REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202506111924
Morgana Katarine Benevides Neves1
Shirley Barbosa das Neves2
Resumo
Os estudos literários sobre a estética da recepção buscam compreender, no processo de formação do leitor, a ação deste na relação com o texto literário e o seu efeito estético. No campo da educação bilíngue para surdos, busca-se ações institucionais e sistematizadas que promovam a literatura e as possibilidades de construção de repertório de leitura literária videossinalizada, agregando a arte na vida das crianças surdas, considerando como os significados de um texto literário são recebidos. Com base nesse contexto, o presente artigo, recorte da pesquisa de mestrado da primeira autora, realizada com crianças surdas estudantes do 1º e 2º ano do Ensino Fundamental I, de uma escola bilíngue para surdos, na zona urbana do município de Campina Grande/PB, visa apresentar o trabalho realizado com a leitura do conto videossinalizado “O churrasco da banana” (Teles,2020), que teve como objetivo analisar a recepção das crianças surdas ao conto. A teoria da Estética da Recepção formulada por Jauss (1967/1997) e o método recepcional de Bordini & Aguiar (1988) fundamentam teórica e metodologicamente o trabalho. A pesquisa também dialoga com a teoria de formação do leitor para refletirmos sobre o fortalecimento do protagonismo da criança surda na leitura da literatura em língua de sinais, destacando o papel das experiências literárias na vida do sujeito e o prazer da leitura (Colomer, 2003; Silva, 1981; Araújo, 2020; entre outros). No que se refere à compreensão da estética da obra sinalizada, nós ancoramos nos estudos de Sutton-Spence (2021), Sutton-Spence e Kaneko (2016), Quadros (2004) e outros. Espera-se com os resultados ampliar a compreensão sobre a recepção de obra literária sinalizada na escola bilíngue para surdos, aspecto a ser assegurado por essa modalidade educacional que tem como objetivo maior da vivência na escola com a Libras a formação de leitores surdos.
Palavras-chave: Estética da recepção; literatura em Libras; leitura literária; formação de leitores surdos.
1. INTRODUÇÃO
São vários os estudos que apontam a importância da experiência de leitura literária para a formação do indivíduo leitor, uma vez que o prazer pela leitura3pode, sim, ser ensinado e despertado nas aulas de literatura pelo acesso à obra literária. Desse modo, acesso e repertório a textos literários configuram-se como essenciais para a formação do leitor.
Movimentos de incentivo à leitura utilizando obras literárias para recepção e interpretação de um texto significativo em Libras precisam fazer parte do cotidiano das crianças surdas nas escolas, uma vez que a “compreensão e resposta leitora […] a necessidade de um contexto educativo de construção compartilhada, na interpretação do texto” (Colomer, 2003, p. 129) envolvem a busca pela ampliação da compreensão por meio da formação da leitura em toda a cultura e na vida do leitor, sempre com prazer.
Ao abordar a literatura, inclusive sinalizada, refletimos sobre a importância da estética de uma obra literária e sobre os leitores surdos, parte de uma comunidade linguística e cultural que nasce com a experiência visual como intrínseca à sua constituição. Desse modo, através da leitura de vídeo sinalizado em Libras acontece o desenvolvimento do leitor, pois “os surdos passaram a ter garantias de acesso a ela enquanto direito linguístico” (Quadros, 2004, p.13), haja a língua de sinais ser o mais importante símbolo da identidade cultural das pessoas surdas.
A partir dessa contextualização de nossa visão sobre a literatura e a necessidade de acesso a ela pelas crianças surdas dentro das escolas, apresentamos nosso objetivo geral para esse artigo que foi analisar a recepção da estética da obra literária sinalizada por crianças surdas estudantes dos 1º e 2º anos do ensino fundamental I de uma escola bilíngue para surdos da cidade de Campina Grande-PB.
O recorte que aqui colocado se justifica pela necessidade de compreendermos da relevância que os textos literários trazem em si no processo de construção da sociedade e, consequentemente, dos sujeitos que a constituem, inclusive os surdos. Somos conscientes que para a construção de uma educação bilíngue voltada para os surdos, é fundamental a presença de textos literários em Libras, abrindo, assim, possibilidade para o desenvolvimento de repertório em literatura sinalizada voltada às crianças surdas.
Metodologicamente, para alcançar os objetivos de pesquisa, uma vez que o estudo realizado se configura como uma pesquisa-ação, embasado no método recepcional (Bordini; Aguiar, 1988), elaboramos como objetivo metodológico construir uma proposta para recepção do vídeo “O churrasco da banana” (Teles, 2020), a ser aplicada com crianças surdas dos 1º e 2º anos.
2. A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E A FORMAÇÃO DE LEITORES NO VIDEOSINALIZADO
Estudos apontam a importância da literatura na educação básica para a formação do leitor. No caso das crianças surdas a estética da recepção (Jauss, 1994) e o método recepcional (Bordini; Aguiar, 1988) podem ancorar o processo de aplicação de experiências leitoras que observem e registrem as respostas dos alunos, considerando a estética literária da Libras na construção de sua interpretação e compreensão da narrativa, fornecida de sentidos e significados advindos da transformação do horizonte de expectativas das mesmas quanto mais tenho acesso a textos literários na língua de sinais.
