REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11625074
Amanda de Sant’Anna Soares1
RESUMO
Este artigo aborda a declaração de inconstitucionalidade da tese de legítima defesa da honra e como isso afeta a defesa do réu em casos de feminicídio. O estudo explana os fundamentos da legítima defesa, o contexto histórico da defesa da honra, o conceito de feminicídio, apresenta considerações sobre o funcionamento do Júri popular e as alterações legislativas mais atuais relacionadas à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779. A pesquisa mostra como a tese da legítima defesa da honra evoluiu desde o período de vigência das Ordenações Filipinas, passando por antigos Códigos Penais brasileiros, até os recentes posicionamentos do Supremo Tribunal Federal (STF). Ademais, dá ênfase a casos notáveis cuja repercussão desencadeou movimentos sociais importantes para a moldura da jurisprudência nacional. Em seguida, examina os argumentos apresentados na ADPF 779, assim como as observações sobre um possível cerceamento ao princípio da plenitude de defesa. A avaliação mostra que a tese contrapõe os princípios constitucionais de dignidade humana e igualdade de gênero, e enfatiza a importância de uma atuação defensiva ética e responsável no Tribunal do Júri.
PALAVRAS-CHAVE: Inconstitucionalidade, Legítima defesa da honra, ADPF 779, Feminicídio.
ABSTRACT: This article aims to demonstrate the declaration of unconstitutionality of the legitimate defense of honor argument and its impact on the defendant’s defense in femicide cases. The study explores the foundations of legitimate defense, the historical context of honor defense, the concept of femicide and provides considerations on the functioning of the popular jury and the latest legislative changes related to the ‘’Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental’’ (ADPF) 779. The research traces the evolution of the legitimate defense of honor thesis from the period of the Philippine Ordinances, through the former Brazilian Penal Codes, to the recent positions of the Supreme Federal Court (STF). Furthermore, it emphasizes notable cases whose repercussions triggered important social movements for the framework of national jurisprudence. Then examines the arguments presented in ADPF 779, as well as observations on a potential infringement on the principle of the plenitude of defense. The evaluation shows that the thesis contradicts the constitutional principles of human dignity and gender equality, and emphasizes the importance of ethical and responsible defensive action in the jury trial.
KEYWORDS: Legitimate defense of honor, unconstitucionality, Jury trial, Femicide
1 INTRODUÇÃO
A violência doméstica, que frequentemente resulta em feminicídios, tem apresentado um aumento preocupante na sociedade brasileira. E concomitantemente, o sistema judicial está se adaptando para lidar de modo mais eficaz com tais crimes. Nesse cenário, a teoria da legítima defesa da honra é um dos elementos mais discutidos.
O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional a tese em casos de feminicídio, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 779 (ADPF 779). Logo, a principal questão a ser abordada é se essa ilegitimidade viola a plenitude de defesa no Tribunal do Júri. Apesar das polêmicas, foi suscitada a ideia de que quando a Corte decide priorizar conceitos como a proteção da vida e da dignidade do ser humano, ela não está violando a plena defesa dos réus, mas promovendo a justiça e a igualdade de gênero, e consequentemente, desestimulando a perpetuação de argumentos discriminatórios.
A pesquisa se justifica pela importância jurídica, social e moral de compreender as consequências da ADPF 779. Assim, este artigo examina a controversa tese ao longo de sua história e como ela é interpretada atualmente pelo STF. Além disso, de modo específico, busca explicar a relevância do princípio da plenitude de defesa no Tribunal do Júri e examinar as limitações impostas pela ADPF 779 na defesa dos réus, ressaltando os argumentos utilizados pelo Supremo Tribunal para invalidar a tese.
2 UMA ANÁLISE SOBRE A DECLARAÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA E SEUS IMPACTOS NA DEFESA DO RÉU EM CASOS DE FEMINICÍDIO
Para que se possa analisar os impactos da ADPF 779 na defesa do réu em casos de feminicídio é necessário, primeiramente, abordar alguns conceitos, tais como: legítima defesa, feminicídio, tribunal do júri e plenitude de defesa.
