OS DESAFIOS DO PESQUISADOR: A IMPRENSA PERIÓDICA COMO FONTE E OBJETO DE PESQUISA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7801984


Paulo Costa Sousa Gurgel Filho


RESUMO

O artigo analisa a utilização e importância da Imprensa como fonte e objeto de pesquisa para o campo historiográfico. Busca a partir da bibliografia especializada, no conjunto da produção historiográfica contemporânea, elencar os aspectos ligados aos desafios enfrentados pelos historiadores no seu trabalho com a imprensa periódica. Paralelamente, dialoga com a historiografia que problematiza os usos dos jornais, apontando para suas possibilidades metodológicas e, assim, contribuindo para uma análise mais competente e qualitativa do material jornalístico. 
Palavras-Chave: Imprensa Periódica. Historiografia. Metodologia da Pesquisa.

1 INTRODUÇÃO

Atualmente, a imprensa periódica, nas suas mais variadas formas históricas, constitui um dos principais materiais de estudo utilizados pelos historiadores e cientistas políticos no desenvolvimento de suas produções acadêmicas. Essa constatação não é muito inusitada, tampouco difícil de ser comprovada, basta uma breve e cuidadosa investigação nos repositórios de Produção Científica do País, muitos deles disponibilizados virtualmente, para identificarmos o farto conjunto de trabalhos historiográficos que têm explorado os materiais de imprensa, como fonte e objeto para a pesquisa histórica, sendo eles jornais, revistas, tabloides, panfletos, boletins informativos, almanaques, etc.

Tanto na pesquisa, versando as mais diversas temáticas e problemáticas, quanto na Prática de Ensino, como aporte pedagógico dentro e fora da sala de aula, a História é um dos campos em que a imprensa vem ganhando terreno fértil já há algum tempo. Entre historiadores e historiadoras, são amplas as possibilidades conferidas pelos materiais impressos, os pesquisadores não só têm contado a história das sociedades passadas a partir das páginas de noticiários, como também se interessam cada vez mais pela própria história da imprensa, isto é, pelo percurso histórico traçado pelos veículos de informação. 

Sem dúvidas, os periódicos brasileiros constituem um terreno significativo para o olhar historiográfico. Sua trajetória histórica é muito rica, remete-nos ao século XIX, e são constituídos por farta variedade: são os jornais de grande circulação, jornais operários, jornais da imprensa vermelha, leia-se, comunistas, jornais burgueses, revistas especializadas, imprensa feminina, informativos nacionais, etc. Carregaram para dentro de sua composição as experiências dos diferentes sujeitos que os produziram, pois, frutos da ação humana em determinado contexto histórico. 

 Sendo a relação História e Imprensa tão definida nos marcos dos dias atuais e, por outro lado, considerando a amplitude do seu campo de abordagem, algumas questões se impõem aqui: Como se deu o percurso historiográfico pelo qual passou a imprensa? Como historiadores da área lidam com os desafios da pesquisa com relação aos materiais de imprensa? Como trabalhar com a imprensa periódica enquanto fonte e objeto da pesquisa histórica? Essas são algumas das inquietudes pelas quais perpassam este texto. 

O presente trabalho é um artigo de revisão, que busca a partir da bibliografia especializada, no conjunto da produção historiográfica contemporânea, situada no espaço/tempo brasileiro, elencar os aspectos ligados aos procedimentos teórico-metodológicos do trabalho do historiador com os materiais de imprensa. A temática é de grande relevância historiográfica, tendo em vista que, uma pesquisa que se preze deve estar metodologicamente bem resolvida, tal como uma análise mais competente de um objeto de estudo histórico exige, em grande medida, boa fundamentação teórica e procedimentos metodológicos qualitativos. 

Como atualmente os historiadores têm se utilizado bastante do material jornalístico, é importante para o seu trabalho historiográfico pensar metodologias qualitativas que os ajudem a superar os desafios impostos pela pesquisa. Outro aspecto que comprova a importância da temática é o fato de que ela conta com uma rica bibliografia especializada, rica principalmente em conteúdo, que traz para o centro do debate historiográfico a importância dos usos da imprensa para pesquisa acadêmica em História.

            A preocupação deste artigo é tratar de questões que contribuam metodologicamente para articular a pesquisa historiográfica ao campo das comunicações, sem perder de vista a crítica histórica. 

