REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8097044
Camila Santos da Silva Maia1
1. INTRODUÇÃO
A atual sistemática do Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689/41) prevê 2 (duas) modalidades de prisão: a prisão como pena em decorrência de sentença penal condenatória irrecorrível e a prisão provisória (ou cautelar ou processual). Dentro deste segundo grupo há 2 (duas) subespécies: preventiva ou em flagrante, conforme artigos 301 a 316, do CPP.
A prisão temporária também é enquadrada pela doutrina majoritária como uma prisão provisória, mas não está no Código de Processo Penal, como as outras. Esta, por sua vez, tem previsão na lei 7.960/89, em que há a enumeração de todas as hipóteses taxativas de cabimento.
O foco central do presente trabalho está diretamente relacionado à prisão preventiva, mais especificamente, entre todos os fundamentos, a garantia da ordem pública. Em outras palavras, interessa saber se a existência de registros processuais e policiais contra o indivíduo sugerem uma personalidade voltada para o crime e se essa sua forma de viver põe em risco a ordem pública, justificando assim, a decretação da segregação cautelar.
O conceito de ordem pública é nebuloso na doutrina e na jurisprudência; tem variado conforme as conveniências de cada caso, de maneira que a condição social do acusado pode influir decisivamente na adoção, ou não, da custódia cautelar. Sabe-se que as delegacias brasileiras estão repletas de presos provisórios possuidores de antecedentes relativos a pequenos delitos de furto, por exemplo, e que não obtém liberdade provisória por conta de registrar “passagens policiais”.
2. DA PRISÃO PREVENTIVA
A prisão preventiva tem previsão nos artigos 311 a 316, do CPP. A decretação desse tipo de cautelar enseja a observância de fundamentos, pressupostos e requisitos de admissibilidade. Sobre isso é necessário o aprofundamento conceitual para, em seguida, analisar o que se entende por ordem pública e traçar ponderações diretas pertinentes ao tema.
A prisão preventiva é a espécie de prisão cautelar, podendo ocorrer em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal e é decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial2, desde que, em qualquer das hipóteses, estejam presentes os requisitos do Fummus Comissi Delicti e Periculum Libertatis, conforme o artigo 312, do CPP3.
Exemplificando, aduz Júlio Fabbrini Mirabete (2004, p. 420):
Poderá ser decretada a custódia preventiva em qualquer fase do inquérito policial ou instrução criminal, tanto no caso de ação pública ou ação privada, desde que presente os pressupostos, fundamentos e condições de admissibilidade presentes em lei. Não há qualquer obstáculo à decretação da medida antes da conclusão do Inquérito Policial.
Importante ressaltar, apesar de não ser esse o objetivo do presente estudo, que o sistema processual adotado no Brasil é o acusatório, estando nas mãos do Ministério público ou do autor da ação penal o início e prosseguimento da persecução criminal. O sistema acusatório deriva do art. 129, inciso I, da CF4, ao estabelecer ao MP a atribuição de promover privativamente a ação penal pública.
Recentemente o Código de Processo Penal foi profundamente alterado pelo famigerado “Pacote Anticrime” (Lei 13.964/19), explicitando que o sistema processual adotado no Brasil tem estrutura acusatória, como podemos ver no art. 3º-A, do CPP5 e vedando atividades persecutórias por parte do magistrado.
Conforme aponta Renato Brasileiro (2020, p.44):
Pelo sistema acusatório, acolhido de forma explícita pela Constituição Federal de 1988 (CF, art. 129, inciso I), que tornou privativa do Ministério Público a propositura da ação penal pública, a relação processual somente tem início mediante a provocação de pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva (ne procedat judex ex officio), e, conquanto não retire do juiz o poder de gerenciar o processo mediante o exercício do poder de impulso processual, impede que o magistrado tome iniciativas que não se alinham com a equidistância que ele deve tomar quanto ao interesse das partes. Deve o magistrado, portanto, abster-se de promover atos de ofício na fase investigatória e na fase processual, atribuição esta que deve ficar a cargo das autoridades policiais, do Ministério Público e, no curso da instrução processual penal, das partes. É exatamente nesse sentido, aliás, o art. 3º-A do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19 (Pacote Anti Crime)
Dessa forma, na redação anterior conferida ao art. 311, do CPP, desde sua redação original datada de 1941 e mantida na alterações posteriores (Lei 5.349/1967 e Lei 12.403/2011)6, o magistrado pode, de ofício, decretar a prisão preventiva. Atualmente, em observância ao sistema acusatório, essa prisão cautelar deve ser requerida ou representada.
