OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA: UMA DEFICIÊNCIA DO CÓDIGO DO CONSUMIDOR BRASILEIRO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202505231749


Samuel Araújo Inácio1
Leila Gomes Garcia2
Emely Lima Costa3
Orientador: Rodrigo Rafael dos Santos4


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a prática da obsolescência programada, ou obsolescência planejada, sob a ótica do Direito do Consumidor, com enfoque na sua vedação como forma de tutela da confiança nas relações de consumo. A obsolescência programada consiste na prática deliberada de reduzir a vida útil dos produtos, com o objetivo de incentivar o consumo constante e acelerar o descarte de bens ainda funcionais. Trata-se de uma estratégia empresarial que desafia diretamente os princípios de sustentabilidade e os direitos básicos do consumidor como a informação, a transparência e a boa-fé objetiva. A pesquisa foi realizada por meio de revisão bibliográfica, documental e normativa, com abordagem qualitativa e descritiva. O estudo aponta para a necessidade de maior fiscalização e regulamentação específica, a fim de coibir práticas abusivas e assegurar a efetividade do Código de Defesa do Consumidor. Conclui-se que a vedação da obsolescência programada é medida essencial para o equilíbrio das relações de consumo, bem como para a promoção de um mercado mais justo e ético.de consumo, bem como para a promoção de um mercado mais justo e ético.

Palavras chaves: Obsolescência Programada; Obsolescência Planejada; Direito Do Consumidor; Boa-Fé Objetiva; Código De Defesa Do Consumidor.

ABSTRACT

This paper aims to analyze the practice of planned obsolescence from the perspective of Consumer Law, focusing on its prohibition as a means of protecting trust in consumer relationships. Planned obsolescence refers to the deliberate practice of reducing the lifespan of products to encourage continuous consumption and the accelerated disposal of still functional goods. It is a business strategy that directly challenges sustainability principles and basic consumer rights, such as information, transparency, and objective good faith. The research was conducted through a bibliographic, documentary, and normative review, with a qualitative and descriptive approach. The study highlights the need for increased oversight and specific regulation to curb abusive practices and ensure the effectiveness of the Consumer Protection Code. It concludes that prohibiting planned obsolescence is crucial for balancing consumer relations and promoting a more fair and ethical market.

Keywords: Planned Obsolescence, Consumer Law, Objective Good Faith, Consumer Protection Code.

1 INTRODUÇÃO

A constante evolução tecnológica e a dinâmica do mercado de consumo têm impulsionado o desenvolvimento de produtos com ciclos de vida cada vez mais curtos. Nesse cenário, destaca-se a prática da obsolescência programada (ou obsolescência planejada), que consiste na introdução intencional de limitações na durabilidade ou funcionalidade dos produtos, com o objetivo de estimular sua substituição precoce. Embora tal estratégia possa atender a interesses econômicos das empresas, ela suscita sérias implicações jurídicas e éticas, sobretudo no que se refere à proteção dos direitos do consumidor.

No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), instituído pela Lei n.º 8.078/1990, estabelece princípios fundamentais como a boa-fé objetiva, a transparência e o direito à informação adequada, os quais se veem diretamente violados quando o consumidor é induzido a adquirir produtos cuja vida útil foi propositalmente reduzida. A prática da obsolescência programada, portanto, revela-se incompatível com os preceitos da legislação consumerista, na medida em que compromete a confiança legítima depositada pelo consumidor na relação contratual.

Além disso, os efeitos dessa prática transcendem o âmbito individual, refletindo-se em questões ambientais, como o aumento da geração de resíduos eletrônicos, e sociais, com o comprometimento do acesso ao consumo digno e consciente. Diante disso, a presente pesquisa propõe-se a investigar a vedação da obsolescência programada sob a ótica do Direito do Consumidor, considerando a proteção da confiança como elemento central para o equilíbrio das relações de consumo.

O objetivo geral deste estudo é analisar de que forma a vedação da obsolescência programada se sustenta juridicamente no ordenamento brasileiro, em especial à luz do CDC. Como objetivos específicos, pretende-se: compreender o conceito e as modalidades da obsolescência programada; verificar sua compatibilidade com os princípios do Direito do Consumidor; e identificar mecanismos jurídicos de combate a essa prática.

