O TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS: MULHERES E CRIANÇAS COMO SUAS MAIORES VÍTIMAS E A NECESSIDADE DE REFORÇO DAS MEDIDAS PARA SUA MAIOR VISIBILIDADE, PREVENÇÃO E COMBATE

INTERNATIONAL HUMAN TRAFFICKING FROM THE HUMAN RIGHTS PERSPECTIVE: WOMEN AND CHILDREN AS ITS GREATEST VICTIMS AND THE NEED FOR REINFORCEMENT OF MEASURES FOR GREATER VISIBILITY, PREVENTION AND FIGHTING AGAINST IT

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202502082045


Adriana Regina Barni1


RESUMO

Este artigo busca analisar a previsão legislativa internacional básica acerca do tráfico de pessoas, com ênfase no tráfico de mulheres e crianças. Em seguida, pretende tratar dos direitos humanos e sua grave violação com a prática do crime de tráfico de pessoas, sem olvidar de assinalar que a inobservância dos direitos humanos também pode ser tida como uma das causas dessa prática delituosa. Outrossim, dado o reconhecimento internacional dos direitos humanos e sua proteção como agenda internacional prioritária, o artigo tem por objetivo enfatizar a necessidade de incessante debate sobre a sua violação no tráfico de pessoas, inclusive, no meio acadêmico, com incentivo de pesquisas sobre os dados que envolvem essa prática, haja vista o constante crescimento e a invisibilidade dessa conduta delituosa, o que acaba por dificultar sobremaneira o seu enfrentamento no plano internacional e pelos próprios Estados internamente. Ainda, o trabalho busca demonstrar que, a partir do debate internacional e interno, bem como a cooperação internacional, será possível ampliar e reforçar as medidas de prevenção e combate do tráfico humano, um dos graves problemas decorrentes, dentre outros, do crescimento da migração transnacional. O presente artigo tem por base o método de abordagem dedutivo, além de pesquisas bibliográfica e documental como método de procedimento.

PALAVRAS-CHAVE: tráfico; pessoas; direitos humanos; violações; combate.

ABSTRACT

This paper seeks to analyze the basic international legislative provision regarding human trafficking, emphasizing the trafficking of women and children. Next, it intends to address human rights and their serious violation through the practice of the human trafficking crime, also pointing out that the non-observance of human rights can similarly be seen as one of the causes of this criminal practice. Furthermore, given the international recognition of human rights and their protection as a top international agenda, the paper aims to emphasize the need for incessant debate on their violation in human trafficking. This includes fostering discussions within the academic realm, encouraging research on the data surrounding this practice. This includes fostering discussions within the academic realm, encouraging research on the data surrounding this practice. Considering the constant growth and invisibility of this criminal conduct, it significantly hampers its international confrontation and internal state efforts. Additionally, this work seeks to demonstrate that through international and internal discourse, as well as international cooperation, it is possible to expand and reinforce preventive and combative measures against human trafficking. This issue is one of the serious problems arising from the growth of transnational migration. This paper is based on the deductive approach method, in addition to bibliographic and documentary research as the procedural method.

KEYWORDS: trafficking; people; human rights; violations; fighting.

1 INTRODUÇÃO

Em virtude da gravidade do crime de tráfico internacional de pessoas, sobretudo, quando envolve mulheres e crianças, por estarem entre as vítimas mais vulneráveis, o debate sobre o tema é algo que se mostra diuturnamente necessário e urgente, ainda mais na atualidade, com o crescimento global das migrações transnacionais.

De fato, o tema das migrações internacionais ganhou espaço na agenda política internacional no século XXI, sendo certo que, ainda que haja similitudes entre o tráfico internacional de seres humanos e outras questões migratórias, não se pode afirmar, de outro vértice, que todos os casos de tráfico sejam de migrantes irregulares ou vice-versa.

Na realidade, o fenômeno do tráfico humano, intensificado nas últimas décadas, tem causas múltiplas, ao lado das migrações transnacionais, sendo resultado de uma combinação de diversos fatores políticos, econômicos, históricos, sociais e culturais. Vale dizer, por detrás dos crescentes movimentos migratórios, incluindo o crescimento dos lucros com o tráfico, o que acaba fazendo com que sempre apareça “como causa”, em alguma medida, são as desigualdades e as enormes disparidades socioeconômicas, dentre outras questões internas dos países, que aumentam cada vez mais as distâncias entre as nações desenvolvidas e os Estados em desenvolvimento.

Forçoso reconhecer, portanto, que o tráfico internacional de pessoas se insere, sim, no contexto das grandes correntes migratórias de hoje, podendo-se afirmar que a violação dos direitos humanos, para além de ser uma consequência do tráfico humano, igualmente, se afigura como causa dessa prática.

O Pacto Global Internacional que trata do tráfico de pessoas é o Protocolo de Palermo, firmado em 2000 na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, que entrou em vigor em 25/12/2003, sendo ratificado por 171 Estados signatários, no Brasil, através do Decreto n. 5017/2004.

A par disso, há previsões dessa conduta delituosa pelos próprios Estados partes, como o Brasil, por exemplo, que editou a Lei n. 13.344/2016, que dispõe sobre o tráfico de pessoas cometido no território nacional contra vítima brasileira ou estrangeira e no exterior contra vítima brasileira.

Nada obstante, a circunstância de, em pleno século XXI, o comércio internacional de pessoas estar em pleno crescimento indica que a temática merece enfoque constante, seja no meio acadêmico, seja pela comunidade internacional e Estados. Isso com o intuito de aumentar a visibilidade de sua ocorrência, como também construir uma rede organizada (a exemplo do que ocorre com as próprias organizações criminosas que atuam nessa prática) para coibir e reprimir essa modalidade criminosa, a qual viola tão gravemente os direitos humanos das vítimas, atingindo a própria dignidade da pessoa humana.