Considerando o estudo da relação entre texto e leitor, Jauss (1967/1994), a partir de sete teses sobre a recepção literária, propõe uma teoria que olha o texto literário na sociedade e na história a partir da perspectiva dos leitores.
A título de revisão dos conceitos, vejamos uma síntese de cada tese, considerando que as três primeiras têm caráter de premissas.
A primeira tese postula que a historicidade da literatura não reside em uma simples conexão de fatos literários, mas na relação dialógica entre o leitor e a obra. Para Jauss (1994) o contexto histórico no qual a obra surge não pode ser entendido apenas como uma sequência de acontecimentos independentes do processo de recepção. Nessa perspectiva, considerando que “vida e obra” revelam que a literatura se concretiza à medida que as leituras variam a cada recepção, “a possibilidade de a obra se atualizar como resultado da leitura é o sintoma de que está viva” (Zilberman, 1989, p. 33). Completa o teórico que “a obra literária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal” (Jauss, 1994, p. 25).
A segunda tese relata que as experiências dos leitores, ao serem despertadas por uma obra literária, são decisivas para sua recepção e precisam se integrar para que ocorra a comunicação que constitua a individualidade do leitor. Jauss (1994) argumenta que a obra que surge não se apresenta como novidade absoluta, pois dialoga com o leitor de forma a despertar lhe lembranças, dando indicações, sinais ou traços familiares do já vivido e, ao conduzi-lo a determinada postura emocional, faz a antecipação de um horizonte geral de compreensão.
Assim, “a partir dos quais, para cada obra, uma disposição específica do público se deixa averiguar, disposição está que antecede tanto a reação psíquica quanto a compreensão subjetiva do leitor” (Jauss, 1994, p. 28), o seu conhecimento de mundo que se relaciona com as convenções estético-ideológicas é o que o teórico chama de horizonte de expectativas, podemos dizer que a obra, por meio dessas manifestações, desperta no leitor emoções, evocando o horizonte de expectativas, que pode ser reproduzido, modificado ou rompido. Segundo Faria (2010), assim, ocorre com a experiência literária, a experiência real, partindo do horizonte de expectativas que considera as obras e determina as estruturas que o leitor entende como comuns, antecipando, dessa forma, por meio do saber prévio ou biblioteca vivida, a obra a ser lida.
A terceira tese relata que a constituição do horizonte de expectativas determina o caráter artístico de uma obra. Apresenta-se aqui a teoria de distância estética, conceito desenvolvido por Jauss (1994), definida como “equivalente ao intervalo entre a obra e o horizonte de expectativas do público, que pode ser maior ou menor, mudar com o tempo, desaparecer. E torna-se mensurável […]” (Zilberman, 1989, p. 35). Isso significa que o valor estético de uma obra está relacionado à maior ou menor distância estética entre ela e o horizonte de expectativas do leitor, pois “há obras que, no momento de sua publicação, não podem ser relacionadas a nenhum público específico, mas rompem tão completamente o horizonte conhecido de expectativas literárias que seu público somente começa a formar-se aos poucos” (Jauss, 1994, p. 32-33).
Na quarta tese proposta por Jauss, as relações do texto com a época de seu aparecimento compõem as possibilidades de recepção daquela obra naquele período. Aqui, o teórico mostra como cada momento histórico fomenta as interpretações de uma obra e como estas variam ao longo do tempo, e de período para período, permitindo entender a razão de sua importância histórica ou o motivo pelo descaso na época de sua publicação. Segundo Zilberman (1989) destaca, a reconstituição do horizonte de expectativas de uma obra, é capaz de fornecer informações sobre a relação que a obra teve com o público e, desse modo, é possível recuperar a sua historicidade.
Isso significa que é necessário levar em consideração a experiência estética e os efeitos proporcionados pela obra ao longo das épocas e contextos literários através dos quais sua historicidade é marcada, considerando que o horizonte de expectativas constitui à vivência da dinâmica de uma obra literária por parte de seus leitores.
Farias (2010) destaca que para Jauss é preferível determinar juízos estéticos a partir da atualização da recepção da obra, essa atividade deve ocorrer de forma controlada por meio da fusão dos horizontes passados e presentes. Percebe-se, portanto, que a historiografia sempre leva em conta o horizonte presente de seus leitores e a relação que estes mantêm com a obra. A quinta tese relata que o aspecto diacrônico trata da recepção das obras ao longo do tempo e seus diferentes estados no percurso histórico. Nesta tese, Jauss (1967/1994) destaca que a teoria da estética da recepção “demanda também que se insira a obra isolada em sua “série literária”, a fim de que se conheça sua posição e significado histórico no contexto da experiência da literatura.” (p. 41). Importância dessa tese está ancorada na compreensão de que ela permite olhar para uma obra apreendendo o seu significado e forma no desdobramento histórico, a partir de sua interpretação ao longo do tempo, considerando seu aspecto diacrônico. Segundo Anzolin (2018), uma reflexão sobre esse ponto de Zilberman (1989), que a importância de uma obra pode crescer ou diminuir no tempo, pois sua percepção pode até mesmo se renovar no nosso tempo presente como é o caso, por exemplo, da arte barroca. Ainda sobre a diacronia, o novo na literatura não é apenas uma categoria estética, mas também uma categoria histórica (Zilberman, 1989; Anzolin, 2018).
