THE TERRITORY AND THE COMPLEXITY OF THE HEALTH-ILLNESS PROCESS IN THE NEIGHBORHOOD OF TERRA FIRME IN BELÉM DO PARÁ, BRAZIL: AN EXPERIENCE REPORT
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7878965
Danilo Magalhães Rezegue1
Lidiane Assunção Vasconcelos2
Roberto Carlos Figueiredo2
Natalia Kiss Nogueira da Silva2
José Natanael Gama dos Santos3
Leidiana de Jesus Silva Lopes4
Ana Paula Martin Silva5
Karollyne Quaresma Mourão5
Kellyne Quaresma Mourão6
Katia Regina Bezerra7
Brenda Lorena Machado Paes8
Juliana Mendes Pacheco9
Diego Leite Cutrim10
Resumo
No campo da Saúde Coletiva, o debate em torno das inter-relações entre território e saúde tem como um de seus vasos comunicantes a Estratégia Saúde Família, uma política pública pautada pelos princípios da Atenção Primária à Saúde, cuja organização do processo de trabalho segue uma lógica territorial e multiprofissional com a perspectiva de aproximar os serviços dos indivíduos, famílias, comunidades e grupos sociais. Seguindo as diretrizes teóricas da produção social do espaço e da epidemiologia crítica, esta pesquisa adota o território como categoria de análise privilegiada para a compreensão dos fatores relacionados à determinação social do processo saúde-doença, adotando como locus o bairro da Terra Firme em Belém – PA. Adotando como perspectiva metodológica o relato de experiência adjunto as pistas da cartografia de orientação pós-estruturalista, após um período de imersão no território, sendo possível conhecer a partir de diálogos informais com agentes sociais inseridos no contexto histórico do bairro, os diferentes pontos de vista, como moradores, médico, ex-gestor, liderança afro-religiosa e populares. Observou-se que a compreensão do processo saúde-doença a partir da abordagem do território exige esforços teórico e metodológico que nos permitam compreender as dinâmicas envolvendo território e saúde para além de uma perspectiva estritamente funcionalista, de cunho administrativo-burocrático e superficialmente operacional. Trata-se de compreender o território a partir de seus aspectos relacionais, de suas simbologias e usos, além de compreendê-lo como dimensão de práticas e saberes que podem contribuir na organização dos serviços a partir de uma perspectiva local.
Palavras-chave: Território. Saúde. Políticas públicas.
Abstract
In the field of Collective Health, the debate around the interrelations between territory and health has the Family Health Strategy as one of its communicating vessels, a public policy guided by the principles of Primary Health Care, whose organization of the work process follows a territorial and multidisciplinary logic with the perspective of bringing services closer to individuals, families, communities and social groups. Following the theoretical guidelines of the social production of space and critical epidemiology, this research adopts the territory as a privileged category of analysis for understanding the factors related to the social determination of the health-disease process, adopting as its locus the Terra Firme neighborhood in Belém – PA. Adopting as a methodological perspective the experience report attached to the cartography tracks of post-structuralist orientation, after a period of immersion in the territory, it is possible to know from informal dialogues with social agents inserted in the historical context of the neighborhood, the different points of view , such as residents, doctor, former manager, Afro-religious and popular leaders. It was observed that the understanding of the health-disease process from the approach of the territory requires theoretical and methodological efforts that allow us to understand the dynamics involving territory and health beyond a strictly functionalist, administrative-bureaucratic and superficially operational perspective. It is about understanding the territory from its relational aspects, its symbologies and uses, in addition to understanding it as a dimension of practices and knowledge that can contribute to the organization of services from a local perspective.
Keywords: Territory. Health. Public policy.
