OS ACORDOS DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL NOS CRIMES AMBIENTAIS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10055922


Marina Balsamão Vaz


Resumo: O presente artigo teórico parte do reconhecimento da insuficiência do Direito Penal Clássico diante das demandas atuais, devido a crescente importância dos bens jurídicos supraindividuais, e portanto, busca analisar a possibilidade da utilização dos de métodos de solução negocial para os crimes ambientais, bem como os benefícios dessa forma de solução para a proteção do bem jurídico. Para tanto, a pesquisa inclui a análise sobre a evolução do meio ambiente como bem jurídico previsto constitucionalmente, e a necessidade de sua tutela de forma eficaz. Analisará também o conceito de bens jurídicos supraindividuais, e sua importância para a prevalência da dignidade da pessoa humana. Por fim, será explorado o conceito do princípio da intervenção mínima, norteador do Direito Penal, e a necessidade do esgotamento das vias administrativas em situações de violação ao bem jurídico do meio ambiente.

Palavras Chave: Bem jurídico; Acordos de Não Persecução Penal, Meio Ambiente, Ultima Ratio.

I) INTRODUÇÃO

Foi-se o tempo em que a o Direito Penal se preocupava exclusivamente com bens jurídicos de ordem individual. Com o advento da Revolução Industrial, a sociedade sofreu grandes mudanças no desenvolvimento econômico e nas formas de intervenção do Estado. Todas essas transformações foram intensificadas pelos acontecimentos históricos relevantes que ocorreram durante o século XX, em que se destaca a globalização, que quebrou barreiras e diminuiu as fronteiras entre os países.

Essas mudanças sociais foram estudadas pelo sociólogo Ulrich Beck, que definiu a sociedade contemporânea como sendo uma sociedade de riscos, que convive constantemente com a incerteza dos perigos que a cercam. Surgem novas demandas ao Direito, e novos bens jurídicos que merecem ser tutelados pelo Direito Penal. Assim, os bens jurídicos supra individuais ganham evidência, já que são inerentes à coletividade como um todo.

Diante do reconhecimento social dessas novas exigências, o Direito Penal se adapta às novas necessidades da sociedade, buscando tutelar os novos bens jurídicos coletivos. Assim, considerado, o meio ambiente passa a ser compreendido como um todo integrado e unitário composto por diversos elementos relevantes não à um indivíduo somente, mas à coletividade.

A expansão do Direito Penal fez surgir o desafio de gerenciar os conflitos, com o foco nas soluções mais eficientes e pragmáticas, sem, contudo, abrir mão dos princípios e garantias processuais previstos constitucionalmente. 

À vista disso, o presente artigo tem o objetivo de mostrar a necessidade de implementação de um sistema negocial penal como forma de garantir a efetividade da tutela do meio ambiente (e dos demais bens jurídicos difusos).

Para tanto, será utilizada a técnica de revisão bibliográfica e análise documental, com exame de artigos, livros, leis, projetos de leis, julgados que cuidam dos temas relativos à expansão penal e ao negócio penal

II) A MUDANÇA DE PARADIGMA NO DIREITO PENAL: A TUTELA DA SUPRAINDIVIDUALIDADE E A EXPANSÃO ANUNCIADA

O surgimento da sociedade de riscos exigiu do Estado novas formas de intervenção. E, para compreender a sociedade contemporânea, é preciso levar em conta que ela é fruto de um processo histórico civilizatório, marcado por transformações gradativas e constantes que se sucederam ao longo do tempo. 

A sociedade atual se estruturou a partir de fatos e eventos históricos marcantes que simbolizaram o fim de um longo período histórico, em que predominavam as preocupações Iluministas.

O marco inicial desses fatos historicamente relevantes materializa-se no desenvolvimento tecnológico a partir da I Revolução Industrial, que alterou as estruturas de desenvolvimento econômico.

Após séculos de progressos e avanços científicos que vão, desde o surgimento das máquinas, passando pela revolução dos meios de transporte, por duas grandes guerras, chegando ao surgimento das redes de comunicação; foi com a globalização1 que os Estados se viram obrigados a regular e controlar os mercados. Isso porque, juntamente com todos esses avanços, veio também a internacionalização e o rompimento da barreira entre países. 

Todas essas mudanças foram estudadas e explicadas pela Sociologia, sob o conceito de “sociedade de riscos”. Neste sentido, muito bem explica o sociólogo alemão Ulrich Beck, reconhecendo que há um ciclo de criação e renovação dos riscos pelo homem, por serem os riscos, segundo ele “produtos de decisões sociais, que devem ser ponderados de acordo com as vantagens oferecidas e analisados, negociados, ou também, atribuídos aos indivíduos em função de regras científicas, jurídicas, etc..”

Em outras palavras, a sociedade atual enfrenta perigos diversos daqueles enfrentados anteriormente. Agora, além dos riscos oriundos dos fenômenos naturais, existem ameaças e perigos que decorrem da própria atuação humana sobre o meio. Assim, diferentemente de outras épocas, os indivíduos têm capacidade de interferir no funcionamento da sociedade de tal forma que podem gerar desequilíbrios e catástrofes.

