O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS E DIREITO À SAÚDE: ESTRATÉGIAS PARA GARANTIR O ACESSO UNIVERSAL A SERVIÇOS DE SAÚDE DE QUALIDADE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar1020240912933


Julianne do Nascimento Rocha¹


RESUMO

O artigo explora a relação entre o reconhecimento dos direitos humanos e o direito à saúde, com foco nas estratégias para garantir o acesso universal a serviços de saúde de qualidade. Utilizando as teorias de Charles Taylor sobre reconhecimento e identidade, analisa como a negação do acesso à saúde agrava desigualdades e marginaliza populações. Também aborda o conceito de necropolítica de Achille Mbembe, que destaca a distribuição desigual de cuidados médicos como forma de controle de vida e morte. Finalmente, o artigo sugere a implementação de políticas públicas baseadas na dignidade humana e na equidade.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Direito à Saúde; Reconhecimento; Necropolítica; Dignidade Humana; Equidade; Políticas Públicas.

ABSTRACT

This article explores the relationship between human rights recognition and the right to health, focusing on strategies to ensure universal access to quality healthcare services. Drawing on Charles Taylor’s theories of recognition and identity, it examines how the denial of healthcare access exacerbates inequalities and marginalizes populations. It also discusses Achille Mbembe’s concept of necropolitics, highlighting the unequal distribution of healthcare as a form of life and death control. Finally, the article suggests the implementation of public policies based on human dignity and equity.

Keywords: Human Rights; Right to Health; Recognition; Necropolitics; Human Dignity; Equity; Public Policies.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

“O reconhecimento igual não é somente a modalidade apropriada a uma sociedade democrática saudável. Sua recusa pode, de acordo com uma disseminada visão moderna, como indiquei no começo, infligir danos àqueles a quem é negado” (TAYLOR, 2000, p. 249).

Taylor dá ênfase à importância fundamental do reconhecimento dos direitos humanos, incluindo o direito à saúde, como base para uma sociedade justa e inclusiva. De tal forma, negar este acesso igualitário aos serviços de saúde de qualidade não viola apenas princípios éticos e legais dos direitos humanos, resulta em danos diretos para os indivíduos e comunidades marginalizadas.

A negação do acesso igualitário à saúde perpetua e amplia as disparidades socioeconômicas e de saúde pré-existentes socialmente, marginalizando ainda mais aqueles que já estão em desvantagem: “a política da diferença está repleta de denúncias de discriminações e recusas que produzem cidadanias de segunda classe” (TAYLOR, 2000, p. 251). Tais fatos expostos, levam a uma série de impactos adversos: maiores riscos de doenças crônicas, incapacidades, pobreza e exclusão social. Além disso, a falta de acesso à saúde pode minar a dignidade e a autonomia dos indivíduos, privando-os do direito fundamental de buscar uma vida saudável e produtiva.

Os direitos humanos são inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, religião, sexo, orientação sexual, origem étnica, nacionalidade, idade, ou qualquer outra característica. Entre esses direitos fundamentais está o direito à saúde, reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, onde garantir o acesso universal a serviços de saúde de qualidade é essencial para proteger e promover a dignidade humana, a igualdade e o bem-estar de todas as pessoas.

A QUESTÃO DO “SELF” SEGUNDO TAYLOR

“A exigência de reconhecimento assume nesses casos caráter de urgência dados os supostos vínculos entre reconhecimento e identidade, em que “identidade” designa algo como uma compreensão de quem somos, de nossas características definitórias fundamentais como seres humanos” (TAYLOR, 2000, p. 241)

Dessa forma, a identidade pessoal do indivíduo se refere ao seu próprio “self”, que no qual, envolve narrativas e aspectos individuais do próprio ser, buscando um reconhecimento social, como ressalta Taylor (2000, p. 250):

Em primeiro lugar, na esfera íntima, em que compreendemos que a formação da identidade e do self ocorre num contínuo diálogo e luta com outros significativos. E, em segundo, na esfera pública, onde uma política do reconhecimento igual vejo a desempenhar um papel cada vez mais importante.