A sexta tese tem o aspecto sincrônico colocado em um amplo sistema de relações na literatura de um determinado momento histórico (Jauss, 1967/1994). Ao fazer um corte sincrônico, além de poder se verificar a multiplicidade de obras segundo estruturas equivalentes, opostas e hierárquicas, a sua articulação histórica permite que se compreenda as mudanças estruturais na literatura.
A partir deste conceito, o corte sincrônico, Jauss (1967/1994) coloca que o enfoque histórico pareceu mais adequado considerando que
cada sistema sincrônico tem de conter também seu passado e seu futuro, na condição de elementos estruturais inseparáveis, o corte sincrônico que passa pela produção literária de determinado momento histórico implica necessariamente outros cortes no antes e no depois da diacronia (Jauss, 1994, p. 48)
Zilberman (1989) interpreta essa parte da teoria afirmando que os pontos de intersecção entre diacronia e sincronia para definir quais obras têm caráter articulador e, assim, precisar um processo de evolução literária. Sob os pontos de intersecção, o teórico julga ser possível determinar o horizonte literário de um dado momento histórico no qual a literatura estabelece relações e foi recebida,
A sétima tese, para Jauss (1967/1994), significa que a relação entre literatura e vida prática evidencia-se na função social e formativa desempenhada pela literatura no leitor. Nesse sentido, Jauss destaca que a função social da literatura somente “se manifesta na plenitude de suas possibilidades quando a experiência literária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida prática, pré-formando seu entendimento do mundo, e, assim, retroagindo sobre seu comportamento social” (Jauss, 1994, p. 50). Considerando que o caráter leitura da experiência estética proporciona “novas formas do leitor compreender o mundo e, tal aspecto repercute em seu modo de viver a vida” (Anzolin, 2018, p.44). Deve-se notar também que:
O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquele da práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura. (JAUSS, 1994, p. 52)
Esta independência é entendida como “a finalidade e o efeito alcançado pela arte, que libera o destinatário das percepções usuais e confere-lhe nova visão da realidade.” (Zilberman, 1989, p. 49), a possibilidade de os sujeitos se libertarem da experiência estética tem que despertar novas perspectivas sobre o mundo na sua forma cotidiana de perceber as coisas.
Assim, Jauss (1967/1994) destaca o horizonte de expectativas, trazendo-o para o campo dos estudos literários no sentido de comprovar a contribuição da literatura na construção da experiência e, por outro lado, balizar essa contribuição em relação ao comportamento social. Considerando que a ruptura do horizonte de expectativas revela-se o momento mais importante, leva o leitor a buscar soluções que, a princípio, podem ser repelidas pela sociedade, mas que aos poucos passam a ser aceitas.
Nesse sentido, a obra pode satisfazer o horizonte do leitor ou rompê-lo, conduzindo-o a uma experiência estética significativa. O Segundo Jauss (1994) destaca, ainda que “a estética da recepção, pelo fato de não exigir nenhuma mudança de horizonte, mas sim de simplesmente atender a expectativa que delineiam uma tendência dominante do gosto, na medida em que satisfaz a demanda pela reprodução do belo usual” (p.32).
Assim, considerando que a relação texto-leitor tem como conceito essencial “a questão de horizonte de expectativa”, conjunto de todas as convenções estético – ideológicas que possibilitam a produção/ recepção de um texto” (Jaus apud Bordini; Aguiar, 1988, p.83), acreditamos que a formação do leitor literário contribui para a teoria essencial do ensino e do desenvolvimento da literatura infantil-juvenil, pois, segundo Colomer (2003), o destino da leitura é estabelecido com base no perfil do leitor, pois a “recepção insistiu em que texto não é único elemento do fenômeno literário, mas é também a reação do leitor e que, por conseguinte, é preciso explicar o texto a partir desta reação” (p.95) para interpretar um texto de modo significativo.
Segundo Colomer (2003), a compreensão dos fenômenos comunicativos e interessantes, possibilita-nos compreender mais profundamente o que é preciso para “a concepção da literatura como um fenômeno comunicativo” (p. 95). Essa visão nos conduz para entender porque “[…] um texto é considerado literário e que chaves convencionais se requerem para interpretar um texto neste sentido” (p.95).
Vale destacar que a literatura é adequada para ser ensinada e despertada nas crianças pelos efeitos no leitor dos aspectos estéticos da obra literária. Os resultados de estudos de textos literários mostram quais são adequados para o sujeito leitor, considerando a possibilidade de um repertório que proporcione prazer estético no processo de cada um. Assim, a consequência do confronto do horizonte de expectativas do leitor com a obra literária abre uma chave para a compreensão de fenômenos socioculturais como a literatura, dialogando com as experiências que o texto literário cria no leitor quando este o significa.
Nesse sentido, para os sujeitos leitores, a recepção dos textos literários estabelece possíveis “coerências significativas entre os signos e inclui tanto a modificação das expectativas do leitor, como da informação armazenada em sua memória” (Colomer, 2003, p.96), considerando que o leitor encontra caminhos para progredir em sua capacidade de recepção na construção de conhecimentos e propriedades durante o processo de interpretação. No caso das crianças surdas, o acesso a textos literários em Libras é imprescindível para a formação desse leitor literário em sua primeira língua.