Neste contexto, surgem riscos com um alto nível de complexidade, que a própria sociedade que os produziu, se vê, incapaz de prever e controlar.

Com isso, os reflexos desses novos riscos, bem como das incertezas a eles inerentes, acabaram por romper antigos padrões de comportamento e organização social. E, como não poderia deixar de ser, o Direito, sobretudo o Direito Penal, se viu impelido a se adaptar às novas formas de perigo e à nova organização social. 

São, então, identificados novos tipos de criminalidades anteriormente não existentes.  O que se percebia previamente era a proteção exclusiva dos Direitos Humanos Fundamentais (herdados do Iluminismos). Com isso, o Direito Penal “clássico” demonstrava uma preocupação restrita aos bens jurídicos de ordem individual.

Contudo, outros são os dias atuais. A sociedade sofreu verdadeira mudança de pensamentos e valores. Como fruto do aumento da complexidade das relações sociais e da imprescindibilidade da participação do Estado no processo econômico, surge a necessidade de ocupar, também, com os bens jurídicos coletivos, que se referem à sociedade na sua integralidade.

Neste sentido, é possível verificar uma nova preocupação da sociedade relativamente aos fenômenos criminais antes não vistos. Assim, trata-se da proteção das searas éticas e morais de uma coletividade como um todo (em que se enquadra inclusive o meio ambiente), intrínsecos ao bem estar e a dignidade da pessoa humana. 

Percebe-se, então, uma crescente preocupação com as questões ambientais, maior atenção na utilização de recursos, maior participação nos sistemas produtivos e maior consciência da liberdade econômica e do sistema fiscal. 

Certo é, que houve uma evidente expansão do Direito Penal, agora incidente em áreas antes não ocupadas, com novos bens jurídicos a serem protegidos. 

Como bem conceitua Silveira:

Os bens jurídicos coletivos devem ser definidos a partir de uma relação baseada na satisfação de necessidades de cada um dos membros da sociedade ou de uma coletividade, em consonância com o sistema social. Não hão de ser fundamentados, pois, sob uma ideia tradicional, vislumbrando-se um caráter microssocial, mas própria e particularmente macrossocial. 

Passa-se, então, a buscar novas formas de tipificação desses delitos, seja aperfeiçoando os já existentes, seja configurando novos crimes. Contudo, tal alargamento precisa observar os limites inerentes ao Direito Penal.

Ao contrário, a proliferação desregrada de leis penais, acabou gerando um inegável protagonismo do Direito Penal. Neste sentido, as questões complexas de proteção aos bens jurídicos supra individuais estão longe de uma aceitação pacífica da doutrina.

Isso tudo, porque as mudanças sofridas não se limitam apenas aos novos bens jurídicos que demandam por proteção, mas também sobre as consequências jurídicas do delito, em que se percebe um evidente retrocesso da pena restritiva de liberdade. 

Fato é que a nova forma de proteção penal supra individual, não pode ser feita de forma desregulada. É necessário procurar novos critérios de organização de premissas desses novos institutos, para garantir uma perfeita harmonia com a dogmática penal. 

Somente assim, será possível um melhor entendimento sobre a forma pela qual os interesses difusos deverão ser protegidos.

III) O MEIO AMBIENTE COMO BEM JURÍDICO SUPRAINDIVIDUAL E A EFICÁCIA NA INTERVENÇÃO PUNITIVA 

O presente capítulo trata de um tópico indispensável para a compreensão dos desafios que a tutela do meio ambiente enfrenta atualmente. Isso porque é preciso uma readaptação das antigas estruturas jurídicas, para a criação de novos instrumentos aptos a tutelar o bem jurídico do meio ambiente e a reparação dos danos à ele causados.

Neste sentido, é preciso compreender a questão ambiental, a forma como foi concebida como bem jurídico coletivo e sua normatização.

III. I) A QUESTÃO DO BEM JURÍDICO PROTEGIDO NO MEIO AMBIENTE

Como mencionado, com as profundas transformações sociais ocorridas no período pós-industrial, abriu-se espaço para novas preocupações jurídico-penais. 

E foram justamente esse conjunto de transformações que deu origem a uma compreensão mais abrangente dos fenômenos naturais e sociais. Em outras palavras, a sociedade passa a entender, verdadeiramente, sua relação e a interação com o meio ambiente, revendo todo o seu comportamento diante do meio em que vive.  

Passa-se, então, a estudar novos meios de conciliar o desenvolvimento e a preservação ambiental, buscando evitar grandes desequilíbrios sistêmicos.

Fato é que a nova percepção de dependência do indivíduo com o meio ambiente, afetou profundamente todos os ramos da ciência e da sociedade. Assim, o Direito se torna um mecanismo importante e necessário para garantir um indispensável relacionamento harmônico da coletividade com o meio ambiente.

Mas, para tutelar as relações com o ambiente, a ciência jurídica precisa, antes de qualquer outra providência, defini-lo juridicamente. Nessa lógica, é preciso que o conceito de meio ambiente seja amplo, para proteger todos os aspectos importantes, abordando todas as suas características. 

Assim, o meio ambiente é compreendido como toda a natureza original e artificial (solo, água, ar, flora e fauna), bem como os patrimônios históricos, artísticos e arqueológicos. Portanto, entende-se como sendo todo o conjunto de elementos do meio, que contribuem para a qualidade de vida dos indivíduos.