Os requisitos do Fummus Comissi Delicti e Periculum Libertatis, estão previstos no artigo 312, do CPP. O Fummus Comissi Delicti representa, no Processo Civil, a fumaça do bom direito. São os pressupostos da prisão preventiva. Em outras palavras, trata da presença da prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e, recentemente incluído pela Lei 13.964/19, o perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
Aury Lopes Júnior (2020, p. 985) acrescenta ainda que:
O fumus commissi delicti exige a existência de sinais externos, com suporte fático real, extraídos dos atos de investigação levados a cabo, em que por meio de um raciocínio lógico, sério e desapaixonado, permita deduzir com maior ou menor veemência a comissão de um delito, cuja realização e consequências apresentam como responsável um sujeito concreto.
O Periculum in Libertatis é composto pelos fundamentos da prisão preventiva. Tem como seu semelhante no Processo Civil como o periculum in mora, ou seja, alguma situação que imponha um perigo anormal ao desenvolvimento regular do processo como a garantia da ordem pública, da ordem econômica, a conveniência da instrução criminal, ou garantia de aplicação da lei penal. Mais uma vez, o mestre Aury Lopes Júnior (2020, p. 995) ressalta que:
O periculum libertatis deve ser atual. Deve ser observado o “Princípio da Atualidade do Perigo”. Para que uma prisão preventiva seja decretada, é necessário que o periculum libertatis seja presente, não passado e tampouco futuro e incerto. A “atualidade do perigo” é elemento fundante da natureza cautelar. Prisão preventiva é “situacional” (provisional), ou seja, tutela uma situação fática presente, um risco atual. No RHC 67.534/RJ, o Min. Sebastião Reis Júnior afirma a necessidade de “atualidade e contemporaneidade dos fatos”. No HC 126.815/MG, o Min. Marco Aurélio utilizou a necessidade de “análise atual do risco que funda a medida gravosa”. Isso é o reconhecimento do Princípio da Atualidade do Perigo.
Em relação aos fundamentos da prisão em análise, elencados no art. 312 do CPP, basta a presença de um deles para que se possa decretar a preventiva, conforme os demais requisitos estejam presentes.
Imperioso destacar que o artigo 313, do CPP7, apresenta os requisitos da prisão preventiva. Através de interpretação, em regra, não se admitirá o cabimento de prisão preventiva em crime culposo ou contravenção penal, mas apenas nos casos de crimes dolosos.
O Código de Processo Penal excepcional a prisão preventiva e estabelece, de maneira explícita no art. 314, do CPP8, a impossibilidade de decretação de prisão preventiva no caso da presença de alguma excludente de ilicitude como estado de necessidade, legítima defesa e estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito9.
Importantíssima alteração do “Pacote Anti Crime” (Lei 13.964/19) ocorreu no artigo 315, do CPP10. Em virtude da sua extrema excepcionalidade, a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada. Manifestando-se sobre a prisão preventiva, Fernando Capez (2000, p. 227) acrescenta:
A prisão provisória é medida de extrema exceção. Só se justifica em casos excepcionais, onde a segregação preventiva, embora um mal, seja indispensável. Deve, pois, ser evitada porque é uma punição antecipada.