A relevância da temática justifica-se diante do crescente debate sobre práticas abusivas nas relações de consumo, especialmente em um contexto de consumo acelerado e de fragilidade informacional do consumidor. Assim, este trabalho estrutura-se em quatro partes: inicialmente, expõe-se o referencial teórico e os métodos utilizados; em seguida, apresentam-se os resultados obtidos com base na análise normativa e doutrinária; na sequência, realiza-se a discussão dos achados em cotejo com os principais autores sobre o tema; e, por fim, são apresentadas as considerações finais da pesquisa.

2 MATERIAL E MÉTODOS

A presente pesquisa possui natureza qualitativa, com abordagem dedutiva, uma vez que parte de uma análise teórica geral sobre a obsolescência programada e sua vedação, para então verificar sua aplicação prática à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, pois visa aprofundar a compreensão do tema e descrever os mecanismos legais disponíveis para a proteção do consumidor frente a essa prática.

Quanto aos procedimentos técnicos, adotou-se a pesquisa bibliográfica e documental, com base em doutrina especializada, artigos acadêmicos, legislações e normas aplicáveis, especialmente o Código de Defesa do Consumidor. Também foram analisadas decisões judiciais e pareceres jurídicos que tratam da temática, com o objetivo de identificar tendências interpretativas sobre a matéria.

Para a coleta de dados, utilizou-se principalmente de fontes secundárias disponíveis em bibliotecas digitais, bases de dados acadêmicos e legislações disponíveis em meios oficiais. A análise foi feita por meio da técnica de análise de conteúdo, a fim de interpretar criticamente os dados encontrados e relacioná-los aos princípios e normas do Direito do Consumidor.

Essa metodologia permite uma abordagem abrangente e crítica da obsolescência programada, relacionando-a à proteção jurídica do consumidor e aos fundamentos da confiança nas relações de consumo.

3 RESULTADOS

A análise bibliográfica e documental realizada permitiu identificar que a prática da obsolescência programada configura uma afronta direta aos princípios fundamentais do Direito do Consumidor, especialmente os princípios da boa-fé objetiva, da transparência e da confiança nas relações de consumo.

Os dados levantados demonstram que, embora o ordenamento jurídico brasileiro não trate expressamente da obsolescência programada, há previsão legal suficiente para coibir tal prática, especialmente por meio do Código de Defesa do Consumidor (CDC). O artigo 6º, inciso I, do CDC, que trata do direito à proteção da vida, saúde e segurança contra produtos perigosos ou nocivos, bem como o artigo 39, que veda práticas abusivas, oferecem fundamentos para o enfrentamento jurídico da obsolescência programada.

Foi constatado que o Judiciário brasileiro, ainda que timidamente, tem reconhecido a existência de vícios em produtos com durabilidade artificialmente reduzida, responsabilizando os fornecedores por práticas abusivas. No entanto, a falta de uma legislação específica e de fiscalização mais rigorosa contribui para a continuidade do problema.

Os resultados evidenciam, ainda, que há uma crescente discussão acadêmica sobre a necessidade de reformular o modelo de produção e consumo, priorizando a durabilidade dos produtos e a sustentabilidade ambiental, de forma a garantir uma proteção mais eficaz ao consumidor e ao meio ambiente.

4 A OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA COMO PRÁTICA ABUSIVA

A obsolescência programada consiste na limitação deliberada da durabilidade de um produto, seja por fragilidade técnica, limitação de atualização ou barreiras à reparação, com o objetivo de estimular o consumo contínuo. Embora tal prática não seja expressamente prevista no Código de Defesa do Consumidor, pode ser enquadrada como abusiva, poís é vedado ao fornecedor exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva (artigo 39, inciso V do CDC).

Essa prática fere diretamente os princípios da boa-fé objetiva e da confiança, basilares nas relações de consumo, uma vez que o consumidor é levado ao erro.

5 IMPACTOS AMBIENTAIS E SOCIAIS DA OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA

A obsolescência programada, ao reduzir deliberadamente a vida útil dos aparelhos eletrônicos, impulsiona o consumo contínuo de novos produtos e contribui diretamente para o aumento expressivo da produção de resíduos eletrônicos. Segundo o relatório “The Global E-Waste Monitor“, em 2022 o mundo produziu 62 milhões de toneladas (62 bilhões de kg) de lixo eletrônico, o equivalente a 7,8 kg por habitante. No entanto, apenas 22,3% desse volume foi devidamente coletado e reciclado por sistemas oficiais, revelando uma discrepância preocupante entre a produção e o processamento adequado desses resíduos.