2.1 O CONCEITO DE LEGÍTIMA DEFESA
O artigo 25 do Código Penal brasileiro classifica a legítima defesa como uma medida judicial que absolve o indivíduo da sua responsabilidade criminal quando ele utiliza meios apropriados e proporcionais para repelir uma agressão injusta, seja atual ou iminente, e com o objetivo de proteger um direito seu ou de outra pessoa. Esse mecanismo visa preservar bens jurídicos essenciais como a vida, a integridade física e a liberdade.
Cleber Masson (2019, p. 335) explica:
“O instituto da legítima Defesa é inerente à condição humana. Acompanha o homem desde o seu nascimento, subsistindo durante toda a sua vida, por lhe ser natural o comportamento de defesa quando injustamente agredido por outra pessoa.”
De acordo com o artigo 23 do Código Penal, a legítima defesa apresenta uma natureza jurídica de causa de exclusão da ilicitude. Em outras palavras, é uma situação na qual a conduta típica (prevista como crime) não é considerada ilegal devido às circunstâncias que a motivaram. Porém para que a excludente seja aplicada, faz-se necessário o preenchimento dos seguintes requisitos:
- Agressão injusta, atual ou iminente;
- Contra direito próprio ou alheio;
- Reação com os meios necessários;
- Uso moderado dos meios necessários.
2.2 CONTEXTO HISTÓRICO E JURÍDICO DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA
Uma espécie polêmica de legítima defesa é a defesa da honra. Cujos marcos históricos e jurídicos importantes para a compreensão da ideia e da trajetória histórica desse argumento incluem as Ordenações Filipinas e os Códigos Penais de 1890 e 1940.
As Ordenações Filipinas vigoraram no Brasil Durante o período de 1603 a 1830 e embora não mencionassem explicitamente a “legítima defesa da honra”, permitiam que, por exemplo, um homem assassinasse a esposa em caso de adultério, conforme disposto no Título XXXVIII do Livro V:
“Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela, como o adúltero (7), salvo se o marido for peão, e o adúltero Fidalgo, ou nosso Desembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso mas será degradado para África, com pregão na audiência pelo tempo, que aos Julgadores bem parecer, não passando de três anos.”
Por sua vez, o Código Penal de 1890, no artigo 27, § 4º, dispunha que não seriam considerados criminosos “os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime”.
Nessa conjuntura, nota-se que os crimes passionais estavam sob a égide de uma excludente de ilicitude. Consoante as palavras de Cléber Masson (2013), os crimes de viés passional frequentemente eram absolvidos sob o argumento de que os perpetradores estavam privados de inteligência e dos sentidos devido à descoberta de traição conjugal ou forte ciúme.
O Código Penal de 1940 aboliu a excludente de “perturbação dos sentidos e da inteligência”, esclarecendo que tanto homens quanto mulheres estão sujeitos a trair ou serem traídos e que a traição é um desvalor restrito aos âmbitos éticos e morais, sem justificar violência.
Sabe-se que há muito tempo as mulheres têm vivido em condições desiguais às dos homens, enfrentando repressão e violência física, psicológica, sexual e patrimonial. Desse modo, a subordinação feminina e a violência de gênero refletem a visão machista de que a honra masculina é mais relevante do que a vida, a dignidade e segurança da mulher.
No entanto, com o aumento da consciência social sobre os direitos das mulheres e da importância de combater a violência de gênero, a tese de que a defesa da honra é legítima começou a ser questionada. As organizações de direitos humanos e o movimento feminista ajudaram a derrubar a ideia de que a honra masculina justificava a violência contra as mulheres.
2.2.1 Precedentes Jurídicos
Segundo Rogério Sanches Cunha:
Vale destacar que o caso mais antigo documentado no Brasil, palco para a ventilada tese, ocorreu no ano de 1873. O seu desfecho, curiosamente, surpreendeu, subvertendo a lógica preponderante na época: embora rico, desembargador, estimado na sociedade, Pontes Visgueiro, que assassinou uma prostituta por querer dela fidelidade, alegou legítima defesa da honra, mas acabou condenado à prisão perpétua (então vigente).
A violência contra as mulheres ganhou maior visibilidade nas décadas de 70 e 80, período marcado pela aplicação da tese da legítima defesa da honra para garantir a impunidade de criminosos passionais.