Com efeito, esse delito, senão o maior, é um dos mais graves violadores dos direitos humanos das vítimas, na medida em que o tráfico humano torna as pessoas supérfluas e descartáveis, ao ‘coisificá-las’, destruindo até mesmo a sua humanidade, ao abolir o seu valor como ser humano e, portanto, como sujeito de direitos.

Nunca é demais lembrar, portanto, a gravidade dessa conduta, bem como a necessidade de se trabalhar arduamente na implementação e reforço das políticas internacionais, regionais e locais (nacionais), a fim de impedir o avanço dessa prática delituosa e os efeitos tão catastróficos nas vidas das vítimas e de seus familiares, com a impunidade dos grupos ou organizações criminosas que lucram quantias exorbitantes com isso.

Assim é que esse trabalho pretende evidenciar que a violação dos direitos humanos, a par de ser consequência direta do tráfico internacional de pessoas, que ainda se mostra como uma realidade nos dias de hoje, em especial de mulheres e crianças, também acaba por figurar como uma das causas dessa prática delituosa, quando deixam de ser observados pelos Estados na consecução de direitos básicos de seus cidadãos e residentes. Por conseguinte, a temática passa a ser um problema de ordem internacional, justamente porque a agenda de defesa dos direitos humanos é prioridade no atual estágio da humanidade.

Ao lado disso, o presente artigo ainda busca assentar a importância de se falar cada vez mais sobre o tema, sobretudo, na seara acadêmica, além de se fortalecer e reforçar as medidas de prevenção e combate do tráfico humano, para o que se faz necessário a cooperação internacional e também, dentro dos Estados, de todos os entes federados, sociedade, organizações não-governamentais, etc.

Por fim, salienta-se que este trabalho tem por base o método de abordagem dedutivo, além de pesquisas bibliográfica e documental como método de procedimento.

2 TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS

O tráfico internacional de pessoas, sem dúvida, é um fenômeno global, multifacetado, que mistura interesses socioeconômicos e práticas criminosas em redes locais e internacionais, altamente lucrativo, sendo considerado a terceira maior fonte de renda de atividades ilegais no mundo, depois do tráfico de armas e drogas, segundo dados da ONU.2 Além disso, é forçoso reconhecer que apresenta baixo custo, fácil reposição de estoque dos seres humanos escravizados e baixo risco de punição.

Em tempos de globalização, há que se dar especial atenção aos crimes cibernéticos, quando os criminosos se utilizam da internet para adentrar nas residências e aliciar as pessoas sem emprego e outros direitos básicos no país de origem para fins de tráfico humano, ausência de direitos essas decorrente de uma série de razões, especialmente, de ordem econômica, social, política e tantas outras que acabam levando seus cidadãos a buscarem melhores condições de vida em outros países. Daí o entrelaçamento existente entre as crescentes ondas das migrações transnacionais e o tráfico internacional de seres humanos.

Segundo pesquisa da OIT – Organização Internacional do Trabalho, o lucro anual do tráfico de pessoas chega a 31,6 bilhões de dólares. Já levantamento feito pela UNODC – Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes – demonstra que o lucro é de aproximadamente 30 mil dólares por ano com cada ser humano transportado de um país a outro (CUNHA e PINTO, 2018,p. 10), tudo a indicar a gravidade desse delito e as grandes proporções mundiais de seu lucro.

Em publicação no site da ONU News, datada de 02/02/2021, as Nações Unidas informam a preocupação com o crescimento dessa conduta criminosa, ao citar o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas, lançado em Viena, que apontou que cerca de 50 mil vítimas foram detectadas e denunciadas em 148 países no ano de 2018. Porém, o UNODC enfatizou que o número real de vítimas traficadas pode ser muito maior, sobretudo, pela natureza oculta desse crime.3 

Dito isso, cumpre dizer que o conceito aceito internacionalmente de tráfico de pessoas está disposto no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de pessoas, em especial de Mulheres e Crianças (2000), o chamado Protocolo de Palermo, nesses termos (artigo 3, ‘a’):

O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso de força ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.

Tal Protocolo é, sem dúvida, um marco legal sobre o tráfico de pessoas, declarando, já em seu preâmbulo, a intenção de prevenir e combater o tráfico humano, em especial de mulheres e crianças, exigindo dos países signatários a inclusão de medidas destinadas a prevenir esse delito, punir os traficantes e proteger as vítimas.

O mesmo Protocolo prevê, outrossim, na parte final do citado artigo 3º, como exploração “a prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.”

Analisando referido dispositivo, tem-se que, para a caracterização do crime de tráfico de pessoas, deve haver a conjugação desses três fatores: (1) a ação, que é o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas; (2) os meios, que podem ser ameaça, uso de força, rapto, coação, fraude ou engano; e (3) a finalidade, que é a exploração sexual, trabalho forçado, escravidão, servidão ou remoção de órgãos. Além disso, quando se fala em tráfico internacional, há que estar presente a transnacionalidade, vale dizer, a saída da vítima de um país, com o ingresso em outro.

Importante salientar que, nos termos do artigo 3, alíneas ‘b’ e ‘c’, do Protocolo de Palermo, o consentimento da vítima se afigura irrelevante em se tratando de qualquer uma das explorações acima citadas, tendo sido usado um dos meios mencionados, salvo no caso de criança, em que, mesmo não sendo empregados referidos meios, cada uma das condutas referidas, com qualquer dos fins especificados, será considerado tráfico de pessoas.

É imprescindível uma definição específica do crime de tráfico humano para que não seja confundido com o contrabando de migrantes que, via de regra, envolve o conhecimento e o consentimento da pessoa contrabandeada.