Esse cenário é agravado pela rápida digitalização global, que tem promovido a disseminação massiva de dispositivos eletrônicos em todos os setores da vida social, desde aparelhos de comunicação e eletrodomésticos até vestíveis inteligentes e dispositivos de automação residencial. Com o estímulo ao consumo e o lançamento frequente de novos modelos, muitos com inovações incrementais pouco significativas, os consumidores são incentivados a descartar produtos ainda funcionais, gerando um fluxo contínuo e crescente de resíduos de aparelhos elétricos e eletrônicos (BALDÉ et al., 2024, p. 12).

A composição dos resíduos eletrônicos evidencia o risco ambiental envolvido. Em 2022, os resíduos continham cerca de 31 bilhões de kg de metais, 17 bilhões de kg de plásticos e 14 bilhões de kg de outros materiais como vidro, minerais e compostos diversos. Muitos desses componentes, se não tratados de maneira adequada, tornam-se altamente poluentes. Estima-se que, anualmente, 58 mil kg de mercúrio e 45 milhões de kg de plásticos com retardadores de chama bromados sejam liberados no meio ambiente devido à gestão inadequada dos resíduos eletrônicos. Esses elementos são conhecidos por sua elevada toxicidade, podendo causar sérios danos à saúde humana e à biodiversidade ao contaminarem o solo, a água e o ar (BALDÉ et al., 2024, p. 13).

Além da liberação de substâncias tóxicas, a má gestão do lixo eletrônico representa uma enorme perda de recursos valiosos. Metais como ouro, cobre e ferro, presentes nos equipamentos descartados, poderiam ser reinseridos na cadeia produtiva como matérias-primas secundárias. Em 2022, o valor econômico estimado desses metais nos resíduos eletrônicos foi de aproximadamente 91 bilhões de dólares, dos quais apenas 28 bilhões foram efetivamente recuperados. A reciclagem eficiente desses materiais, além de preservar recursos naturais, evita emissões significativas de gases de efeito estufa, contribuindo para o combate às mudanças climáticas (BALDÉ et al., 2024, p. 16).

Outro aspecto preocupante está relacionado ao destino final dos resíduos. De acordo com o relatório, apenas 13,8 bilhões de kg foram reciclados oficialmente de forma ecológica. Outros 16 bilhões de kg foram processados por sistemas informais em países com alguma estrutura, mas sem regulamentação adequada. Cerca de 18 bilhões de kg foram tratados de maneira informal e precária em países com baixa renda, sem infraestrutura apropriada. Além disso, aproximadamente 14 bilhões de kg foram descartados diretamente em aterros, juntamente com outros resíduos sólidos urbanos, sem qualquer tipo de tratamento ou aproveitamento (BALDÉ et al., 2024, p. 12).

Esses números revelam não apenas os efeitos da obsolescência programada, mas também a incapacidade estrutural global de lidar com as consequências desse modelo de produção e consumo. Regiões como Europa, América e Oceania apresentam os maiores índices per capita de geração de RAEE, com destaque para a Europa, que gerou 17,6 kg por habitante em 2022. Embora essas regiões também liderem os índices de reciclagem, ainda assim mais da metade dos resíduos gerados não são reciclados oficialmente. Em contrapartida, regiões como a África e partes da Ásia enfrentam maiores dificuldades, com infraestrutura deficiente e baixa cobertura legislativa, o que contribui para o acúmulo de resíduos em condições insalubres e perigosas (BALDÉ et al., 2024, p. 14).

A obsolescência programada, nesse contexto, torna-se não apenas uma estratégia empresarial discutível do ponto de vista ético, mas também um dos pilares de um sistema insustentável de produção e descarte. Ao incentivar o consumo excessivo e limitar as possibilidades de reparo e reutilização dos produtos, essa prática compromete a viabilidade de uma economia circular efetiva, que priorize o uso eficiente dos recursos e que busque minimizar os impactos ambientais.

Portanto, é fundamental que políticas públicas e marcos regulatórios em nível nacional e internacional se debrucem sobre a necessidade de ampliar a durabilidade dos produtos, garantir o direito à reparação, incentivar a reutilização e desenvolver sistemas eficientes e acessíveis de coleta e reciclagem de resíduos eletrônicos. Medidas como a responsabilidade estendida do produtor, a rotulagem ambiental e a padronização de componentes para facilitar o conserto podem desempenhar um papel estratégico nesse processo. Além disso, campanhas de educação ambiental e incentivos econômicos à economia circular podem contribuir para modificar a cultura do descarte, colocando a sustentabilidade no centro das decisões de consumo e produção (Gusella; Cezaro; Spagnollo, 2022, pag 18).