2 HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA E IMPRENSA

A primeira questão a ser resolvida neste ensaio, diz respeito ao percurso histórico em que se processou a relação História e Imprensa. Como apontado anteriormente, atualmente contamos com um acervo muito rico de trabalhos acadêmicos na área, que tomam a imprensa periódica como fonte e objeto de pesquisa. Há de considerarmos, no entanto, que nem sempre História e Imprensa andaram de mãos dadas, pelo menos não do ponto de vista historiográfico. Isso porque, durante muito tempo historiadores se mostraram resistentes à ideia de utilizar os periódicos em suas pesquisas.  

Por outro lado, importantes mudanças históricas sinalizaram para o cenário atual. De acordo com a historiadora Tânia Regina de Luca (2005), até a década de 1970 o que se tinha era o reconhecimento por parte dos historiadores da importância de se estudar a História da Imprensa, mas relutava-se em escrever uma História nacional através de periódicos. Seguindo a linha argumentativa da autora, muitas das concepções historiográficas da época ainda se achavam fortemente marcadas por certa tradição, dominante no século XIX e estendida até primórdios do XX, associada ao princípio da busca incessante pela veracidade dos fatos, obtida por meio de documentos oficiais escritos pelos representantes do Estado. Assim, a imprensa periódica sempre fora apresentada como um material suspeito, pouco adequado para visitação ao passado, pois ausente de uma objetividade supostamente encontrada em documentos de outra natureza. (LUCA, 2005: 111-112). 

De todo modo, essa posição não foi a única entre os historiadores da época. Como indica Maria Helena Capelato (1988): 

Até a primeira metade deste século [século XX], os historiadores brasileiros assumiram duas posturas distintas em relação ao documento-jornal: o desprezo por considerá-lo fonte suspeita ou o enaltecimento por encará-lo como repositório da verdade. Neste último caso, a notícia era concebida como relato fidedigno da verdade. (CAPELATO, 1988: 21). 

Ambas as posições assumidas não deixaram de ser problemáticas, porque liberaram o historiador da sua crítica histórica ao documento, tal qual a conhecemos hoje. Nos dias atuais, com a inocência perdida, abordagens desse tipo acham-se quase que completamente superadas. Entre mesas de debates, rodas de conversa, grupos de discussões, nos parece bem resolvida a questão de que todo e qualquer documento, produzido pela ação humana, e por isso mesmo jamais separado dela, é marcado pela subjetividade do sujeito que o materializa, e diz respeito a fragmentos específicos do passado, não a sua totalidade histórica. Não se trata, portanto, de uma fonte imparcial, destituída de interesses, comprometimentos políticos, ideológicos ou socioeconômicos.

Mas, como abordado anteriormente, nem sempre foi assim. Muitas das concepções tradicionais passaram a ser criticadas a partir da década de 1930, com o surgimento da chamada Escola dos Annales, o que não significou num primeiro momento uma mudança efetiva na prática historiográfica com relação à imprensa, que continuava a ser vista com desconfiança. (LUCA, 2005: 112)

Para Tânia Regina de Luca alguns fatores atuaram diretamente para que mudanças nesse âmbito sejam concretizadas. Ela elenca marcos principais, já no final do século XX: a influência da chamada História Nova e suas críticas a História Tradicional, com a terceira geração dos Annales (1950); contribuições dos marxistas ingleses, reunidos em torno da New Left Review (1960); o diálogo interdisciplinar entre a História e outras Ciências Humanas, a exemplo da Antropologia, Sociologia, Linguística e Psicanálise, que ao mesmo tempo em que trouxe novos aportes metodológicos, convidou os historiadores a repensarem suas práticas historiográficas e os limites da disciplina; o fortalecimento da História Cultural; o avanço da História do Presente; “retorno” da História Política (Ibidem: 114).

Como se pode perceber, esses fatores apontavam para novas necessidades no campo historiográfico. Novos campos de estudos exigiam novas temáticas, ampliavam as possibilidades de problemáticas, renovaram as abordagens, traziam para o centro da investigação novos objetos, sujeitos e grupos sociais. Paralelamente, à medida em que inovaram no campo temático, historiadores eram convidados a buscar novas fontes capazes de responder aos problemas colocados por suas pesquisas. (CRUZ & PEIXOTO, 2007; LUCA, 2005; LEITE, 2015).