Numa relação entre a obra literária é uma ação pedagógica de incentivo à leitura livre para interpretar um texto significativo, vemos que precisa ser considerada na “compreensão e resposta leitora […] a necessidade de um contexto educativo de construção compartilhada, na interpretação do texto” (Colomer, 2003, p. 129), considerando o que Silva (1981) diz que “leitura é uma atividade essencial a qualquer área do conhecimento e mais essencial ainda à própria vida do ser humano” (p. 42). Pela recepção e ação interpretativa os leitores identificam com novos valores e reflexões baseadas na compreensão das relações com o texto e oportunidade de um novo olhar sobre o mundo construído pela obra e a viagem pelo seu imaginário.
O significado do texto é uma construção negociada pelo leitor literário para garantir a interpretação da obra de acordo com “a complexidade da sua experiência de vida e da sua experiência literária” (Colomer, 2003, p. 133). A valorização e provocação do leitor em relação à “experiência refletida na obra e a sua própria é essencial, de tal maneira que a especificação da leitura estética” (Colomer, 2003, p. 133) do texto conduz ao estabelecimento de um significado literário.
Em relação à leitura, recursos alternativos significativos podem se acomodar amplamente por técnicas características da literatura, como a narrativa descritiva como uma recurso para construção de imagens como se fossem produções visuais em vídeo. Por essa estratégia, a escrita gera em leitores que possuem um conhecimento textual diversificado ativação de funções imaginativas, constituindo hábitos de recepção. Nesse contexto, “textos incorporados chegam a produzir a sensação de se estar lendo um rosário de textos enlaçados por uma construção narrativa” (Colomer, 2003, p. 319).
Desse modo, a aproximação do leitor com a narrativa possibilita a “informação sobre os pensamento e sentimentos dos personagens, privilegia a ação e se aproxima da recepção das narrativas” (Colomer, 2003, p. 323). No fluxo da leitura, o repertório de significativos elementos textuais da narração incorpora a contribuição para a aquisição dessas obras literárias e produz um sentimento de recepção que “os leitores podem reconhecer e que se entender que são adequadas para sua formação literária básica” (Colomer, 2003, p.342).
Desta forma, a leitura, via formação de hábitos, proporciona recepção de obras literárias e, em relação aos fenômenos culturais, atua como instrumento socializador das culturas. Como diz Araújo (2020),
O texto literário se torna um mediador entre o leitor e sua cultura, através de uma de suas funções: o despertar do imaginário humano. Assim, a literatura voltada para a criança torna-se um instrumento para compreensão de mundo, quando imersa em um contexto literário estimulante. (p 46)
Assim, o reconhecimento de aspectos de si se coloca a serviço da transformação via texto literário, a partir dos caminhos do “leitor concreto que diante do seu conhecimento do mundo, sua cultura e emotividade possibilite um diálogo conduzido através da associação lite ratura e leitor” (Medeiros, 2017, p.18). Para “estimular um movimento literário” (Ormsby, 1995, p. 169, tradução nossa), considerado a formação dos “leitores surdos”, de sua recepção literária através do despertar da imaginação da leitura e da compressão que foi construída por um vídeossinalizado, é percebida a simbolização da cultura surda e sua experiência visual com a recepção da literatura que, pela verossimilhança, materializa a vida dos surdos.
A literatura em Libras como espaço social para recriar é viver cultura surda a partir da experiência visual, considerando as especificidades das estruturas linguísticas da língua de sinais, para avançar no conhecimento literário e no procedimento de leitura (assistir) aplicada ao deleite, fruição da beleza e prazer estético em um videosinalizado, será melhor significada quanto maior for o repertório de leitura de signos-visuais a comunidade surda tenha.
Sobre a produção videossinalizada4, esta permite aos alunos surdos desenvolverem a sua formação em leitura de obra literária sinalizada por meio da Libras, sua primeira língua (L1), língua com especificidades linguísticas e culturais como estrutura gramatical, morfológica e semântica que valoriza elementos textuais esteticamente formados para a recepção de todas as percepções, interpretações e construções de significados apoiados na performance dos sinalizantes. Os performers sinalizantes vêm trabalhando para dar qualidade estética à produção visualmente recepcionada, por exemplo, utilizando movimentos físicos, manuais e não manuais nas suas produções literárias.
Em relação às crianças surdas como sendo leitoras da literatura em língua de sinais, estas têm na estética da Libras uma importante criadora de “uma literatura visual “de performance” e “do corpo”, que existe apenas quando uma pessoa a apresenta (Sutton-Spence, 2021, p.42). O aprendizado para a leitura literária em língua de sinais é de que é quase impossível separar o corpo do artista do texto da narrativa ou do poema” (Sutton-Spence, 2021, p.42).
Assim, considerando que a comunicação em Libras é baseada na experiência visual e que quando as crianças surdas leitoras, no momento da recepção literária adquirem a capacidade de selecionar as informações para identificar blocos de significado no espaço visual, através do corpo do artista, a recepção de histórias ocorrerá a partir de seu repertório linguístico e literário, pois “sabemos que na Língua Brasileira de Sinais devemos considerar o ritmo, as configurações das mãos, o espaço, a velocidade, as perspectivas múltiplas e simultâneas, a incorporação, o uso de expressão facial e do corpo e os classificadores” (Sutton-Spence, 2021, p.226).