Na mesma perspectiva de reconhecimento, encontram-se os direitos básicos de saúde e as necessidades básicas da população que na qual qualquer indivíduo possui.

Segundo Aleixo (2022), 34% da população brasileira não tem acesso à atenção básica de saúde, representando 72,69 milhões de pessoas. Desse modo, a falta de atenção e de reconhecimento para essa parcela da população enfatiza ainda mais a negação da dignidade humana, a diversidade da equidade como também a responsabilidade coletiva da sociedade.

Visando os aspectos já abordados anteriormente, Taylor mostra em seu livro que uma imagem inferior ou desprezível de uma pessoa na sociedade em modo geral, oprime na medida que essa imagem é internalizada, sendo a causa principal a falta de reconhecimento social. Visando no aspecto de saúde e nas necessidades básicas dos indivíduos que não são sanadas pode ser analisada como uma manifestação da opressão estrutural, onde as estruturas e instituições sociais perpetuam desigualdades e discriminam certos grupos, negando-lhes o acesso a serviços essenciais, incluindo grupos marginalizados com base em raça, etnia, classe social, gênero e orientação sexual.

APLICAÇÃO DOS CONCEITOS DE TAYLOR AO CONCEITO DOS DIREITOS HUMANOS E À SAÚDE

Um dos conceitos bastante complexos do autor tange a respeito do diálogo como participação na construção de uma sociedade justa e inclusiva, em relação aos direitos humanos e à saúde, se aplica no modo de participação onde os indivíduos afetados precisam dessa comunicação para poderem garantir suas necessidades e que elas sejam de forma eficaz: “um modelo dialógico e consciente, que leva em conta a contribuição efetiva da racionalidade humana, a fim de encontrar formas de reorientar posições” (BENTO, 2018, p. 4). Além disso, a responsabilidade afetiva na sociedade pelo bem-estar e pelo funcionamento justo das instituições é um dos fatores importantes a serem enfatizados, no contexto da saúde, por exemplo, onde as instituições devem possuir cuidado e responsabilidade de garantir o acesso igualitário, para assim, garantir direitos para os indivíduos: “a atitude positiva que um sujeito pode tomar em relação a si mesmo, quando reconhecido dessa forma, é a da auto-estima: ao se achar estimado por suas qualidades específicas, o sujeito é capaz de se identificar totalmente com seus atributos e realizações específicas” (Honneth, 2007, p.87).

A exploração da importância do reconhecimento na construção da identidade e da dignidade humana é um aspecto fundamental da filosofia social e política de Charles Taylor, este argumenta que o reconhecimento desempenha um papel central na formação da identidade individual e coletiva, influenciando a maneira como as pessoas se veem e são vistas pelos outros na sociedade: “o pano de fundo que explicava o que pessoas reconheciam como importante para si mesmas era em larga medida determinado por seu lugar na sociedade e pelos papéis ou atividades vinculados com essa posição” (TAYLOR, 2000, p. 246).

Desse modo, o reconhecimento exposto por Charles Taylor é possível de ser aplicado no desenvolvimento de políticas públicas baseadas em direitos humanos que reconheçam o direito à saúde como um direito fundamental de todos os indivíduos, assim como a implementação de estratégias que garantam o acesso equitativo a esses serviços, inclusão das comunidades no processo de tomada de decisão, investimentos de educação em saúde e a redução de barreiras que impedem esse acesso pleno e equitativo.

Ao adotar essa abordagem holística, o avanço em direção a sistemas de saúde mais justos, inclusivos e eficazes, que garantam o acesso universal de qualidade para todas as pessoas torna-se possível.

NECROPOLÍTICA E ACESSO DESIGUAL AOS DIREITOS HUMANOS

O termo “necropolítica” entra na relação dos direitos humanos como uma crítica para examinar como o poder e a soberania podem ser exercidos de maneira a determinar quem tem direito à vida e à morte, e como isso impacta o reconhecimento e a realização dos direitos humanos, inclusive no acesso à saúde.

