O SIGILO BANCÁRIO PARA A RECEITA FEDERAL E AS SUAS CONSEQUÊNCIAS NO DIREITO PENAL: A UTILIZAÇÃO DA PROVA EMPRESTADA PROVINDA DA RECEITA FEDERAL E AS SUAS IMPLICAÇÕES NA PERSECUÇÃO PENAL.

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10139340


Vinícius Machado Lucas Gomes


Introdução

Os desafios do mundo moderno trouxeram consigo a necessidade de proteção de direitos cada vez mais difusos. Os exemplos mais comuns são os crimes ambientais, o crime de uso de drogas, a direção embriagada e, por fim, os crimes tributários. Estes crimes são condutas, que na sua individualidade não produzem qualquer lesividade para o bem jurídico, mas coíbem uma situação de perigo concreto ou mesmo abstrato para o bem jurídico, que se generalizada, possuiria o condão para lesar.

Os crimes elencados acima foram classificados por Kuhlen, Umweltstrfrecht como “delitos cumulativos” (Kumulationsdelikte) porque, para causarem qualquer lesão ao bem jurídico, é necessário que a conduta, por eles tipificada, seja generalizada por uma grande porção da população.

Por exemplo, se apenas uma pessoa poluir, jogando lixo em um determinado rio, ela não conseguirá afetar o ecossistema deste rio, mas, se toda uma cidade fizer o mesmo, todo o ecossistema que depende deste rio sofrerá.

As condutas tipificadas pelos “Delitos Cumulativos” são também condutas ilícitas administrativamente; desta forma, uma única conduta pode ferir a lei penal e administrativa simultaneamente. A semelhança da estrutura desses dois sistemas de sanção compeliu os juristas a elaborar um critério de diferenciação para o ilícito penal e administrativo que vá além da norma que as estabeleceram: norma penal para ilícitos penais e normas administrativas para sanções administrativas. A doutrina mais atual define como critério de diferenciação para os dois sistemas a lesividade da conduta. Como expõe Silva Sanchez, Jesús-María citando Welzel:

Como resumo desse ponto de vista, pode-se citar Welzel, quando observa: “A partir do âmbito nuclear do criminal deflui uma linha contínua de injusto material que certamente vai diminuindo, mas que nunca chega a desaparecer por completo, e que alcança até os mais distantes ilícitos de bagatela, e inclusive as informações as infrações administrativas (Ordnungswidrigkeiten) estão a (…) ela vinculados”

A “administralização” das condutas penais teve reflexo na persecução penal, isto porque os órgãos de fiscalização administrativa como IBAMA, Receita Federal e COAF acabam por investigar os mesmos fatos que seriam objeto de inquérito policial.

O dilema dessas investigações administrativas, para fatos que possuem reflexos penais, é a ausência do arcabouço de direitos e garantias concedidas ao investigado na esfera penal, aos quais não existem para esses órgãos administrativos. Logo, a investigação de ilícitos administrativos pode servir de via menos protecionista para a investigação criminal.

Especificamente, a investigação administrativa encabeçada pela Receita Federal, em casos de sonegação de imposto possui o agravante da Lei Complementar 105 de 2001, que afasta o direito constitucional do sigilo bancário, faceta do direito à privacidade. Desta forma o órgão possui acesso direto aos dados bancários dos contribuintes sem autorização judicial, que seria necessária para a Polícia Federal, a fim de obter a mesma informação.

Portanto, por meio do instituto da prova emprestada, os procedimentos administrativos podem, paulatinamente, causar uma redução prática das garantias do réu na persecução penal.

O sigilo Bancário para a receita federal e a lei complementar 105 de 2001

A lei complementar 105 de 2001 estabeleceu em seu artigo 6º a autorização da Receita federal acessar diretamente, sem qualquer reserva de jurisdição, os dados bancários do contribuinte. O artigo exige apenas que a autoridade administrativa tenha instaurado contra o contribuinte o processo administrativo, e que as informações fiquem conservadas em sigilo. Como se demonstra a seguir

LC 105 Art. 6o As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente. (Regulamento)

Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

A autorização concedida pela Lei à Receita Federal foi objeto de várias Ações Diretas de Inconstitucionalidade: ADI nº: 2.390; 2.386; 2.397 e 2.859, todas julgadas simultaneamente, através das quais foram dados limites para o poder acessar os dados bancários dos contribuintes.