Para a elaboração conceitual sobre a forma do vídeo sinalizado, a caracterização dos personagens/incorporações, com seus aspectos de valor estético, está materializada nas descrições da linguagem estética da Libras, elemento da própria cultura surda e aprimorado como uma construção individual do sinalizante. A experiência estética da criança surda dialoga com conhecimentos sobre a literatura vídeossinalizada nesta pesquisa baseamo-nos em Sutton Spence (2021); Sutton-Spence; Kaneko (2016); Candido (2000); Martins (2022); Mertzani (2014); Neves (2022); Aguiar (2024).
Assim, é importante saber, como colocado por Ferreira, Araújo e Porto (2024) que “o texto já não é mais concebido de forma tradicional, tomando como referência as atuais formas de conceber a linguagem verbal escrita ou falada” (p. 3). Isso significa que ao tratarmos de obras vídeossinalizadas estamos lidando com um texto que é multimodal, pois “a multimodalidade é uma abordagem interdisciplinar que foca na comunicação e na representação envolvendo elementos que perpassam uma língua” (Ferreira; Araújo; Porto, 2024).
Deste modo, saber que as obras literárias vídeossinalizadas, como outros textos multimodais, têm categorias que compõem características visuais de uma gramática do design visual (GDV), como colocado por Ferreira, Araújo e Porto (2024) ao tratar de multimodalidade e texto metavisual (TMV), permite vermos que as recorrências na estrutura e na identidade visual de narrativas vídeossinalizadas em Libras são elementos dessa GDV5. Por isso, a formação do leitor também passa pela construção de repertório das categorizações de uma obra videossinalizada como modo de, pelo entendimento dos elementos constituidores desse tipo de produção, significar, pela forma do vídeo sinalizado, o gênero literário, o modo de criação de personagens e o perfil do leitor surdo para o qual o vídeo foi produzido.
Consta no quadro 01 um recorte do referencial teórico que sustenta nossa perspectiva para essa elaboração sobre a constituição de uma literatura sinalizada:
Quadro 01 – Constituição de obra videossinalizada.
Estes argumentos teóricos resumem nosso olhar para o contexto fundamental da formação do leitor por considerarmos que a leitura pode transformar seu horizonte de expectativas (Bordini e Aguiar, 1988), quando lhe são proporcionadas experiências leitoras, pois estas, resultam em recepções estéticas que derivadas da estrutura visual dos textos videosinalizado.
A obra literária videossinalizada colabora no desenvolvimento de repertórios de textos com significados que, tendo como principal característica a natureza visual da compreensão para a pessoa surda, valoriza as experiências estéticas da Libras produzindo oportunidade de compreensão literária prazerosa e agradável.
Dessa forma, a forma do vídeo literário sinalizado e a formação do leitor literário surdo se enquadram teoricamente para uma ruptura com o modelo de aula de literatura tradicional. Nos propomos a trabalhar a leitura literária utilizando o método recepcional para a formação do leitor baseando-nos no videosinalzado para, através da leitura do texto, identificar os horizontes de expectativa da criança surda em contato com a narrativa sinalizada e seu modo de recepcionar e interpretar esse texto.
3. METODOLOGIA E MÉTODO RECEPCIONAL PARA DETERMINAÇÃO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS
Esse é um recorte de uma pesquisa de base qualitativa que utiliza como referencial teórico a pesquisa-ação (Gil, 2008) e o método recepcional (Bordini; Aguiar, 1988). Sobre a pesquisa-ação podemos dizer que é um tipo de metodologia de pesquisa, que em sua definição “[…] é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo”. (Gil, 2008, p. 30 apud Thiollent, 1985/2011, p. 14). A “pesquisa- ação propõem a sua substituição pela “relatividade observacional” (Thiollent, 1985, p. 98), considerando que os “seus instrumentos desempenham papel ativo na coleta, análise e interpretação dos dados” (Gil, 2008, p.31). Assim, no sentido de estreita associação com uma ação investigativa, acompanhada de um processo de observação, ação e análise, a pesquisa-ação nos coloca em ativo papel para as ações relacionadas à problemática que mobiliza nossa intenção investigativa, conhecer a recepção de um conto literário por crianças surdas dos 1º e 2º anos de uma escola bilíngue para surdos na cidade de Campina Grande. Este trabalho está inserido no contexto da sala de aula que, orientado para observação e análise dos alunos surdos e sua leitura do videosinalizado “O churrasco da banana” (Teles, 2020), nos permite observar e analisar a recepção ocorrida com o grupo de crianças pesquisado, proporcionando atuação efetiva e transformação da situação investigada (Anzolin, 2018) que envolve olhar para o contato com um texto literário. O percurso investigativo seguiu o trabalho considerando que a gravação em vídeo dos encontros nas aulas nos proporciona maior liberdade de sinalização, de expressão e apreensão dos dados, pois, segundo Minayo (2007), devem ser utilizados instrumentos adequados para registrar as falas; a garantia da fidedignidade é a gravação, pois ela permite à pesquisadora construir uma série de possibilidades de informações sobre a realidade. Assim, os trechos de gravação selecionados neste trabalho são excertos de comentários dos alunos surdos no diário de campo da pesquisadora.