Assim leciona Mauricio Libster a respeito do meio ambiente:

Pertence à categoria dos bens jurídicos coletivos, já que afeta a comunidade como tal, seja de forma direta ou indireta, mediata ou imediata. É um bem jurídico de todos e está estreitamente vinculado às necessidades existenciais dos sujeitos, como a vida, a saúde, a segurança e ainda, a recreação. 

A partir disso, o Direito entende o meio ambiente como um conceito sistêmico, que alcança tanto a natureza primitiva quanto a artificial, fruto da interação com o próprio ser humano e pressupondo a integração de todos os elementos.

Certamente, trata-se de um patrimônio da própria sociedade, interferindo diretamente na qualidade de vida e na dignidade da pessoa humana. Assim, sendo um bem jurídico de todos, está diretamente vinculado às necessidades essenciais de todos os sujeitos.

Neste sentido, explica Benjamin:

 A natureza do bem ambiental, publica – enquanto realiza um fim publico ao fornecer a toda a coletividade – e fundamental – enquanto essencial à sobrevivência do homem, é uma extensão do seu núcleo finalístico principal: a valorização, preservação, recuperação e desenvolvimento da fruição coletiva do meio ambiente, suporte da vida humana. Em síntese, o zelo, como conceito integral, pela qualidade do meio ambiente BENJAMIN, 1993, p. 74.

Assim, o meio ambiente está profundamente enraizado no ordenamento jurídico brasileiro, já que está vinculado ao interesse coletivo. Aliás, a própria Constituição Federal de 1998, que tem como preceito assegurar “o bem-estar e as justiças sociais” (art. 193) se preocupou em ser a primeira a acolher a proteção do meio ambiente, reconhecendo-o como bem jurídico autônomo. Em seu artigo 225, a Carta magna indicou os elementos passíveis de tutela ambiental, nos seguintes termos:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

O tema, que antes era tratado apenas de forma indireta, passa a ser considerado de forma sistemática, como bem lembra José Afonso da Silva (2004, p. 46), “a Constituição de 1988 foi, portanto, a primeira a tratar deliberadamente da questão ambiental”, trazendo mecanismos para sua proteção e controle, sendo tratada por alguns como Constituição Verde”. 

Reconheceu-se que a conservação e proteção do meio ambiente é imprescindível para uma qualidade de vida sadia e à própria existência humana.

A partir disso, é possível concluir que em relação ao meio ambiente é um bem jurídico no qual todos têm direito de forma equilibrada e harmônica. Trata-se, portanto, de um direito que diz respeito à existência de uso comum do povo e que é indiscutivelmente imprescindível para garantir a qualidade de vida. A partir do texto constitucional, se pode ainda extrair a afirmação de que o Poder Público e a coletividade são os responsáveis por defender o Meio Ambiente.

Assim, a destinatária do Direito Ambiental é a sociedade, e, ao reconhecer que o meio ambiente é meio fundamental para o gozo dos demais direitos humanos, se reconhece também que cabe aos indivíduos e ao Estado protegê-lo. 

III. II) A ANTECIPAÇÃO DA TUTELA, OS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO E O PERIGO DA ADMINISTRATIVIZAÇÃO DA TUTELA PENAL

Certo é, que o desafio da sociedade jurídica atualmente deixa de ser o conhecimento dos novos avanços, e passa a se preocupar com a regulação de suas aplicações e efeitos. Portanto, o novo desafio é criar meios para controlar a produção de riscos.

Ainda, como foi dito, entender o meio ambiente como meio imprescindível para uma vida digna e harmônica com os direitos fundamentais, significa dizer que está atrelado ao artigo 6º da Constituição Federal, devendo ser tutelado também pelo Direito Penal.

Contudo, simplesmente transformar todo e qualquer risco em Direito Penal não resolve o problema, ao contrário, o deixaria sobrecarregado, gerando uma proliferação de normas penais indesejadas e ineficazes.

E é justamente por isso que a questão merece atenção, não apenas por sua atualidade, já que existe uma preocupação cada vez mais presente com a preservação do meio ambiente, mas principalmente por sua relevância, ao vivermos uma época de clara fuga para o Direito Penal, que se manifesta em um processo de permanente edição de tipos incriminadores e de repetida exacerbação das penas e do tratamento do processo penal

Assim, abre-se espaço para o debate acerca da real necessidade de o Direito Penal se entranhar na esfera administrativa, vindo a causar confrontos diretos com os critérios da dogmática criminal.

Anteriormente, a diferenciação do ilícito penal do ilícito administrativo estava justamente no grau de reprovação da conduta. Contudo, o que se verifica atualmente é a proliferação de tipo penais que constituem violações em funções do Estado, violando o princípio da ultima ratio.

Dessa forma, a criminalização demasiada do Direito Ambiental, acaba por gerar uma transformação do ilícito administrativo em ilícito penal. Esse fenômeno é chamado de Administrativização do Direito Penal, fazendo com que ele atue em âmbitos que não são sua função.