Os limites estabelecidos na ação direta de constitucionalidade 2.390 para a requisição das informações bancárias.

Limites Formais para a requisição dos dados Bancários.

O primeiro limite para o acesso da Receita Federal aos dados bancários dos cidadãos é a instauração do processo administrativo, com toda a solenidade que tal instauração requer. A portaria que instaura o processo administrativo é um exemplo de ato administrativo e, como os demais, possuem os requisitos de Sujeito, Objeto, Forma, Finalidade, e Motivo, desta forma a receita federal estaria limitada porque deve instaurar um processo que respeite tais requisitos.

Além do requisito comum a todo ato administrativo o STF, interpretando o artigo 6º da Lei Complementar 105 de 2001 conforme a constituição, estabeleceu que as normas reguladoras prevejam os requisitos abaixo para a obtenção dos dados bancários.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.390 DISTRITO FEDERAL

conferindo interpretação conforme ao art. 6o da Lei Complementar no 105/2001, para estabelecer que a obtenção de informações nele prevista depende de processo administrativo devidamente regulamentado por cada ente da federação, em que se assegure, tal como se dá com a União, por força da Lei nº 9.784/99 e do Decreto nº 3.724/2001, no mínimo as seguintes garantias:

a) notificação do contribuinte quanto à instauração do processo e a todos os demais atos;

b) sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico do requerente;

c) existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso,

d) estabelecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios

A manutenção interna do Sigilo.

A Receita Federal ter acesso direto às informações bancárias sem a necessidade de autorização judicial para muitos constituiu como uma violação do direito do sigilo bancário, que decorre do direito constitucional ao sigilo. Posto isto o Partido Social Liberal impetrou a ação de inconstitucionalidade 2.390. Entretanto a maioria do Supremo Tribunal Federal julga improcedente o pedido.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.390 DISTRITO FEDERAL

Ministro Dias Toffoli (página 23):

(..) uma vez que não [se] está autorizado por lei a dar a público, mas apenas a transferir para um outro órgão da administração, para o cumprimento das finalidades da Administração Pública, aqueles dados.

Ministro Luís Roberto Barroso (página 87):

A requisição e o acesso direto pelas autoridades fiscais de informações bancárias e financeiras dos contribuintes é constitucional, desde que necessário para apuração do tributo, controlado o acesso e a utilização de tais dados no âmbito interno do Fisco e mantido o sigilo fiscal em relação a pessoas estranhas à Administração Tributária.

Ministro Teori Zavascki (página 98):

Quanto à segurança dessas informações, o que a Lei prevê não é quebra de sigilo. Já foi acentuado aqui também: a Lei, expressamente, autoriza, no art. 6º, às autoridades e aos agentes fiscais tributários da União, dos Estados e Municípios, examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras. O que se afirma na Lei é que o Fisco tem autorização para examinar os dados bancários, não para quebrar sigilo. O sigilo não é quebrado, pelo contrário. Aqui, o que a Lei disciplina, entre seus vários artigos, é um sistema para que, nesse exame, não se quebre o sigilo.

Ministra Rosa Weber (página 105):

A se entender que a hipótese regrada pela Lei Complementar nº 105 implica quebra de sigilo bancário, necessariamente estará configurada hipótese de reserva de jurisdição. Só que a minha convicção não se fez nessa linha; a minha convicção é a de que há, na verdade, transferência de sigilo bancário, e não quebra de sigilo bancário nesse acesso do Fisco às informações bancárias.

Ministra Carmem Lúcia (página 111):

E, naquelas ocasiões, naquele julgamento, especificamente, eu afirmava não ver contrariedade, Presidente, dessa transferência, porque considerei que não havia quebra de sigilo. Pelo contrário, a minha leitura era no sentido de que se garantia o sigilo mediante uma série de normas, que eram necessárias para que o contribuinte tivesse segurança, mas que o interesse público fosse resguardado e as estruturas tanto da Receita Federal quanto dos Estados também tivessem os acessos necessários para a tomada das decisões e a prática dos atos necessários para evitar qualquer tipo de desbordamento por parte do contribuinte.