Introdução
O contexto histórico e político que permeia essa pesquisa leva-nos à constante reflexão sobre os rumos das políticas públicas no Brasil, especialmente em relação ao futuro do Sistema Único de Saúde e suas políticas setoriais. Particularmente, destaco dois elementos da conjuntura nacional que me desafiam a afirmar a importância estratégica da presente pesquisa: a promulgação, no dia 15 de dezembro de 2016, da Emenda Constitucional 95/2016 (BRASIL, 2016) que, seguindo os ditames de austeridade fiscal do Governo Federal, limita durante 20 anos os gastos públicos; e a reformulação da Política Nacional de Atenção Básica – PNAB, aprovada em setembro de 2017 (BRASIL, ), em meio ao cenário de cortes em investimentos sociais, crise econômica e instabilidade política.
Em relação à Emenda Constitucional 95/2016, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO e a Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde emitiram críticas ao conteúdo da mesma em função dos cortes ameaçarem ainda mais o já esquálido orçamento do Sistema Único de Saúde e colocarem em risco a aplicabilidade de seus princípios constitucionais com impactos diretos sobre a qualidade dos serviços públicos de saúde.
No que diz respeito às modificações da Política Nacional de Atenção Básica, a 13ª edição do boletim informativo do Observatório de Análise Política em Saúde – OAPS, vinculado ao Projeto Análise de Políticas de Saúde no Brasil 2003-2017, apoiado pelo CNPq e Ministério da Saúde, enumera diversas críticas à nova proposta, como a possibilidade de flexibilização da Estratégia Saúde da Família, colocando em risco a participação dos Agentes Comunitários de Saúde na composição das equipes multiprofissionais, atribui à equipe de saúde bucal um caráter opcional e estabelece um leque reducionista de ações e serviços como atribuições da atenção básica (UFBA, 2017).
Ou seja, em meio ao cenário de retração dos investimentos públicos em áreas sociais que ameaça a universalidade, a integralidade e a equidade do sistema público de saúde, a Estratégia Saúde da Família não escapa desse contexto, tendo seu futuro colocado em risco pelas possibilidades de desmonte impostas pela nova PNAB.
Em meio a esta conjuntura nacional, temos o contexto local na qual se desenvolve o presente trabalho. A cidade de Belém, capital do Estado do Pará, já foi citada pelo Ministério da Saúde como uma das mais exitosas experiências de implantação da Estratégia Saúde da Família no país (BRASIL, 2001).
Porém, de acordo com as estatísticas do Departamento de Atenção Básica – DAB do Ministério da Saúde, Belém é atualmente a pior capital do país em termos de cobertura populacional pela Estratégia Saúde da Família, com apenas 24% da população sendo atendida pela ESF (BRASIL, 2001).
Se levarmos em consideração que o indicador cobertura populacional não engloba aspectos mais amplos relacionados ao processo saúde-doença, como satisfação dos usuários, qualidade da assistência e resolubilidade dos serviços, torna-se válido sugerir que a problemática envolvendo a atenção primária à saúde em Belém é ainda mais complexa.
Esta pesquisa circunscreve-se ao bairro da Terra Firme como unidade social de referência, que expressa, portanto, laços e vínculos de identidade coletiva construídos nas relações sociais que engendram um território, em consonância com a delimitação do objeto de estudo. Vale destacar a importância histórica da formação socioespacial do bairro, cujas dinâmicas de luta e práticas dos agentes sociais ajudam a moldar memórias e identidades vinculadas ao território.
Ainda que se trate de uma pesquisa em escala local, restrita em certo ponto a um bairro da cidade de Belém, seus apontamentos, a partir de um exercício dialético, devem ser contextualizados a partir da conjuntura local, nacional e até mundial em que vivemos.
Pelo ordenamento administrativo houve a modificação do nome do bairro para Montese, como referência à batalha de Montese ocorrida durante a II Guerra Mundial, em 1945. Porém, os próprios usos e práticas dos moradores rechaçam esta denominação oficial, e vinculam sua identidade à denominação de bairro da Terra Firme, como referência ao próprio processo local de ocupação de áreas de terra mais altas em relação às áreas inundáveis próximas ao rio Tucunduba, a partir do final dos anos 1960.