6 EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA O BRASIL

Este ainda é um tema recente, tanto no âmbito nacional quanto no âmbito internacional. Apesar disso já há uma busca para o combate dessa prática. 

No âmbito internacional, a União Europeia avançou nas discussões sobre obsolescência programada ao abrir uma comissão em 2023 para tratar do tema. Na França, a ONG HOP (Halte à l’Obsolescence Programmée) lidera esforços para combater a prática e promover a durabilidade dos produtos, destacando que “Ela viola diretamente nossos direitos como consumidores. Ao nos pressionar a comprar novamente, isso afeta nosso poder de compra” (HOP, 2023). Nos Estados Unidos, a ONG Repair.org atua para garantir que os consumidores tenham o direito de usar, modificar e reparar seus produtos como desejarem. Apesar desses avanços, a luta contra a obsolescência planejada ainda é limitada, uma vez que a maioria dos países não adotou medidas específicas para proibir essa prática.

A obsolescência programada, ao reduzir deliberadamente a vida útil dos aparelhos eletrônicos e demais bens de consumo, configura não apenas uma prática comercial abusiva, mas também um grave problema socioambiental. Essa estratégia, utilizada por determinados fabricantes, busca incentivar a substituição precoce de produtos ainda funcionais, induzindo o consumidor a adquirir novos itens em um ciclo constante de consumo. As implicações dessa lógica são amplas: além de comprometer a confiança nas relações de consumo, contribui significativamente para o aumento da geração de resíduos, o desperdício de recursos naturais e a intensificação da pressão sobre os ecossistemas (CALGARO, 2020, p. 218).

Segundo relatório publicado pela Global E-waste Statistics Partnership, o mundo produziu cerca de 62 milhões de toneladas de resíduos eletrônicos em 2022, o que representa uma média de 7,8 kg por habitante. Desse total, apenas 22,3% foi oficialmente coletado e reciclado, o que revela uma discrepância alarmante entre a produção e o tratamento adequado desses resíduos. A obsolescência programada está diretamente relacionada a essa crise, uma vez que reduz a durabilidade dos produtos e torna mais frequente o descarte prematuro de itens eletrônicos, dificultando práticas sustentáveis como a reutilização e a reparação. Diante desse cenário, torna-se imperativo que os Estados adotem políticas públicas robustas e proativas para proteger o consumidor, responsabilizar os fabricantes e promover modelos econômicos mais sustentáveis (BALDÉ et al., 2024, p. 30, 32).

Nesse panorama, a França se destaca como uma referência global no combate à obsolescência programada, tendo sido o primeiro país a criminalizar expressamente essa prática. A legislação francesa é pioneira ao estabelecer, de maneira clara e objetiva, um conjunto de normas que não apenas reconhecem a existência da obsolescência programada, mas também a definem juridicamente e preveem sanções administrativas e penais para os fabricantes que a adotarem. O ordenamento jurídico francês estabelece que a prática de reduzir intencionalmente a vida útil de um produto com o objetivo de aumentar sua taxa de substituição constitui um crime passível de multa e até de pena privativa de liberdade (FRANÇA, Code de la consommation, [s.d.]).

Essa previsão está inserida na Lei n.º 2015-992, de 17 de agosto de 2015, também conhecida como Lei da Transição Energética para o Crescimento Verde, que introduziu o delito de obsolescência programada no Código de Consumo francês. Desde então, o país vem aprimorando suas diretrizes sobre a durabilidade, reparabilidade e transparência nas relações de consumo. A legislação vigente impõe que os fabricantes informem de forma clara a vida útil estimada dos produtos e o tempo durante o qual peças de reposição estarão disponíveis. Além disso, são vedadas práticas que impeçam ou dificultem a reparação dos produtos por consumidores ou profissionais independentes, como o uso de parafusos proprietários, softwares restritivos, bloqueios digitais ou a indisponibilidade de peças e manuais técnicos (FRANÇA, Code de la consommation, [s.d.]).