De acordo com Minayo (2014) o diário de campo “nada mais é do que um caderninho de notas, em que o investigador, dia por dia, vai anotando o que observa” (p. 295). As interações sobre “O churrasco da banana” foram anotadas de modo a estarem acessíveis para a análise dos dados e constam nelas fatos ocorridos no contato das crianças com o conto, falas dos participantes, comportamentos e reações destes consideramos relevantes para serem descritos para análise dos dados.
Para identificar os estudantes participantes da pesquisa, optamos por utilizar a ordem alfabética da chamada da turma substituindo os nomes originais por nomes fictícios com a mesma letra. Assim, os estudantes que constam neste recorte foram denominados como Caio, Beto, João, Liz e Noah. Optamos também por preservar a expressão sinalizada de cada aluno (a) e não realizamos nenhum tipo de tradução para a língua portuguesa de sua sinalização. A base teórico-metodológica para ação em sala de aula foi o método recepcional (Bordini; Aguiar, 1988), que em seus pressupostos considera cinco etapas como constituidoras da aplicação do método, a saber: determinação do horizonte de expectativas, atendimento ao horizonte de expectativas, a ruptura do horizonte de expectativas, questionamento do horizonte de expectativas e ampliação do horizonte de expectativas.
A proposta para o ensino da literatura abordada na construção da dissertação onde este recorte se apresenta por completo, trabalha a determinação do horizonte de expectativas das crianças surdas a partir de contatos com obras literárias sinalizadas. Nesse momento, é realizada uma análise elaborada sobre o leitor surdo e sua leitura (assistindo) do vídeo literário sinalizado observando e registrando a recepção, construção de significados, encontrando possibilidades para uma ampliação da interpretação feita do conto.
Para atingir o objetivo geral de analisar a recepção dos estudantes na língua da obra literária apresentada, considerando que as respostas nos ajudariam a obter uma breve ideia sobre o perfil leitor dos alunos participantes da pesquisa, a categoria de análise determinação dos horizontes de expectativas do texto literário sinalizado compõe nossa seção de análise. Por isso, sendo a professora/pesquisadora colocamos em movimento o diálogo com a turma no sentido de tornar real o encontro obra/leitor, buscando identificar as expectativas literárias, observando e registrando como os alunos surdos liam a narrativa “O churrasco da banana” (Teles, 2020).
4. ANÁLISE DOS DADOS: A DETERMINAÇÃO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVA DAS CRIANÇAS SURDAS INVESTIGADAS NA LEITURA DO CONTO VIDEOSSINALIZADO “O CHURRASCO DA BANANA”
A etapa da determinação do horizonte de expectativas foi organizada levando em consideração o caráter qualitativo da leitura de uma obra literária sinalizada em vídeo. Assim, nos detivemos a observar os movimentos de recepção da leitura do conto vídeosinalizado e no que as crianças surdas eram provocadas para sua compreensão e interpretação, além de suas reações e emoções expressas via sinalização entre si e com a pesquisadora.
Durante o período da pesquisa, nas leituras das obras vídeossinalizadas, foram observados o interesse dos alunos surdos em relação ao texto, sua interação com o vídeo, com colegas e com a pesquisadora para a interpretação, suas elaborações sobre sequências do enredo da narrativa. A relação com o texto em sala de aula foi monitorada por perguntas abertas elaboradas para provocar a interpretação dos alunos surdos sobre o vídeo que assistiram. Desse modo, acreditamos estar provocando respostas que nos permitiriam conhecer os horizontes de expectativas a partir do que as crianças traziam dos sentimentos e sensações ao expressarem, por meio da sua interpretação do texto, o significado do que viam.
Apresentamos o vídeo com a narrativa “O churrasco da banana”6 para realização da leitura pelas crianças.
Figura 01: Início da narrativa apresentada por Marina Teles, 2020.

Para a realização das leituras, damos tempo aos curiosos alunos surdos de lerem o vídeo, dessa forma, atendemos ao tempo dos leitores, pois cada leitor possui diferentes naturezas na realização de seus caminhos de construção de significados, pois a construção da compreensão e as atitudes em relação aos interesses e reconhecimentos literários, gostos e formas de leitura de vídeos literários, depende de um espaço pessoal criado na relação com a narrativa.
Observamos sua recepção da narrativa em sua própria língua, a língua de sinais, e refletimos sobre como imaginávamos que os alunos surdos, ao ler o texto literário sinalizado por eles escolhido, apresentariam um comportamento recepcional espontâneo de afinidade direta com a narrativa por ser em língua de sinais.
Acontece que ao analisarmos as respostas dos alunos surdos Caio, Beto, João, Liz e Noah sobre “O churrasco da banana”7(Teles, 2020), vimos que não é possível dizer que as crianças interagiram afetivamente com a história baseando-nos na leitura da gravação da aula.
Uma obra videossinalizada e apresentada em sala de aula não é manipulada individualmente pelo leitor, não há registro de suas idas e vindas para as partes mais importantes do texto para ele. Além do mais, e por causa do formato do vídeo, não é possível pela gravação da aula dizer se a criança está acompanhando com atenção a sequência da narrativa que em formato audiovisual se desenrola a sua frente.