Urge assinalar que, mesmo que o tráfico humano e o contrabando sejam, igualmente, fenômenos de migração irregular com o objetivo de lucro, este último se diferencia do tráfico de pessoas, especialmente, porque finda com a chegada do migrante a seu destino, enquanto no tráfico, após a chegada, a vítima passa a ser explorada. No contrabando, o pagamento é antecipado, ao passo que no tráfico de pessoas, o lucro advém da exploração posterior da vítima.

Por outro lado, pode-se verificar que o Protocolo visa a dar uma resposta ao problema por meio de três grandes eixos, quais sejam: (1) prevenção ao tráfico de pessoas; (2) repressão ao crime e responsabilização dos seus autores; e (3) atenção às vítimas.

Repise-se a importância do Protocolo de Palermo que, dentre outras disposições, constitui-se no primeiro instrumento internacional com uma definição consensual de tráfico, consoante citado acima, sendo, pois, um marco para o combate a este crime.

E, ao lado disso, com a adoção da Agenda de Desenvolvimento Sustentável de 2030, em 2015, a comunidade internacional estabeleceu metas e objetivos para o fim do tráfico de pessoas, fortalecendo a coordenação internacional contra esse crime (UNODC, 2016).4

Nada obstante, sabe-se que o tráfico de pessoas se intensificou, não sendo tarefa simples, ademais, determinar a real dimensão desse problema nos dias atuais, inclusive, em razão da sua própria natureza ilícita, da invisibilidade do delito e das próprias vítimas, em grande parte por terem deixado seu país de origem em busca de melhores condições de vida, passando a viver na condição de migrantes ilegais em outro.

3 TRÁFICO DE MULHERES E CRIANÇAS

Como mencionado anteriormente, o Protocolo de Palermo prevê, expressamente, uma atenção especial às mulheres e crianças enquanto vítimas do delito de tráfico de pessoas, inclusive, salientando que o consentimento daqueles com idade inferior a dezoito anos se afigura irrelevante para fins de caracterização desse crime.

Isso porque o termo ‘criança’ é usado no mencionado Protocolo para designar qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos, nos termos do seu artigo 3, ‘d’, de modo que, também aqui, a menção à criança será feita para designar qualquer pessoa com essa idade, seguindo a normatização internacional.

É de ser anotado que a proteção especial das mulheres e crianças se justifica por conta da evidente vulnerabilidade desses dois grupos. As mulheres, em virtude do gênero, com uma história de discriminação e violação de direitos ao longo do tempo. Já as crianças, por ainda estarem em fase de formação física, biológica, emocional, etc., não tendo maturidade suficiente para consentir, sem falar que, em virtude de sua idade, tem mais facilidade em confiar, tornando-se presas fáceis para os traficantes.

Tanto é assim que, em 1979, a ONU aprovou a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, sendo que, até 2020, essa Convenção contava com 189 Estados-partes. Porém, como alerta Flávia Piovesan (2021, p. 298), tal instrumento “recebeu o maior número de reservas formuladas pelos Estados, dentre os tratados internacionais de direitos humanos”, sobretudo, em relação à cláusula que prevê a igualdade entre homens e mulheres, o que corrobora a afirmação de necessidade de medidas específicas de proteção à mulher também no combate ao tráfico humano.

De outro lado, as Nações Unidas também adotaram a Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989, vigente desde 1990, sendo o tratado internacional de proteção dos direitos humanos com o mais elevado números de ratificações, cerca de 196 Estados-partes em 2020.

Também essa Convenção, ao se referir à criança, alcança as pessoas com idade inferior a 18 anos, ressalvando os casos em que a legislação aplicável preveja a maioridade antes disso (artigo 1º). Ressalte-se que tal instrumento reconhece a criança como verdadeiro sujeito de direitos, demandando proteção especial e absoluta prioridade, prevendo uma série de direitos, como a proteção para não ser levada ilicitamente ao exterior, direito à educação, à proteção contra a exploração econômica, sexual e abuso sexual.

Nesse particular, apesar de todas as previsões internacionais com vistas à tutela das mulheres e crianças, convém mencionar alguns exemplos de como esses dois grupos de pessoas ainda são os mais afetados com o tráfico humano.

Sobre o tema, extrai-se de publicação do site da ASBRAD – Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude, datada de julho/2021, referência à pesquisa Mapeamento do Tráfico de Pessoas no Brasil, resultado do projeto realizado em parceria pela PRF – Polícia Rodoviária Federal, o Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho, a Childhood Brasil – Programa na Mão Certa, e a própria ASBRAD.5

Tal pesquisa teve como propósito dar subsídios ao Projeto Mapear da PRF que objetiva incorporar a temática do tráfico humano (Decreto n. 9.440/2018). A série é dividida em três volumes, sendo que o terceiro analisa as características da exploração sexual de crianças e adolescentes e pessoas adultas e suas correlações com as rodovias federais do Brasil, utilizando-se de dados extraídos dos bancos nacionais do período de 2016/2019, além de entrevistas individuais e grupos focais com especialistas no tema.

A título exemplificativo, a pesquisa cita os dados do Ligue 180 (decorrentes de denúncias de exploração sexual de crianças, adolescentes e pessoas adultas no Brasil entre 2016/2019). Segundo apenas esse dado, das 943 denúncias, 85,6% das vítimas eram do sexo feminino; aproximadamente em 5 entre 10 denúncias, as vítimas tinham entre 12 e 17 anos (48,4%), sendo que em cerca de 31,8% não se informou a idade das vítimas.

Note-se que a pesquisa alerta que a análise dos dados deve levar em conta a subnotificação dos crimes às autoridades, bem como a ausência de sensibilização sobre o tema na sociedade, capaz de gerar um número fidedigno de denúncias à realidade do fenômeno.

