OS CAMINHOS DO TRABALHO POR APLICATIVOS EM CIDADES MÉDIAS: UMA ANÁLISE A PARTIR DO CONSUMO DE PRODUTOS E SERVIÇOS EM SANTA CRUZ DO SUL (RS)

THE PATHS TO WORK THROUGH APPLICATIONS IN MEDIUM-SIZED CITIES: AN ANALYSIS BASED ON THE CONSUMPTION OF PRODUCTS AND SERVICES IN SANTA CRUZ DO SUL (RS)

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10097749


Marco André Cadoná1


RESUMO

Coloca-se em questão uma modalidade emblemática nas “novas formas” de exploração do trabalho que se disseminam no contexto do “capitalismo informacional-digital-financeiro”: o trabalho realizado por aplicativos. Mas se considera essa modalidade de trabalho numa cidade média do Rio Grande do Sul, Santa Cruz do Sul, atentando para os caminhos de sua presença e de sua expansão nesse tipo de cidade. Tomando como referência um levantamento realizado com a população da cidade de Santa Cruz do Sul, o artigo permite a constatação dessa expansão, que ocorre principalmente através do transporte de passageiros e da entrega de refeições. Na base dessa expansão do consumo digital coloca-se a também expansão de novas formas de inserção e de permanência precárias de trabalhadores no mercado de trabalho de cidades médias.

Palavras-chave: Trabalho por aplicativos, cidades médias, mercado consumidor, uberização do trabalho.

ABSTRACT

It come into question an emblematic type in the “new forms” of labor exploitation that are spreading in the context of “informational-digital-financial capitalism”: work carried out by applications. But this type of work is considered in a medium-sized city in Rio Grande do Sul, Santa Cruz do Sul, paying attention to the paths of its presence and expansion in this type of city. Taking as a reference a survey carried out with the population of the city of Santa Cruz do Sul, the article allows us to verify this expansion, which occurs mainly through passenger transport and meal delivery. At the basis of this expansion of digital consumption is the expansion of new forms of precarious insertion and permanence of workers in the labor market in medium-sized cities.

Keywords: Work through apps, medium-sized cities, consumer market, uberization of work.

1. INTRODUÇÃO

Pretende-se colocar em questão neste artigo uma modalidade de trabalho que se tornou emblemática nas “novas formas” de exploração do trabalho que se disseminam no contexto do “capitalismo informacional-digital-financeiro”: o trabalho realizado por aplicativos. Mas se considera essa modalidade de trabalho numa cidade média do Rio Grande do Sul, Santa Cruz do Sul, atentando para os caminhos de sua presença e de sua expansão nesse tipo de cidade. Tomando como referência um levantamento realizado com uma amostra da população da cidade de Santa Cruz do Sul, o artigo constata que essa presença e expansão ocorrem principalmente através do transporte de passageiros e do pedido de refeições. Na base do consumo digital que se dissemina nas cidades médias coloca-se a expansão de novas e precárias formas de inserção e de permanência de trabalhadores no mercado de trabalho.

Importante destacar que o mercado de trabalho no Brasil apresentou mudanças significativas, em especial a partir de 2015, num contexto da crise econômica e política que resultou no término de um período em que no executivo nacional esteve uma frente política liderada pelo PT (Partido dos Trabalhadores). Uma frente política que se comprometeu com um programa de governo que, sob o ponto de vista de suas repercussões no mercado de trabalho, conseguiu diminuir o desemprego e a informalidade no país, aumentou o poder aquisitivo dos trabalhadores e criou uma expectativa positiva quanto a possibilidades de enfrentamento do processo de precarização do trabalho que ocorreu durante a década de 1990 (CADONÁ, 2023).

A partir de 2013, no entanto, as dificuldades encontradas para dar continuidade à dinâmica econômica, observada especialmente entre 2007 e 2012, contribuíram para corroer as bases de sustentação política dos governos liderados pelo PT. Seguiu-se o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e o recrudescimento da perspectiva neoliberal, quando seu vice Michel Temer assumiu a presidência da República. Sob o ponto de vista do mercado de trabalho, aquela crise política e econômica teve efeitos negativos: os empregos formais diminuíram (entre julho de 2015 e setembro 2018 o estoque de empregos formais no País diminuiu de 40,4 milhões para 38,2 milhões, com uma perda de 2.228.848 empregos formais) e o desemprego saltou de 8,6%, em julho de 2015, para 12,3%, em julho de 2018 (aumento de 8,6 milhões para 12,9 milhões de pessoas desempregadas) (MARTINS, 2018).

Considere-se, também, que durante o período em que Michel Temer ocupou a presidência da República uma proposta de reforma trabalhista foi aprovada. Uma reforma trabalhista que criou condições históricas favoráveis à intensificação da precarização do trabalho no país, com a legalização do trabalho intermitente e de jornadas de trabalho mais flexíveis, com a introdução de mecanismos jurídicos que dificultam o acesso à justiça do trabalho, com a afirmação do princípio do “acordado sobre o legislado”, com a perspectiva de facilitação das rescisões dos contratos de trabalho (GALVÃO et. alii, 2019).

A partir de 2020, com a crise sanitária provocada pela pandemia da COVID-19, a precarização do trabalho no país se intensificou ainda mais, com o aumento do desemprego, a diminuição dos empregos formais, o crescimento das ocupações informais, o comprometimento da renda dos trabalhadores, o distanciamento de um número cada vez maior de trabalhadores de uma legislação de proteção ao trabalho (IBGE, 2021). É simbólico e trágico que o país tenha voltado a figurar no mapa da fome: em 2021, 116 milhões de brasileiros (mais da metade da população) viviam com algum grau de insegurança alimentar e, em 2022, a fome alcançou 33,1 milhões de brasileiros (OXFAN BRASIL, 2022).

Esse rápido olhar sobre a dinâmica dos mercados de trabalho no Brasil a partir de 2015/2016, no entanto, não permite que se perceba com maior profundidade um fenômeno que está presente mesmo nos momentos em que se observa crescimento nos empregos formais no país: a flexibilidade contratual. Um fenômeno que não pode ser visto como uma “disfunção” presente nas relações sociais capitalistas, mas, antes, uma condição histórica necessária para a reprodução do capital. Afinal, o interesse em um trabalhador que está disponível, de acordo com as necessidades colocadas pela dinâmica de valorização do capital e que possa ser dispensado com o menor custo possível, é uma característica importante dos padrões recentes de organização capitalista do trabalho.