Em “O churrasco da banana” a artista que o sinaliza utiliza em sua performance uma estética da forte incorporação das características da personagem, mas na conversa com a pesquisadora para essa identificação, as respostas iniciais mostraram que as crianças não conseguiram identificar que a banana inicia a narrativa dormindo e confundiram essa parte do enredo com o sinal “CASA”. Esses dados nos levam a considerar uma possível demonstração de que esses alunos surdos não tinham práticas de contato com a literatura videossinalizada.
Então tivemos que pensar em outra forma de apresentar a narrativa para definir e romper o horizonte de expectativas das crianças com a aula de literatura. Assim resolvemos que poderíamos explorar a narrativa com a organização de um material de apoio criado para apresentar as imagens do vídeo de forma sequenciada, feitas por prints do videosinalizado “O churrasco da banana”. Desse modo, acreditávamos que a memória do enredo seria acionada. A figura 02, abaixo, mostra o material impresso que norteou novos diálogos entre a pesquisadora e as crianças.
Os diálogos foram analisados considerando o horizonte de expectativa a partir do que as crianças disseram sobre as sequências da história.
Figura 02:

Desta forma, após terminar de assistir ao videosinalizado, começamos a explorar a leitura da história com leitura expressiva. Essa contação que utilizou a imagem do vídeo de modo impresso possibilitou percebermos uma manifestação de interesse pelo “O churrasco da banana”. As crianças surdas participantes começaram a dizer como interpretavam a imagem.
A partir disso, foi conduzida uma conversa aberta com a turma com algumas perguntas, tendo como assunto para a interação a interpretação da sequência narrativa de uma mulher sinalizante que, como parte de sua performance, utiliza a estética da incorporação e o movimento simétrico dos braços e mãos (de forma simultânea) têm a mesma configuração de mãos levantadas para representar a personagem que é uma Banana. Em uma tradução simples para a língua é possível dizer que nesse momento da narrativa em Libras o texto é: “Banana está dormindo, quando o sol nasce ela acorda abrindo suas cascas de banana.
Figura 03: A banana está dormindo.

Após ver o vídeo e a imagem impressa junto à contação da pesquisadora, a mesma perguntou sobre o que acontecia nesse momento da narrativa:
Professora/Pesquisadora: O que é isto?
Caio: Casa
Nos surpreendeu o significado dado por Caio para a sinalização e a imagem de abertura da narrativa, quando o mesmo responde que o que está sendo sinalizado é CASA. Não consideraríamos uma superinterpretação se ele dissesse que ela “a banana” estava “dormindo dentro de casa”. No entanto, Caio não identificou a personagem principal ‘Banana’ na narrativa. Ele desconsiderou, ou, o que é nossa suposição principal, não conseguiu significar que a artista utiliza a configuração de mãos e simetria, colocando as duas mãos sobre a cabeça, como forma de antropomorfizar8a “banana dormindo”.
Neste contexto, um leitor com fruição estética na literatura videossinalizada, possivelmente, realizaria uma interpretação considerando que a arte performática da Libras usa o “corpo que mostra a informação linguística necessária para a imagem visual” (Sutton-Spence, 2021, p.106).
Continuando com a análise da leitura feita pelas crianças surdas, a sequência da narrativa traz uma segunda imagem, uma mulher sinaliza com performance corporal e de expressões faciais, sobrancelhas e olhos fechados e as mãos com movimentos na barriga que está com “FOME”. Uma tradução livre da narrativa em Libras pode dizer que: “Banana acordou, saiu de casa e agora está com fome”. A figura 04 ilustra o que as crianças viram:
Figura 04: A banana está com fome.

Após ver o vídeo e a imagem impressa junto à contação da pesquisadora, a pergunta sobre o que acontecia nesse momento da narrativa o diálogo que se desenrolou foi:
Professora/pesquisadora: O que ele sentiu?
Caio: Quer comer
Observamos que Caio vê a imagem com a perspectiva de dar o significado de “fome”, compreendendo que na narrativa o personagem antropomorfizado “Banana está com fome, quer comer” mostra que aconteceu uma recuperação de significado da sinalização vista. Caio possivelmente usou seu repertório de Libras para interpretar que as expressões corporais e faciais são recursos de qualidade do não-humano incorporados a seu próprio corpo do sinalizante de modo a expressar um sentimento ou sensação, pois na Libras “o rosto e o corpo são muitas vezes importantes para mostrar as emoções e desejos” (Sutton-Spence, 2016, p. 72).
Com isso, pode-se dizer que a capacidade de interpretação literária do leitor não precisa do sinal real “FOME” ou “COMER”, pois a informação no enredo possibilita a criação de relação entre seu repertório de sinais e a sinalização no corpo do artista no vídeo. Isso ocorre porque a literatura “oportuniza formas de inserção de imagens não verbais na performance literária, criando efeitos que vão além da Libras, mas sempre fundamentados na língua” (Sutton-Spence, 2021, p.233).
Na terceira imagem a performance da artista utiliza expressões faciais com olhos e boca sorridentes que, dando deliciosas lambidas nos lábios e movimentos do dedo apontando da mão (forma simultânea), querem saborear um espeto de churrasco. Em uma tradução livre da narrativa em Libras: “Banana procurou algo para comer um sorvete ou um hambúrguer ou algo…Mas, aí, teve uma ideia para um delicioso churrasco”.