De outra banda, segundo o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas (2018), extraído do site Onu News e citado acima, as vítimas do sexo feminino continuam sendo os alvos principais, sendo que quase metade das vítimas identificadas em nível global eram mulheres adultas e 20% meninas. Outros cerca de 20% eram homens adultos e 15% meninos, o que equivale dizer que aproximadamente 35% das pessoas traficadas eram crianças.6

Outro exemplo de vitimação de crianças extrai-se do artigo Fronteiras Abertas para o Tráfico de Pessoas, do jornalista Mauri König (SIQUEIRA e QUINTEIRO, 2013, p. 163), que bem demonstra a situação das crianças nas fronteiras brasileiras, ao relatar que:

No mercado do sexo proibido, um programa sexual com uma criança pode custar um par de sapatos em São Borja (RS), um quilo de farinha em Ponta Porá (MS), um pirulito em Foz do Iguaçu (PR), um pastel em Ciudad del Este (Paraguai), um prato de comida em Corumbá (MS), alguns trocados em Tabatinga (AM) e Oiapoque(AP).
(…)
A história da brasileira Aline e da paraguaia Serena expõe os contrastes da exploração sexual em cidades muito próximas. Aline, 16 anos, e Serena, 12 anos, viviam em países diferentes, a 10 quilômetros uma da outra, mas foram igualmente vítimas da violência sexual. A brasileira teve sua virgindade leiloada por 500 dólares em uma boate de Foz do Iguaçu. Serena vinha sendo explorada sexualmente nas ruas da Ciudad del Este. Como pagamento, recebia abrigo em um barraco e pastéis para se alimentar.

Ainda, segundo notícia extraída do site ONU NEWS, datada de 20 de outubro de 2023, as mulheres e crianças continuam sendo as maiores vítimas em todo o mundo, representando cerca de 70% do total das detectadas, sendo elas vítimas, principalmente de exploração sexual e casamento forçado, diferente dos homens e rapazes, traficados, na sua maior parte, para trabalho forçado.7

Nesse cenário, é possível concluir que essas poucas pesquisas, sozinhas, já evidenciam, sobremaneira, como as maiores vítimas continuam sendo, nos dias atuais, as mulheres e as crianças quando se fala em tráfico humano, de modo que, conforme determina o Protocolo de Palermo, tais pessoas merecem especial atenção e tutela, por serem, certamente, as mais vulneráveis nessa espécie delituosa, mormente quando de cunho internacional, diante da sua condição atrelada de migrante.

Especificamente em relação às mulheres vítimas de tráfico humano, é de se ponderar que são, via de regra, enganadas, uma vez que acreditam que irão trabalhar em outra atividade que não a prostituição forçada. Além disso, dificilmente ficam livres dos traficantes, permanecendo presas fisicamente, sem nenhum contato com as famílias e amigos. Geralmente, o tráfico internacional de mulheres é administrado por organizações criminosas grandes, transnacionais e brutais.

No tocante às crianças, no mais das vezes, acabam sendo vítimas das próprias famílias que, diante de sua situação de miserabilidade, acabam vendo nesses membros uma forma de melhorar sua condição de vida, seja vendendo-as para adoção, exploração sexual ou mesmo trabalho escravo.

4 DIREITOS HUMANOS

A Carta das Nações Unidas de 1945 consolidou o movimento da internacionalização dos direitos humanos, pós Segunda Guerra, determinando, em seu preâmbulo, que:

NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS

a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos (…)

Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 inaugurou o que Flávia Piovesan (2021, p. 239) chama de “concepção contemporânea de direitos humanos, pela qual esses direitos passam a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisível”, prevendo já em seu artigo 1º que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.

A partir de então, o maior direito passou a ser, adotando-se a expressão cunhada por Hannah Arendt, o de ter direitos, isto é, o direito de ser considerado um sujeito de direitos.8

Dentre tantos outros direitos previstos na DUDH, convém citar as disposições a seguir, pertinentes a este estudo:

Artigo III – Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo IV – Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Artigo V – Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo VI – Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei.

Como é cediço, os direitos humanos são inalienáveis, universais e indivisíveis. Inalienáveis, uma vez que nenhuma pessoa pode abrir mão ou desistir desses direitos. São universais no sentido de que a condição de pessoa é o único requisito para a titularidade dos direitos humanos. Por outro lado, são indivisíveis porque a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais é condição para a garantia dos direitos civis e políticos e vice-versa, compondo, pois, uma unidade inter-relacionada e interdependente. 

Na lição de Norberto Bobbio (1992, p. 30), os direitos humanos surgem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares e, por fim, encontram a plena realização como direitos positivos universais. Ainda segundo o referido autor (1992, p. 25), o grande problema hoje não é mais a fundamentação dos direitos humanos, mas, sim, a sua proteção.

Como dito acima, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, inaugurando a concepção contemporânea dos direitos humanos, acabou por alicerçar a sua base na ética da dignidade humana, esta como valor intrínseco à condição humana.

Nas palavras de Flávia Piovesan (2021, pp. 206/207), “o Direito Internacional dos Direitos Humanos ergue-se no sentido de resguardar o valor da dignidade humana, concebida como o fundamento dos direitos humanos”.

Por sua vez, preconiza o Ministro Luiz Barroso (2010, pp. 9/10) que:

A dignidade humana tem seu berço secular na filosofia. Constitui, assim, em primeiro lugar, um valor, que é conceito axiológico, ligado à ideia de bom, justo, virtuoso. Nessa condição, ela se situa ao lado de outros valores centrais para o Direito, como justiça, segurança e solidariedade. É nesse plano ético que a dignidade se torna, para muitos autores, a justificação moral dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Em plano diverso, já com o batismo da política, ela passa a integrar documentos internacionais e constitucionais, vindo a ser considerada um dos principais fundamentos dos Estados democráticos. Em um primeiro momento, contudo, sua concretização foi vista como tarefa exclusiva dos Poderes Legislativo e Executivo. Somente nas décadas finais do século XX é que a dignidade se aproxima do Direito, tornando-se um conceito jurídico, deontológico – expressão de um dever ser normativo, e não apenas moral ou político. E, como conseqüência, sindicável perante o Poder Judiciário. Ao viajar da filosofia para o Direito, a dignidade humana, sem deixar de ser um valor moral fundamental, ganha também status de princípio jurídico.