O que se observa, pois, tanto no âmbito da organização dos processos produtivos quanto no âmbito das “novas legislações do trabalho”, é a exacerbação da intermitência do trabalho. Os trabalhadores desse precário mundo do trabalho estão submetidos a formas contratuais que, legitimadas pela ação coercitiva do Estado capitalista (“as novas legislações trabalhistas”), colocam à disposição do capital diferentes formas de “contratação flexível”, configurando-se um contexto histórico em que o trabalho com jornada parcial, o contrato com prazo determinado, o trabalho temporário, o trabalho por tarefa, o contrato por teletrabalho, a suspensão temporária do contrato do trabalho, o trabalho intermitente, deixaram de ser modalidades atípicas de uso da força de trabalho (ANTUNES, 2018).

E é essa “flexibilidade contratual”, tal como se expressa no mercado de trabalho de cidades médias, que esse artigo contempla. Contudo, considerando essa tendência de flexibilização contratual através de uma de suas manifestações fenomênicas: o trabalho organizado por plataformas digitais.

Uma forma de inserção de trabalhadores no mercado de trabalho que, embora estivesse já presente no Brasil, a partir da pandemia da Covid-19 se intensificou ainda mais. Em 2020, por exemplo, 11,4 milhões de trabalhadores brasileiros passaram a recorrer a trabalhos por aplicativos para garantir parte ou totalidade de suas rendas; alcançando, com esse crescimento, um universo muito significativo de trabalhadores: 20% da população adulta do país, ou aproximadamente 32,4 milhões de pessoas (INSTITUTO LOCOMOTIVA, 2021). Esses trabalhadores, em números cada vez maiores, estão inseridos nos mercados de trabalho a partir de estratégias de controle e de exploração nas quais as tecnologias informacionais ocupam um lugar central. Como indica Ludmila Abílio, o trabalho realizado através de plataformas digitais insere os trabalhadores num contexto de “dataficação do trabalho”, no qual o trabalho de milhares de pessoas é acompanhado de forma minuciosa e em tempo real pelos supervisores das empresas, através da mediação do aplicativo (ABÍLIO, 2020).

Uma modalidade de organização capitalista do trabalho na qual a aparência de autonomia encobre formas sofisticadas de controle das empresas sobre os trabalhadores (ABÍLIO, 2020), ao ponto de as demissões ocorrerem a partir de critérios definidos pela inteligência artificial. Mas não é somente isso. Esses trabalhadores têm salários que são definidos pelas tarefas realizadas, ou seja, a remuneração do trabalho que realizam tem como base um percentual recebido pela realização de cada tarefa. Além disso, são inteiramente responsabilizados por suas condições do trabalho, sem a garantia de relações contratuais das quais resultem algum tipo de proteção legal no trabalho que realizam (desde regulamentação de jornada de trabalho, passando pela definição da remuneração do trabalho e alcançando outras garantias trabalhistas, como por exemplo férias, décimo terceiro, inclusão num sistema previdenciário etc.). E, algo fundamental: mesmo não sendo proprietários dos meios de produção (podem alugar, por exemplo), esses trabalhadores estabelecem uma relação direta com esses meios (os carros, as motos, os celulares, as bicicletas etc., utilizados na realização do trabalho). Contudo, não são proprietários do meio de produção mais importante nessa forma de organização da produção: os próprios aplicativos (ABILIO, 2020).

2. ASPECTOS METODOLÓGICOS

Sob o ponto de vista metodológico cabe destacar duas questões principais: a escolha de uma cidade média na análise da presença de trabalho por aplicativos e os procedimentos adotados para o levantamento dos dados que são considerados na análise.

Em relação à primeira questão, registre-se que, ainda, poucos estudos se dedicam à análise da presença do trabalho por aplicativo em cidades médias. Como é o caso de Santa Cruz do Sul. Um município gaúcho, localizado no Vale do Rio Pardo, que tem uma população de 133.230 pessoas (IBGE, 2023), aproximadamente noventa por cento residindo na cidade. Enquanto cidade média, Santa Cruz do Sul é uma referência (econômica, política, de acesso a serviços de educação, saúde etc.) para um grupo de municípios localizados em seu entorno, sendo também o principal espaço de articulação da região do Vale do Rio Pardo com circuitos nacionais e internacionais de produção. Em Santa Cruz do Sul, por exemplo, está localizado o maior aglomerado de indústrias de tabaco da América do Sul, que processa o tabaco cultivado por agricultores dos três estados do sul do Brasil. Nesse sentido, a cidade de Santa Cruz do Sul tem um potencial de absorção de investimentos em sua região, possuindo “algum tipo de economia de aglomeração”, ao mesmo tempo que não incorre “em deseconomias de aglomeração, típicas das grandes metrópoles” (PEREIRA; LEMOS, 2003, p.127).

Em virtude dos potenciais de absorção de investimentos, mas também da importante presença populacional na cidade, Santa Cruz do Sul conta, já há algum tempo, com um número significativo de trabalhadores por aplicativos. Por exemplo, motoristas de aplicativos que, segundo dados da prefeitura do município (referentes ao mês de setembro de 2023), já compreendem 287 trabalhadores regularizados (mais 33, que estavam no período em processo de regularização); mas que, certamente, compreendem um número bem maior, pois somente a partir do período indicado a prefeitura estava impulsionando a regularização, como mecanismo de controle dos trabalhadores que atuam no serviço de transporte de passageiros por aplicativos no município (PREFEITURA, 2023).

Em relação à segunda questão, os dados considerados neste artigo foram levantados em 2023, como parte de uma pesquisa maior, cujo objetivo é analisar como a atuação em atividades organizadas por plataformas digitais condicionam as experiências de inserção e de permanência no mercado de trabalho de cidades médias. Num primeiro momento, os dados foram levantados através da aplicação de um formulário de pesquisa, em uma amostra da população da cidade de Santa Cruz do Sul, com o objetivo de levantar dados sobre a presença, em diferentes atividades econômicas, de trabalho por aplicativo. Optou-se, nesse sentido, em buscar junto à população (enquanto consumidora de produtos e serviços) indicadores da presença e da própria expansão do trabalho por aplicativo na cidade.