Sobre o tema, assim ensina Silva Sanchez:

As teses clássicas distinguiam entre ilícito penal e ilícito administrativo, atribuindo ao primeiro o caráter de lesão eticamente reprovável de um bem jurídico, enquanto o segundo seria um ato de desobediência ético-valor ativamente neutro. Posteriormente, todavia, foi se consolidando como doutrina amplamente dominante a tese da diferenciação meramente quantitativa entre ilícito penal e ilícito administrativo, segundo o qual o característico desse último é um menor conteúdo do injusto. (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 113).

Assim, a administrativização, que autoriza a proteção de incumbências administrativas de fiscalização e proteção do meio ambiente, acaba resultando em um verdadeiro prejuízo a sua tutela, desvirtuando sua função e abrangendo problemas que não eram sua função.

Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, explicaram que, a proliferação demasiada de tipos penais, foi fruto da sociedade pós-industrial, passando-se a acreditar que somente o Direito Penal seria o instrumento capaz de diminuir os riscos da sociedade, em que se vê:

Ao longo do século XX, mas particularmente depois da Segunda Guerra Mundial, acreditou-se que seria possível conter ou controlar (“combater”) os ratos com o elefante (com o direito penal tradicional), desde que alguma mobilidade extra lhe fosse dada. O legislador, assim, começou a sua deformação, colocando algumas rodas mecânicas nas suas patas (leia-se: para fazer frente à criminalidade moderna, começou a transformar o Direito penal tradicional flexibilizando garantias, espiritualizando o conceito de bem jurídico, esvaziando o princípio da ofensividade – mediante a construção de tipos de perigo abstrato -, eliminando grande parcela da garantia da legalidade etc.). 

Logo percebeu-se que a velocidade do elefante, mesmo já deformado, ainda assim, era incompatível com a rapidez da criminalidade. O processo de motorização e, depois, de turbinação de suas patas deu-se nas três ultimas décadas do Século XX: amplo processo de criminalização, modificação constante do Código Penal, aprovação massiva de leis especiais, incremento dos tipos de perigo abstrato, agravamento de penas, novos tipos penais, flexibilização de praticamente todas as garantias penais e processuais, corte de direitos e garantias fundamentais, flexibilização da prisão cautelar, proibição do direito de apelar, tutela prioritária de bens jurídicos supraindividuais (saúde pública, consumidor, segurança viária etc.), antecipação da tutela penal, admissão da transação penal, prêmios para o colaborador da Justiça, plea bargaining etc. Consequência: O elefante (o Direito penal tradicional) tornou-se irreconhecível. 

E foi com esse formato que o Direito penal chegou na era da globalização: hipertrofiado, confuso, caótico, simbólico, disfuncional, instrumentalizado, prevencionista exacerbado, descodificado, administrativizado etc. (Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini (2002, p. 34-35) 

Contudo, o Direito Penal deve sempre se fundar na proteção subsidiária dos bens jurídicos, como ultima ratio. Assim, somente diante da incapacidade dos outros âmbitos do direito, como última forma de controle.

O protagonismo do Direito Penal acaba desconfigurando e desvirtuando a estrutura do ordenamento jurídico como um todo. Passa-se a antecipar a tutela Penal para punir crimes de perigo abstrato, ampliando o seu âmbito de atuação e deixando o Direito Sancionador demasiadamente atrofiado.

Dessa forma, o que se observa é uma a atuação antecipada do Direito Penal, num momento anterior ao próprio risco ou ameaça, quando, na verdade, deveria se dirigir a medidas num momento posterior ao reconhecimento desse risco. Portanto, passa-se a se presumir o risco, fazendo com que a prova do perigo não faça parte da figura típica.

 De forma sintetizada, é possível afirmar que o legislador passa a tipificar condutas de desobediência do texto normativo, unicamente pela presunção do dito perigo, sem que fosse, verdadeiramente, verificado.

Ainda, no que interessa ao tema aqui debatido, a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98, prevê, em seu artigo 54, a possibilidade de tipificação de condutas de perigo abstrato. Com isso, pune-se condutas ambientais, simplesmente, por descumprem o comando da lei, sem que haja um efetivo perigo ao meio ambiente.

Vê-se, portanto, que no interior da dinâmica evolutiva da sociedade, a precaução e a prevenção extrapolaram os limites da ofensividade, deixando de comprovar a real existência do perigo, e se tornando meras referências para adquirir a obrigatoriedade norma.

IV) ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E AS SOLUÇÕES NEGOCIAIS PARA A INTERVENÇÃO PUNITIVA NECESSÁRIA NO MEIO AMBIENTE 

Estabelecidos os pressupostos que norteiam a questão ambiental dentro da sociedade contemporânea, bem como o papel da ciência jurídica diante de tais questões tão caras para a humanidade, passa-se, agora, à abordagem da atuação do Direito Penal, em situações lesivas ao bem jurídico do meio ambiente.

É nesse contexto que, diante da propagação exacerbada de condutas típicas, e da consequente administrativização do Direito Penal, impõe-se a necessidade de uma análise das formas punitivas utilizadas pelo Estado, como meio de garantir o jus puniend, de modo que seja possível, verdadeiramente, desenvolver mecanismos para sua tutela.