Em suma, a base ou vetor de todos os demais direitos humanos funda-se na dignidade da pessoa humana, de modo que a sua proteção não deve estar reduzida ao campo de atuação de um Estado, sendo um tema de legítimo interesse de toda a comunidade internacional. O indivíduo é hoje, pois, um sujeito de direito internacional, de modo que a simples condição humana torna-o dotado de dignidade humana e de todos os demais direitos humanos daí decorrentes.

5 OS DIREITOS HUMANOS E O TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS

Segundo Kant (2018, p. 77), a pessoa não tem preço, mas, sim, dignidade, afirmando que:

No reino das finalidades tudo tem um preço ou uma dignidade. No lugar daquilo que tem um preço, pode ser colocada outra coisa, equivalente; por outro lado, possui uma dignidade aquilo que está acima de qualquer preço, portanto, não possui nenhum equivalente.

Portanto, a ênfase na dignidade da pessoa humana na ética kantiana encontra-se no contexto da proibição da instrumentalização do ser humano, que sempre deve ser considerado como um fim em si mesmo. Nesse contexto, Kant distingue pessoas de coisas (2018, p. 80).

Ocorre que, no crime de tráfico de pessoas, o ser humano é reduzido à condição de coisa, sendo precificado, o que ataca frontalmente o direito da dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, todos os direitos humanos daí decorrentes (como o direito à liberdade, igualdade, etc.), que são uma categoria de direitos universais, interdependentes, indivisíveis e inter-relacionados, conforme já explicitado.

Vale dizer, o tráfico de pessoas implica um processo de redução da humanidade da pessoa, que passa a ser um não humano, um sujeito não igual e despido de qualquer direito, inclusive, os relativos à própria vontade e ao ir e vir, o que importa a grave violação dos direitos humanos.

Assim é que o tráfico humano nada mais é do que a escravidão moderna, agravada por ser ela invisível e, portanto, com extrema dificuldade de prevenção, combate ou repressão, afigurando-se tal tarefa em um desafio imenso, frente à invisibilidade de delito tão pernicioso, que ataca, da forma mais vil, a dignidade da vítima como ser humano e todos os direitos que dessa condição emanam. 

Sabe-se que no capitalismo tudo é mercadoria, por conta da própria natureza desse sistema, mas daí admitir-se conviver com um ser humano sendo tratado como coisa, a ponto de ter um preço e ser vendido no mercado, seja para qual objetivo for – exploração sexual, trabalho escravo, casamento, venda de órgãos ou adoção ilegal – é algo que não pode ser normalizado, muito pelo contrário, deve ser veementemente combatido.

Como bem explicita Maria Helena Morra, em seu artigo Tráfico de Pessoas: Gente vendendo gente, um desafio para os direitos humanos (SIQUEIRA e QUINTEIRO, 2013, p. 142):

Marx, no século XIX, já explicitava que (…) ‘no modo de produção capitalista, o trabalhador perde seu estatuto de humanidade tornando-se coisa, um produto comprado e vendido no mercado’. É a ‘vida mesma’, diz Marx, resumida à mera luta pela sobrevivência, que perde toda a sua dignidade, e ‘aparece só como meio de vida’. O tráfico de seres humanos é o auge da mercantilização. É considerado o pior e mais degradante crime contra os direitos inalienáveis da pessoa humana.

Com efeito, ao lado da dignidade humana, as pessoas tem o direito à liberdade, que é um direito humano fundamental e, como tal, irrenunciável, o que envolve escolher o que fazer, como e por que fazer. A pessoa traficada, no entanto, tratada como coisa ou mercadoria, não detém sequer esse ou mesmo qualquer outro direito inerente a sua condição humana, justamente por conta da perda de sua humanidade.

Guilherme Nucci (2014, p.41) afirma que a “liberdade é a possibilidade de o ser humano decidir o seu destino, agindo conforme sua consciência, indo, vindo ou ficando em determinado lugar, manifestando, pela forma que julgar conveniente, o seu pensamento”.

Assim é que resta claro que o tráfico humano atenta contra os direitos mais básicos da vítima, impedindo-a de ser dona de sua vida, de sua vontade e de seus anseios e desejos, despindo-a, com isso, de sua humanidade. Bem por isso que o Protocolo de Palermo tem como um dos eixos a atenção à vítima que, em sendo resgatada, necessita ser reconstruída como ser humano, no que não se pode olvidar a obrigação de se evitar nova vitimação com eventuais procedimentos a serem adotados.

Por outro lado, há que se ter em voga que a violação de direitos humanos, como ocorre no tráfico internacional de pessoas, é uma problemática de ordem transnacional ou, como bem pondera Flávia Piovesan, “a violação dos direitos humanos não pode ser concebida como questão doméstica do Estado, e sim como problema de relevância internacional, como legítima preocupação da comunidade internacional”9

Partindo dessa premissa, bem como levando-se em conta que as mais vulneráveis são as mulheres e crianças e, ainda, aquelas na condição de migrantes transnacionais, a proteção dessas pessoas se torna ainda mais difícil no lugar onde se encontram escravizadas.

Isso porque é sabido que os Estados, por conta de suas políticas de restrições migratórias, no mais das vezes, conferem direitos aos nacionais que não são reconhecidos aos imigrantes (sobretudo, aos ilegais).

Logo, não é incorreto afirmar que a sabida invisibilidade desse grave delito pode ter como causa, dentre muitas outras, decisões políticas equivocadas no sentido de que não nacionais, ainda que vítimas desse delito em seu território, não demandam sua proteção, o que se afigura em um grande equívoco, para dizer o mínimo.