Comissão Interamericana de Direitos Humanos já se manifestou no relatório sobre medidas dirigidas à reduzir o uso da prisão preventiva nas Américas no sentido de corrigir a excessiva aplicação da prisão preventiva, in verbis:
Em resumo, a Comissão reitera que os Estados da região devem adotar as medidas judiciais, legislativas, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para corrigir a excessiva aplicação da prisão preventiva; destacando entre estas medidas a aplicação das medidas alternativas à prisão preventiva. Neste sentido, os Estados têm a obrigação de garantir que a prisão preventiva seja de caráter excepcional e se encontre limitada pelos princípios da legalidade, presunção de inocência, necessidade e proporcionalidade. Além disso, no desenho das respectivas políticas, a CIDH recomenda aos Estados envolver a sociedade civil, além das pessoas destinatárias destas políticas estatais, a fim de assegurar que sua implementação resulte integral, participativa e inclusiva
Importante ressaltar ainda que a excepcionalidade de medidas restritivas de liberdade estão fundamentadas no princípio da presunção de não culpabilidade ou de inocência (art. 5º, LVII, do CF11 e art. 8.2, da CADH)12 decorrem duas regras, a “probatória” e a de “tratamento”. Nestor Távora (2017, p. 72) esclarece:
Do princípio da presunção de inocência derivam duas regras fundamentais: a regra probatória, ou de juízo, segundo a qual a parte acusadora tem o ônus de demonstrar a culpabilidade do acusado – e não este de provar sua inocência – e a regra de tratamento, segundo a qual ninguém pode ser considerado culpado senão depois de sentença com trânsito em julgado, o que impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de culpabilidade.
Interessante notar que a prisão preventiva não se submete a prazo, logo pode ser decretada e estendida pelo tempo idêntico àquele pelo qual subsistir as hipóteses que lhes justificarem, mas extinta tais hipóteses, será imediatamente revogada, conforme o teor do art. 316 da Lei Processual Penal13.
Como essa cautelar tem como característica a situacionalidade, sendo rebus sic stantibus, é imperiosa a revisão da necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, sob pena de tornar a prisão ilegal.
Infelizmente o Supremo Tribunal Federal, em julgamento Plenário das ADI 6581/DF e ADI 6582/DF, com relatoria do ministro Edson Fachin decidiu que o “transcurso do prazo previsto no parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal não acarreta, automaticamente, a revogação da prisão preventiva e, consequentemente, a concessão de liberdade provisória”.
Interessante notar que a prisão preventiva não pode ser decreta de ofício, senão através de requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. Ocorre que, pode ocorrer de ofício a revogação da prisão preventiva, assim como uma nova decretação de prisão cautelar, se sobrevivem razões que a justifiquem.
3. CONCEITO DE ORDEM PÚBLICA
Como já foi dito anteriormente, a garantia da ordem pública é um dos fundamentos da prisão preventiva, previsto na primeira parte do art. 312, caput, do CPP. Definir ordem pública é caminhar em terreno alagadiço, porque a questão se pauta em uma ideia abstrata de um conceito juridicamente indeterminado, o que por si só já é difícil, mas acima de tudo, estabelecer princípios que satisfaçam à maioria, procurando desagradar a poucos.
No que diz respeito à ordem pública, pode-se caracterizá-la sob 2 (duas) perspectivas: a) subjetiva, que procura aferir a possibilidade de o acusado voltar a cometer delitos, o que a prisão preventiva evitaria. Levar-se-ia em consideração a personalidade do acusado, seus antecedentes, a gravidade dos delitos anteriormente cometidos, etc.; b) objetiva, que se refere à repercussão social produzida pela prática da infração penal, desde que coloque em risco a ordem pública.