Um dos casos de maior comoção nacional foi o da socialite Angela Diniz, assassinada a tiros pelo namorado Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street. No primeiro julgamento, o defensor de Doca, Evandro Lins e Silva, alegou legítima defesa da honra, resultando em uma branda condenação a pena de dois anos de reclusão, com direito a sursis (dispensa do cumprimento de uma pena, no todo ou em parte). O réu saiu do tribunal livre e aclamado por uma multidão que o aplaudia. Após recurso da Promotoria e protestos feministas, um novo julgamento, em 1981, condenou Doca Street a 15 anos de reclusão por homicídio doloso qualificado.
‘’Um divisor de águas, sem dúvida, foi o assassinato de Ângela Diniz pelo namorado Doca Street. Na ocasião, feministas picharam muros com o bordão histórico “quem ama não mata’’. (CORREIO BRASILIENSE, 2011)
Outro caso notório é o de Eliane de Grammont, cantora assassinada durante um show em 1981 por seu ex-marido Lindomar Castilho. O então réu alegou que sua honra havia sido ofendida pelo mau comportamento de Eliane após a separação. Entretanto, o argumento não foi aceito pelos jurados e Lindomar acabou condenado a 12 anos de prisão.
Mas a morte de Eliane de Grammont não seria mais uma estatística. O clamor popular e o trabalho da imprensa fizeram a retórica machista cair por terra com frases como “Mulher não é propriedade” e “Assassinato é assassinato”. Dalí em diante, advogados passaram a repensar suas estratégias de defesa e tiveram que abandonar os convencionados “agiu em defesa da honra”, “ela não cumpria suas obrigações matrimoniais”, “(o homicida) estava sob forte emoção.(Jornal O Impacto, 2023)
Em 2016 ocorreu o caso de Nova Era (MG), em que Vagner Rosário Modesto desferiu 3 facadas na ex-companheira, cujo nome não foi noticiado. O réu confesso alegou ter agido motivado por uma possível traição da vítima e durante depoimento afirmou: “Desferi três facadas na minha ex, pois vi várias conversas amorosas no celular dela, sou trabalhador e não posso aceitar de forma alguma uma situação humilhante dessas’’
Vagner foi absolvido pelo Júri Popular em 2017. Os jurados aceitaram, unanimemente, que o homicídio tentado estava amparado pela “legítima defesa da honra”. Por sua vez, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiram, em sede recursal, que a absolvição contraditava as provas colacionadas aos autos processuais e deliberaram pela realização de um novo júri. Entretanto, no ano de 2020, a 1ª Turma do STF, enquanto julgava o HC 178.777, apresentou uma interpretação diferente e reformou as decisões do TJMG e do STJ.
Relativo ao HC 178.777, o relator, Ministro Marco Aurélio discorreu que:
“A partir da soberania dos veredictos, tem-se no artigo 483, parágrafo 2º, que respondendo os jurados aos dois primeiros quesitos (materialidade e autoria) de forma positiva, deve o corpo de jurados ser indagado se absolve ou não o acusado. Se absolve, tem-se o encerramento da quesitação. Decidindo os jurados pela condenação, o julgamento prossegue”. (BRASIL, 2020)
Isto posto, o STF consolidou a decisão absolutória por legítima defesa da honra, sustentada por um placar de três votos a favor e dois contra (Ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso).
A repercussão de casos como esses ajudou a demonstrar a oscilação na aceitação da tese pelos tribunais e sua gradual rejeição em face das mudanças sociais e jurídicas.
2.2.2 Base Jurídica e Críticas à Tese
Diversos fundamentos jurídicos refutam a justificativa de legítima defesa da honra. A exemplo, citam-se o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana que são garantidos pelo artigo 5º da Carta Magna de 1988 e incompatíveis com um argumento perpetuador de discriminações de gênero e violador de preceitos fundamentais.
Nas palavras de Capez (2004, p. 267), ‘’Todos os direitos são suscetíveis de legítima defesa, desde que previstos na ordem jurídica. Contudo, em casos de infidelidade conjugal, “nada justifica a supressão da vida do cônjuge adúltero”
Ademais, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), ratificada pelo Brasil em 1984, exige que os Estados-partes adotem medidas para eliminar a discriminação contra as mulheres.