Por exemplo, assim que as mulheres passaram a ser compreendidas como objeto de abordagem histórica, conquistando, lá pela década de 1970, um campo específico de estudo, geralmente designado hoje como História das Mulheres e das Relações de Gênero, as historiadoras e historiadores da área tiveram de recorrer a fontes muito diversificadas e distintas daquelas com as quais estavam acostumados a lidar, uma vez que, os documentos históricos oficiais foram, em sua extensa maioria, escritos por homens da elite, que ocuparam historicamente os espaços do poder público. Tratando-se do campo em questão, diários, fotografias, cartas, a própria imprensa, objetos guardados, vestimentas, comportamento, todos esses materiais foram fundamentais para se escrever as várias Histórias das Mulheres. 

 É nesse contexto, de diversificação de temáticas, abordagens e fontes, que a imprensa passou gradativamente a ser compreendida como rico e, por isso mesmo, importante material de pesquisa. Não só a História da Imprensa seria um campo de interesse dos historiadores, como também a escrita da História por meio da Imprensa já não assustava tanto os estudiosos da área. Em consonância, os próprios jornais e outros veículos da imprensa passaram a ser considerados objetos válidos de investigação e também material didático para a sala de aula. (LUCA, 2005: 118; CRUZ & PEIXOTO, 2007: 255). 

3 IMPRENSA PERIÓDICA: FONTE E OBJETO DE PESQUISA

No Brasil, desde fins da década de 1960, vinham sendo elaboradas proposições contundentes a respeito dos usos da imprensa nas pesquisas. Já não se colocava em questão a legitimidade dos jornais como fonte de investigação por sua falta de objetividade, preferindo agora chamar atenção para os perigos de utilizá-los como meros condutores de informação, sem questionar suas influências ocultas, como se fossem destituídos de interesses dos sujeitos e grupos que os materializaram. (LUCA, 2005: 116). Era o problema metodológico que começava a se impor com maior rigidez a partir daquele momento. 

Contudo, estes alertas servem antes como mais um motivo para manter muitos historiadores afastados do trabalho com os periódicos. Se mostraram temerosos e não queriam correr os riscos de cair em equívocos. Outros ainda, mantiveram-se céticos quanto aos usos da imprensa, pois a tomavam como simples caixa de ressonância da sociedade (LUCA, 2005: 116). Um problema que, como veremos mais à frente, persiste até mesmo nos dias atuais. 

Nos Anais da ANPUH nacional do ano de 1969, a historiadora Ana Almeida Camargo já ressaltava alguns dos desafios com os quais se deparam os pesquisadores da área ao recorrerem à imprensa como fonte de pesquisa. De acordo com ela, os jornais ofereciam sempre uma visão parcial e subjetiva da realidade, não só pela proximidade que os sujeitos responsáveis pela produção jornalística tinham com os fatos cotidianos, mas principalmente porque esses mesmos sujeitos estavam diretamente comprometidos com o mundo que o cercava. (CAMARGO, 1969: 225).

Na mesma direção, a autora chamou atenção para os riscos que os historiadores corriam ao retirarem das páginas de um periódico somente aquilo que bem lhes interessava. Isto é, apenas o que se gostaria de confirmar ou refutar, deslocando fragmentos soltos, palavras e trechos sem conectá-los com o seu contexto mais amplo. Um problema decorrente disso, é que se terminava por endossar tudo o que encontrava nas fontes jornalísticas, ausentando-se da crítica histórica e tomando como verdade incontestável o que estava escrito no jornal. (CAMARGO, 1969: 226). 

Ana Camargo, no entanto, não apenas apontou para as dificuldades, mas também sinalizou para as várias possibilidades oferecidas pelo trabalho com os periódicos. Elementos particulares que num primeiro momento parecem despidos de relevância, quando profundamente explorados apresentam grandes contribuições para análise do historiador: desde os anúncios, por meio dos quais é possível problematizar as relações externas do jornal e os grupos a ele vinculados, como também os processos marcantes na vida nacional em conjunturas determinadas, até o seu conteúdo pragmático. Do ponto de vista da autora, enquanto discutível como documentação isolada, se submetido a uma rigorosa crítica e confrontado com outras fontes de diferente natureza, o jornal passa atuar como um material complementar de primeira ordem, sendo muito rico em sugestão para o estudo histórico (CAMARGO, 1969). 