O bairro da Terra Firme é um dos mais populosos de Belém, com aproximadamente 61.000 habitantes (IBGE, 2010). Em meio ao processo de implantação da ESF no município de Belém, o bairro da Terra Firme foi um dos pioneiros, em meados dos anos 2000, na adoção do modelo de atenção primária à saúde orientado pelo Programa Família Saudável, denominação utilizada em Belém para o Programa Saúde da Família à época, com a incorporação dos agentes comunitários aos serviços de saúde e atividades balizadas pela lógica territorial de organização dos serviços, como visitas domiciliares e cadastramento.
Portanto, o bairro da Terra Firme carrega consigo uma história viva de experiências, de lutas, de narrativas, de práticas e saberes, que se expressam em múltiplas relações no território, onde os agentes sociais criam seus vínculos, estabelecem suas identidades e vivenciam a realidade da vida cotidiana do bairro. Esta dinâmica de construção de vínculos identitários presente no bairro, assim como suas experiências históricas em relação à ESF, levou-nos a escolha do bairro da Terra Firme como locus desta pesquisa.
É neste contexto de inter-relações do território com o campo da saúde, tomando como foco central de análise a Estratégia Saúde da Família, que se delimita o objeto de pesquisa desta investigação. Trata-se, portanto, de investigar quais as compreensões do processo saúde-doença a partir da complexidade do território, ou seja, dos agentes sociais que vivenciam, ou vivenciaram, o processo histórico da ESF no bairro.
Esta tarefa central impõe-nos o desafio de identificar quais os agentes sociais que constroem, ou construíram vínculos com o território a partir da perspectiva da ESF sob os mais diversos ângulos e contextos sociais, assim como vivenciar a dinâmica do território pela ótica dos agentes sociais que vivenciam diariamente, a saber, os próprios moradores do bairro.
A perspectiva desta pesquisa, porém, busca valorizar a dimensão do território que vai além dos aspectos da geografia física e/ou aspectos do âmbito normativo-operacional. Busca-se ressaltar a dimensão do espaço vivido, tal qual proposto por Lefebvre (2000), como o território vivo, os territórios das relações sociais, políticas e culturais. O território do cotidiano, das simbologias, das crenças. A importância do lugar onde as pessoas constroem suas representações, seus laços e seus vínculos. É a partir dessa dimensão que se busca compreender e interpretar os riscos, os processos de adoecimento dos indivíduos e das coletividades, assim como as relações destes processos com os serviços de saúde.
Metodologia
Trata-se de um estudo do tipo relato de experiência, de cunho qualitativo com orientação metodológica de perspectiva cartográfica pós-estruturalista, aborda categorias, noções e conceitos como território, saúde e poder, dentro de uma lógica que reconhece a complexidade dos fenômenos correlatos, a processualidade histórica, cultural e política do objeto de estudo em questão, além de ressaltar o protagonismo dos sujeitos da pesquisa. Após um período de imersão no território, foi possível conhecer a partir de diálogos informais com agentes sociais inseridos no contexto histórico do bairro, os diferentes pontos de vista, como moradores, médico, ex-gestor, liderança afro-religiosa e lideranças populares.
Durante a etapa de imersão no território, foram realizadas visitas domiciliares orientadas por moradores do bairro. Optou-se, por utilizar a técnica informal de registro, partindo do diálogo e da observação para as impressões da pesquisa. Participaram deste momento, agentes sociais como ex-gestor municipal, médico, liderança afro-religiosa e liderança popular local. No total, participaram 12 pessoas, após as visitas de um total de 16 domicílios. Os dados da observação foram registrados em diário de campo. Uma breve análise documental nos fez resgatar documentos jurídicos e matérias jornalísticas que contextualizam determinado período histórico em relação ao objeto de estudo em questão.
Os dados obtidos foram categorizados em núcleos temáticos e discutidos a partir da perspectiva dos referenciais teóricos utilizados como embasamento científico desta pesquisa. Em relação ao diálogo estabelecido, foram aplicadas com os agentes sociais específicos questões norteadoras cuja temática está atrelada ao processo de identificação de cada agente social com o território e o contexto da pesquisa.