Figura 05: Banana faz espeto de churrasco.

Na sequência de leitura do vídeo e da imagem impressa junto à contação da pesquisadora, o recorte do diálogo sobre a narrativa foi:
Professora/pesquisadora: O que ela vê no espeto?
Caio: Comeu uma banana.
Observamos que o aluno Caio interpreta a imagem com a expressão “Banana”. Assim, percebemos que ele imagina que a mulher comeu banana, mas ainda não identificou a personagem principal da trama e como esta é colocada no enredo.
Caio foi o único aluno que interagiu com a pesquisadora durante a aula de literatura com o vídeo “O churrasco da banana”. Ele já havia adquirido a Libras como sua língua (L1), mas demonstrou que ainda não conhecia as estruturas da narrativa em língua de sinais nem o modo como performances utilizando a estética da incorporação constroem o texto.
Para nós, isso dificulta a interpretação do enredo da narrativa, uma vez que sem esse repertório literário os leitores surdos têm dificuldade em interpretar o enredo, já que história para ser significada precisa que seja construída uma ligação entre o repertório da estrutura da narrativa: enredo, tempo, espaço, personagem e narrador, com a arte estética da Libras em que é o e no corpo do artista o local dessa criação literária.
A aquisição tardia da cultura e literatura surda pelos alunos surdos gera dificuldade em assistir e fruir histórias vídeossinalizadas compostas de performances com estética sinalizada.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da investigação tivemos a oportunidade de estudar e propor um trabalho de leitura do texto literário sinalizado realizando uma leitura literária com uma turma de 1º e 2 º ano do Ensino Fundamental I, em uma escola bilíngue e pública da rede estadual de Paraíba, localizada no município de Campina Grande. Com o objetivo de contribuir para a formação desses alunos leitores, esta pesquisa analisou as respostas de uma criança surda ao recepcionar a obra “O churrasco da banana” (Teles, 2020) apresentada e formato videossinalizado e, na sequência, via contação com uso de imagens impressas da narrativa.
Essa investigação tem o Método Recepcional (Bordini; Aguiar, 1988) como metodologia e o objeto de nossa atenção foi a etapa de determinação do horizonte de expectativas com a significação e interpretação da narrativa por Caio, único aluno que se pronunciou durante essa aula.
A abordagem do texto literário sinalizado ainda é restrito e necessita de ampliação em direção a formação de leitores. É necessário que professores levem aos alunos recursos de contar histórias usando o videossinalizado com diferentes estéticas e performances de artistas da literatura em Libras. Dessa forma, destaca-se a importância do domínio, por parte da pesquisadora/professora no que se refere aos pressupostos da metodologia que fundamenta essa abordagem, de modo a favorecer a adaptação do percurso às diferentes realidades dos alunos/leitores/receptores.
Ressalta-se ainda, que as informações sobre o videossinalizado e as orientações pedagógica ainda são pouco divulgadas, o que evidencia a necessidade de novos estudos e maior disseminação do tema.
4O termo Libras videossinalizada foi cunhado por Silva (2019). Desse modo, “O texto em Libras videossinalizada refere-se ao uso da Libras gravada em vídeo sendo que o sinalizante estabelece uma relação com a câmera, com ou sem emprego de recursos multimodais” (Aguiar, 2024, p. 38).
5Estudos sobre a Gramática do Design Visual (GDV) que constitui textos multimodais foram aabordados por Ferreira (2024) em sua tese de doutorado que analisou a retextualização do Enem em Libras. No caso da literatura em Libras, é significativa a necessidade de refletirmos sobre a GDV de modo a termos, cada vez mais clareza, dos elementos constituidores das diferenças entre a estrutura dos textos escritos e impressos em brochura com seus elementos pré-textuais, textuais, pós-textuais, relações imagem-texto e os elementos constituidores do texto literário em vídeo para construímos métodos assertivos para a formação do leitor de textos videosinalizados.
6Link do vídeo: https://vimeo.com/martinhaswell
7Para ler o vídeo ligamos a TV e abrimos uma página de um site de vídeo online7. Neste cenário, começamos a assistir a história, parte da performance utiliza a estética da incorporação e movimento simétrico dos braços e mãos que, de forma simétrica, têm a mesma configuração de mãos levantadas para representar a personagem que é uma Banana e a narrativa se inicia com ela dormindo. Resumindo a narrativa, a banana está dormindo, acorda com fome e procurando comida, então ela tem em mente (ideia) pegar espetinhos de carnes para fazer um churrasco, este vídeo tem duração de 00:01:11.
8O antropomorfismo é uma interpretação do que não é humano em termos de características humanas ou pessoais. Muitas vezes, coisas não-humanas […] na língua de sinais criativa ocorre como parte da construção de ação onde os sinalizadores “se tornam” ao assumir o papel de personagem não-humano, eles fazem o seu melhor para usar seu corpo humano para representar o corpo do não-humano (Sutton-Spence, 2016, p.68)
REFERÊNCIAS
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1Mestranda do programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino, Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) – Campina Grande/PB. E-mail: morgana.katarine@estudante.ufcg.edu.br
2Doutora, professora, unidade acadêmica de Letras, Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) – Campina Grande/PB. E-mail: shirley.barbsa@professor.ufcg.edu.br