A validez dos problemas levantados por Ana Camargo é incontestável. Ela apontou desafios e explorou possibilidades, enfatizando a necessidade do historiador se atentar para os aspectos mais metodológicos de suas pesquisas.  Não obstante, percebe-se que, embora se reconheça a importância e amplitude do campo de abordagem da imprensa, ela ainda era encarada com muita desconfiança. Existe por parte da autora uma preocupação nítida em demarcar os limites, apontar para os problemas mais elementares. 

Além disso, os estudos históricos no Brasil, à época, davam pouca atenção aos periódicos como objetos de pesquisa. Por mais recorrente, a relação entre História e Imprensa repousava até ali em dois grandes campos de investigação: o primeiro, denominado História da Imprensa, busca reconstruir o desenvolvimento histórico dos órgãos de Imprensa e apontar suas principais características em conjunturas determinadas. Já o segundo, o da História por meio da Imprensa, toma esse material como fonte primária para a pesquisa histórica. (ZICMAN, 1985: 89). 

Na década de 1980, as historiadoras Maria Helena Capelato e Maria Ligia Prado confirmaram o pioneirismo no campo, com a publicação de O Bravo Matutino. Imprensa e ideologia no jornal O Estado de São Paulo (1980), livro que reuniu suas dissertações de mestrado (1974). Conforme afirmam as autoras, a ideia de utilizar de um jornal como objeto e fonte única da pesquisa esteve associada a concepção de que a imprensa não se constituía mero receptáculo de informação pronto para ser digerido. Ela intervinha na sociedade, na medida em que funcionava como instrumento de manipulação de interesses. (CAPELATO & PRADO, 1980: XIX). Recusava-se, portanto, a ideia bastante difundida, à época, de que a imprensa era um simples veículo de informações, transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na qual se insere”. (Idem). 

Em que pesem as ideias inovadoras postuladas naquele momento, os desafios não se encerraram por ali. Se os historiadores passaram muito tempo desprezando a imprensa como fonte e objeto de suas pesquisas por falta da objetividade e por acreditarem que ela não os levaria a verdade dos fatos, outros a tomaram como material preciso, inquestionável, endossando tudo que encontravam em suas páginas. 

De acordo com a historiadora Renée Zicman (1985), uma abordagem recorrente entre os historiadores e historiadoras era aquela que se utilizava da imprensa como argumento da autoridade, cuja validade e veracidade da informação eram incontestáveis. Em seu artigo publicado no ano de 1985, ela afirmou que embora fossem amplamente consultados e citados, os periódicos eram raramente analisados. “Com raríssimas exceções, para os historiadores o jornal é antes de tudo uma fonte onde se “recupera” o fato histórico […] não havendo, entretanto, interesse por sua crítica interna (ZICMAN, 1985: 90). 

Seguindo a linha da autora, percebe-se que os pesquisadores se distanciaram do texto jornalístico, negligenciando uma leitura rigorosa de suas fontes e se ausentando da crítica histórica sobre o documento. No que indica a literatura, muitos dos desafios ainda persistem. Se há tempos o jornal deixou de ser visto com desconfiança pelos historiadores e passou a ser amplamente utilizado em suas investigações, ainda hoje é recorrente entre eles uma abordagem que privilegie a imprensa apenas como fonte secundária de suas pesquisas, sem se valerem de uma análise crítica contundente ao material. As historiadoras Heloísa Cruz e Maria Peixoto (2007) destacaram que 

No uso corrente em monografias, dissertações e teses, nas quais vez por outra, a imprensa é apresentada como fonte subsidiária ou secundária, as publicações são tomadas como meras fontes de informação. Via de regra, o que prevalece é uma pesquisa sobre o assunto em pauta, na qual artigos e seções identificados são imediatamente deslocados dos veículos e integrados, sem quaisquer mediações de análise, ao contexto macro da pesquisa. Assim, por exemplo, notícias sobre os movimentos sociais ou sobre greves veiculadas por algum jornal da grande imprensa ou revista semanal no período da ditadura, são dali deslocadas e imediatamente articuladas à produção de uma narrativa sobre como ocorriam os movimentos naquele período. (CRUZ & PEIXOTO, 2007: 256). 

Como se pode perceber, muitos dos desafios passados ainda se fazem presentes, o que mais uma vez convida os historiadores a repensarem seus problemas metodológicos de investigação. A questão colocada aqui é como esses profissionais lidam com esses desafios na prática do seu trabalho.