Resultados e discussão
Como forma de sistematizar o percurso desta investigação científica, propõe-se didaticamente a subdivisão deste trabalho nas seguintes categorias: O bairro da terra firme: trajetórias e representações e; avanços e retrocessos da ESF no bairro.
Tais categorias destinam-se em abordar os aspectos socioespaciais do bairro da Terra Firme enquanto locus de pesquisa e apresenta um breve histórico da Estratégia Saúde da Família no bairro.
O bairro da terra firme: trajetórias e representações
Segundo os dados do Censo Demográfico de 2010, o bairro da Terra Firme compreende aproximadamente um total de 62.000 habitantes, sendo 52% do sexo feminino. É o sétimo bairro mais populoso do município de Belém, juntamente com os bairros do Guamá, Condor, Jurunas, Canudos e parte da Cremação, integra o Distrito Administrativo do Guamá, o mais populoso de Belém, com aproximadamente 342.000 habitantes (IBGE, 2010).
O processo de ocupação do bairro da Terra Firme reflete uma dinâmica de produção do espaço urbano que expressa elementos de segregação socioespacial particulares do processo da formação metropolitana de Belém, onde é possível identificar uma grande área de aglomerados subnormais correspondente a uma faixa contígua de 65.797 domicílios (268.085 habitantes) cuja formação está ligada a ocupação de terrenos sujeitos a inundações periódicas, em área pouco propícia à urbanização formal.
A área da Terra Firme, um dos mais populosos bairros da cidade, é integrada a extensa faixa territorial de aglomerados subnormais que abrange o território do DAGUA e adjacências, conforme os procedimentos de administração e planejamento do governo municipal.
Além dos documentos e fontes provenientes dos órgãos oficiais, dados e informações provenientes de publicações acadêmicas que adotam como recorte espacial o bairro da Terra Firme, também foram analisados a partir da perspectiva de contribuição a uma compreensão mais ampla do território a ser estudado.
A definição censitária de aglomerado “subnormal” refere-se aos tipos de assentamentos irregulares presentes no país. O setor de aglomerado subnormal compreende:
Um conjunto constituído de, no mínimo, 51 [cinquenta e uma] unidades habitacionais carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia – pública ou particular – e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. (IBGE, 2010).
O bairro da Terra Firme, ou Montese, surge aproximadamente na década de 1940, a partir da ocupação inicial de uma estreita faixa de terra considerada “terra firme” que, dado o intenso fluxo populacional, não foi suficiente para suportar a densificação da área e, logo, as ocupações alcançaram as áreas adjacentes, denominadas como “baixadas” (SILVA, 2011).
Aqui a denominação “baixada” se refere às condições topográficas originais de certas frações da área urbana de Belém, correspondentes ao nível da planície de inundação, constantemente alagadas ou sujeitas a inundações sazonais e que chegavam a compor cerca de 40% do sítio urbano. Atualmente correspondem à área mais adensada do espaço urbano em Belém (TRINDADE JR, 1997).
Como repercussão do processo de ocupação do espaço regional amazônico após 1960, a ocupação intensiva das áreas de “baixada”, impulsionada pelo êxodo rural, é marcada pelo acelerado crescimento populacional e empobrecimento urbano que se intensificaram a partir das décadas de 1970 e 1980 gerando aglomeração no território (TRINDADE JR, 2016). Esta é uma linha de análise que destaca o processo de produção social do espaço urbano que influenciou a conformação territorial do bairro da Terra Firme.
O bairro da Terra Firme é marcado pela heterogeneidade do seu espaço geográfico. O corredor das principais vias do bairro concentra a maioria dos serviços e equipamentos urbanos, como escolas, igrejas, praça, postos de saúde, posto policial e comércio em geral. Tal corredor é composto pela Avenida Perimetral, Rua São Domingos e Avenida Celso Malcher. Tais vias são pavimentadas e drenadas, são corredores de fluxo do transporte coletivo e da coleta de lixo, e interligam os distintos pontos de acesso do bairro.