A propósito, cumpre citar trecho do livro de Iara Lúcia Santos Mellegari, ao analisar o pensamento de Hannah Arendt, quando afirma que: “o homem privado de cidadania e, consequentemente, de sua nacionalidade, vínculo que lhe assegura pertencer a uma comunidade humana, a uma nação, resta sem amparo dos direitos humanos, pois ele sequer conquistou ainda o direito de ter direitos.”10

6 MEDIDAS DE PREVENÇÃO E COMBATE AO TRÁFICO HUMANO E A NECESSIDADE DE AVANÇOS

O Protocolo de Palermo prevê, em seu artigo 911, que cabe aos Estados partes estabelecerem políticas abrangentes, programas e outras medidas para prevenir e combater o tráfico humano, como também para proteger as vítimas desse delito, em especial as crianças e as mulheres, inclusive, de nova vitimação.

Dentre essas medidas, são citadas pesquisas, campanhas de informação através dos órgãos de comunicação, além de iniciativas econômicas e sociais.

Nesse aspecto, convém assentar que se afigura essencial que os Estados atuem juntamente com a sociedade civil, aí incluídas as empresas e as organizações não-governamentais, no sentido de, em conjunto, envidarem esforços para difundirem informações sobre o tráfico humano e a necessidade do engajamento de todos na prevenção, denúncia e combate desse crime tão devastador na vida das vítimas, especialmente, das mais vulneráveis.

Num mundo globalizado, as informações por meio de redes sociais e pela internet em geral são essenciais, com o intuito de alertar a população de que está a conviver com essa prática em seu meio diariamente, sendo responsabilidade de todos atuarem para prevenir e reprimir essa conduta delituosa, sobretudo, através de denúncia aos órgãos competentes.

Nesse particular, a título ilustrativo, convém citar a Lei n. 13.431/2017, que determina que é dever de todos comunicar às autoridades, caso tenham conhecimento ou presenciem atos de violência contra criança ou adolescente, no que se inclui, por evidente, o tráfico humano.

A informação sobre essa prática delituosa pode ser tida como uma das medidas mais urgentes e essenciais na prevenção e combate ao tráfico humano, mormente para que esse ilícito saia do ocultamento. Ocultamento que, no mais das vezes, acaba sendo interpretado como inexistência do crime no mundo contemporâneo, o que não é verdadeiro e acaba por colaborar para a grande dificuldade mundial de preveni-lo e combatê-lo, redundando na sua impunidade.

Por outro lado, dentre as iniciativas econômicas e sociais citadas pelo Protocolo, pode-se mencionar a adoção de políticas públicas que garantam os direitos fundamentais para a maioria da população.

E isso passa pela ampliação das oportunidades de trabalho, estudo e moradia, uma vez que o tráfico humano atinge majoritariamente as regiões mais pobres e desassistidas dos países em geral. Investimentos nas áreas de saúde, emprego e educação, envolvendo estas questões de cidadania, direitos políticos e sociais, proteção familiar e empoderamento das mulheres, são imprescindíveis e urgentes na redução da vulnerabilidade das maiores vítimas, que são as populações mais pobres.

Em suma, a redução do crime de tráfico de pessoas passa, necessariamente, pela redução das desigualdades sociais, da miséria, do desemprego, da falta de condições de vida digna e do subdesenvolvimento, que acabam por tornar as populações que já são vítimas da pobreza, especialmente as crianças e mulheres (ainda mais na condição de migrantes), mais vulneráveis ao tráfico.

Nesse ponto, cabe aos Estados revisitar suas políticas públicas em relação aos nacionais, a fim de evitarem a violação dos seus direitos humanos (que acaba também se tornando causa do crime de tráfico) que, muitas das vezes, fazem com que seus cidadãos migrem para outros países, lá passando a ser vítimas de novas violações, inclusive, por se colocarem nessa posição de pessoas mais suscetíveis ao tráfico humano.

De outro norte, também é urgente que, na hipótese de tráfico internacional de pessoas, sobretudo, envolvendo mulheres e crianças migrantes, os Estados atuem de forma firme e urgente, como se nacionais fossem, independentemente de estarem ou não legais no país, tudo isso em razão da supremacia da proteção dos direitos humanos frente a eventuais políticas migratórias noutro sentido, na hipótese de se estar diante de vítimas de tráfico humano.

Ao lado disso, é mister que os Estados, além da adoção e reforço das medidas legislativas, invistam na fiscalização de suas rodovias e fronteiras, na formação de profissionais promotores dos direitos humanos, da paz e da cidadania, modificando, assim, a mentalidade atual de que o que acontece com o outro só diz respeito a ele.

Uma outra medida de essencial importância, referida em várias alíneas no Protocolo de Palermo, é a necessidade de cooperação internacional, seja ela bilateral ou multilateral.

Ora, com a globalização, os Estados acabam por ter facilidade nessa troca de informações, programas e atuações, de modo que o entrave fronteiriço não pode mais ser considerado um empecilho no trabalho conjunto das várias Nações em que as organizações criminosas e responsáveis pelo tráfico humano atuam.

Com efeito, sabendo-se que as organizações criminosas atuam em rede em vários países, tanto que o tráfico internacional de pessoas ocupa a terceira fonte ilícita mais lucrativa no mundo do crime, como dito antes, há que se investir cada vez mais em meios para que também o seu combate se dê em rede, com a cooperação das organizações internacionais e o trabalho conjunto das autoridades dos países envolvidos, seja na remessa, seja no recebimento de migrantes traficados ou mesmo daqueles que apenas servem de rota do tráfico de pessoas.