A legislação francesa ainda reconhece a reparabilidade como um direito do consumidor, impondo o dever de informação prévia sobre o grau de possibilidade de conserto de determinado produto. Desde 2021, passou a vigorar na França o chamado índice de reparabilidade, um sistema de rotulagem obrigatória que atribui notas de 0 a 10 a determinados produtos eletrônicos (como smartphones, notebooks, TVs e eletrodomésticos), com base em critérios como facilidade de desmontagem, disponibilidade de peças e manuais, preço das peças em relação ao novo produto e informações técnicas. Essa medida visa não apenas facilitar decisões conscientes por parte dos consumidores, mas também estimular os fabricantes a desenvolverem produtos mais duráveis e fáceis de consertar, sob pena de perderem competitividade no mercado (FRANÇA, Code de la consommation, [s.d.]).

A eficácia dessa legislação se manifesta de forma concreta em ações de fiscalização e responsabilização, como evidenciado pelo emblemático caso envolvendo a empresa Apple. Em janeiro de 2018, a associação francesa Halte à l’Obsolescence Programmée (HOP) apresentou uma denúncia formal ao Ministério Público francês contra a Apple, acusando a empresa de prática de obsolescência programada por meio de atualizações do sistema operacional iOS que comprometiam o desempenho dos aparelhos. A investigação foi conduzida pela Direction générale de la concurrence, de la consommation et de la répression des fraudes (DGCCRF), órgão vinculado ao Ministério da Economia e responsável por assegurar o respeito às normas de proteção do consumidor e à leal concorrência (HOP, 2023).

As investigações comprovaram que atualizações específicas do iOS, lançadas em 2017 (versões 10.2.1 e 11.2), resultavam na redução de desempenho dos modelos iPhone 6, SE e 7, especialmente em casos em que a bateria apresentava desgaste natural. A Apple não havia informado previamente aos usuários sobre o impacto dessas atualizações, tampouco ofereceu meios para revertê-las ou alternativas adequadas. Como resultado, diversos consumidores se viram levados a trocar a bateria ou, em muitos casos, a adquirir um novo aparelho, mesmo que o dispositivo anterior ainda estivesse funcional (FRANÇA, Ministère de la Transition Écologique, 2025).

Diante desses fatos, a DGCCRF (Direction générale de la concurrence, de la consommation et de la répression des fraudes), órgão francês responsável por proteger os consumidores, fiscalizar a concorrência e combater fraudes comerciais;  considerou que a empresa havia cometido uma prática comercial enganosa por omissão, violando o direito à informação e à transparência. Em 2020, foi firmado um acordo de transação penal com a Apple, com o aval do Ministério Público francês. Pelo acordo, a empresa aceitou o pagamento de uma multa no valor de 25 milhões de euros, além da obrigação de publicar, por trinta dias, um comunicado oficial em seu site reconhecendo os termos do acordo e os fatos apurados (DGCCRF, 2020). Esse caso se tornou símbolo da efetividade da legislação francesa e da atuação integrada entre o Estado e a sociedade civil no combate à obsolescência programada (FRANÇA, DGCCRF, 2020).

O papel da associação HOP, nesse contexto, também merece destaque.

Fundada em 2015, a Halte à l’Obsolescence Programmée é uma organização não governamental que atua na defesa da durabilidade dos produtos, no incentivo ao direito à reparação e na promoção de políticas públicas voltadas ao consumo sustentável. A ONG realiza campanhas de conscientização, elabora estudos técnicos, propõe reformas legislativas e atua diretamente na fiscalização de práticas empresariais. Seu trabalho foi determinante para a mobilização social e institucional que resultou na responsabilização da Apple. Atualmente, a entidade mantém um observatório da durabilidade, no qual coleta denúncias, monitora produtos e divulga informações que auxiliam consumidores e formuladores de políticas públicas na construção de um mercado mais ético e transparente (HOP, 2020).

A experiência francesa demonstra que o enfrentamento da obsolescência programada demanda uma abordagem multifacetada, que articule legislação eficaz, fiscalização ativa, engajamento da sociedade civil e estímulo à inovação responsável. Ao criminalizar a obsolescência programada, garantir o direito à informação e facilitar a reparação de bens, a França assume uma posição de liderança na construção de um modelo de consumo mais sustentável e justo, capaz de preservar os direitos dos consumidores, reduzir o impacto ambiental e fortalecer a confiança nas relações de mercado. Trata-se de um paradigma que pode inspirar outros países, inclusive o Brasil, na formulação de políticas públicas voltadas à proteção do consumidor e à promoção de uma economia circular baseada na durabilidade, reutilização e reparabilidade dos bens de consumo.