O presente capítulo, portanto, terá como objetivo aprofundar as questões que permeiam a compreensão do dano ambiental e da tutela do meio ambiente, apresentando e analisando seus conceitos, e expondo os problemas que dificultam sua efetiva proteção.

IV. I) A TRADIÇÃO DO CIVIL LAW E A INCORPORAÇÃO DA JUSTIÇA NEGOCIADA: MUDANÇA DE PARADIGMAS POSSÍVEL?

Como foi exposto, em um contexto de intensas transformações na sociedade, inúmeras são as propostas de transformação do processo penal, como forma efetiva de exercer o poder punitivo Estatal.

Assim, a partir desse contexto apresentado, o que se pretende neste tópico é expor a relação entre a expansão do Direito Penal e a ampliação de espaços de consenso dentro do processo penal, especialmente, por meio da negociação.

Fato é que a expansão do Direito Penal acarretou a criação de um grande número de novos tipos penais que não se mostravam necessários anteriormente. A complexidade das relações fez com que o próprio processo penal se tornasse mais complexo. Assim, a expansão do Direito Penal para outros âmbitos de intervenção, provocou a necessidade de implementação de um mecanismo que pudesse atender às novas demandas de forma eficaz e célere. 

Diante deste cenário, vários foram os países que adotaram a justiça negocial em seus sistemas penais. No Brasil, a utilização da barganha foi inspirada pelo direito americano, em que se utiliza o sistema conhecido como “Plea Bargain”. O referido sistema norte americano encontra grande aceitação em suas cortes por ser uma forma de desafogar o judiciário, mas enfrentam, contudo, grandes críticas em função da restrição de direitos fundamentais2.

O sistema negocial adotado pelo Brasil, conhecido como Civil Law, se mostrou mais adequado às leis nacionais, especialmente quando se trata de Direito Penal, já que é fundamentado no princípio da legalidade, previsto pelo art. 1º do Código Penal.

Contudo, muito tem se discutido a respeito da possibilidade ou não das soluções negociais no âmbito penal quando levadas em consideração as garantias processuais garantidas constitucionalmente. 

Ao tratar sobre o tema, Vinicius Gomes de Vasconcelos, afirma que acredita haver uma coação inerente à aceitação da proposta do acordo, que impossibilita não apenas a aceitação livre, mas a própria ampla defesa e direito de contraditório do investigado. Assim, defende que há uma verdadeira pressão argumentativa, sendo normais o uso de ameaças relativamente ao aceite do acordo3.

Contudo, a utilização de meios negociais no processo penal, se bem delineado, não parece vulnerar o princípio da ampla defesa e do contraditório. Isso porque, todos os institutos normativos que preveem, atualmente, a possibilidade de solução negocial, impõe a presença de advogado como sendo obrigatória. Dessa forma, é possível que o investigado se oponha aos termos propostos pela acusação, bem como rejeitar a proposta, ficando evidenciada a voluntariedade.

Com isso, pode-se afirmar que a voluntariedade está devidamente configurada nas soluções negociais nacionais. Ademais, é importante lembrar que, principalmente quando se trata de bens jurídicos coletivos, a barganha é caracterizada por ser uma forma moderna e adequada de solucionar litígios penais, de forma rápida e eficaz, de forma que proteja realmente o bem jurídico.

Neste sentido, não se pode crer que a forma judicial tradicional seja o único meio compatível com as garantias processuais previstas pela Constituição. No caso do Brasil, constitui um direito do investigado escolher ou não o processo penal. Da mesma forma, a ampla defesa é observada tanto na fase negocial quanto processual.

Ademais, cumpre salientar que o órgão acusatório só pode propor o acordo se preenchidos todos os requisitos exigidos (materialidade e autoria), e não sendo caso de arquivamento. Neste sentido, explica Rafael Oliveira:

Ao contrário do que sustenta parte da doutrina, a proposta de consenso não possui ligação com o princípio da oportunidade ou com o princípio da celeridade, uma vez que, por definição não faculta às partes transigirem sobre a acusação – apenas modifica a maneira de interagirem- e também não cria mecanismos voltados a acelerar o processo penal em detrimento de garantias fundamentais dos cidadãos, sendo certo que a rapidez na solução do conflito é apenas uma consequência quase sempre atrelada à adoção de um processo orientado pela relação processual.

Neste contexto, a implementação do sistema de justiça negocial se mostrou extremamente necessária como forma de combater a lentidão do sistema processual criminal, sem deixar de vista as garantias processuais. É possível a convivência da justiça criminal negocial com os princípios que baseiam o Estado Democrático de Direito.

Aliás, é preciso que se diga que a barganha não surgiu, exclusivamente, com o advento do Pacote Anticrime e com a normatização dos Acordos de Não Persecução Penal. Já com o advento da Lei 9.099/1995, os crimes de menor potencial ofensivo (diga-se com penas inferiores à dois anos), ganharam tratamento diferenciado daqueles que possuem as penas mais elevadas. Assim, é possível que sejam realizadas transações penais ou mesmo os Termos de Acordo de Conduta (relativamente aos crimes ambientais), em que se observa a realização de negociações entre o autor e o órgão acusatório. 