O próprio artigo 10 do Protocolo menciona a necessidade do intercâmbio de informações entre os Estados-partes, ao lado da formação dos agentes competentes para a aplicação da lei, dos serviços de imigração e outros na prevenção e combate do tráfico humano, além de medidas nos controles das fronteiras necessárias a detectar a eventual prática desse delito (artigo 11).

Sem dúvida, as medidas previstas no Protocolo de Palermo são bastante amplas, com grande potencial de serem cada vez mais eficazes na prevenção e repressão do tráfico internacional de pessoas.

De qualquer modo, a própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no seu Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, aprovado em 2021, dentre as Recomendações ao Brasil, por exemplo, estabeleceu no item 71, sobre a necessidade de se aprofundar as ações de prevenção, combate e assistência às vítimas, promovendo a cooperação em todos os eixos.12

Nada obstante, ao lado da informação e divulgação de dados, locais e pessoas mais vulneráveis, também é essencial que haja vontade política e o engajamento de todos – organismos internacionais, Estados, órgãos públicos, privados, etc. – nessa árdua tarefa de reduzir essa prática tão degradante aos direitos básicos das vítimas. Do contrário, a dificuldade de prevenção e repressão desse delito continuará crescendo, sem a perspectiva de efetivos avanços na temática a médio e longo prazo, o que é responsabilidade de todos.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O crime de tráfico humano, especialmente o internacional envolvendo mulheres e crianças, é, sem dúvida, um dos maiores desafios relacionados com a globalização, de modo que o seu enfrentamento demanda um esforço concentrado de diversos agentes, dentre eles Estados, Organizações Internacionais, organizações não-governamentais, academia, sociedade civil em geral e famílias das vítimas e possíveis vítimas.

E mais que isso, o tráfico internacional de pessoas vem atrelado às crescentes migrações transnacionais em todo o mundo, na medida em que os migrantes, dada a sua condição de vulnerabilidade, acabam se tornando vítimas fáceis das organizações criminosas que exploram essa prática, sobretudo, quando se tratam de mulheres e crianças.

Considerando que esse delito, um dos mais graves em termos de violações dos direitos das vítimas, que são tratadas como mercadorias (já que possuem um preço no mercado, sendo exploradas como coisa), atinge diretamente os direitos humanos das pessoas exploradas, como o ir e vir, a vontade, a liberdade de escolha e decidir sobre sua vida, etc., é, sem nenhuma dúvida, um problema de cunho global, a ser combatido através de uma força tarefa internacional cada vez mais ampla e forte.

De fato, tendo os direitos humanos como vetor ou base o princípio da dignidade da pessoa humana, evidente que a sua violação (como ocorre no tráfico humano) é um problema não só local (nacional), como também de cunho regional e global, no sistema jurídico multinível de proteção dos mencionados direitos, como bem leciona Flávia Piovesan (2021, p. 199).

Nesse aspecto, ao lado das inúmeras medidas já estabelecidas, a começar no âmbito internacional, à prevenção e ao combate ao crime de tráfico humano, não há dúvidas da necessidade de se manter um debate incessante sobre o tema, a fim de combater, antes de tudo, a invisibilidade que gira em torno do tráfico humano internacional, como também das dificuldades existentes de prevenção e combate dessa prática.

Invisibilidade que se agrava quando as vítimas, sobretudo, mulheres e crianças, ainda ostentam a condição de migrantes transnacionais, justamente porque a vulnerabilidade, em tais casos, é ainda maior, por conta das restritivas políticas migratórias dos países que, no mais das vezes, acabam tratando o migrante como uma questão não local.

Não se pode olvidar, ainda, que as políticas sociais e econômicas dos países são também causas dessa espécie de prática delituosa, de modo que é correto afirmar que a violação de direitos humanos configura-se em causa e consequência do crime de tráfico de pessoas, sendo que a sua prevenção e combate passa pela alteração das políticas de desenvolvimento dos Estados, com redução das desigualdades sociais interna e internacionalmente entre os países.

É correto afirmar que já existe previsão de uma série de medidas de prevenção e combate, em especial, no Protocolo de Palermo, porém, considerando o constante crescimento dos números do tráfico internacional de pessoas, sem olvidar da subnotificação dessa prática, é evidente que é necessário fazer mais, seja fazendo cumprir essas medidas, seja efetivamente reforçando a cooperação entre os Estados e as autoridades envolvidas na sua prevenção e combate.

O debate sobre o tema, sobretudo, o acadêmico, é essencial na consecução da visibilidade dessa prática delituosa tão grave, justamente porque a sua prevenção e combate passa, necessariamente, por medidas que enfrentem, antes de tudo, a sua cruel invisibilidade.

E, para que a consecução de medidas ocorra, para que essa força-tarefa aconteça, é mister que o crime de tráfico de pessoas, sobretudo, envolvendo crianças e mulheres, seja visto, repise-se, sempre sob a ótica dos direitos humanos, para que se tenha em voga, a todo momento, a gravidade e a atrocidade dessa prática, que deve ser reduzida em todas as suas formas, por meio da união de esforços e cooperação internacional entre todos os envolvidos na luta contra esse delito.


2 ONU NEWS. Tráfico humano é terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo. https://news.un.org/pt/story/2023/10/1822172. Acesso em 02 de novembro de 2023. De acordo com a notícia: “O tráfico de seres humanos é estimado como a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo e está presente em todas as regiões. A afirmação foi feita nesta quinta-feira pelo alto comissário de Direitos Humanos da ONU, Volker Turk, ao pedir por estratégias coordenadas para combater este tipo de crime. Falando em uma conferência sobre o tema em Viena, na Áustria, ele disse que a prática é um dos crimes mais “antigos e hediondos” e que continua a prosperar em pleno século 21. Segundo Turk, o tráfico de pessoas avança particularmente onde conflitos armados, recessão econômica, emergências de saúde, insegurança alimentar, desastres induzidos pelas mudanças climáticas e outras crises humanitárias “exacerbam as vulnerabilidades existentes.” De acordo com as últimas estimativas globais, 49,6 milhões de pessoas são vítimas desta violação, 25% a mais do que em 2016.  O chefe de direitos humanos da ONU ressaltou que essa é a história de “milhões de homens, mulheres e crianças, explorados sexualmente, sujeitos a trabalhos forçados, casamentos forçados, tráfico de drogas, servidão doméstica, colheita de órgãos e outros horrores.” Ele afirmou que as formas de exploração e as técnicas utilizadas pelos criminosos continuam evoluindo. Segundo Turk, a tecnologia ampliou o mercado do tráfico de seres humanos na última década, com fóruns online, aplicativos de redes sociais e websites utilizados para recrutar, anunciar e vender vítimas.”