Foram aplicados 120 formulários de pesquisa, atentando para que a amostra considerasse a distribuição da população a partir do sexo, da idade e da escolaridade (como os dados do Censo Demográfico de 2022 ainda não tinham sido publicados, foram considerados os dados do Censo de 2010 na construção da amostra). Essa amostra, sob o ponto de vista de sua representatividade estatística, permite que os dados sejam apresentados com uma margem de erro de 9%, para mais ou para menos, com um nível de confiança de 95% (GIL, 1997).

Ao final, o perfil sociodemográfico das pessoas que responderam o formulário de pesquisa ficou um pouco diferente da amostra inicialmente planejada.1 Essa diferença, no entanto, não foi significativa e deve ser relativizada em sua importância, pois, além da distância em relação ao ano de 2010, somente pessoas residentes na cidade responderam o formulário de pesquisa (os dados considerados do censo de 2010 contemplaram toda a população do município). De qualquer forma, 64 mulheres (53,3%) e 56 homens (46,7%) responderam o formulário de pesquisa; 40 (33,3%) tinham entre 16 e 29 anos, 22 (18,3%) entre 30 e 39 anos, 28 (23,3%) entre 40 e 49 anos, 19 (15,8%) entre 50 e 59 anos e 11 (9,2%) 60 anos ou mais; 24 (20%) tinham ensino fundamental incompleto, 19 (15,8%) tinham fundamental completo/ensino médio incompleto, 46 (38,3%) tinham ensino médio completo/superior incompleto e 31 (25,9%) tinham superior completo. Ainda foram levantados dados sobre a renda média mensal das famílias dos pesquisados, cujos dados indicaram que as famílias de 14 (11,7%) tinham renda média mensal de até 01 salário mínimo, de 32 (26,7%) tinham renda de mais de 01 até 02 salários mínimos, de 19 (15,8%) tinham renda de mais de 02 até 03 salários mínimos, de 20 (16,7%) tinham renda de mais de 03 até 05 salários mínimos, de 23 (19,2%) tinham renda de mais de 05 até 10 salários mínimos e de 10 (8,3%) tinham renda média mensal superior aos 10 salários mínimos (02 não responderam).

3. O TRABALHO POR APLICATIVO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NO CONTEXTO DO CAPITALISMO INFORMACIONAL-DIGITAL-FINANCEIRO

Já a partir das últimas décadas do século XX, mudanças significativas nas formas capitalistas de organização do trabalho e da produção transformaram os modos de inserção e de permanência dos trabalhadores no mercado de trabalho, anunciando uma “nova morfologia do trabalho”, comprometida com uma cada vez maior precarização nas condições de inserção dos trabalhadores nos processos de trabalho e de produção. Mais recentemente, impulsionadas pela expansão informacional-digital, as formas capitalistas de organização do trabalho e da produção passaram a impor uma “trípode destrutiva do trabalho”: a terceirização, a informalidade e a flexibilidade, com a qual a “intermitência no trabalho” se tornou “um dos elementos mais corrosivos da proteção do trabalho, que foi resultado de lutas históricas e seculares da classe trabalhadora em tantas partes do mundo” (ANTUNES, 2020, p. 11).

Neste contexto histórico destrutivo do trabalho, algumas modalidades de trabalho ganharam cada vez maior visibilidade, inclusive impulsionadas pelos experimentos que o capital impôs aos trabalhadores a partir de 2020, com a pandemia da Covid-19. Uma dessas modalidades é o trabalho por aplicativo que, já há alguns anos, se faz presente nas ruas das cidades através do transporte de passageiros, com destaque para a empresa Uber, primeiro aplicativo de transporte individual criado. Uma modalidade de trabalho na qual os trabalhadores, com automóveis próprios ou alugados, são responsáveis pelas despesas com manutenção/aluguel dos automóveis, com seguros, com alimentação, com possíveis acidentes, “enquanto o ‘aplicativo’ se apropria do mais-valor gerado pelo sobretrabalho dos motoristas, sem nenhuma regulação social do trabalho” (ANTUNES, 2020, p. 12).

O trabalho por aplicativo, importante destacar, não é expressão de um movimento de dessalariamento, como muitas vezes se pretende induzir com o discurso do empreendedorismo e da autonomia dos trabalhadores num contexto informacional do trabalho e da produção. Antes, o trabalho por aplicativo resulta de “estratégias de contratação e gestão do trabalho que mascaram o assalariamento presente nas relações que estabelecem” (FILGUEIRAS, ANTUNES, 2020, p. 59). A aparente autonomia dos trabalhadores, assim, encobre o poder que o capital alcança nessa modalidade de trabalho, de “ampliar o controle sobre o trabalho para recrudescer a exploração e a sujeição” (FILGUEIRAS, ANTUNES, 2020, p. 59).

Esse é um ponto fundamental. A ideia de liberdade e de flexibilidade (poder trabalhar quando e onde quiser), propagada ideologicamente como forma de ressaltar a positividade do trabalho por aplicativo, constitui um mecanismo ideológico a partir do qual se encobre o interesse em transferir deliberadamente os riscos relacionados ao trabalho e à produção, ao mesmo tempo que se mantém (e se intensifica) o controle sobre os trabalhadores. Isso fica evidente quando se observa que as empresas de aplicativos têm um “receituário que executam diariamente”, no qual pode-se observar algumas orientações principais: 1. são elas que determinam quem pode trabalhar, pois os trabalhadores estão sempre sujeitos à aceitação do cadastro na plataforma para poder trabalhar; 2. são elas que delimitam o que é feito, pois os trabalhadores não podem prestar serviços que não estão contemplados por plataformas e aplicativos; 3. são elas que definem qual trabalhador realizará cada serviço e não permitem a captação de clientes; 4. são elas que delimitam as atividades que serão efetuadas, pois mantém o poder de definir o trajeto, as condições dos veículos, o comportamento dos trabalhadores diante dos usuários; 5. são elas que determinam o prazo para a execução dos serviços, em especial quando se trata de entregas, realização de traduções, projetos; 6. são elas que estabelecem unilateralmente os valores a serem recebidos (FILGUEIRAS, ANTUNES, 2020, p. 67).