Ministro Ricardo Lewandowski (página 157):

Acabei convencido também de que não há, no caso sob exame, quebra de sigilo, mas apenas transferência de sigilo para finalidades de natureza eminentemente fiscal. Registro, ademais, que a legislação aplicável garante que a confidencialidade dos dados seja preservada, sem que possa ser repassada a terceiros, estranhos ao próprio Estado, sob pena de responsabilização dos agentes que eventualmente pratiquem essa gravíssima infração.

A maioria do STF, exposta acima, defende que o artigo 6º da Lei Complementar 105 de 2001 não se trata de uma quebra de Sigilo Bancário, mas sim da manutenção de um sigilo que é compartilhado de um órgão da administração para outro. A posição adotada pelo Tribunal se fundamenta principalmente no artigo 145 parágrafo 1º da Constituição Federal no qual há uma autorização da investigação administrativa por meio da Receita Federal desde que sejam respeitados os limites legais e os direitos individuais, como exposto abaixo:

Constituição Federal:

Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Portanto, para o STF, o dever de sigilo interno dos Dados Bancários do contribuinte serve de limitação da autorização legal do artigo 6º da LC 105/01 de acesso aos mesmos dados porque transfere para o órgão essa responsabilidade sob o risco de sanção penal estabelecido na mesma Lei em seu artigo 10º. O Sigilo adota, assim, o papel de condição de constitucionalidade da lei, ou seja, se a Receita Federal não possuísse a obrigação de Sigilo a lei seria manifestamente inconstitucional.

A obrigatoriedade da representação ao Ministério Público em casos de constatação de ilícito penal.

Os artigos, infracitados, expõem um procedimento administrativo, nele o auditor, no exercício de suas funções, que depare com fatos que possam configurar crime contra a ordem tributária ou contra a previdência social se vê obrigado a montar um documento de representação. Esta representação será fiscalizada por um funcionário da Receita Federal denominado Delegado ou Inspetor Chefe, para então ser encaminhado para o Ministério público.

PORTARIA RFB Nº 2439, DE 21 DE DEZEMBRO DE 2010

Art. 1º O Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil (AFRFB) deverá formalizar representação fiscal para fins penais perante o Delegado ou Inspetor-Chefe da Receita Federal do Brasil responsável pelo controle do processo administrativo fiscal sempre que, no exercício de suas atribuições, identificar atos ou fatos que, em tese, configurem crime contra a ordem tributária ou contra a Previdência Social.

Art. 2º O servidor da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) que constatar fatos caracterizadores do crime a que se refere o caput do art. 1º, após a constituição do crédito tributário, formalizará representação fiscal para fins penais perante o Delegado ou Inspetor Chefe da Receita Federal do Brasil da unidade de controle do processo administrativo fiscal, devendo protocolizá-la no prazo máximo de 10 (dez) dias contados da data em que tiver conhecimento do fato.

Art. 8º O servidor que descumprir o dever de representar, nos termos estabelecidos nesta Portaria, fica sujeito às sanções disciplinares previstas na Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, sem prejuízo do disposto na legislação criminal.

A Portaria da Receita Federal, exposta acima, determina o dever de seu Auditor em representar ao Ministério Público as circunstâncias que configurem não só ilícito administrativo mas, também, as que se constate que possam caracterizar crimes. O auditor que não corresponder com essa obrigação poderá responder administrativamente nas sanções previstas na Lei 8112/90.

Dessa forma a representação ao Ministério Público não é uma mera faculdade do Auditor Federal, mas uma obrigação funcional. Logo caso um Auditor Federal, de posse dos dados bancários de um contribuinte, ateste a ocorrência de um crime ele será obrigado a representar ao Ministério Público informando os dados e os motivos de sua representação.

A requisição de informações por parte do Ministério Público.

O Ministério Público possui o direito de requisitar as informações que considerar, para o exercício de sua função, relevante à Receita Federal. Desta forma não se aplica o Sigilo Fiscal perante o Ministério Público, pois se ele pode livremente requerer as informações não há o que se falar de Sigilo.

Lei Complementar 75 de 1993

Art. 8º Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência:

II – requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta;

Por conseguinte a Receita Federal possui a obrigação de fornecer as informações requeridas pelo Ministério Público, obrigação prevista tanto na Lei Complementar 75, que estabelece as atribuições e direitos do Ministério Público da União, quanto no Manual do Sigilo Fiscal da Secretaria da Receita Federal, estabelecido pela Portaria RFB Nº 3.541.