Sob a mesma lógica, o artigo 89 do Código Penal prevê, também, a possibilidade de uma solução que não se distancia da ideia negocial. Conhecido como suspensão condicional do processo, este instituto permite que o Ministério Público ofereça condições ao acusado, nos casos de crimes com penas inferiores a um ano. Assim, tem-se que, com o cumprimento das condições propostas, o processo fica suspenso e será posteriormente extinto. 

Fato é que a Lei 9.099/95 (assim como o Pacote Anticrime) surgiu como uma forma de acompanhar as profundas transformações da sociedade que ocorreram nos últimos anos. Assim, o Poder Judiciário teve grande redução das atividades no que se refere a atos ilícitos não tão relevantes. 

Por outro lado, o advento da implementação do sistema negocial no ordenamento jurídico brasileiro (como dito, através da Lei 9.099/95 e da Lei 13.964/2019), gerou mudanças, importantes e necessárias, que contribuem, inclusive para a efetivação do sistema acusatório instituído pela Constituição Federal, já que dão ainda mais evidência para a delimitação das funções de cada agente processual.

Tem-se, portanto, que a justiça negocial vem ganhando cada vez mais espaço no sistema jurídico nacional. Especialmente no Direito Penal, o Estado parece estar cada vez mais próximo dos métodos consensuais de resolução de conflitos, ensejando, assim, uma necessidade ainda maior, de se compreender as peculiaridades e aplicações dos referidos Acordos de Não Persecução Penal, implementados pela Lei 13.964/2019.

IV. II) A QUESTÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, FACE AO ANPP

Como restou concluído no item anterior, o Acordo de Não Persecução Penal foi um grande passo em direção à justiça negocial no âmbito criminal. Pode-se dizer que a nova forma de resolução de conflitos, instituída pelo Pacote Anticrime, foi uma inovação necessária para se alcançar um sistema penal acusatório e adaptado às novas demandas da sociedade. 

Assim, torna-se imprescindível entender a forma em que esse novo instituto foi concebido no sistema normativo.

Certo é que, os Acordos de Não Persecução Penal não são uma novidade trazida pela Lei 13.964/2019. O instituto surgiu, inicialmente, como uma regulação administrativa do Ministério Público, na forma da Resolução 181/ 2017 do Conselho Nacional do Ministério Público. Estes atos elaborados pelo Conselho Nacional do órgão acusatório traziam, não apenas a possibilidade de realização dos acordos, mas também, os requisitos para a sua elaboração. 

A necessidade da normatização dos Acordos surgiu diante da insegurança jurídica trazida pela Resolução 181, já que realizada unilateralmente pelo Ministério Público. Assim, em observância do princípio da reserva legal, a União se viu impelida a regularizar o importante instituto, como forma de gerar maior segurança à todas as partes do processo penal.

Portanto, como não poderia deixar de ser, o ato administrativo foi regularizado, e passou a ser um dispositivo do Código de Processo Penal. Assim, o Pacote Anticrime normatizou os Acordos de Não Persecução Penal, incluindo o artigo, 28- A no diploma legal, assim instituído: 

Art. 28- A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);          (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou       (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

V – Cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

A análise no artigo trazido permite concluir que os Acordos de Não Persecução Penal representam um evidente direito subjetivo do acusado. Isso porque, o oferecimento do ANPP está diretamente ligado com a pretensão acusatória do Estado.

Contudo, surge-se aqui a necessidade da análise do ANPP no que se relaciona ao princípio do devido processo legal, previsto constitucionalmente pelo art. 5º, LIV da CR/88. A partir do devido processo legal, fica garantido aos litigantes o direito de resposta e defesa do que está sendo julgado.

Entretanto, o que se observa é que os Acordos de Não Persecução Penal discutem questões anteriores ao processo, isto é, é um instituto pré-processual.  Assim, não há o que se falar em prejuízo ao devido processo legal, já que o ANPP constitui um instrumento de justiça negocial.

Neste sentido, destaca-se o ensinamento de Vladimir Aras:

 O acordo de não persecução penal não viola a legalidade nem o devido processo legal, porque é mero ajuste para não exercício do direito de ação pelo seu titular, na forma de um arquivamento condicional, sujeito ao implemento da condição nele prevista: o cumprimento das obrigações de fazer, não fazer e dar, que poderiam ser alcançadas mediante um TAC na instância civil. Nesse sentido, o acordo de não persecução penal é híbrido entre a composição civil e a transação penal. (ARAS, p. 320, 2019)

E não é só. Parte da doutrina entende que a aplicação e execução do Acordo de Não Persecução Penal é, propriamente, uma garantia do próprio devido processo legal, veja-se:

Dessa forma, devemos atentar para o fato de que a proposta de não persecução penal, sob uma perspectiva constitucional, é um direito fundamental, por força do artigo 5º, §2º, da Constituição Federal, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. (BARROS, p. 63, 2019).

Certo é que a garantia do devido processo legal está diretamente ligada ao cumprimento das obrigações impostas pelo Ministério Público ao acusado. Isto porque, havendo o descumprimento das condições impostas será proposta a ação penal. 

Contudo, há ainda uma questão que deve ser enfrentada, relativamente ao princípio do processo legal nas situações de aplicação do ANPP. Isso porque, o art. 128- A, responsável por normatizar os acordos, coloca como requisito a confissão do acusado, para aceitação da proposta. 