4 A PRÁTICA DO HISTORIADOR COM A IMPRENSA PERIÓDICA: DEBATES E PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Jornais e revistas não foram escritos para que os historiadores os analisassem em suas pesquisas. Foram produzidos para atingir determinado público, por isso, falam também aquilo que seus leitores desejam “ouvir”. Os pesquisadores, extemporâneos a suas fontes, empíricos e críticos do discurso, devem sempre se manter atentos, sob suspeição. Deste modo, não se pode fazer a leitura de um periódico com a mesma tranquilidade com a qual se lê um jornal cotidiano. É necessária uma leitura cuidadosa, cansativa, criteriosa e qualitativa do material que tem em mãos. (ELMIR, 2012: 78). 

São os próprios historiadores que transformam os periódicos em material de estudo, e eles partem de seus problemas específicos de pesquisa, objetos de interesse. Em meio a diversidade dos materiais jornalísticos, selecionam aqueles que se adequam aos objetivos propostos, fazem perguntas, buscam por respostas. 

Dois riscos recorrentes entre os historiadores no seu trabalho com os jornais: o primeiro, pode ser identificado quando os periódicos são usados apenas como fonte da investigação, ainda que como fonte primária. Aqui, uma exploração mais detida sobre o documento pode acabar sendo negligenciada, substituída por análises superficiais de fragmentos específicos encontrados, que são facilmente deslocados de suas páginas, sem ser considerados dentro de um todo.  Isso acontece, em grande medida, quando o jornal é entendido meramente como um meio para se chegar ao objetivo pesquisado. Deste modo, atribui-se erroneamente às publicações um caráter neutro, partindo de uma perspectiva mecanicista e abstrata, em total desconexão com o contexto mais amplo em que foram produzidas. Como pondera Claudio Pereira Elmir:

Essa escolha se interpõe mais facilmente no caminho do pesquisador, quer me parecer, quando o conteúdo dessas informações está relacionado, no texto, a processos descritivos e narrativos pelos quais se supõe uma maior verossimilhança do discurso ao objeto de sua menção, tendo em vista a presumida (e não certa) ausência de narrador no texto oferecido à leitura (ELMIR, 2012: 79).

Diante de abordagens mecanicistas, o historiador poderá perder de vista a dinâmica dos processos, consequentemente, não captou os fios que remetem o conteúdo pragmático do periódico a outras dimensões sociais. Dessa forma, escapa a compreensão de que o jornal, como produto social histórico da ação humana, intervém diretamente sobre os processos e também são capazes de transformá-los, o que propiciará a perda do sentido da totalidade histórica.  

Outro risco comum, também decorrente de análises simplistas, refere-se ao uso do periódico como objeto de pesquisa. Deve-se atentar para não o tomar apenas como reflexo, como se fosse mero reprodutor, caixa de ressonância da sociedade. Existem pessoas trabalhando diariamente na produção de um jornal, sujeitos distintos uns dos outros, com pensamentos diversos, partindo de concepções diferentes, realizando funções das mais variadas. O jornal que chega ao público representa muito disso também, da pluralidade, dos consensos, mas igualmente das divergências que emergem entre os seus produtores. Dessa forma, ele não é apenas efeito da sociedade, é também um interventor social. 

De todo modo, o importante é aprofundar no entendimento do material que tem em mãos. O pesquisador deve estar sempre atento não apenas aos elementos que compõem o jornal, mas ao contexto histórico mais amplo em que ele opera. O estudo criterioso de um periódico não pode ser isolado dos fatores externos ao seu funcionamento: contexto político, valores culturais de uma época, etc. 

As observações de Márcia Espig (1998) são bem pertinentes nesse sentido. Lançando mão de jornais catarinenses e paranaenses para estudar o movimento do Contestado naquela região, a autora sugeriu que os pesquisadores deveriam buscar no texto jornalístico aquilo que estava para além do explícito, procurando pelas entrelinhas o discurso subjacente.   Importante problematizar ou tentar revelar a linha político-ideológica do periódico, elaborando uma análise meticulosa e qualitativa das publicações, além de suas articulações com a cultura por ele acolhida. (ESPIG, 1998: 274).  

Ela ressaltou que o contraponto com outros tipos de documentação e bibliografia adequada é fundamental para uma observação mais nítida do jornal. Isto porque a imprensa não informa a história, não meramente, sendo insuficiente ao trabalho do historiador, além de um equívoco metodológico muito grave, apenas retirar das páginas de um jornal as informações que bem lhe interessam, sem submetê-las a uma análise crítica. “Sobre o jornal devem incidir reflexões metodológicas que possibilitem uma leitura intensiva mais competente, através da qual se possa desvendar cuidadosamente o que é importante dentro de determinado assunto”. (Ibidem, 288).