2.2.3 Mudanças Legislativas e Sociais
A legislação brasileira contra violência doméstica apresentou progressos nas últimas décadas. A Lei nº 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, visa proteger as mulheres da violência doméstica e familiar, prevendo medidas protetivas de urgência como o afastamento do agressor do lar de convivência, proibição de contato com a vítima e providências para garantir a segurança da mulher. Além disso, a lei aumentou as punições aplicáveis aos agressores e instituiu tribunais especializados e instalações para atendimento às vítimas.
Outro progresso é a Lei 13.104/15 ou Lei do Feminicídio, que incluiu esse fato típico como uma qualificadora do homicídio doloso e modificou a Lei dos Crimes Hediondos, ou seja, o feminicídio integra o rol dos crimes hediondos.
Ante o exposto, para o doutrinador Rogério Greco (2013), trata-se de “uma resposta do Estado brasileiro à violência de gênero, que tem como objetivo garantir a proteção das mulheres e a punição dos agressores que cometem crimes hediondos motivados por razões de gênero.”
2.3 FEMINICÍDIO – CONCEITO
Este termo caracteriza os assassinatos de mulheres que têm motivações específicas ligadas à condição feminina. É uma forma extrema de violência que retrata a desigualdade e a discriminação de gênero presentes na sociedade e que tem sua definição legal estabelecida pela já citada Lei nº 13.104/15.
Nesse aspecto, o ministro Joel Ilan Paciornik, relator do REsp 1841046/RJ, declarou que, “para a caracterização do feminicídio, é necessária a evidente presença do elemento subjetivo do agente, que deve matar a mulher em razão da condição do sexo feminino e da violência doméstica e familiar”.
Tal definição engloba os homicídios de mulheres em contextos domésticos, familiares ou afetivos, bem como aqueles motivados por desrespeito ou discriminação à condição feminina.
“Feminicídio VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I – violência doméstica e familiar;
II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.”
Ainda segundo Greco (2013): “O feminicídio é um problema social grave que exige uma resposta efetiva do Estado, da sociedade e do sistema de justiça, de modo a proteger a vida das mulheres e promover a igualdade de gênero.”
Novos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) revelam que o Brasil tem um alto índice de feminicídios. Em 2023, houve 1.463 registros, levando a uma taxa de 1,4 vítimas a cada 100 mil habitantes, um aumento de 1,6% comparado ao ano anterior, representando o maior número já documentado desde a implementação da Lei. 13.104/15.
Dentro desse contexto, é importante ressaltar que as leis não só visam punir os agressores, mas também alertar a população sobre a seriedade dessa forma de violência.
2.4 SÍNTESE DE COMO O TRIBUNAL DO JÚRI OPERA NO ÂMBITO DO SISTEMA JURÍDICO DO BRASIL.
Previsto no artigo 5º, XXXVIII, da Constituição Federal de 1988, o Tribunal do Júri é um órgão do Poder Judiciário cuja competência é a de julgar crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, assim como os delitos conexos.
“Trata-se de uma garantia individual do réu ao devido processo legal e um direito individual do povo de participar diretamente nos julgamentos do Poder Judiciário.” (Nucci, 2020, p. 469).
Um dos seus princípios basilares é a “Plenitude de Defesa”, previsto no art. 5º, inciso XXXVIII, alínea ‘’a’’ da Constituição Federal de 1988. Importante para garantir um julgamento justo e imparcial, permitindo que o acusado tenha a oportunidade de defender-se das acusações que lhe foram imputadas. Assim, por plena defesa, entende-se que são aceitos argumentos jurídicos e não jurídicos, como os sociológicos, políticos, religiosos, entre outros.
2.5 A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 779 (ADPF nº779)
A ADPF é uma ação constitucional do controle concentrado brasileiro, prevista no artigo 102, § 1º da Constituição e criada como objetivo de proteger os preceitos fundamentais da Carta Magna, bem como, questionar a constitucionalidade de leis ou atos normativos duvidosos.
Assim, diante das várias situações em que a legítima defesa da honra foi alegada em Plenário e considerando as divergências de entendimento entre os Tribunais Superiores, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), fazendo uso da legitimidade ativa que lhe é conferida pelo art. 103, inciso VIII da CRFB/88 e art. 2º, inciso I, da Lei 9882/99, acionou o STF por meio da ADPF nº 779 para questionar a constitucionalidade da supramencionada tese de defesa.