É nesse corredor que estão localizadas as três Unidades de Saúde da Família do bairro: USF Parque Amazônia I (Avenida Perimetral), USF Parque Amazônia II (Avenida Celso Malcher) e USF Terra Firme (Rua São Domingos). Paralela à Rua São Domingos, funciona a Unidade Municipal de Saúde da Terra Firme, localizada na Passagem São João e que segue o modelo tradicional de unidade básica de saúde.
Por outro lado, há uma vasta área no bairro que contrasta com a realidade encontrada nas principais vias de circulação. Grande parte destas áreas é delimitada pela bacia do rio Tucunduba e seus afluentes, como os canais das Avenidas Gentil Bittencourt, Cipriano Santos e da Rua dos Mundurucus. É caracterizada, em grande parte, por um intenso adensamento urbano característico do processo de ocupação desordenada marcado por graves problemas urbanísticos como habitações precárias, saneamento ambiental deficiente e serviços públicos escassos (coleta de lixo, iluminação e segurança, por exemplo), o que impacta diretamente as condições de vida e saúde dos habitantes locais.
Durante este trabalho de campo, pudemos constatar que muitas obras da macrodrenagem do Tucunduba ainda permanecem inacabadas, mesmo após dezoito anos de início das primeiras intervenções. Fato este que gera uma realidade contraditória, onde é possível constatar a presença de programas urbanísticos como conjuntos habitacionais, recuperação de áreas degradadas e pavimentação de vias urbanas, ao mesmo tempo em que se evidenciam extensas áreas marcadas pela ausência de saneamento ambiental, como áreas de alagamentos constantes e acúmulo de lixo em vias públicas, além de habitações precárias.
Outro fator constatado durante a imersão do pesquisador no território foi o impacto da violência urbana sobre o cotidiano do bairro. É necessário abordar a questão da violência para além dos estigmas e preconceitos, portanto, é fundamental compreender de que forma a violência interfere na dinâmica dos agentes sociais que vivem o território para, inclusive, compreender as relações que envolvem o processo saúde-doença. Durante o trabalho de campo não foi possível ter acesso a determinadas áreas do bairro nem obter registros de imagens, por recomendações dos próprios moradores.
A observação sistemática, por meio da imersão no território, e os registros no diário de campo, nos permitem auferir informações que muitas vezes não estão expostas em bancos de dados e/ou sistemas de informação. Nesta etapa da pesquisa, os dados coletados nos guiam no sentido de subsidiar as análises que buscam a interpretar as relações entre a formação socioespacial do bairro, as múltiplas dinâmicas que interagem no território e a determinação social do processo saúde-doença.
As informações e os dados encontrados nesta primeira etapa da pesquisa foram contextualizados com os elementos encontrados no percurso da pesquisa nas etapas seguintes. Ao adotar a perspectiva cartográfica e afirmar a primazia do caminho sobre as metas, as informações até então aqui descritas subsidiam os processos e devires que compõem uma realidade dinâmica e em constante mudança.
Portanto, além de descrever as características gerais do bairro observadas em trabalho de campo, fez-se necessário resgatar um breve histórico da ESF no bairro para melhor compreensão do contexto em que surge o programa, das relações com o território, das concepções de saúde que se expressam nos serviços e nas práticas, além de identificar os agentes sociais que constroem, vivenciam e interveem nos mais distintos contextos históricos.
Avanços e retrocessos da ESF no bairro
O início do Programa Família Saudável no bairro da Terra Firme, no início dos anos 2000, coincide com o começo das obras mais significativas do Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Tucunduba. Ou seja, enquanto o bairro passava por importantes intervenções urbanísticas em múltiplas escalas, vivenciava, ao mesmo tempo, uma experiência de reforma dos serviços de atenção primária, a qual assumia uma concepção de saúde que reconhece o território como estratégico no contexto das práticas de saúde.