7  A ABORDAGEM DO BRASIL À OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) brasileiro é amplamente reconhecido como uma das legislações mais avançadas do mundo em matéria de proteção aos direitos dos consumidores. Contudo, apesar de sua robustez, ainda apresenta lacunas significativas no enfrentamento direto da obsolescência programada — prática que consiste na limitação deliberada da durabilidade de produtos, geralmente associada à dificuldade de reparo e à indução ao descarte prematuro de bens ainda funcionais (BRASIL, 1990).

No ordenamento jurídico vigente, o único dispositivo que tangencia, ainda que de forma indireta, essa temática é o artigo 32 do CDC, que determina a obrigatoriedade de fornecimento de peças de reposição por parte dos fabricantes e importadores enquanto o produto estiver em fabricação ou importação e, posteriormente, por um período considerado razoável. Segundo a redação legal “Os fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto” (art. 32 do CDC).

Entretanto, a norma não trata diretamente da obsolescência programada nem impõe restrições às estratégias empresariais que, de forma intencional, comprometam a durabilidade dos produtos. Essa omissão legislativa compromete a responsabilização de fabricantes e fornecedores, ao mesmo tempo em que dificulta a consolidação de práticas sustentáveis no mercado de consumo. Conforme aponta Silva (2021, p. 45), “a falta de regulamentação sobre a obsolescência programada dificulta a responsabilização dos fabricantes e compromete o consumo sustentável, aumentando os impactos ambientais”.

Diante desse cenário, o Brasil começa a apresentar respostas normativas mais incisivas frente ao desafio da obsolescência programada. Um exemplo emblemático é o Projeto de Lei nº 805, de 2024, atualmente em tramitação no Senado Federal. De autoria do Senador Ciro Nogueira, a proposta visa alterar o CDC para vedar expressamente a obsolescência programada e instituir o direito ao reparo como um direito básico do consumidor.

O texto do projeto propõe a inclusão de novos incisos nos artigos 6º e 39 do CDC. O primeiro reconhece, de forma explícita, o direito do consumidor à proteção contra a obsolescência programada, além de assegurar sua liberdade de escolha quanto ao local de reparo dos produtos, mesmo fora da rede autorizada, sem prejuízo à garantia legal. O segundo classifica como prática abusiva a programação deliberada de obsolescência em produtos, bem como a recusa injustificada de acesso a informações, manuais, ferramentas e peças necessárias para seu conserto.

Um dos pontos mais inovadores do projeto é a criação do Capítulo VI-B, intitulado “Do Direito ao Reparo”, que estabelece obrigações específicas aos fabricantes, produtores, construtores e importadores. Esses agentes econômicos deverão garantir, direta ou indiretamente, o fornecimento de peças sobressalentes, ferramentas e manuais técnicos por um período mínimo de cinco anos a partir da inserção do produto no mercado — podendo esse prazo ser ampliado para até vinte anos, conforme a natureza do bem. Além disso, o projeto exige a manutenção de uma plataforma digital acessível, destinada a divulgar informações claras e atualizadas sobre a disponibilidade e condições de reparo, inclusive permitindo o cadastramento de oficinas independentes e de agentes que atuam com recondicionamento de produtos.

Outro aspecto relevante da proposta é a proibição de que os fabricantes se recusem a realizar manutenção em produtos previamente reparados por oficinas não autorizadas, salvo se comprovado, de forma técnica e inequívoca, que o reparo comprometeu de maneira irreversível a qualidade ou a segurança do item. Para garantir sua efetividade, o projeto ainda estabelece penalidades específicas pelo descumprimento do direito ao reparo, prevendo multas que variam entre R$ 10.000,00 (dez mil reais) e R$ 50.000.000,00 (cinquenta mil reais).

A justificativa do projeto faz referência a iniciativas internacionais, como a ordem executiva norte-americana de 2021, que busca limitar práticas abusivas em mercados concentrados, e as propostas em discussão no Parlamento Europeu sobre o “direito de reparar”. O texto ressalta que, embora consumidores já possam, em tese, reparar seus produtos fora da rede autorizada, essa prerrogativa é frequentemente esvaziada na prática por barreiras como a ausência de peças, a dificuldade de acesso a informações técnicas e a imposição de condições que inviabilizam a manutenção.