Esse conceito foi desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, que explora as formas como o poder soberano exerce esse controle. Dessa forma, colocando o conceito de necropolítica ao acesso aos serviços de saúde, observa-se que é distribuído de forma desigual, onde certas populações são deliberadamente negligenciadas ou excluídas. Podendo resultar em altas taxas de mortalidade e morbilidade entre grupos marginalizados, as políticas e práticas que negam o acesso à saúde a determinadas populações podem ser vistas como uma forma de necropolítica, pois implicam uma decisão sobre quem tem direito a viver com saúde e quem está condenado a sofrer e morrer.

Esse termo entra em questionamento quando a vida de certos grupos é considerada menos valiosa, violando então os princípios de igualdade e dignidade humana que fundamentam os direitos humanos. Mbembe (2018, p.60) ressalta:

Propus a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos.

Nessa perspectiva, ilustra como a necropolítica desafia os direitos humanos ao criar situações onde a vida de certas populações é constantemente ameaçada. Crítica às estruturas de poder que permitem tais condições e exige uma reavaliação das políticas e práticas para assegurar que todos tenham direito à vida e à dignidade. Se relaciona diretamente ao campo da saúde, mostrando como certas políticas e práticas deliberadamente criam condições de vida insalubres e perigosas para populações marginalizadas. Resultando em uma forma de existência onde essas populações são forçadas a viver como “mortos-vivos”, continuamente ameaçadas pela doença e pela morte, devido à negação sistemática de cuidados médicos e recursos de saúde essenciais, não exercendo os seus próprios direitos.

Além disso, a necropolítica pode ser observada na maneira como os sistemas de saúde são estruturados para beneficiar alguns enquanto marginalizam outros. Em muitos países, por exemplo, no próprio Brasil existe uma grande disparidade no acesso aos serviços de saúde entre as regiões mais desenvolvidas, como o Sudeste, e as regiões mais pobres, como o Norte e o Nordeste. Assim como as populações Indígenas e Quilombolas que muitas vezes vivem em áreas remotas com pouco ou nenhum acesso a cuidados médicos adequados. Desse modo, embora o Brasil tenha um sistema de saúde público (SUS), as condições variam significativamente, e muitas áreas pobres não possuem serviços de saúde de qualidade.

Em tempos de pandemia com a COVID-19, foi muito visualizado essa insuficiência na qualidade dos serviços básicos de saúde, havendo a distribuição desigual de vacinas e tratamentos que evidenciou como certos grupos foram priorizados sobre outros, refletindo uma necropolítica na gestão de recursos na saúde.

DIGNIDADE HUMANA COMO FUNDAMENTO DO DIREITO À SAÚDE

Hans Joas (2012, p. 25) destaca que:

A marcha triunfal dos direitos humanos desmente todos aqueles que querem se limitar a interpretar o presente ou os processos de modernização de modo geral sob o signo da decadência dos valores e da perda dos valores comuns. Mas justamente esse triunfo lança luz sobre “visões” mais antigas, sobre germes ou raízes dos direitos humanos em tradições individuais ou em todas as tradições religiosas e culturais.

Dessa forma, a ascensão dos direitos humanos como valores universais desafiam a visão pessimista de que a modernização resulta necessariamente na decadência dos valores e na perda de uma base ética comum. Ao contrário, o “triunfo” dos direitos humanos revela que esses valores, longe de estarem em declínio, têm raízes profundas e duradouras em várias tradições culturais e religiosas. Hans Joas em sua teoria da sacralização da pessoa, ecoa essa ideia ao argumentar que o reconhecimento dos direitos humanos é o resultado de uma transformação moral histórica que sacralizou a dignidade humana. De acordo com o autor, os direitos humanos não surgem na modernidade; eles têm germes em tradições religiosas e culturais que, ao longo do tempo, foram reinterpretadas e integradas em um sistema ético universal.