 Na mesma direção, Heloísa Cruz, anos antes, em 1994, em sua tese de doutoramento, que no ano de 2000 se transformou em livro na forma de E-book, sinalizou para o redirecionamento das abordagens que tomam o periódico como mero reflexo ou paralelo de conjunturas sociais, ou simplesmente como depósito de informações, para outra que o entenda como linguagem social constitutiva e construtora da vida moderna. A autora ressaltou que uma abordagem corrente entre os profissionais das Ciências Humanas, e particularmente os historiadores, era aquela que fazia da História da imprensa um campo isolado, sem refletir suas articulações e vínculos não só com a História de outros tipos de comunicação, mas também com o terreno mais amplo da História Social, “desde os movimentos políticos e sociais às conjunturas e processos econômicos, aos movimentos e formações culturais aos quais as formas históricas da imprensa se articulam de modo mais específico.” (CRUZ, 2013: 11). 

Tanto para ela, quanto para Maria Peixoto, o jornal se constitui enquanto força ativa dentro dos processos históricos, na medida em que movimenta opiniões, remodela idéias, sugere consensos e adesões, determina temas a serem colocados em destaque, ou seja, ele interfere diretamente na vida cotidiana dos sujeitos. O jornal se movimenta e transforma. Dialeticamente, ele é movimentado e transformado. Inúmeros fatores interferem nesse desempenho, em todos eles encontra-se a sociedade. Qualquer imprensa, seja ela de grande ou pequena circulação, local, regional, alternativa, popular ou de resistência, alia-se fortemente ao campo mais amplo da disputa, possui formas próprias, insere-se como força construtora e constituinte dos processos sociais. (CRUZ & PEIXOTO, 2007: 269). 

O jornal também é sempre resultado da ação humana em sociedade. Por isso, sua produção é marcada pelos anseios, pelas escolhas políticas, pelas experiências sociais dos sujeitos e grupos sociais que o produziram. Hoje bem entendemos que os aspectos ligados à subjetividade e intencionalidade presentes nas fontes não devem ser desprezados, mas submetidos ao juízo crítico do historiador. Em consonância com a historiadora Alane Ferreira, acreditamos que, 

Todo documento histórico, e não apenas o material jornalístico, remete os historiadores para o campo de subjetividade e intencionalidade humana, pois se de um lado carrega para dentro de sua composição visões particulares de indivíduos que viveram determinado contexto, do outro carrega também o olhar contemporâneo do próprio pesquisador sobre objeto produzido em outras épocas. Assim, seja qual for a documentação revisitada, nela estão presentes as marcas dos sujeitos sociais que, por sua vez, não são jamais dados desprezíveis para os procedimentos metodológicos do estudo, mas podem e devem ser submetidas ao esforço crítico que nos compete enquanto pesquisadores. (FERREIRA, 2019: 7).

Para essa autora, os jornais e as mídias em geral são instrumentos que “operam ativamente na produção, reprodução e transformação da sociedade e que, ao mesmo tempo em que atua sobre determinada conjuntura, também é espaço de propagação e repercussão dos elementos constitutivos dela”. (Ibidem: 8). Ao analisar o material jornalístico se faz necessário perguntar sobre quem fala e para quem fala, esse exercício é de grande importância para identificar a partir de quais interesses a imprensa se posiciona. 

Periódicos não são objetos estáticos. Atendem também às necessidades de determinado contexto. Por isso, como bem nos chamam atenção Cruz e Peixoto (2007), muito cuidado para não os colocar em caixinhas prontas, os caracterizando de forma generalizadora – tal jornal tem caráter conservador, ou tal outro jornal é populista – perdendo de vista toda riqueza presente na composição de suas páginas. (CRUZ & PEIXOTO, 2007: 264). 

Ainda as autoras destacam que, numa análise de um periódico, deve-se identificar: 

– intervenções na agenda pública – questões, sujeitos sociais, espaços e temas que prioriza para a agenda pública indicam o movimento político e posicionamentos na conjuntura, a costura de alinhamentos sociais e políticos, a negociação de pactos, indicam também como o periódico delimita o mundo e constitui se mobiliza para uma leitura de realidade; 

– campanhas gerais e posições políticas explícitas – remetem ao campo mais imediato e explícito, por vezes mais localizado e temático, das intervenções e mobilizações propostas pelo veículo. 