3 ONU NEWS. Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2021/02/1740252. Acesso em 02 de novembro de 2023.

4 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/240456-dia-mundial-contra-o-tr%C3%A1fico-de-pessoas. Acesso em 02 de novembro de 2023. Segundo a notícia: “O tráfico de seres humanos é um crime que se esconde não apenas nas sombras, mas à vista de todos.” – Ghada Fathi Waly, diretora executiva do UNODC, 30 de julho de 2023. Neste Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, celebrado em 30 de julho, a chefe do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime apela à sociedade para que intensifique os esforços para alcançar todas as vítimas e sobreviventes do tráfico de pessoas. O tema deste ano é: “cada vítima de tráfico de pessoas importa, não deixe ninguém para trás”. “Não deixar ninguém para trás” é a promessa central e transformadora da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). No contexto do tráfico de pessoas, não deixar pessoas para trás significa:  Acabar com a exploração das vítimas do tráfico.  Apoiar as vítimas e sobreviventes quando estiverem livres de seus traficantes.  Não deixar grupos identificáveis vulneráveis aos traficantes.”

5 ASBRAD. Mapeamento do Tráfico de Pessoas no Brasil. Disponível em: https://www.asbrad.org.br/trafico-de-pessoas/pesquisamapear/. Acesso em 02 de  novembro de 2023.

6 ONU NEWS. Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2021/02/1740252. Acesso em 02 de novembro de 2023.

7 ONU NEWS. Tráfico humano é terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo. https://news.un.org/pt/story/2023/10/1822172. Acesso em 02 de novembro de 2023. Narra a noticia que: “Os refugiados e migrantes que fogem da perseguição ou da violência, ou que procuram uma vida melhor, estão particularmente expostos, não só nos seus países de origem, mas também nos países de acolhimento, ao longo do seu percurso e no seu destino. “É alarmante constatar que as crianças representam um terço de todas as vítimas detectadas”, lamentou Turk. Mulheres e meninas são afetadas de forma desproporcional. Elas representam mais de 70% de todas as vítimas detectadas em todo o mundo. São principalmente vítimas de tráfico para exploração sexual e casamento forçado, enquanto homens e rapazes constituem a maioria das vítimas de tráfico para trabalho forçado. Para Turk, o tráfico de seres humanos é um grave problema de direitos humanos, não só pelas violações e abusos cometidos, mas também porque as pessoas que já vivem em situações de grande vulnerabilidade são as mais expostas.”

8 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.403. Nas palavras da autora, “Só conseguimos perceber a existência de um direito de ter direitos (e isto significa viver numa estrutura onde se é julgado pelas ações e opiniões) e de um direito de pertencer a algum tipo de comunidade organizada, quando surgiram milhões de pessoas que haviam perdido esses direitos e não podiam recuperá-los devido à nova situação política global.

9 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 19ªed., São Paulo: Saraiva Jur, 2021, p.215.

10 MELLEGARI, Iara Lúcia Santos. Direitos Humanos e cidadania: no pensamento de Hannah Arendt. Curitiba: Juruá, 2012.

11 “Artigo 9 Prevenção do tráfico de pessoas: 1. Os Estados Partes deverão estabelecer políticas, programas e outras medidas abrangentes para: a) Prevenir e combater o tráfico de pessoas; e b) Proteger as vítimas de tráfico de pessoas, especialmente as mulheres e as crianças, de nova vitimização. 2. Os Estados Partes deverão esforçar-se por adotar medidas tais como pesquisas, campanhas de informação e de difusão através dos órgãos de comunicação social, bem como iniciativas sociais e econômicas, tendo em vista prevenir e combater o tráfico de pessoas. 3. As políticas, os programas e outras medidas adotados em conformidade com o presente artigo deverão incluir, se necessário, a cooperação com organizações não governamentais, outras organizações relevantes e outros sectores da sociedade civil. 4. Os Estados Partes deverão adotar ou reforçar medidas, designadamente através da cooperação bilateral ou multilateral, para reduzir os fatores como a pobreza, o subdesenvolvimento e a desigualdade de oportunidades, que tornam as pessoas, em especial as mulheres e as crianças, vulneráveis ao tráfico. 5. Os Estados Partes deverão adotar ou reforçar as medidas legislativas ou outras, tais como medidas educativas, sociais ou culturais, designadamente através da cooperação bilateral ou multilateral, a fim de desencorajar a procura que propicie qualquer forma de exploração de pessoas, em especial de mulheres e crianças, que leve ao tráfico.”

12 CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, aprovado em 12 de fevereiro de 2021. “71. Aprofundar as ações de prevenção, proteção e assistência às vítimas de tráfico de pessoas, por meio de seu III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2018-2022), promovendo a cooperação, em todos os eixos da política pública, entre estados, municípios, organizações da sociedade civil, da academia e organizações internacionais especializadas.”


REFERÊNCIAS

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1Aluna do Mestrado em Direito das Migrações Transnacionais, da Universidade do Vale do Itajaí – Univali. E-mail para contato: arb18@trf4.jus.br