Conforme exposto, os Acordos de Não Persecução ocorrem em uma fase pré-processual. Assim, caso seja feita a confissão e mesmo assim o acordo não for homologado pelo Juiz, ela perde a condição de elemento probatório, devendo ser desentranhada dos autos, prosseguindo o feito no rito ordinário. Assim, sob qualquer ótica que se enxergue, não haverá supressão do princípio do devido processo legal.

IV. III) O ANPP E OS CRIMES AMBIENTAIS

A preocupação constitucional da tutela penal do meio ambiente tem lugar de ser. Contudo, não se pode perder de vista o caráter residual do Direito Penal, que deve atuar, sempre, em última instância, reprimindo condutas danosas, somente quando as outras formas de controle se mostrarem ineficazes.

Além disso, como foi amplamente explorado nos tópicos anteriores, as mudanças na sociedade nos últimos séculos acarretaram o surgimento de novos bens jurídicos que carecem de proteção estatal. Surgem os bens jurídicos supraindividuais, que se relacionam com a coletividade como um todo, não se preocupando mais, somente, com o indivíduo em si. 

Contudo, os bens jurídicos contemporâneos acabam exigindo uma maior eficiência da proteção estatal, justamente por serem inerentes à própria coletividade. Portanto, a lentidão do sistema judiciário constitui um prejuízo ainda maior a esses bens jurídicos, ensejando, uma busca por novas formas de solução de conflitos. 

Outro aspecto que também merece atenção, relativamente aos novos bens jurídicos, é em relação às formas de punição. Anteriormente, a privação de liberdade configurava a forma punitiva protagonista do Estado. Contudo, seja pela crise carcerária, seja pelo surgimento da necessidade de reparação do dano coletivo, a pena privativa de liberdade se mostra cada vez mais ineficiente na proteção dos bens jurídicos supraindividuais.

Isto porque, muito mais interessa à sociedade a restituição do bem coletivo em si, do que a prisão do agente causador do prejuízo. Em outras palavras, o fato do autor se encontrar recluso não implica na restituição ou na reparação do bem jurídico afetado.

Surge, portanto, a necessidade de se reorganizar as estruturas do processo penal, e de se punir de forma adequada e eficaz, fortalecendo, assim, os acordos e a justiça negocial penal.

Neste contexto, os crimes ambientais, como bem jurídico coletivo, já vem se adaptando às novas formas de solução de conflitos, que se submetem ao regime negocial. Já na Lei 9.099/95, os crimes ambientais com penas inferiores a dois anos recebiam tratamento diferenciado dos demais. 

Sob a mesma lógica, os Termos de Acordo de Conduta Ambiental, previstos pela Lei 7347/85, constituem uma solução negocial para situações em que haja dano ambiental. Por meio dele, é possível reverter os prejuízos ao meio ambiente gerados pelo autor, e ainda, garantir que sejam realizadas mudanças na sua administração interna para que não venham a ocorrer novamente. 

A Própria Lei de Crimes Ambientais, prevê soluções negociais quando se tratar de crimes de menor potencial ofensivo, nos seus seguintes artigos:

Art. 27. Nos crimes ambientais de menor potencial ofensivo, a proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, prevista no art. 76 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, somente poderá ser formulada desde que tenha havido a prévia composição do dano ambiental, de que trata o art. 74 da mesma lei, salvo em caso de comprovada impossibilidade.

Art. 28. As disposições do art. 89 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, aplicam-se aos crimes de menor potencial ofensivo definidos nesta Lei, com as seguintes modificações:

I – a declaração de extinção de punibilidade, de que trata o § 5° do artigo referido no caput, dependerá de laudo de constatação de reparação do dano ambiental, ressalvada a impossibilidade prevista no inciso I do § 1° do mesmo artigo;

II – Na hipótese de o laudo de constatação comprovar não ter sido completa a reparação, o prazo de suspensão do processo será prorrogado, até o período máximo previsto no artigo referido no caput, acrescido de mais um ano, com suspensão do prazo da prescrição;

III – no período de prorrogação, não se aplicarão as condições dos incisos II, III e IV do § 1° do artigo mencionado no caput;

IV – Findo o prazo de prorrogação, proceder-se-á à lavratura de novo laudo de constatação de reparação do dano ambiental, podendo, conforme seu resultado, ser novamente prorrogado o período de suspensão, até o máximo previsto no inciso II deste artigo, observado o disposto no inciso III;

V – Esgotado o prazo máximo de prorrogação, a declaração de extinção de punibilidade dependerá de laudo de constatação que comprove ter o acusado tomado as providências necessárias à reparação integral do dano.

Os Acordos de Não Persecução Penal, por sua vez, para além dos crimes ambientais de menor potencial ofensivo abrangem, todas as demais condutas previstas pela Lei de Crimes Ambientais, independente se são ou não passíveis de suspensão condicional do processo (já que a avaliação do acordo é antecedente).

Assim, as condutas tipificadas na Lei 9.605/98 que possuem penas maiores que dois anos (considerados de maior potencial ofensivo), atendem aos três principais requisitos para a proposição dos ANPP, a saber: (i) não estão sujeitos à transação penal (ii) não são praticados com violência ou grave ameaça, e (iii) possuem pena mínima inferior à quatro anos.