No movimento de construção de seu projeto editorial, cabe afinal indagar de que modo o periódico constrói sua perspectiva histórica, propõe um diagnóstico da realidade social em um dado processo e conjuntura, como se posiciona no campo da memória social, isto é, de que forma e com que referências articula passado/presente/futuro.  (Ibidem: 265). 

Tais considerações colocam como questão central a adoção por parte do historiador de uma postura crítica diante de sua fonte, percebendo o jornal em movimento e em contato com as coisas ao seu redor. Para além dos questionamentos acerca das orientações político-ideológicas dos discursos da imprensa, o problema tem residido em como trazer essas discussões para as pesquisas. Não raras vezes elas são insuficientemente problematizadas em direção a uma crítica interna rigorosa que nos dê conta das articulações mais amplas entre o jornal e a conjuntura sociopolítica em que ele se insere.

A leitura rigorosa de um periódico também não pode estar separada das condições do seu próprio funcionamento: financiamento, número de colaboradores, vendagem, tiragem, número de distribuição. Dispor de tais informações é de grande importância para conhecer o nível de alcance do jornal e os possíveis impactos que ele desempenha no cotidiano das pessoas. Contudo, e como bem nos lembra o historiador Rafael Lapuente (2016), dados como esses são muitas vezes difíceis de serem acessados, pois nem sempre o periódico os disponibiliza. Além disso:

deve ser levado em conta que nem sempre as informações são confiáveis, afinal o interesse em atingir um status para atrair anunciantes é uma tática praticada por muitos jornais, não sendo raros os números fornecidos pelos mesmos serem inverídicos, o que dificulta ainda mais conhecer seu alcance. (LAPUENTE, 2016: 21). 

Não obstante, ainda conforme indica o autor, algumas dessas informações podem ser encontradas em outras fontes que não o jornal, “como arquivos particulares de membros dos jornais ou, quando é possível, por meio da História Oral”. (Idem). Por isso também a importância de extrapolar as páginas do periódico. Não porque o material jornalístico não possui credibilidade, mas com intuito de enriquecer a investigação. Do confronto entre as fontes podem emergir dissonâncias, inconsistências e contradições que, por outro lado, jamais devem ser desconsideradas, mas problematizadas pelo historiador em ofício. 

Lapuente ainda pondera outros desafios. Na visão desse historiador, uma outra questão a ser analisada é a relação direta que a imprensa desenvolve com o sistema de mercado, tornando-se em muitos casos “refém” de lucros. De acordo com ele:

Assim, temos um curioso processo, em que o campo jornalístico, a imprensa e sua influência se alargam, garantindo cada vez mais legitimidade e autoridade perante a sociedade, suprimindo a representação de outros órgãos legais que, em tese, deveriam representar os diferentes segmentos da opinião pública. Esse alargamento está acompanhado de uma profunda influência do mercado na imprensa, fazendo dela uma “refém” dos reclames, dependente deles para seus lucros e influenciando intensamente a produção jornalística. Assim, assistimos a um cerceamento da autonomia do jornalismo em prol dos interesses de mercado defendidos pela imprensa. (Ibidem: 25). 

Mais uma vez o profissional historiador é convidado a repensar sua metodologia diante das fontes. Identificar os grupos produtores de um jornal, investigar suas principais seções e colaboradores, estudar seus anúncios e propagandas, e claro, buscar entender o seu projeto editorial são iniciativas de suma importância para a pesquisa, pois através disso é possível identificar as correlações de força de um periódico. Em consonância com Cruz e Peixoto, acreditamos que,

[…] não é possível lidar com qualquer fragmento de um veículo da imprensa – um editorial, notícias esparsas reunidas em pasta na hemeroteca, cartas aos leitores – sem o reinserir no projeto editorial no interior do qual se articula, ou seja, sem remetê-lo ao jornal ou à revista que o publicou numa determinada conjuntura. Qualquer que seja nosso caminho de aproximação com jornais e revistas em suas diferentes formas históricas, não se pode esquecer que o objetivo de nossa leitura e análise é a de indagar sobre a configuração de seu projeto editorial, desvendando sua historicidade e intencionalidade. É imperativo, portanto, transformá-los em fonte. Assim, nossas perguntas iniciais e centrais são relativas a como determinada publicação se constitui com força histórica ativa naquele momento, isto é, como se constitui como sujeito, como se coloca e atua em relação à correlação de forças naquela conjuntura, quem são seus aliados ou amigos? Que grupos ou forças sociais são identificados como inimigos, adversários ou forças de oposição? (CRUZ & PEIXOTO, 2007: 260). 