Na arguição, o PDT confronta a constitucionalidade dos artigos 23, II, e 25 do Código Penal (CP) e do artigo 65 do Código de Processo Penal (CPP) face a uma interpretação que permite o uso da “legítima defesa da honra” como justificativa para absolvição de feminicidas.
[…]impetrar a presente ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL, com pedido liminar, em face do disposto nos artigos 23, II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal, e do artigo 65 do Código de Processo Penal, para que lhes seja atribuída interpretação conforme a Constituição, para que sejam considerados compatíveis com a Constituição apenas se excluída de seu âmbito de proteção a nefasta, horrenda e lesa-humanidade tese jurídica da ‘legítima defesa da honra’ (sic), pela qual se ‘admite’ (sic) que uma pessoa (normalmente, um homem) mate outra (normalmente, uma mulher) para ‘proteger’ (leia-se, ‘lavar’) sua ‘honra’ em razão de uma traição em uma relação afetiva, ou, alternativamente, para que seja declarada a sua não-recepção constitucional sem redução de texto, para declarar a não-recepção de quaisquer interpretações que ‘admitam’ essa nefasta, horrenda e anacrônica tese de lesa-humanidade[…] (ADPF 779, 2020).
2.5.1 Análise dos argumentos apresentados na ADPF 779
Ao compulsar os argumentos apresentados na Arguição, tem-se elencados como violados pelo poder público os seguintes preceitos fundamentais: direito à vida (art. 5º, caput, da CF/88), princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), princípio da não-discriminação (art. 3º, IV, da CF), princípios do Estado de Direito (art. 1º da CF), razoabilidade e proporcionalidade (art. 5º, LIV, da CF).
A relatoria da ação foi distribuída ao Ministro Dias Toffoli, que, em fevereiro de 2021, concedeu parcialmente a medida cautelar, estabelecendo entendimento de que a tese contraria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade entre os gêneros. Posteriormente, em março do mesmo ano, a cautelar foi referendada pelo Plenário.
Em seu voto, o relator indicou que a regra do artigo 28 do Código Penal diz que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal para evitar que a autoridade judiciária absolva um agente que agiu movido por ciúme. “Portanto, aquele que pratica feminicídio ou usa de violência com a justificativa de reprimir um adultério não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa”.
“[…]salta aos olhos que a ‘legítima defesa da honra’, na realidade, não configura legítima defesa. Tenho que a traição se encontra inserida no contexto das relações amorosas, sendo que tanto homens quanto mulheres estão suscetíveis de praticá-la ou de sofrê-la. Seu desvalor reside no âmbito ético e moral, não havendo que se falar em um direito subjetivo de contra ela agir com violência.[…]”
Enfatizando que a tese é um “estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida”, além de ser um argumento “atécnico e extrajurídico”. Completando sua perspectiva de que “é um recurso argumentativo e retórico odioso, desumano e cruel” que as defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher utilizam para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil.
O ministro Gilmar Mendes Gilmar afirmou que a limitação argumentativa estabelecida nesta ADPF deve ser aplicada a todos os envolvidos na persecução penal, incluindo o Magistrado, e não somente à defesa, ‘’por motivos de isonomia e paridade entre as partes’’. Redação acatada pelo relator, nos termos:
(iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento (TOFFOLI, ADPF 779 )
O STF, de forma unânime, considerou a legítima defesa da honra incompatível com os princípios de dignidade humana, igualdade e não discriminação, fundamentando sua decisão em princípios e dispositivos constitucionais, bem como em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
2.6 EFEITOS DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA NO QUE CONCERNE À DEFESA DOS RÉUS
O julgamento da ADPF 779 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) representa um marco significativo na proteção dos direitos das mulheres no Brasil. Porém, como em qualquer decisão judicial, há pontos controversos. A principal objeção é a possível restrição à plenitude da defesa dos réus. Ora, uma vez declarada inconstitucional, a tese não pode mais ser utilizada como argumento em processos judiciais e, por conseguinte, advogados de defesa deverão buscar métodos alternativos que não se amparem em argumentos discriminatórios, sob pena de nulidade.