Com isso, preenchidos os requisitos básicos, é condição primeira, para o acordo que o agente causador reconheça e confesse a responsabilidade pela conduta danosa ao bem jurídico do meio ambiente. 

Em segundo lugar, e mais importante, é também condição que se o dano seja reparado ou restituído à coletividade. Aqui, é preciso dizer que a reparação do meio ambiente não pode ser mitigada, a teor do que prevê o art. 17 e 27 da Lei Ambiental. Dessa forma, a reparação será sempre cláusula obrigatória e indeclinável do ANPP em matéria ambiental. Portanto, sob essa lógica, a declaração de extinção de punibilidade do agente beneficiado pelo acordo, sempre dependerá de comprovação da reparação do dano ambiental.

Assim, os Acordos de Não Persecução Penal constituem um importante marco na proteção do meio ambiente. Não apenas por garantirem um procedimento mais célere e contribuir para o desafogamento das varas criminais, mas principalmente, por possibilitarem uma forma de punição e de proteção realmente eficaz a este bem jurídico.

Neste sentido, muito bem leciona Alex Fernandes Santiago:

A conclusão é de que nada servirá um Direito Penal que pretenda proteger o meio ambiente e não se ocupe da reparação do dano ambiental. A reparação é essencial, imanente a qualquer discussão sobre meio ambiente. Primeiro prevenção e, em seu fracasso, imediatamente buscar a reparação. De que servirão sanções como a pena privativa de liberdade para aqueles que desmatam a floresta amazônica, por exemplo, se também não lhes é exigida a recomposição do ambiente danificado?

V) CONCLUSÃO

O Direito Penal sofreu drásticas alterações, em função da globalização e da evolução da sociedade como um todo. Surgiram novos bens jurídicos que se tornaram extremamente relevantes, e com isso, novas tipificações, que anteriormente não apresentavam relevância para serem devidamente discutidas.

Os bens jurídicos supra individuais, dada sua relevância, passam a ser estudados, e portanto, questiona-se a melhor forma de punir condutas que a eles violem. As reprimendas clássicas, não mais se demonstram suficientes para tutelá-los, justificando a necessidade de novas formas de resolução de litígios criminais, garantindo o retorno do bem jurídico à sociedade.

O Meio Ambiente é um bem jurídico de indiscutível importância para uma vida humana digna. Consagrado pela primeira vez na Constituição Federal de 1988, incumbiu ao Estado o dever de garantir e tutelar da maneira mais eficiente e ampla possível, inclusive na seara penal.

Considerando que o principal objetivo da legislação ambiental é a própria preservação ambiental, paralelamente ao crescimento econômico, seja através da reparação ou da prevenção, o Estado deve buscar formas de proteger o meio ambiente de forma eficaz e célere. se utilizar do Direito Penal apenas quando nenhuma dos outros âmbitos se demonstrarem suficientes, e não apenas pelo mérito de punir um indivíduo.

Conforme exposto, os Acordos de Não Persecução Penal constituem um importante avanço na implementação de soluções negociais no âmbito penal. Apesar de que a barganha já vinha sendo observada em outros institutos, eram somente aplicáveis em casos de baixa complexidade, com crimes de penas mínimas menores que dois anos.

Os ANPP possibilitaram soluções negociais para além dos crimes ambientais de pequeno porte. Assim, pode-se afirmar que a Lei 9.605/98, em todas as suas capitulações, possui solução negocial. Seja pela transação seja pelos Acordos de Não Persecução Penal.

Assim, contribui-se para o descongestionamento da máquina estatal judiciária, garantindo maior celeridade e eficiência na solução de conflitos ambientais. Ademais, promove-se uma proteção realmente voltada a restituir o bem jurídico degradado.

O Direito Penal Ambiental, como as outras ramificações do atual Direito Penal Econômico, deve adotar uma forma de solução mais moderna e real. Somente assim, é possível garantir a efetividade na tutela do bem jurídico do meio ambiente.


1A globalização é o fenômeno de integração das diversas partes do globo, iniciado no século XV, que surgiu com o aprimoramento das técnicas de navegação oceânica, e que se aprofundou nas ultimas cinco décadas do século XX, em decorrência do acelerado desenvolvimento das técnicas de comunicação e transmissão de dados, que contraíram eletricamente o globo terrestre e o transformaram numa imensa “aldeia global” (MCLUHAN, 1967, p. 63)
2O regime da Common Law, utilizado nos Estados Unidos, se diferencia por se basear muito mais nas jurisprudências do que no próprio texto da lei. Assim, o promotor, o juiz e o advogado de defesa, agem racionalmente para tentar prever como será o julgamento, e, a partir disso, fazem barganhas para chegar a um acordo satisfatório a todos os envolvidos. Significa dizer que, nesse modelo, o acordo é realizado de acordo com a probabilidade de condenação e a suposta pena que seria aplicada de acordo com julgados anteriores. Assim, os benefícios concedidos são calculados para dar ao acusado a oportunidade de refletir sobre sua melhor escolha.
3VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de, Barganha e Justiça Criminal Negocia: análises e tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. Pag. 196.

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