Como destaca Clarissa Schinestsck (2020), “as plataformas digitais impuseram um novo modelo de organização do trabalho”, no qual se estabelece uma “relação triangular” entre o trabalhador, o consumidor final e a plataforma, essa última também atuando como intermediário entre trabalhadores e consumidores, responsável pela celebração de contratos com ambas as partes (SCHINESTSCK, 2020, p. 84). Os custos são “eliminados”, sendo transferidos para os próprios trabalhadores. Já a coordenação e a organização do trabalho “são gerenciadas pelos algoritmos, impondo uma forte assimetria na relação estabelecida entre plataformas e trabalhadores” (SCHINESTSCK, 2020, p. 84). Assim, alguns elementos são definidores da forma de organização do trabalho realizado sob a “intermediação” das plataformas digitais: a) controle por programação, comandos ou objetivos, fazendo com que os trabalhadores precisem cumprir os objetivos definidos pelo sistema; b) o dono do programa pode alterar os comandos a qualquer tempo, cabendo aos trabalhadores se adaptarem às mudanças; c) ao mesmo tempo em que é conferida “certa liberdade” para que os trabalhadores desempenhem suas atividades, “tal liberdade é negada pela programação que vem estipulada pelo algoritmo”; d) para que seja possível controlar efetivamente os trabalhadores, as empresas impõem uma “gestão baseada em punições e recompensas”, considerando-se, inclusive, avaliações que são dadas pelos consumidores, pelos solicitantes do trabalho ou por mecanismos gerados pela própria programação; e) os trabalhadores devem estar disponíveis a todo momento para cumprir as tarefas definidas pela programação; f) os trabalhadores passam a se relacionar com a empresa “em sistema de aliança, remontando à refeudalização das relações de trabalho”, na qual o trabalhador, em virtude dos baixos valores pagos por seu trabalho, é obrigado a trabalhar mais horas para “auferir um ganho mínimo”; g) os laços solidários entre os trabalhadores “são rompidos”, pois os trabalhadores atuam sozinhos, concorrendo entre si, “em um verdadeiro leilão da força de trabalho” (SCHINESTSCK, 2020, p. 84-86).

As consequências para os trabalhadores, sob o ponto de vista “do meio ambiente do trabalho”, assim, não podem ser outras. Os trabalhadores atuam sob pressão pelo medo, na medida em que podem ser desconectados da plataforma ou, então, não alcançarem boas avaliações. Para alcançar uma maior remuneração, os trabalhadores se submetem a jornadas extenuantes, num contexto, inclusive, no qual o aumento da demanda (aumento do número de pessoas solicitando transporte, por exemplo) reduz o valor da hora, sendo necessário mais tempo de trabalho para ganhar mais. Em que pese sua subordinação à empresa, o trabalhador não é alcançado por uma legislação de proteção do trabalho (SCHINESTSCK, 2020, p. 86-87).

O trabalho por aplicativo, nesse sentido, não somente se insere na “nova morfologia do trabalho”, implicada nas mais recentes e “flexibilizadas” formas de acumulação capitalista, mas também é expressão de um fenômeno que ganha cada vez mais visibilidade na vida das pessoas que vivem do trabalho: a precarização do trabalho. Precarização do trabalho que traduz o que nas últimas décadas tem sido amplamente enfatizado nas ciências sociais (BAUMAN, 2011; DRUCK, 2011; STANDING, 2017; ANTUNES, 2018) como uma experiência combinada de falta de garantias (de trabalho, de profissão, de renda, de condições de sobrevivência), de incertezas (quanto à continuação e relativa estabilidade futura, no trabalho e nos projetos de vida) e de inseguranças (quanto à inserção e permanência no mercado de trabalho, à renda proveniente do trabalho, a garantias legais e de proteção no trabalho).

Como argumenta Guy Standing, considerando a experiência histórica dos países capitalistas “centrais”, a precarização do trabalho é expressão de uma ruptura, estabelecida no contexto da restruturação neoliberal do capitalismo contemporâneo, com a “agenda industrial” definida para as classes trabalhadoras no pós-II Guerra Mundial. Agenda industrial que foi construída a partir da preocupação com diferentes formas de garantias: garantia de mercado de trabalho, garantia de emprego, garantia de um vínculo empregatício, garantia de proteção no trabalho, garantia de desenvolvimento de habilidades, garantia de renda adequada, garantia de representação sociopolítica (STANDING, 2017, p. 28).

Precarização do trabalho que, no contexto de transformações que ocorrem no “mundo do trabalho” no Brasil a partir das últimas décadas, pode ser identificada através de um “conjunto de indicadores” (DRUCK, 2011): 1. A precarização que decorre da “vulnerabilidade das formas de inserção” e das desigualdades sociais presentes nos mercados de trabalho do País (em 2009, 22% dos ocupados com remuneração no Brasil recebiam menos do que um salário mínimo”) (DRUCK, 2011, p. 48); 2. A precarização que decorre das diferentes formas de intensificação do trabalho e de dinâmicas de terceirização do processo produtivo, expressão de transformações tecnológicas e organizacionais nos processos de trabalho que tendem a impor aos trabalhadores “metas inalcançáveis”, longas jornadas de trabalho, polivalência; e que se sustenta “na gestão pelo medo, na discriminação criada pela terceirização […] e nas formas de abuso de poder” (DRUCK, 2011, p. 48); 3. A precarização que decorre das condições de insegurança e de saúde dos trabalhadores, dados os padrões de gestão que “desrespeitam o necessário treinamento, as informações sobre riscos, as medidas preventivas coletivas” (DRUCK, 2011, p. 49); 4. A precarização que implica a perda das identidades individual e coletiva, em condições nas quais a situação de desemprego e de “ameaça permanente da perda do emprego” se constituem “numa eficiente estratégia de dominação no âmbito do trabalho”, decorrendo disso experiências de desenraizamento, de perda de vínculos, de corrosão da autoestima (num mundo que avisa aos indivíduos, a todo o momento, que “são inúteis para o mundo”), de destruição da solidariedade de classe (DRUCK, 2011, p. 50); 5. A precarização que decorre da fragilização da organização dos trabalhadores, dadas as crescentes dificuldades de organização sindical e de lutas em defesa de interesses coletivamente compartilhados pelos trabalhadores (DRUCK, 2011, p. 50); 6. Por fim, a precarização que está implicada e que decorre da “condenação e descarte do Direito do Trabalho”, expressão dos ataques, questionamentos e relativização da importância das “formas de regulamentação do Estado, cujas leis trabalhistas e sociais têm sido violentamente condenadas pelos ‘princípios’ liberais de defesa da flexibilização” (DRUCK, 2011, p. 52).