Segundo os registros de entrevistas com moradores do bairro e outros atores sociais, constatamos que a Estratégia Saúde da Família, à época denominada Programa Família Saudável, foi implantada na Terra Firme com a construção da unidade de saúde situada na Passagem São João e a conformação das equipes multiprofissionais que atuavam sob a perspectiva de territorialização das ações em saúde, com delimitação de microáreas de atuação das equipes por intermédio dos agentes comunitários de saúde, além de visitas domiciliares, atividades de prevenção e promoção à saúde, dentre outras práticas pautadas pelos princípios da APS nos moldes da ESF.
A partir do processo de implantação da ESF que iniciou em 2000, surgiram, posteriormente, as Unidades de Saúde da Família Parque Amazônia I e II, no período entre 2001 e 2004, configurando um período de expansão da cobertura populacional pela ESF no bairro. A Unidade de Saúde localizada na Rua São Domingos funcionava como unidade de saúde tradicional, antes mesmo do início do Programa Família Saudável nas outras unidades, e assim permaneceu por alguns anos.
No bairro da Terra Firme coexistem 03 (três) Unidades de Saúde da Família: Parque Amazônia I, Parque Amazônia II e Terra Firme. Tais unidades funcionam aos moldes da Estratégia Saúde da Família, com equipes multiprofissionais compostas por médicos, profissionais de enfermagem e agentes comunitários de saúde, os quais são os principais responsáveis pelo vínculo com a comunidade por meio de cadastro de pacientes, acolhimento de demandas e visitas domiciliares.
A ESF prevê uma determinada população adscrita – ou área de cobertura – para cada equipe de Saúde da Família, a qual é responsável pelas ações de saúde a serem desenvolvidas sob tais áreas. O acesso à ESF ocorre por demanda espontânea também, mas prioritariamente, os agentes comunitários acolhem as demandas por meio das visitas domiciliares e facilitam o acesso da população ao cotidiano da unidade por meio de atividades educativas, marcação de consultas e identificação de riscos. O território é condição indispensável à formulação das políticas de saúde de acordo com os princípios adotados pela ESF, tendo a figura do agente comunitário de saúde como um elo fundamental entre os serviços e as comunidades.
Além das Unidades de Saúde da Família, existe no bairro uma unidade básica tradicional: A Unidade Básica de Saúde – UBS da Terra Firme, a qual não segue os moldes da Estratégia Saúde da Família. Este modelo de serviço de atenção primária à saúde ainda é um resquício do padrão que predominava antes da consolidação do Sistema Único de Saúde.
As UBS tradicionais funcionam também como porta de entrada ao sistema de saúde, mediante demanda espontânea e consultas agendadas para especialidades médicas, porém não há uma lógica territorial de organização das ações tampouco prevê a presença do agente comunitário de saúde como membro do quadro profissional na unidade. Suas ações seguem padrões focais como campanhas de vacinação e ações diversas de vigilância epidemiológica. Possui um serviço específico de atendimento ao paciente com tuberculose assim como atendimento psicossocial e serviço odontológico.
Durante o trabalho de campo, realizaram-se os registros fotográficos das unidades de saúde em seus aspectos de estrutura física externa, visto que não obtive autorização da gestão municipal para o registro das dependências internas de tais unidades.
Portanto, adotando o bairro da Terra Firme como locus de pesquisa, observamos que não há um único modelo de atenção primária à saúde que coordene o planejamento e as ações em saúde no bairro, visto que há uma sobreposição de modelos, ou seja, convivem a ESF e o modelo tradicional de Unidade Básica de Saúde no mesmo território.
Foram consultadas informações no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde – CNES, disponibilizadas online para livre acesso, a respeito das equipes e informações gerais de cada unidade de saúde. Os dados são escassos, imprecisos e insuficientes para uma análise mais detalhada quanto à caracterização dos serviços de saúde em questão.
