que o analista se permita a escuta da pluralidade em relação ao sexual, as traduções da sexualidade, uma associação livre e as interpretações pautadas na ética psicanalítica que demanda lidar e manejar o inquietante e o enigmático que nos habita, ou seja, a escuta de uma sexualidade que não cabe nas normas.
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¹Acadêmico de Psicologia pelo Centro Universitário de Brusque – UNIFEBE. E-mail: mateusklabunde13
²Psicólogo pela Universidade Regional de Blumenau. Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Docente do curso de Psicologia do Centro Universitário de Brusque -UNIFEBE. E-mail: gustavooangeli@gmail.com.