Ludmila Abílio (2020a), atenta ao processo de precarização que compreende a “uberização” do trabalho, ressalta aspectos fundamentais da “subsunção real” implicada nesse tipo de trabalho:

A administração de si, ao mesmo tempo que inteiramente subordinada, se exerce como total responsabilidade do trabalhador. Assim, a sobrevivência em meio a uma concorrência formada pela multidão de trabalhadores disponíveis passa a depender das estratégias mais eficazes de gerenciamento de si. […]. Longe da figura de um empreendedor, o que vemos em ato, na uberização, é a consolidação do trabalhador como um autogerente inteiramente subordinado. […]. Vale destacar que, para a grande maioria da classe trabalhadora brasileira, o autogerenciamento é elemento estruturante de suas vidas e precede o que hoje possamos definir como políticas neoliberais ou inovações tecnológicas […]. Entretanto, a grande novidade é que esse modo de vida, nessa condição, passa a ser subsumido, controlado, mapeado, gerenciado e monopolizado. Estratégias de vida hoje tornam-se dados processados e utilizados para o aumento da produtividade do próprio trabalhador que as engendra, e da multidão de trabalhadores como um todo; estratégias de vida hoje tornam-se informações que serão administradas por empresas as quais detêm os meios de se apropriar delas de modo privado e tiranicamente utilizá-las como parte do gerenciamento e controle do trabalho (ABÍLIO, 2020a, p. 123-24. Grifos no original).

Tem-se, portanto, um contexto de precarização, no qual terceirizações, flexibilizações, informalidades são práticas cada vez mais presentes na vida das pessoas que vivem do trabalho. O surgimento e a expansão do trabalho por aplicativo se inserem nesse contexto, evidenciando formas atuais de intensificação da exploração do trabalho, comprometidas que estão com relações trabalhistas crescentemente individualizadas (a crença no empreendedorismo e a aposta de que as relações com os trabalhadores possam ser relações com “prestadores de serviços”), com mecanismos cada vez mais sofisticados de controle, com a crescente supressão de legislações de proteção aos trabalhadores.

4. O TRABALHO POR APLICATIVO EM SANTA CRUZ DO SUL: UMA ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA DOS CONSUMIDORES

Como o trabalho por aplicativo tem se expandido em cidades médias? que características esse tipo de trabalho assume nessas cidades, não somente sob o ponto de vista da organização do processo de trabalho, mas também da estruturação do mercado de trabalho, das condições de trabalho para os trabalhadores, das formas locais de regulamentação do trabalho e de representação sociopolítica dos trabalhadores? Essas são questões que ainda precisam ser melhor compreendidas, tomando-se como referência esse processo de “interiorização” do trabalho por aplicativos, em especial nas cidades médias do país.

Com atenção a essas questões, então, é que foi realizado um levantamento com a população de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, que, somado a dados secundários que foram levantados na cidade, em um jornal local, permitem algumas indicações iniciais de como esse processo vem sendo conformado.

O formulário de pesquisa foi estruturado de modo a levantar informações sobre o perfil socioeconômico dos pesquisados, a situação em que se encontravam no mercado de trabalho (suas condições de empregabilidade e de contrato de trabalho, seus vínculos com instituições de representação dos interesses dos trabalhadores) e seus posicionamentos em relação ao trabalho por aplicativo. Nesse último caso, então, foram levantadas informações sobre a atuação no mercado de trabalho enquanto trabalhador por aplicativo, consumo de produtos e/ou serviços acessados através de aplicativos, a avaliação acerca da natureza do trabalho por aplicativo e a importância (ou não) de os trabalhadores por aplicativo acessarem direitos trabalhistas e previdenciários.

O levantamento constatou que uma parcela significativa da população de Santa Cruz do Sul já consome produtos e serviços que são oferecidos por empresas de aplicativo. Como está indicado no quadro a seguir, 71,4% dos pesquisados afirmaram que eles ou alguém de suas famílias tinham realizado esse tipo de compra no mês que antecedeu ao levantamento (Quadro 1).

Quadro 1 – População pesquisada, por compra de produto ou serviço oferecido por empresas de aplicativos

População pesquisada Você ou sua família realizaram alguma compra?n.%
Sim
Não
Não sabe/não respondeu
86
29 05
71,7
24,2 4,1
Total120100,0

Fonte: Dados da Pesquisa, 2023.

E já há uma variedade de serviços que são acessados através de trabalhadores por aplicativo, mas o que predomina são os serviços de transporte de passageiros, seguidos pela compra de refeições. O quadro a seguir apresenta esses dados, indicando que, além desses dois tipos de serviços, já está no circuito de consumo da população de Santa Cruz do Sul o trabalho por aplicativo que se realiza nas áreas médica, psicológica, informática, jurídica, mesmo na educação. Destaque-se, também, a alta percentagem de pesquisados que indicaram “compras realizadas pela Internet”, essas oferecidas por aplicativos de compra, tais como o Mercado Live, a Magazine Luiza, as Americanas, a Amazon, dentre outros (Quadro 2).

Quadro 2 – População pesquisada, por compra de produto ou serviço oferecido por empresas de aplicativos

População pesquisada Você ou sua família realizaram alguma compra?n.%
Serviços de transporte de passageiros
Serviços de entrega de refeições
Serviços médicos
Serviços de profissionais de psicologia
Serviços de informática
Serviços de entrega de produtos farmacêuticos Serviços de advogados Compras pela Internet Serviços escolares
77
58
16
19
23
12 09
58 04
89,5
67,4
18,6
22,1
26,7
13,9
10,5 67,4 4,6
Total276320,7

Fonte: Dados da Pesquisa, 2023.