A RFB deve fornecer aos órgãos do Ministério Público da União (MPU) informações protegidas por sigilo fiscal quando houver requisição.
(…)
Em suma, foi reconhecido ao MPU, composto pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Militar (MPM) e Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT), o poder de requisitar informações protegidas por sigilo fiscal à RFB. Sobre requisição do Ministério Público Militar, remeta-se à leitura da Nota RFB/Asesp nº 14, de 6 de junho de 2011. (Brasil. Secretaria da Receita Federal do Brasil Manual do Sigilo Fiscal da Secretaria da Receita Federal do Brasil / [coordenação: Aylton Dutra Leal. – 1ª Ed. – Brasília: Secretaria da Receita Federal do Brasil, 2011. páginas 88 e 89)

Portanto o Ministério Público possui ampla acesso aos dados bancários, seja pela obrigatoriedade da Receita Federal informar ou pelo seu poder requisitar.

Garantia jurisdicional da privacidade relacionada com o sigilo bancário

O Direito Constitucional ao Sigilo dos Dados bancários é decorrência de dois diretos positivados na Constituição Federal, privacidade e inviolabilidade de dados, contidos no artigo 5º incisos X e XII respectivamente. No inciso X a Constituição salvaguarda a privacidade em lato sensu, enquanto no inciso XII protege os dados privados do cidadão. Dessa forma, considerando-se as duas normas, é inafastável a cobertura constitucional do Direito ao Sigilo Bancário, uma vez que este é um aspecto da vida privada do cidadão que é armazenando na forma de dados, encaixando, assim, na proteção de ambas as normas.

Constituição Federal

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

Estabelecida a constitucionalidade do direito ao Sigilo Bancário é necessário entender a sua classificação e motivação como direito fundamental. O direito ao Sigilo Bancário faz parte dos direitos tidos como de primeira geração ou direitos de liberdade. Essa categoria de direitos se caracterizam pela imposição de um não-agir ao Estado, como exemplo o direito à manifestação, ao qual demanda que o Estado não interfira na liberdade da pessoa de expressar uma opinião. O Sigilo Bancário como um desses direitos também serve como um impedimento ou redução do poder do Estado. É, portanto, um direito oponível contra o Estado, sem o qual a força Estatal poderia adentrar nas facetas mais íntimas de nossa vida. Sobre essa categoria de direitos fundamentais, melhor explica Paulo Bonavides:

Os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade Têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.

Entram na categoria de status negativus da classificação de Jellinek e fazem também ressaltar na ordem dos valores políticos a nítida separação entre a Sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter antiestatal dos direitos da liberdade, conforme tem sido professado como tanto desvelo teórico pelas correntes do pensamento liberal do teor clássico. (BONAVIDES Paulo; Curso de Direito Constitucional 13a Edição 2003; páginas 563, 564).

O instituto da Prova Emprestada

O instituto da prova emprestada se define pela utilização de elementos de prova de um processo em outro. Essa transferência de elementos de prova deve sempre respeitar o contraditório, ou seja, uma vez incorporado ao processo é necessário que se abra a possibilidade da parte de se manifestar sobre o conteúdo informativo da prova bem, como os seus métodos de produção. Essa é a inteligência do artigo 372 do Código de processo Civil que possui aplicação no processo penal por força do artigo 3º do Código de Processo Penal.

Código de Processo Civil

Art. 372. O juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório.

Apesar de o artigo garantir a preservação do contraditório, na prova emprestada este ficará inevitavelmente prejudicado, porque a parte fica impossibilitada de participar na produção da prova, envolvendo-se no debate de sua proporcionalidade, razoabilidade ou mesmo quanto a sua metodologia. Desta forma, a utilização do instituto da prova emprestada deve ser utilizado com cautela, pois é necessário conferir à defesa a oportunidade de se manifestar tanto sobre o conteúdo quanto sobre a forma do procedimento. Sobre o temo ensina Aury Lopes Junior:

Em outras palavras, o diálogo que se estabelece com a prova é vinculado ao fato que se quer apurar ou negar. Logo, diferentes diálogos são estabelecidos com uma mesma prova quando se trata de apurar diferentes fatos. É uma relação semiótica completamente diversa. A prova emprestada desconsidera isso e causa sérios prejuízos para todos no processo penal. (Lopes Junior, Aury. Direito Processual Penal / Aury Lopes Junior – 14ª Ed. – São Paulo: Saraiva; 2017 página 384)

A lição de Aury lopes se aplica à situação em análise. A prova produzida em um procedimento administrativo de fiscalização tributária é um contexto muito distinto de um procedimento de investigação criminal. O procedimento administrativo possui menores garantias ao réu por causa de sua natureza e da sua consequência exclusivamente monetária, enquanto o processo penal possui consequências na liberdade da pessoa e, por causa disso, o acusado possui mais proteção.

Portanto, focando a questão no tema das informações bancárias dos contribuintes, é imperioso refletir quanto ao compartilhamento destes dados por meio do instituto da prova emprestada. A Receita Federal, uma vez instaurado o processo administrativo de verificação do débito tributário, vê-se obrigada a representar ao Ministério Público sempre que atestar a ocorrência de um crime, e esse poderá se valer das informações e provas obtidas do processo administrativo para instruir a sua denúncia criminal.

Posição minoritária na ADI 2.390.

Os votos contrários à constitucionalidade da lei complementar 105 se fundamentaram em dois principais pontos.

O primeiro argumento foca no dever funcional do judiciário, considerando que é ato privativo do juiz resolver a colisão de dois princípios constitucionais, dessa forma, o magistrado não pode delegar essa função para órgãos administrativos. De outra forma violaria o princípio da separação dos poderes. Nesse sentido se manifesta o ministro Celso de Mello:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.390 DISTRITO FEDERAL

Ministro Celso de Mello (página 138)

Na realidade, a reserva de jurisdição traduz inestimável garantia institucional de proteção a direitos, liberdades e prerrogativas fundamentais das pessoas em geral, cuja integridade merece tutela especial do Estado, concretizada mediante respeito à cláusula constitucional da proteção judicial efetiva.

Em havendo situação de colidência entre princípios impregnados de qualificação constitucional, como pode ocorrer entre as prerrogativas institucionais da Administração Tributária, de um lado, e os direitos e garantias básicas dos contribuintes, de outro, a resolução desse estado de antagonismo deverá constituir objeto de um pertinente juízo de ponderação, a ser exercido não por um dos sujeitos parciais da relação litigiosa, que certamente atuaria “pro domo sua”, mas, isso sim, por um terceiro juridicamente desinteressado, como os órgãos integrantes do Poder Judiciário do Estado.

O segundo argumento se fundamenta na própria significância do termo sigilo. Para essa posição há uma redução da proteção constitucional toda vez que a informação sob sigilo é conhecida por outra pessoa. Portanto a lei complementa105 seria uma norma tendente a abolir a proteção constitucional do sigilo bancário.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.390 DISTRITO FEDERAL

Ministro Marco Aurélio (página 129)

Apontou Sua Excelência ocorrer uma simples transferência de dados, e não quebra do sigilo. Como leigo, faria um paralelo: considerado segredo passado a outrem, continua sendo segredo? Não, Presidente, deixa de ser segredo. Fez referência à circunstância de o precedente no Recurso Extraordinário nº 389.808/PR ter envolvido pessoa jurídica, e não pessoa natural. Mas indaga-se: o Texto Constitucional, protetor dessa liberdade fundamental, que é o direito à preservação da intimidade, distingue? Não distingue. E, onde o legislador não distinguiu, não cabe ao intérprete fazê-lo. Acrescentou mais: que o contribuinte é instado a apresentar os dados. Para quê, se a Receita tem um banco com esses dados, ante as comunicações periódicas dos estabelecimentos bancários? Para alcançar-se a forma pela forma? Que vingue a primazia da realidade.

A conclusão pela ilegalidade das provas obtidas por meio da lei complementar 105

A análise de todos os pontos expostos anteriormente torna indisputável a conclusão de que a utilização dos dados bancários dos contribuintes obtidos em processo administrativo para fins penais configura uma prova ilícita. O artigo 157 do Código de Processo Penal determina que são ilícitas as provas que são obtidas em violação das normas da constituição ou normas legais.