Segundo a crítica, sempre assertiva de Aury Lopes Júnior (2016, p. 651),
Não sem razão, por sua vagueza e abertura, é o fundamento preferido, até porque ninguém sabe ao certo o que quer dizer… Nessa linha, é recorrente a definição de risco para ordem pública como sinônimo de “clamor público”, de crime que gera um abalo social, uma comoção na comunidade que perturba a sua “tranquilidade”. Alguns, fazendo uma confusão de conceitos ainda mais grosseira, invocam a “gravidade” ou “brutalidade” do delito como fundamento da prisão preventiva. Também a quem recorra à “credibilidade das instituições” como fundamento legitimante da segregação, no sentido de que se não houver a prisão, o sistema de administração de justiça perderá a credibilidade. A prisão seria um antídoto para a omissão do Poder Judiciário, Polícia e Ministério Público. É prender para reafirmar a “crença” no aparelho estatal repressor.
Quanto à prisão cautelar para garantia da integridade física do imputado, diante do risco de “linchamento”, atualmente predomina o acertado entendimento de que é incabível. Prender alguém para assegurar sua segurança revela um paradoxo insuperável e insustentável. Por fim, há aqueles que justificam a prisão preventiva em nome da “credibilidade da justiça” (pois deixar solto o autor de um delito grave geraria um descrédito das instituições) e, ainda, no risco de reiteração de condutas criminosas. Esse último caso se daria quando ao agente fossem imputados diversos crimes, de modo que a prisão impediria que voltasse a delinquir. Com maior ou menor requinte, as definições para “garantia da ordem pública” não fogem muito disso.
A própria doutrina tem estabelecido alguns critérios para delimitar o conceito a ponto de que ele não fique sujeito ao adversário do julgador. Assim, na lição de Mirabete (2004), o conceito de ordem pública é complexo, no sentido de que abarca a perspectiva social e individual, formando um todo unitário. Chega a incluir o prestígio do próprio judiciário como seu elemento constitutivo. Em suas palavras, o mestre Mirabete (2004, p. 386) assim se refere:
Mas o conceito de ordem pública não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão. A conveniência da medida, como já se decidiu no STF, deve ser regulada pela sensibilidade do juiz à reação do meio ambiente à ação criminosa. Embora seja certo que a gravidade do delito, por si só, não basta à decretação da custódia provisória; a simples repercussão do fato sem outras consequências, não constitui circunstância suficiente para a decretação da custódia preventiva.
A doutrina mais conservadora procura distinguir os elementos do conceito a partir das perspectivas envolvidas. Para Denilson Feitosa Pacheco (2005), por exemplo, é preciso que se enxergue a questão pelo ângulo do acusado e pelo da sociedade; na perspectiva desta última, se refere ao clamor público, à desordem, às ameaças de depredação e manifestações sociais convulsivas, assim na sua iminência como na hipótese de acontecimento presente. Já no olhar do acusado, o autor (2005, p. 1010 e 1011) usa os seguintes termos:
A ordem pública é o estado de paz na sociedade. Paz é a ausência de violência lato sensu, incluindo a ausência de crimes […] Pelo ângulo do acusado, procura se aferir a probabilidade de que o acusado volte a delinqüir, o que se pretende evitar com sua prisão preventiva. Isto pode ser verificado, levando-se em consideração a personalidade do acusado, seus antecedentes, a gravidade do crime, etc. Por exemplo, um acusado que tenha praticado vários crimes de roubo e volta a praticar mais um, provavelmente praticar outro roubo, colocando em risco a ordem pública.
O destaque dado por Feitosa Pacheco (2005) é a possibilidade concreta de o indivíduo apresentar-se como “delinqüente” reiteradas vezes, sem que isso contemple a sua condenação anterior por delitos semelhantes ou distintos, mas considerando-se a hipótese de o indivíduo possuir registros processuais ou policiais. O autor (2005, p. 1017) ainda ressalta para o fato de que seria ideal ver-se o problema de maneira.
Absolutamente axiomática e apriorística, onde precisássemos tão-somente da dignidade humana, na ótica da liberdade individual como referência. Todavia, estamos num mundo real e complexo, em que a conduta individual adquiriu um poder de destruição sem precedentes na história humana.