Uma parcela pequena, mas importante, da população pesquisada afirmou que em sua família alguém trabalhava para empresas de aplicativo. Esse dado está apresentado no quadro a seguir, onde se pode observar que, somados, os que afirmaram que tinham trabalhado no mês que antecedeu ao levantamento com os que afirmaram que eles e alguém de suas famílias tinham trabalhado e com os que afirmaram que alguém de suas famílias tinha trabalhado, chega-se aos 18,3% dos pesquisados (Quadro 3).

Quadro 3 – População pesquisada, por trabalho seu ou de algum familiar em empresas de aplicativos

População pesquisada Você ou alguém de sua família, no último mês, trabalhou para alguma empresa de aplicativos?n.%
Sim, eu trabalhei
Sim, eu e alguém de minha família
Sim, alguém de minha família
Não
Não sabe/não respondeu
08
05
09
95 03
6,7
4,1
7,5
79,2 2,5
Total120100, 0

Fonte: Dados da Pesquisa, 2023.

Apesar da já significativa presença do trabalho por aplicativos na cidade, a frequência do consumo de produtos e de serviços oferecidos por empresas de aplicativo ainda é incipiente. As informações levantadas tanto em relação ao uso de transporte por aplicativos quanto ao consumo de alimentos indicam isso. Pode-se observar que o uso de carro próprio é muito importante para o deslocamento na cidade de Santa Cruz do Sul: 49,6% indicaram que utilizam carro próprio para o deslocamento em cinco ou mais dias durante a semana. E o transporte por aplicativo, ainda que utilizado, tem uma presença mais significativa em apenas um percentual pequeno da população: apenas 6,4% afirmaram que utilizam transporte por aplicativo cinco ou mais vezes por semana (Quadro 4).

Quadro 4 – População pesquisada, por meios de transporte que utiliza habitualmente, para ir ao trabalho, estudar, passear, por frequência do uso

Frequência de uso Meio de Transporte040203040506
Transporte público
Carro Próprio Transporte por aplicativo
Taxi
18,3
8,4 20,9 14,2
5,8 9,2 7,3
1,7
16,0 5,4
2,5
9,2
49,6 6,4
9,2
4,2 23,6 8,3
55,8
12,6
36,4 75,0

Fonte: Dados da Pesquisa, 2023. Legenda: 1 – Uma vez ao mês pelo menos; 2. Um ou dois dias na semana; 3. Três ou quatro dias na semana; 4. Cinco ou mais dias na semana; 5 Algumas vezes no mês; 6. Nunca utilizei.

No caso dos pedidos de comida ou bebidas através de aplicativos, 8,9% afirmaram que utilizam esses serviços um ou dois dias durante a semana; contudo, 23,8% afirmaram que utilizam tais serviços pelo menos uma vez por mês. A forma mais utilizada de pedido de comida/bebida, no entanto, é o delivery do próprio estabelecimento. O que também é significativo, pois se trata de uma forma de pedido de comida que mobiliza, para o transporte, motoboys que circulam pela cidade transportando alimentos, bebidas, inclusive como trabalhadores por aplicativo (Quadro 5).

Quadro 5 – População pesquisada, por meios de pedir comida ou bebida (quando pede) que utiliza habitualmente, por frequência dos pedidos

Frequência de uso Meio de Transporte01020304 0506
Delivery do próprio estabelecimento Aplicativo como iFood etc. Pessoalmente no estabelecimento40,6 23,8 25,710,9 8,9 14,9– 2,0 9,9
– 2,0
23,8 14,6 30,724,7 50,5 16,8

Fonte: Dados da Pesquisa, 2023. Legenda: 1 – Uma vez ao mês pelo menos; 2. Um ou dois dias na semana; 3. Três ou quatro dias na semana; 4. Cinco ou mais dias na semana; 5 Algumas vezes no mês; 7. Nunca utilizei.

Não se observa uma problematização quanto às implicações do trabalho por aplicativos para os trabalhadores. Talvez aqui prevaleça a mentalidade de consumidor, cuja atenção está voltada à possibilidade de um serviço mais rápido e em condições mais favoráveis de pagamento. As manifestações são incongruentes, pois, ao mesmo tempo que se considera o trabalho por aplicativo um “trabalho digno”, também se indica que trabalho, para ser digno, precisa alcançar determinadas condições que são negadas aos trabalhadores por aplicativo.

Quando foi perguntado se consideravam o trabalho por aplicativo um “trabalho digno”, ainda que uma percentagem significativa dos pesquisados tenha respondido que não o consideravam um trabalho digno, a maioria (65%) afirmou que sim, que consideravam o trabalho por aplicativo um trabalho digno (Quadro 6).

Quadro 6 – População pesquisada, por avaliação do trabalho por aplicativo

População pesquisada Você considera que dirigir ou entregar por aplicativo é um trabalho digno?n.%
Sim
Não
Não tem opinião formada
78
30 12
65,0
25,0 10,0
Total120100,0

Fonte: Dados da Pesquisa, 2023.

E a dignidade do trabalho, para a população pesquisada, está relacionada com o reconhecimento de direitos (trabalhistas, previdenciários). Como pode ser observado no quadro a seguir, quando foi perguntado o que consideravam necessário para que um trabalho fosse digno, as questões mais referidas foram, nessa ordem: “ter acesso aos benefícios da previdência social”, “ter férias e décimo terceiro”, “ter seguro para cobrir danos decorrentes de acidentes de trabalhos” e “ter piso de ganhos de pelo menos um salário mínimo” (Quadro 7).

Quadro 7 – População pesquisada, por questões consideradas importantes para um trabalho ser digno

População pesquisada O que é importante para um trabalho ser digno?n.%
Ter acesso aos benefícios da previdência social.
Ter seguro para cobrir danos decorrentes de acidentes no trabalho.
Ter férias e décimo terceiro.
Ter auxílio para custos relacionados ao trabalho.
Ter horário de trabalho de até 44 horas semanais.
Ter piso de ganhos de pelo menos um salário mínimo.
Ter plano de saúde privado.
95
51
57
27
27
37 28
79,2
42,5
47,5
22,5
22,5
30,8 23,3
Total322268,3

Fonte: Dados da Pesquisa, 2023.