Dessa forma, o Projeto de Lei nº 805/2024 representa um avanço relevante na modernização da legislação brasileira de consumo, ao alinhar-se com as exigências de uma economia mais circular, justa e sustentável. A vedação explícita à obsolescência programada e a efetivação do direito ao reparo promovem não apenas a proteção dos consumidores, mas também a redução do desperdício de recursos e a mitigação dos impactos ambientais. Caso aprovado, o projeto poderá se consolidar como um marco normativo fundamental no enfrentamento das práticas empresariais que privilegiam o consumo descartável em detrimento da durabilidade, da reparabilidade e da confiança nas relações de consumo.

8  CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obsolescência programada representa um grande desafio para o Direito do Consumidor contemporâneo, tanto no Brasil quanto em âmbito internacional. A partir da pesquisa realizada, verificou-se que, embora essa prática não esteja expressamente tipificada na legislação brasileira, ela viola diretamente princípios fundamentais do Código de Defesa do Consumidor, como a boa-fé objetiva, a informação adequada e a transparência nas relações de consumo.

A ausência de previsão legal específica para vedar ou punir a obsolescência programada enfraquece a efetividade da proteção jurídica ao consumidor, além de comprometer os esforços voltados à sustentabilidade ambiental e ao consumo responsável. A prática compromete a confiança nas relações de consumo, estimula o descarte precoce de produtos e aumenta a produção de resíduos eletrônicos, gerando prejuízos econômicos, sociais e ambientais.

Diante desse cenário, conclui-se que é urgente a criação de normas específicas que proíbam a obsolescência programada no Brasil e garantam o direito à reparação, à durabilidade dos produtos e à informação clara e acessível sobre a vida útil dos bens de consumo. Além disso, a atuação mais incisiva dos órgãos de fiscalização e do Poder Judiciário é fundamental para coibir práticas abusivas e garantir a efetividade dos direitos dos consumidores.

Assim, a vedação da obsolescência programada deve ser compreendida não apenas como um instrumento de proteção individual, mas como uma medida necessária à construção de um mercado mais justo, ético e sustentável.

REFERÊNCIAS

BALDÉ, C. P. B. et al. The Global E-Waste Monitor 2024. E-Waste Monitor, 2024. Disponível em: https://ewastemonitor.info/the-global-e-waste-monitor-2024/. Acesso em: 5 nov. 2024.

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Diário Oficial da União,     Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em: 5 ago. 2024.

DOM HELDER. A obsolescência programada da Apple e a proposta de vedação no CDC e na PNRS.           Disponível em: https://revista.domhelder.edu.br/index.php/dhrevistadedireito/article/view/2600. Acesso em: 4 ago. 2024.

FERREIRA, Carlos. Obsolescência programada no setor de impressoras: o caso Epson. Revista Brasileira de Direito e Tecnologia, v. 15, n. 2, p. 75-85, 2021.

FERREIRA, Joana; LIMA, Carlos. Obsolescência programada e o impacto no consumo de eletrônicos. Revista Brasileira de Direito do Consumidor, v. 10, n. 2, p. 120-130, 2021.

FRANÇA. Code de la consommation. 2015. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr. Acesso em: 15 set. 2024.

FRANÇA. Ministère de la Transition Écologique. Indice de réparabilité. Disponível em: https://www.ecologie.gouv.fr/politiques-publiques/indice-reparabilite. Acesso em: 05 maio 2025.

FRANÇA. Direction générale de la concurrence, de la consommation et de la répression des fraudes. Ralentissement du fonctionnement des iPhone : la DGCCRF sanctionne Apple d’une amende de 25 millions d’euros. 2020. Disponível em: https://www.economie.gouv.fr/files/files/directions_services/dgccrf/mediadocument/dgccrf_presse_CP-Ralentissement-fonctionnement-iPhone200207.pdf. Acesso em: 05 maio 2025.

G1. Apple é investigada na França por suspeita de limitar vida útil de smartphones. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/05/16/apple-e-investigada-nafranca-por-suspeita-de-limitar-vida-util-de-smartphones.ghtml. Acesso em: 18 nov. 2024.

HOP – Halte à l’Obsolescence Programmée. Denúncia contra práticas de obsolescência programada da Epson. 2020. Disponível em: https://www.halteobsolescence.org. Acesso em: 15 set. 2024.