Caso emblemático é o do jornalista Pimenta Neves, réu confesso que matou, em 2000, a namorada a tiros pelas costas e respondeu a todo o processo em liberdade, permanecendo ainda em liberdade mesmo após condenação pelo júri popular, apesar da repercussão social negativa em todo o país. Ele foi condenado a 19 anos de prisão, mas teve a pena reduzida para 14 anos e 10 meses e cumpre pena desde maio de 2011 na Penitenciária de Tremembé.
A doutrina de Binder (2003) toma como estrado principal para a decretação da custódia prévia a necessidade; não contempla a ordem pública como justificativa plausível para a adoção da medida extrema. O autor prefere que o acusado seja levado à prisão de modo cautelar apenas nos casos em que há ameaça de desaparecimento do agente. Sequer a proteção ao processo, como fundamento da prisão preventiva é aceita pelo autor, haja vista o fato de que, segundo diz, o Estado conta com inúmeros meios para impedir a ação do acusado. Segundo Binder (2003, p. 150):
Geralmente os autores citam dois motivos, entre os citados requisitos processuais, que devem ser agregados àquele essencial do grau de suspeição. O primeiro é o perigo da fuga e o segundo é o perigo de impedimento da investigação.
Na realidade, dentro de nosso sistema constitucional somente o primeiro pode constituir-se um fundamento genuíno para a prisão preventiva. O impedimento à investigação não pode ser um fundamento para o encarceramento de uma pessoa, porque o Estado conta com inúmeros meios de evitar a ação do acusado.
Segundo o professor Nestor Távora (2017, p. 932), a decretação da prisão preventiva com base na garantia da ordem pública tem como objetivo evitar que o agente continue delinquindo no transcurso da persecução criminal, seja durante o Inquérito Policial ou durante a fase processual. São suas as palavras:
É necessário que se comprove este risco. As expressões usuais, porém evasivas, sem nenhuma demonstração probatória, de que o indivíduo é um criminoso contumaz, possuidor de uma personalidade voltada para o crime etc., não se prestam, sem verificação, a autorizar o encarceramento. A mera existência de antecedentes criminais também não seria, por si só, um fator de segurança, afinal, de acordo com a jurisprudência da Suprema Corte, o simples fato de já ter sido indiciado ou processado, implica no reconhecimento de maus antecedentes. Obriga-se assim ao magistrado contextualizar a prisão e seu fundamento. Se os maus antecedentes, ou outros elementos probatórios, como testemunhas e documentos, revelam que o indivíduo pauta o seu comportamento na vertente criminosa, permitindo-se concluir que o crime apurado é mais um, dentro da carreira delitiva, é sinal de que o requisito encontra-se atendido.
Vejam que a existência de anotações na sua folha de antecedentes criminais (FAC) não tornaria obrigatória a decretação de prisão preventiva, sob o fundamento de garantia da ordem pública. O caso concreto deve ser analisado pelo magistrado, a partir de todas as provas carreadas aos autos. Caso haja a necessidade de submeter a prisão cautelar o investigado, caso esteja em fase investigativa, ou réu, quando já em fase processual, essa decisão deve ser suficientemente motivada e fundamentada, sob pena de ilegalidade e posterior relaxamento14.
4. ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS
Recentemente o Superior Tribunal de Justiça, através da sua sexta turma, baseado em pacifica jurisprudência, decidiu que a preservação da ordem pública justifica a imposição da prisão preventiva quando o agente possuir maus antecedentes, reincidência, atos infracionais pretéritos, inquéritos ou mesmo ações penais em curso, porquanto tais circunstâncias denotam sua contumácia delitiva e, por via de consequência, sua periculosidade:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. REITERAÇÃO DELITIVA. REINCIDÊNCIA ESPECÍFICA. OUTRAS ANOTAÇÕES CRIMINAIS. MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS. IMPOSSIBILIDADE. GRUPO DE RISCO DA PANDEMIA DE COVID-19. NÃO DEMONSTRADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A validade da segregação cautelar está condicionada à observância, em decisão devidamente fundamentada, aos requisitos insertos no art. 312 do Código de Processo Penal, revelando-se indispensável a demonstração de em que consiste o periculum libertatis. 2. Conforme pacífica jurisprudência desta Corte, a preservação da ordem pública justifica a imposição da prisão preventiva quando o agente possuir maus antecedentes, reincidência, atos infracionais pretéritos, inquéritos ou mesmo ações penais em curso, porquanto tais circunstâncias denotam sua contumácia delitiva e, por via de consequência, sua periculosidade. 3. No caso, a decisão que impôs a prisão preventiva destacou que o agravante é reincidente específico, possui condenação por roubo e estava cumprindo pena em regime aberto. Assim, faz-se necessária a segregação provisória como forma de acautelar a ordem pública. 4. Mostra-se indevida a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, quando a segregação encontra-se fundada na gravidade efetiva do delito, indicando que as providências menos gravosas seriam insuficientes para acautelar a ordem pública e evitar a prática de novos crimes. 5. Não demonstrado que o agente pertence ao grupo de risco previsto na Recomendação n. 62 do Conselho Nacional de Justiça, não há falar em revogação da prisão preventiva ou concessão de prisão domiciliar em razão da pandemia causada pela Covid-19. 6. Agravo regimental desprovido. (AgRg no HC 658.308/SP, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 08/06/2021, DJe 18/06/2021)
No que se refere à prisão cautelar, entendeu o Ministro que o fato de o indivíduo estar indiciado em inquéritos e respondendo a processos, revela uma personalidade voltada para o crime, o que põe em risco a ordem pública.
Em mais um julgado, dessa vez no Supremo Tribunal Federal, os Ministros do entenderam que modus operandi da ação delituosa e a periculosidade do agente, evidenciados pela expressiva quantidade e pluralidade de entorpecentes apreendidos garantem a prisão cautelar com fundamento da ordem pública:
A gravidade concreta do crime, o modus operandi da ação delituosa e a periculosidade do agente, evidenciados pela expressiva quantidade e pluralidade de entorpecentes apreendidos, respalda a prisão preventiva para a garantia da ordem pública (HC n. 130.708/SP, Relatora Ministra CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 15/3/2016, DJe 6/4/2016).
O ministro Gilmar Mendes analisou o processo e não verificou uma fundamentação idônea que recomenda-se uma medida constritiva, uma vez que a periculosidade concreta do acusado não demonstrada:
Agravo regimental em habeas corpus. 2. Penal e Processo Penal. 3. Tráfico de drogas e associação para o tráfico. 4. Prisão preventiva. Necessidade de garantia da ordem pública. 5. Periculosidade concreta do acusado não demonstrada. Fundamentação inidônea baseada na gravidade do delito recomenda a medida constritiva. 6. Agravo regimental a que se nega provimento. A Turma, por empate na votação, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Edson Fachin, que não conhecia da impetração e revogou a substituição da prisão preventiva por outra medida cautelar, concedida, no âmbito desta Suprema Corte, com a decisão agravada, e o Ministro Nunes Marques, que dava provimento ao recurso para restabelecer a prisão preventiva do paciente. Segunda Turma, Sessão Virtual de 15.10.2021 a 22.10.2021. (HC n. 205746 AgR / MS, Relator Ministro GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 25/10/2021, DJe 18/02/2022).