A percepção, aliás, de que os trabalhadores por aplicativo precisam de uma proteção legal se confirmou nos posicionamentos da população pesquisada em relação a um conjunto de questões que foram propostas no formulário. Há concordância quanto à necessidade de “aumentar a proteção social dos motoristas e entregadores por aplicativo”, que a “previdência social deve ser oferecida a todos, independentemente se são trabalhadores por conta própria ou empregados”, que é necessário mudar a legislação, para “facilitar a inclusão de novas atividades na previdência social, como motoristas e entregadores de aplicativo”.

Certamente há, dentre os pesquisados, quem defenda que a integração dos trabalhadores por aplicativo em um sistema de proteção não necessariamente ocorra através de uma legislação trabalhista, mas através de saídas construídas a partir das relações diretas entre empresas e trabalhadores. É o que decorre de posicionamentos em relação às afirmações “a previdência social do governo não será suficiente para apoiar os trabalhadores, é preciso que as empresas também ajudem” e “o sistema trabalhista está desatualizado e não adaptado ao trabalho realizado através de plataformas digitais”. Contudo, predominam as percepções quanto à necessidade e à importância de uma legislação de proteção trabalhista e previdenciária aos trabalhadores por aplicativo (Quadro 8).

Quadro 8 – População pesquisada, por posicionamentos em relação ao trabalho por aplicativo

Posições Afirmações1234
É necessário aumentar a proteção social dos motoristas e entregadores por aplicativo84,211,90,93,0
A previdência social deve ser oferecida a todos, independentemente se são trabalhadores por conta própria ou empregados79,213,93,03,9
É necessária uma mudança para facilitar a inclusão de novas atividades na previdência social, como motoristas e entregadores de aplicativo.79,217,90,92,0
O trabalho com o uso de aplicativos de mobilidades e entregadas ajuda a reduzir o desemprego.67,321,85,94,9
A previdência social do governo não será suficiente para apoiar os trabalhadores, é preciso que as empresas também ajudem.51,534,74,98,9
O sistema trabalhista está desatualizado e não adaptado ao trabalho realizado através de plataformas digitais.57,435,74,92,0
Os aplicativos de mobilidade e entregas permitem que qualquer um que queira tenha fácil acesso ao trabalho e geração de renda.46,536,78,97,9
O trabalho por aplicativos de mobilidade e de entrega será essencial para recuperar a economia no Brasil.40,637,68,912,9
O trabalho por aplicativos garante maior autonomia para os trabalhadores.53,426,813,95,9

Fonte: Dados da pesquisa. Legendas: 1. concordo totalmente; 2. concordo em parte; 3. discordo em parte; 4. discordo totalmente.

Mas os dados apresentados neste último quadro também corroboram a afirmação segundo a qual não há, entre parcelas significativas dos pesquisados, uma problematização do trabalho por aplicativo. De alguma forma, também pela perspectiva de quem se posiciona a partir do lugar de consumidor, há uma naturalização dessa modalidade de trabalho, que é avaliada como uma possibilidade de “reduzir o desemprego”, já que se trata de um tipo de trabalho que pode ser acessível por “qualquer um que queira”, inclusive capaz de contribuir para a “recuperação da economia” do país. Uma parcela significativa, inclusive, considera que o trabalho por aplicativo “garante maior autonomia para os trabalhadores”.

De qualquer forma, o levantamento realizado permitiu concluir que, na população de Santa Cruz do Sul, uma parcela significativa reconhece a importância do trabalho por aplicativo e a necessidade de os trabalhadores terem direitos garantidos.

A mobilização em defesa de direitos de trabalhadores por aplicativos, aliás, já ganhou visibilidade em Santa Cruz do Sul. O poder público municipal, em 2021, instituiu uma lei visando regulamentar os serviços de transporte de passageiros por aplicativos no município. A Lei Municipal n. 8.616, de 2021, que ficou conhecida na cidade como “Lei do Uber”, determinou uma série de condições para o funcionamento desse tipo de serviço no município: 1. Para as empresas: determinou que, para operar, elas devem ser credenciadas junto à Secretaria Municipal de Segurança e Mobilidade Urbana, sob pena de serem consideradas transporte clandestino; o credenciamento tem validade de 36 meses e, entre as obrigações colocadas às empresas, elas devem disponibilizar veículos com condições para transporte de cadeirantes e precisam entregar periodicamente à prefeitura a relação detalhada de veículos e motoristas habilitados; 2. Para os motoristas: devem se inscrever como prestadores de serviços do município e recolher ISSQN (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza); 3. Para os veículos: o texto prevê uma série de sanções em caso de descumprimento das normas, incluindo advertência, multa, suspensão, cassação do credenciamento e até retenção ou remoção do carro (GAZETA DO SUL, 2023).

Desde a aprovação da referida Lei, a prefeitura, as empresas e os trabalhadores discutem sua efetividade, com algumas empresas defendendo que devem cumprir apenas a legislação federal. Em agosto de 2023, no entanto, tanto as empresas quanto os motoristas concordaram em fazer o cadastramento. Segundo informações que circularam nos meios de comunicação do município, já tinham concluído o cadastramento naquele mês as empresas Embarca Driver, Garupa, Top Drivers, Uber, Com elas, Tchê Busco, Unidos, Tô Aí e 99 (a empresa Da Santinha encontrava-se em vias de concluir o registro); quanto aos motoristas, 221 estavam regularizados e outros 40 com processo encaminhado (GAZETA DO SUL, 2023a).

Os registros de mobilização dos motoristas de aplicativo em Santa Cruz do Sul estão diretamente vinculados à Lei Municipal n. 8.616, de 2021. Interessante notar que em maio de 2023 ocorreram mobilizações de motoristas de aplicativos de transporte de passageiros em todo o país, com o objetivo de reivindicar melhores condições de trabalho e repasse mais altos nas tarifas das corridas. Em Santa Cruz do Sul, no entanto, os motoristas não aderiram às mobilizações nacionais (GAZETA DO SUL, 2023b).

Em agosto de 2023, no entanto, tendo em vista as exigências que a prefeitura estava colocando para uma empresa de aplicativo, em cumprimento à Lei municipal n. 8616, os motoristas de aplicativo mobilizaram-se, reclamando do rigor da fiscalização adotada pela prefeitura e exigindo “liberdade para trabalhar” (GAZETA DO SUL, 2023c). A mobilização, nesse sentido, não visou discutir condições de trabalho ou as relações contratuais com as empresas; mas o “direito de poder trabalhar”, especificamente por que, em cumprimento da lei existente no município, o poder executivo exigia o cadastramento de uma das empresas mais utilizadas no município (a empresa 99). O conflito, portanto, era com o poder público municipal. Como indicou um motorista entrevistado por um jornal da cidade: “A prefeitura está realmente de perseguição. Esse é o termo. Por que em outras cidades não é assim” (GAZETA DO SUL, 2023c).