Como argumentado anteriormente, a instauração de um processo administrativo necessita de motivação, requisito inerente a todos os atos administrativos. Essa motivação acaba, necessariamente, passando pela ponderação entre o direito do Sigilo Bancário do contribuinte e o interesse coletivo de coletar impostos. Essa ponderação já é complexa quando se trata apenas do dever de coletar impostos, e é ainda mais crucial quando a consequência pode ser uma ação penal que possui a chance de desaguar em uma restrição de liberdade. A análise de proporcionalidade entre dois direitos é atribuição intrínseca ao Judiciário.

A atividade de estimar qual princípio, norma, valor ou virtude deve prevalecer é a essência da atividade judicial. Principalmente quando as consequências podem ser graves como restrição da liberdade, a função do judiciário de atuar como um freio dos abusos das entidades estatais é indelegável, porque seria a violação do princípio da separação dos poderes.

Permitir que a administração, na figura da Receita Federal, decida por si mesma como lidar com o direito de seus cidadãos é afastar-se de toda a doutrina constitucional dos checks and balances que impõe ao Judiciário a função de fiscalizar o poder do Executivo.

Outro ponto que torna a prova obtida pela Receita Federal inconstitucional é o fato de que o Sigilo Bancário deve ser oponível contra o Estado e não contra os cidadãos. A interpretação da maioria dos Ministros, data vênia, de que não há quebra de sigilo, porque este é mantido internamente na Administração Tributária é errônea porque o Sigilo deve proteger o cidadão do Estado, ou seja, da própria Administração Tributária. É ainda mais claramente inconstitucional quando observamos o arcabouço infraconstitucional, exposto anteriormente, que obriga a Receita Federal a compartilhar as informações por ela obtidas com os outros entes do Estado.

O “sigilo” é reduzido cada vez que outra pessoa ou autoridade adquire acesso aos dados os quais o sigilo protege. Se o acesso direto da Receita Federal aos dados bancários dos contribuintes por si só já reduz o direito fundamental da privacidade dos dados bancários, a representação das informações por ela obtida ao Ministério Público acaba por reduzir à extinção de tal direito. Isto porque não há privacidade, segredo, ou sigilo quando todos podem ter acesso ao que está sendo resguardado. No mínimo pode-se interpretar a situação como uma medida tendente a abolir o direito fundamental à privacidade, situação vedada pelo artigo 60 § 4º da Constituição Federal o qual estabelece os direitos fundamentais como cláusulas pétreas.

Mais um ponto que deve ser considerado é a disparidade de poder dos órgãos investigativos Receita Federal e Polícia Federal. A Polícia Federal para acessar as mesmas informações, necessita de autorização judicial, enquanto a Receita Federal acessa diretamente os dados bancários dos contribuintes. Desta forma, permitir que a Receita Federal compartilhe as suas informações é contornar a fiscalização do judiciário à qual a Polícia Federal seria submetida.

A disparidade mencionada anteriormente é o motivo pelo qual o Ministério Público, de posse das informações bancárias, não pode requerer a quebra do Sigilo Bancário para fins Penais. Tal medida seria uma tentativa de convalidação da prova obtida ilicitamente, já que seria uma prova obtida sem o requisito legal da autorização judicial, e fornecê-la, a posteriori, seria subverter a ordem da proteção legal. A ilicitude da convalidação dessa prova se dá pela ausência de imparcialidade; se fosse permitido tal correção, não haveria circunstância em que o judiciário negaria a autorização. A úncia exceção cabível para a utilização da prova seria o caso de fonte independente da prova, pois a fonte independente resolveria a questão da imparcialidade já que a outra fonte não possui o conhecimento prévio da investigação da Receita Federal.

Portanto, a utilização dos dados bancários do contribuinte. Para fins penais deve ser considerado como utilização de prova ilícita, resultando no desentranhamento deste elemento de prova do processo junto com todas as provas decorrentes desta informação, isto por força do artigo 157 do Código de Processo Penal, devido a todos os fatos e fundamentos acima expostos.

Bibliografia

  • AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.390 DISTRITO FEDERAL
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  • Silva Sanchez, Jesús-María – A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal na sociedade pós-industrial / Jesús-María Silva Sanchez; tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha – 3ª edição rev. E atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013