Mais do que simplesmente apontar para a importância da imprensa, é preciso estudar a historicidade de um jornal, isto é, o sentido que ele exerce dentro da sociedade em que é força ativa, nos contextos históricos diferentes. É uma concepção que perpassa por,

Entender a Imprensa como linguagem constitutiva do social, que detém uma historicidade e peculiaridades próprias, e requer ser trabalhada e compreendida como tal, desvendando, a cada momento, as relações imprensa /sociedade, e os movimentos de constituição e instituição do social que esta relação propõe. (CRUZ; PEIXOTO, 2007: 258).

Porém, se os inúmeros desafios enfrentados pelos historiadores no trato com suas fontes impressas são de ordem metodológica, não se pode esquecer outros mais técnicos, que embora exijam do pesquisador a articulação de estratégias, perpassa diretamente pela preservação do material de imprensa. É novamente o historiador Rafael Lapuente que nos chama atenção para a questão. Segundo ele, “um grande obstáculo que não pode ser relegado a um plano secundário nas pesquisas em jornais é a situação precária de muitos arquivos”. (LAPUENTE, 2016: 26). 

O autor aponta para alguns dos problemas estruturais enfrentados pelos arquivos nacionais para manter seu funcionamento: faltam funcionários, investimento público, materiais e recursos tecnológicos, os jornais passam anos no setor de restauração, sem qualquer previsão de recondicionamento, os espaços cada vez mais danificados por conta das goteiras e da umidade. (Idem). Em contrapartida, crescem significativamente os números de acervos digitais, que possibilitam ao pesquisador o acesso a documentos digitalizados. A Biblioteca Nacional tem feito um importante trabalho nesse sentido, disponibilizando vários periódicos para pesquisa e permitindo ao historiador realizar suas investigações sem ao menos sair de casa ou ter qualquer tipo de custo com deslocamentos. (Ibidem: 27). Dentro dessa perspectiva, é inegável a importância dos recursos tecnológicos para os estudos históricos. 

Como se pode ver, não são fáceis os rumos dos historiadores que se embrenham pelos tortuosos caminhos da imprensa periódica. Ao mesmo tempo em que se trata de uma fonte de amplas possibilidades, reserva também inúmeros desafios, assim como qualquer outro documento. A questão que se impõe, então, e que buscamos trazer um pouco à tona neste trabalho, é de pensar repertórios metodológicos específicos e adequados que contribuam para superação dos desafios e possibilitam ao historiador uma análise qualitativa de seu material jornalístico. 

5 CONCLUSÃO

 Ao fazer este balanço geral da historiografia que se propõe a estudar os caminhos que levaram e continuam levando os historiadores a articular História e Imprensa em suas pesquisas, este trabalho identificou com clareza duas questões fundamentais para os vários territórios historiográficos: a imprensa periódica é um material de grande importância para pesquisa, cuja validez reside, sobretudo, na amplitude do seu campo de abordagem; o tratamento com jornais e outros impressos implica procedimentos metodológicos específicos por parte dos historiadores.

 Tratamos em todo este texto da imprensa enquanto material vivo, pois inseparável dos indivíduos que as fazem. Compreendemos o seu papel na pesquisa histórica, como também na sociedade, intervindo diretamente nos processos sociopolíticos. Como interventor social, o jornal participa das amplas lutas sociais, promove debates, provoca ações, funciona como esteio de combatividade ou como elemento conservador. Portanto, não é um objeto estático, cabendo ao pesquisador também se movimentar frente a ele, adentrando caminhos tortuosos, procurando alternativas, vislumbrando saídas.

Rica em números, conteúdos, colunas, produções, alcance, a imprensa periódica é apenas um dos campos de possibilidades para a pesquisa historiográfica.  Seu campo de ação também é bastante amplo, envolvendo outras formas históricas. Também para todas elas, é necessário que o profissional repense seu repertório metodológico, problematizando as diversas formas de intervenção do material e as articulando a conjunturas mais amplas, buscando recuperar as linhas históricas que remetem a História da Imprensa para outras dimensões do campo historiográfico. 

6 REFERÊNCIAS 

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