André Esteves de Andrade, defensor público do Estado do Rio Grande do Sul, argumenta em seu artigo “Quando se tranca a porta e se escancara a janela: a censura à plenitude de defesa”:
“Veja bem, é necessário repetir. Não foi somente a legítima defesa da honra que foi considerada inconstitucional. Foi a tese defensiva! O que foi obstado não foi a aceitação da tese pelo juiz, mas, sim, o próprio direito de alegação pelo defensor. Com a devida vênia, desconhece-se hipótese em que ministro da Suprema Corte tolheu de forma tão evidente e direta o direito de a defesa utilizar a argumentação que entende suficiente para bem exercer sua função.”
No mesmo sentido, Avelar e Silva (2021) citam a direta violação ao princípio da plenitude de defesa provocado pelo impedimento da defesa técnica de sustentar a tese que entender válida ou mesmo pela proibição de que o acusado fale algo em interrogatório, por mais absurda que a sustentação ou o discurso seja.
Em seu artigo “O embaralhamento entre plenitude e ampla defesa”, Santos (2021), defensor público do Estado do Rio de Janeiro, tece críticas a ADPF 779 ponderando que, embora a legítima defesa da honra seja de fato indefensável do ponto de vista moral e jurídico, sua proibição pode limitar a defesa em casos onde outros fatores emocionais, como ciúme ou humilhação, estão presentes.
[…]o ciúme, a depender das circunstâncias, nem sempre encerra misoginia, machismo. Tal associação não é automática, comportando variantes que não necessariamente se enquadram na dita “legítima defesa da honra”, porquanto presentes independentemente da identidade de gênero e da orientação sexual dos (as) envolvidos(as).
Antagonicamente, Toffoli explicita em seu voto que a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, o direito à igualdade e a vedação a todas as formas de discriminação, prevalecem sobre a plenitude de defesa face aos “riscos elevados e sistêmicos decorrentes da naturalização, da tolerância e do incentivo à cultura da violência doméstica e do feminicídio’’.
O relator acrescentou ainda que, caso invocada para assegurar a tese, a plenitude de defesa ‘’teria a função ultrajante de salvaguardar a prática ilícita do feminicídio ou de qualquer outra forma de violência contra a mulher’’, um fato inaceitável no Brasil, um país que tem a vida como o bem jurídico mais valioso do Direito, “por opção inequívoca da Constituição de 1988”.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo analisou a rejeição da tese de legítima defesa da honra em casos de feminicídio, apontando seus impactos na garantia da plena defesa no âmbito do Júri. Dessa forma, foi examinada a evolução do conceito de legítima defesa da honra desde as Ordenações Filipinas até as decisões mais recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 779.
Com base no estudo, é viável afirmar que a tese comumente empregada para defender a impunidade de feminicidas nos tribunais não está de acordo com os princípios constitucionais da dignidade humana, igualdade de gênero e direito à vida.
O STF, ao proibir o uso do referido argumento, suscitou necessárias reflexões jurídicas e sociais. Reforçando a importância de uma atuação defensiva ética e responsável, alinhada aos direitos humanos e ao incentivo da igualdade de gênero. Nesse contexto, a Suprema Corte presta auxílio na formação de uma série de decisões judiciais que priorizam a proteção da vida e da integridade feminina, impedindo a disseminação de pensamentos que normalizam a violência de gênero.
Por todo o exposto, é fundamental manter os debates acadêmicos e jurídicos sobre a ADPF 779, a fim de promover reflexões críticas sobre como aplicar os princípios constitucionais em casos de violência de gênero e como as resoluções estabelecidas na Arguição podem afetar a percepção da sociedade sobre os direitos das mulheres.
Em síntese, é evidente o grande avanço na luta pela justiça e pela preservação da vida feminina. Todavia, ainda há várias medidas a serem adotadas para garantir a implementação eficaz das determinações da ADPF 779 . Então por fim, ressalta-se que a defesa seja exercida de forma responsável, moral e ética, em conformidade com a Constituição Federal e os direitos humanos
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1Graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro; E-mail: a.santanna07@gmail.com; ORCID: 0009-0002-5005-9580.