Segundo dados do CNES, na Unidade Básica de Saúde da Terra Firme (modelo tradicional) há 03 médicos pediatras, 03 médicos clínicos e 02 ginecologistas/obstetras, totalizando 08 médicos vinculados a esta unidade, além de 03 cirurgiões-dentistas e equipe de enfermagem com técnicos e enfermeiros. A Unidade funciona como polo de referência para tratamento da Tuberculose no âmbito da atenção primária, oferece serviço de apoio psicossocial com psicólogos clínicos no atendimento e abriga um Núcleo de Apoio à Saúde da Família – NASF, composto por nutricionistas, fisioterapeutas, terapeuta ocupacional e fonoaudiólogo. O NASF funciona como um apoio multiprofissional à ESF, dispondo de profissionais que não compõem a equipe mínima de funcionamento da estratégia.
De acordo com o banco de dados do CNES, a Unidade de Saúde da Família da Terra Firme desenvolve atividades características de um serviço de atenção primária, como consultas, pré-natal, imunizações e coordenação de programas específicos. As mesmas características foram encontradas na descrição da USF Parque Amazônia II.
Na USF Terra Firme, há o cadastro de 03 enfermeiras, 03 técnicos de enfermagem, 04 profissionais médicos, 35 agentes comunitários de saúde e 06 agentes de saúde pública. O CNES não disponibiliza informações sobre cobertura populacional e distribuição das equipes. Porém, durante as visitas aos serviços realizada no decorrer do trabalho de campo, foi possível inferir junto a alguns profissionais que, funcionam na unidade 04 equipes de saúde da família, com uma média de 08 a 10 Agentes Comunitários de Saúde por equipe e cada ACS é responsável por uma área de 300 a 400 pessoas, totalizando uma cobertura populacional de aproximadamente 15.000 pessoas.
No período de expansão e consolidação da Estratégia Saúde da Família no bairro, há relatos de experiências de compartilhamento de práticas, de troca de saberes e diálogos entre o terreiro e as unidades de saúde. Algo que, no contexto de retração e estagnação da ESF no bairro, permeado por relações de poder, não se faz presente no atual contexto desta pesquisa, conforme registro em entrevista.
Sobre o processo de trabalho na ESF, o ex-médico do bairro, Vitor Nina, descreve um território adoecido, seja no âmbito institucional, seja no âmbito das equipes ou no âmbito do cuidado na comunidade. Os relatos descrevem um período de experiência no contexto de estagnação da Estratégia Saúde da Família no bairro.
O médico relata práticas de coerção, de punição, de cerceamento, como práticas de biopoder interpenetradas pela lógica institucional. O adoecimento e o aprisionamento do potencial criativo dos trabalhadores são descritos como consequências desse processo. A hipermedicalização da vida social e a perda de autonomia sobre o próprio corpo, como elementos que se evidenciam na relação dos usuários com as equipes de saúde, são descritas no contexto de uma “estratégia geral de controle dos corpos” (FOUCAULT, 2008).
A complexidade do processo saúde-doença e a multiplicidade de significados, relações e simbologias, que se expressam no território são um desafio em diversas dimensões ao campo da Saúde Coletiva, assim como se torna um desafio às políticas públicas de saúde, uma vez que, a partir dos referenciais adotados nesta pesquisa, urge a necessidade de inovações metodológicas e epistemológicas no sentido de compreender o território como parte indissociável da determinação social do processo saúde-doença.
A noção de território como mera divisão administrativa ou, como no contexto da Estratégia Saúde da Família, de delimitação de microáreas e/ou adscrição de usuários, é insuficiente para a uma abordagem do processo saúde-doença que pretenda analisar modos de vida, processos de trabalho, práticas e saberes nas sociedades contemporâneas. Um desafio à consolidação do SUS como esfera democrática.
As abordagens do território no campo da saúde, particularmente em relação à ESF no contexto urbano, devem se orientar numa perspectiva do direito à cidade, da produção social do espaço, reconhecendo agentes sociais que constroem práticas e saberes cotidianamente, que reconhecem seus usos e memórias do lugar, no sentido de resgate dos princípios da Reforma Sanitária brasileira e de apontamento para uma perspectiva estratégica de seguimento dos pilares de uma democracia biopolítica em todas as esferas da vida social.