O que se verifica é que o Pretório Excelso, mantém a decretação da prisão preventiva, baseada em registros policiais e processuais violando o princípio constitucional da inocência:
HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA COMO GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. MOTIVAÇÃO ADEQUADA. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. 1. A decisão que determinou a prisão preventiva está apoiada em elementos concretos para resguardar a ordem pública (CPP, art. 312), em especial a periculosidade do acusado, indicada pela quantidade e variedade de substâncias entorpecentes e pela notícia de que ostenta registros criminais. 2 . Habeas corpus denegado. (HC 151221, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 19/03/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 14-05-2019 PUBLIC 15-05-2019)
Como já afirmamos anteriormente, a prisão preventiva não se submete a prazo. No julgado abaixo. a Ministra Cármen Lúcia reconheceu que o risco de reiteração delitiva e gravidade concreta tinham fundamentação idônea, mas houve excesso de prazo, uma vez que a prisão cautelar se postergou por longos 3 (três) anos:
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ROUBO MAJORADO E RESISTÊNCIA. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. RISCO DE REITERAÇÃO DELITIVA E GRAVIDADE CONCRETA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. PRECEDENTES. EXCESSO DE PRAZO. A PRISÃO HÁ MAIS DE TRÊS ANOS. ORDEM CONCEDIDA EM PARTE. DETERMINAÇÃO AO JUÍZO DE ORIGEM DE CONCLUSÃO DA INSTRUÇÃO E PROLAÇÃO DE SENTENÇA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. (HC 201781 AgR, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 14/06/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-115 DIVULG 15-06-2021 PUBLIC 16-06-2021)
Um julgamento muito antigo de relatoria do ministro Eros Grau revela a necessidade de se verificar os fatos para se aplicar a medida de restrição máxima, mesmo que de forma provisória.
O fundamento da garantia da ordem pública é inidôneo quando alicerçado na credibilidade da justiça e na gravidade do crime. De igual modo, circunstâncias judiciais como a gravidade do crime, o motivo, a frieza, e premeditação, o emprego de violência e o desprezo pelas normas que regem a vida em sociedade não conferem base concreta à prisão preventiva para garantia da ordem pública. Circunstâncias dessa ordem hão de refletir-se e apenas isso na fixação da pena.
[HC 99.379, rel. min. Eros Grau, j. 8-9-2009, 2ª T, DJE de 23-10-2009.]
Dessa forma, os Tribunais superiores são reticentes em manter o acusado, ou réu, em liberdade quando este tem inserções em sua folha de antecedentes criminais (FAC), independente inclusive do tipo de inscrição anterior.
5. CONCLUSÃO
A interpretação e aplicação da lei penal e processual penal demanda critérios mais objetivos, a fim de evitar, em maior grau, que o julgador adote decisões distintas para situações semelhantes. Assim, não se mostra pertinente que o parâmetro norteador para fundamentar a custódia prévia como garantia da ordem pública sejam os registros policiais somados aos processuais. Deve ser verificado no caso concreto a real necessidade da custódia cautelar. Entendimento diverso deste ofende o princípio da presunção de não culpabilidade ou de inocência.
Tem-se verificado que os juízes e tribunais brasileiros veem o mesmo problema sob ângulos diversos, o que revela insegurança na aplicação da lei: o julgador atento à opinião pública, sob a justificativa de “ouvir as vozes das ruas”, frequentemente adota a prisão preventiva como forma de acautelar a ordem social por temor de um julgamento popular; os julgadores que se agarram a critérios mais objetivos procuram fundamentar suas decisões de custódia prévia no registro de antecedentes do acusado, mesmo que ainda não haja trânsito em julgado, por enxergar na reiteração criminosa um risco à ordem pública; por último, os julgadores mais liberais não costumam enxergar motivo algum para a prisão preventiva.
Por tudo exposto, é crível que as decisões judiciais são frutos de uma atividade interpretativa. Contudo, no que se refere a prisão cautelar, em especial a prisão preventiva fundamentada em suposta garantia de ordem pública, a motivação para sua decretação não pode ficar ao sabor apenas das consciências dos julgadores. É preciso que se adote critérios objetivos para que as decisões se assemelham frente aos casos concretos.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 151221, do Tribunal de Justiça de São Paulo, Brasília, DF, Relator: Marco Aurélio, 15 de maio de 2019. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/ >. Acesso em: 10 mar. 2023
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 201781 AgR, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Brasília, DF, Relator: Cármen Lúcia, 16 de junho de 2021. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/ >. Acesso em: 10 mar. 2023
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1 Advogada;
Pós graduada em Direito e Gestão Imobiliária;
Pós graduada em Direito Penal e Processo Penal;
E-mail: advcamilamaia@hotmail.com