Dessa forma, a ideia de que cada pessoa possui uma dignidade intrínseca e inviolável foi progressivamente sacralizada. A pessoa humana passou a ser vista não apenas como um ser racional ou como um cidadão, mas como portadora de um valor supremo que deve ser protegido a todo custo. Nesse contexto, a noção de “integridade” se torna crucial, pois, como afirma Honneth (2007, p.88): “Integridade” é mencionada aqui apenas para indicar que os sujeitos são capazes de ficar tranquilos por saber que toda a gama de sua auto-orientação prática encontra suporte dentro de sua sociedade” (Honneth, 2007, p. 88).

Assim, se a pessoa humana é vista como portadora de um valor intrínseco e inviolável, garantir o acesso a serviços de saúde de qualidade torna-se uma obrigação moral, não apenas uma questão de política pública. Afinal, a saúde é fundamental para os indivíduos poderem viver com dignidade.

O conceito de autotranscendência como a capacidade de ir além dos próprios interesses para reconhecer a dignidade dos outros, é um conceito de Hans Joas, que pode ser aplicado na saúde pública sugerindo que a criação de sistemas de saúde inclusivos e equitativos seja uma forma da sociedade exercer autotranscendência. Reconhecendo então, a sacralidade da vida de cada indivíduo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, as estratégias para garantir o acesso universal a serviços de saúde de qualidade não podem ser dissociadas do contexto mais amplo do reconhecimento dos direitos humanos. Dessa forma, Charles Taylor argumenta que o reconhecimento é fundamental para a construção de identidades e para a promoção do respeito mútuo dentro de uma sociedade diversificada. Nesse sentido, o direito à saúde não é apenas uma questão técnica de prestação de serviços médicos, mas também uma questão de reconhecimento da dignidade e da igualdade inerentes a cada ser humano. As políticas e programas de saúde, por exemplo, podem promover ou prejudicar o reconhecimento de identidade dentro de uma sociedade, com isso se tem a importância do respeito aos diferentes indivíduos.

Paralelamente, também podemos concluir que as ideias de Charles Taylor sobre reconhecimento estão ligadas ao conceito de Necropolítica do filósofo camaronês Achille Mbembe, sendo a necropolítica fixada a estrutura e organização de saúde, perpetuando um ciclo da ausência de reconhecimento e favoritando o acesso e ajuda a uma demanda da sociedade civil. Para tal questão, surge o conceito de “sacralidade” de Hans Joas, mostrando que indivíduos ou grupos podem atribuir valores absolutos a determinados princípios ou realidades, não graças às leis e deveres oriundas da modernidade, mas graças à sua própria cultura e religiosidade.

Dessa forma, compete às instituições governamentais tornar sacralidade o acesso de todas as pessoas a assistência a cuidados hospitalares, garantindo o bem estar físico e mental. Tornando assim, a noção de “Integridade” de Axel Honneth, cabível a todas as pessoas que oferecem assistência médica como para aqueles que recebem essa assistência, tornando-as reconhecidas e íntegras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEIXO, Fábio. 34% da população não tem acesso à atenção básica de saúde, aponta novo estudo do IEPS, 22 dez. 2022. Disponível em: <https://ieps.org.br/34-da-populacao-nao-tem-acesso-a-atencao-basica-de-saude-aponta-novoestudo-do-ieps/>. Acesso em: 6 abr. 2024

BENTO, Everton Bruno Martin. Habermas: comunicação, diálogo e entendimento na obra consciência moral e agir comunicativo. Frontistés-Revista Eletrônica de Filosofia (2007-2018), v. 12, n. 22, 2018.

HONNETH, Axel. Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectivas na ordem moral da sociedade. In: SOUZA, Jessé; MATTOS, Patrícia (orgs.). Teoria crítica no século XXI. São Paulo: Annablume, 2007.

JOAS, Hans. A sacralidade da pessoa: uma nova genealogia dos direitos humanos. Tradução de Nélio A. Schneider. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.

TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento. In: TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Edições Loyola, 2000.


1Discente do curso de Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades – UFRN – 2022.1. E-mail: juliannenrocha@gmail.com.