HOP – Halte à l’Obsolescence Programmée. Rapport annuel 2023: Agir pour la durabilité. Paris: HOP, 2023. Disponível em: https://www.halteobsolescence.org. Acesso em: 25 set. 2024.

KOPPENHAGEN, Rosana Cristina. O direito ao reparo: um novo olhar da União Europeia sobre a obsolescência programada. Revista FT, v. 28, n. 134, maio 2024. Disponível em: https://revistaft.com.br/o-direito-ao-reparo-um-novo-olhar-da-uniao-europeia-sobre-aobsolescencia-programada/. Acesso em: 16 ago. 2024.

LEGIFRANCE. Code de la consommation.  Disponível  em: https://www.legifrance.gouv.fr/codes/id/LEGISCTA000031053369/2015-08-19. Acesso em: 27 set. 2024.

NSC TOTAL. França abre investigação contra Epson por obsolescência programada. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/noticias/franca-abre-investigacao-contraepson-por-obsolescencia-programada. Acesso em: 27 set. 2024.

PEREIRA, João. Apple e a obsolescência programada: o caso dos iPhones. Revista de Tecnologia e Consumidor, v. 10, n. 1, p. 20-30, 2017.

PLANALTO. Constituição Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 25 set. 2024.

REPAIR. Know your rights. Disponível em: https://www.repair.org/know-your-rights. Acesso em: 15 ago. 2024.

SANTOS, Ana. A investigação da obsolescência programada na Apple: o caso da França. Revista de Direito do Consumidor, v. 12, n. 3, p. 40-50, 2018.

SANTOS, Ana; OLIVEIRA, Marcos. A vulnerabilidade do consumidor frente à obsolescência programada. Revista de Direito e Sustentabilidade, v. 5, n. 3, p. 70-80, 2022.

SENADO FEDERAL. PL 805/2023. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleggetter/documento?dm=9567439&ts=1721152438121&disposition=inline. Acesso em: 5 out. 2024.

SILVA, João. Consumo sustentável e o desafio da obsolescência programada no Brasil. Revista de Direito e Sustentabilidade, v. 5, n. 2, p. 40-50, 2021.

SILVA, Roberto. Resíduos eletrônicos e os desafios ambientais do século XXI. Revista de Gestão Ambiental, v. 12, n. 4, p. 40-50, 2020.

TONIAL, Nadya Regina Gusella (Org.). Temas de Direito do Consumidor. Cachoeirinha: Fi, 2023. Disponível em: https://www.editorafi.org/ebook/585consumidor. Acesso em: 10 maio 2025.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ. Revista Gralha Azul: Periódico Científico da Escola Judicial do Paraná – EJUD, Curitiba, v. 1, n. 10, p. 62-71, fev./mar. 2022. Disponível em: https://www.tjpr.jus.br/documents/13716935/63079407/7.+OBSOLESC%C3%8ANCIA+PR OGRAMADA+E+O+DIREITO+DO+CONSUMIDOR.+F%C3%A1bio+Gabriel+Lascoski+Ferraz.+Recieri+de+Tarso+Zenardi.+Sayonara+Aparecida+Saukoski.pdf/d97d9ca875530bffb2296d3bfb83126#:~:text=A%20Obsolesc%C3%AAncia%20Programada%20aproveita%20a,diretamente%20princ%C3%ADpios%20b%C3%A1sicos%20dos%20consumidores%2C. Acesso em: 28 out. 2024.

ZANINI, Juliana Soares Borges; BERVIAN, Paulo Eduardo Moreira. A obsolescência programada e os impactos no direito do consumidor: uma análise sob a ótica do desenvolvimento sustentável. Canoas: Centro Universitário La Salle, 2020. Disponível em: https://repositorio.unilasalle.edu.br/bitstream/11690/2441/1/jsbem.pdf. Acesso em: 10 maio 2025.


1Acadêmico de Direito. E-mail: aluno02inacio@gmail.com. Artigo apresentado ao Centro Universitário Aparício Carvalho – FIMCA, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO, 2025.

2Acadêmica de Direito. E-mail: leilagomesgarcia40@gmail.com. Artigo apresentado ao Centro Universitário Aparício Carvalho – FIMCA, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO, 2025.

3Acadêmica de Direito. E-mail: emelylcosta@gmail.com. Artigo apresentado ao Centro Universitário Aparício Carvalho – FIMCA, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO, 2025.

4Professor Orientador. Advogado, Professor do curso de Direito. E-mail: rodrigo.santos@fimca.com.br.