É necessário des-hospitalizar as práticas de saúde, des-medicalizar os saberes hegemonizados pelo paradigma biomédico, re-significar o protagonismo dos sujeitos e resgatar a autonomia dos corpos. Não há como dissociar o campo da saúde de outras dimensões da vida social sem compreender melhor o papel de cada um no cenário local.
A afirmação do direito à vida e dos direitos humanos, passa pela superação da banalização da morte e banalização nas relações sociais e do sofrimento humano.
Estas considerações são um apelo às inovações metodológicas no campo da Saúde Coletiva, às análises críticas nas formulações teóricas e às transformações das práticas sociais, dentre elas as práticas de saúde. A complexidade do processo saúde-doença exige transformações paradigmáticas, epistemológicas e técnicas. O caso do bairro da Terra Firme, analisado nesta pesquisa pela ótica da ESF, leva-nos a compreender a centralidade do território no processo de formulação de políticas de saúde, revelando potencialidades e saberes locais, muitas vezes ignorados e até mesmo rechaçado pelo poder normativo dos agentes institucionais, uma vez que, a partir dos referenciais adotados nesta pesquisa, surge a necessidade de inovações metodológicas e epistemológicas no sentido de compreender o território como parte indissociável da determinação social do processo saúde-doença.
A noção de território como mera divisão administrativa ou, como no contexto da Estratégia Saúde da Família, de delimitação de microáreas e/ou adscrição de usuários, é insuficiente para a uma abordagem do processo saúde-doença que pretenda analisar modos de vida, processos de trabalho, práticas e saberes nas sociedades contemporâneas. Um desafio à consolidação do SUS como esfera democrática.
As abordagens do território no campo da saúde, particularmente em relação à ESF no contexto urbano, devem se orientar numa perspectiva do direito à cidade, da produção social do espaço, reconhecendo agentes sociais que constroem práticas e saberes cotidianamente, que reconhecem seus usos e memórias do lugar, no sentido de resgate dos princípios da Reforma Sanitária brasileira e de apontamento para uma perspectiva estratégica de soerguimento dos pilares de uma democracia biopolítica em todas as esferas da vida social.
Considerações Finais
A compreensão do processo saúde-doença a partir da abordagem do território exige esforços teórico e metodológico que nos permitam compreender as dinâmicas envolvendo território e saúde para além de uma perspectiva estritamente funcionalista, de cunho administrativo-burocrático e superficialmente operacional. Trata-se de compreender o território a partir de seus aspectos relacionais, de suas simbologias e usos, além de compreendê-lo como dimensão de práticas e saberes que podem re-significar as políticas de saúde e a dinâmica de organização dos serviços a partir de uma perspectiva local.
Esta abordagem através de relato de experiência visa mostrar a realidade local, a fim de servir de parâmetro para outras realidades no território amazônico.
Referências
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IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br>. Acesso em: 16 abr. 2018
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TRINDADE JR., S-C, C. Produção do espaço e uso do solo urbano em Belém. Belém, PA: NAEA, 1997.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Observatório de Análise Política em Saúde & Centro de Documentação Virtual. Boletim Informativo. Ano 03, Edição 13, set-out, 2017.
¹Mestre em Planejamento do Desenvolvimento- NAEA da Universidade Federal do Pará.
2Doutoranda em Biologia Parasitária da Amazônia. Universidade do Estado do Pará.
3Acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Pará.
4Mestre em Saúde na Amazônia da Universidade Federal do Pará.
5Mestre em Enfermagem pela Universidade Federal do Pará.
6Mestre em Gestão em Saúde Fundação Santa Casa de Misericórdia do estado do Pará.
7Especialista em Psicomotricidade pela Universidade do Estado do Pará.
8Enfermeira graduada pela Universidade do Estado Pará.
9Enfermeira graduada pela Faculdade Paraense de Ensino.
10Enfermeiro pela Faculdade Metropolitana da Amazônia.