Também no final de agosto de 2023 ocorreram mobilizações dos motoristas de aplicativo, agora cobrando da prefeitura a existência de vagas exclusivas no centro da cidade, com a destinação de espaços para serem utilizados somente para o embarque e o desembarque de passageiros de transporte por aplicativo. Representantes do poder executivo municipal, em reunião com representantes dos motoristas, anunciaram que seriam criadas 11 vagas exclusivas para embarque e desembarque de passageiros de serviços de transporte por aplicativo (GAZETA DO SUL, 2023d). Na ocasião, os representantes dos motoristas solicitaram também a delimitação de espaço exclusivo para os carros de aplicativos no entorno da rodoviária e do Parque da Oktoberfest (onde, anualmente, no mês de outubro, ocorre uma festa tradicional do município, vinculada à presença da imigração alemã em sua formação histórica e cultural). Além disso, solicitaram a identificação de todos os carros que atuavam no transporte de passageiros por aplicativos, mediante adesivo ou assemelhados, de modo a coibir o trabalho de “clandestinos” (GAZETA DO SUL, 2023d).

Trata-se, nesse sentido, de uma experiência de mobilização que indica que, em Santa Cruz do Sul, a identidade dos motoristas de aplicativo está em disputa, com uma presença importante, entre suas próprias lideranças, de uma concepção segundo a qual essa identidade se define a partir da condição de “autônomos”, “prestadores de serviços”. O que, efetivamente, pavimenta um caminho de distanciamento em relação à observação de direitos sociais e trabalhistas que os próprios trabalhadores de transporte de passageiros por aplicativo têm, em nível nacional, colocado em suas pautas de mobilização e de luta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cada vez mais, nas ruas das cidades do país e não somente nas regiões metropolitanas, circulam trabalhadores por aplicativo com seus carros e motos (ou carros e motos que foram alugados), em alguns casos com bicicletas, transportando pessoas, refeições e tantas outras mercadorias. As empresas para as quais esses trabalhadores trabalham transferem para eles um conjunto grande de riscos e custos, mantém um controle sob o processo e se apropriam de uma parte significativa do trabalho que realizam.

Em Santa Cruz do Sul, enquanto expressão de muitas cidades médias do país, o trabalho por aplicativo já há algum tempo está presente, em especial através do transporte de passageiros e de refeições. As condições de trabalho desses trabalhadores não se diferem daquelas que são indicadas em pesquisas nacionais, pois algumas das principais empresas que exploram essa modalidade de trabalho também estão presentes em Santa Cruz do Sul.

O levantamento realizado indicou que parcelas significativas da população de Santa Cruz do Sul recorre ao trabalho por aplicativo, entendem que os trabalhadores devem ter acesso a direitos, consideram o trabalho por aplicativo importante (inclusive para enfrentar situações de desemprego), além de entenderem que essa modalidade de trabalho garante autonomia e dignidade aos trabalhadores. Não se observa, nesse sentido, uma problematização das condições de trabalho presentes nessa modalidade, indicando-se que uma concepção construída a partir da perspectiva do consumidor é importante na avaliação que as pessoas fazem do trabalho por aplicativo.

Há sinais, também, que os próprios trabalhadores por aplicativo de Santa Cruz do Sul, ainda que possam ter consciência das condições inseguras de trabalho que têm e da importância de se garantir direitos, tendem a significar o trabalho que realizam a partir de uma perspectiva de quem é prestador de serviços, de quem atua no mercado enquanto autônomo, enquanto alguém que está lutando pela “liberdade de trabalhar”. São esses sinais que podem ser registrados nas mobilizações coletivas que os trabalhadores de aplicativo que atuam no transporte de passageiros em Santa Cruz do Sul organizaram na cidade. Como foi registrado, não houve mobilização na cidade na ocasião em que os motoristas por aplicativo organizaram, em nível nacional, mobilizações visando pressionar o estado e as empresas pelo reconhecimento e a garantia de direitos sociais e trabalhistas. As mobilizações dos trabalhadores, até então existentes na cidade, se somaram às mobilizações das próprias empresas, contra o rigor da regulamentação aprovada pelo poder público municipal, em favor de condições mais favoráveis de prestação dos serviços na cidade, inclusive em favor de um maior controle em relação aos trabalhadores que atuam de forma clandestina.

Isso não significa que os trabalhadores por aplicativo na cidade não tenham consciência das diferentes formas de precarização que estão implicadas no trabalho que realizam. A consciência não é algo que se desenvolve de modo mecânico e espontâneo. Ela precisa ser construída. E, no caso da consciência dos trabalhadores, é construída na própria experiência de mobilizações, de lutas, de enfrentamento das condições que, afinal, resultam no trabalho precarizado. Entidades de representação de interesses, mobilizações coletivas, defesa de direitos coletivamente definidos, já estão presentes na experiência dos trabalhadores por aplicativo em Santa Cruz do Sul. Oxalá essa experiência possa constituir bases políticas e ideológicas não somente para a problematização da condição precária do trabalho por aplicativo, mas também para a construção de novas formas de organização do trabalho, da produção, de sociabilidade humana.

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1 Inicialmente, considerando os dados do Censo Demográfico de 2010, a amostra foi assim constituída: 53,2% de homens e 46,8% de mulheres; 33% com idades entre 16 e 29 anos, 23,6% com idades entre 30 e 39 anos, 22,7% com idades entre 40 e 49 anos, 14,6% com idades entre 50 e 59 anos e 6% com 60 anos ou mais; 29,2% com ensino fundamental incompleto, 18% com ensino fundamental completo/médio incompleto, 34,3% com médio completo/superior incompleto e 18,5% com superior completo.


1 Graduado em Filosofia, é Mestre em Sociologia e Doutor em Sociologia Política. É professor e pesquisador na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), onde atua no Departamento de Ciências, Humanidades e Educação e no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional.
E-mail: marco14cadona@hotmail.com